CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
TERCEIROS
Sumário


I – O efeito positivo do caso julgado material assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.
II - Para que a autoridade do caso julgado actue não se exige a coexistência das três identidades respeitante aos sujeitos, pedido e causa de pedir.
III - No que se refere à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, pode estender-se àqueles que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa.
III – O caso julgado formado sobre uma determinada relação jurídica pode fazer sentir a sua influência sobre outras relações jurídicas quando estas estejam para com aquela num nexo de dependência tal que seja logicamente inevitável a repercussão, segundo o critério da prejudicialidade.

Texto Integral


ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

A autora EMP01..., SA., com sede na Avenida ..., ..., ..., em ..., intentou acção declarativa com processo comum contra o réu CONSTRUCTORES DAS EMP02..., ACE., com sede na Rua ... A, C e D, em ..., pedindo a sua condenação a pagar:

a. A quantia de € 62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o dia 26 de novembro de 2020 até integral pagamento, sendo os juros vencidos no valor de € 18.301,37 (dezoito mil trezentos e um euros e trinta e sete cêntimos);
b. Os dividendos deliberados distribuir pelo réu respeitantes ao primeiro semestre de 2019, acrescidos de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento, a liquidar posteriormente.
Para o efeito alegou que cedeu a sua participação no réu à sociedade comercial sociedade comercial EMP03..., Sa, ficando acordado com a cessionária que a cessão produzia efeitos por referência ao dia ../../2019, pelo que tem direito aos dividendos que reclama, uma vez que são relativos a um período anterior a esta data. Acrescenta que esta questão foi discutida com a cessionária no processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...), onde a cessionária reclamava os dividendos relativos ao período entre o dia ../../2017 e o dia ../../2019, tendo sido julgada improcedente, por o tribunal ter considerado que a data de ../../2017 se referia apenas ao pagamento do passivo bancário relacionado com o financiamento da aquisição da participação da autora, o que não incluía os dividendos do réu.  Considera, pois, que essa decisão implica que os dividendos relativos ao período anterior ao dia ../../2019 sejam devidos à autora.

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O réu contestou alegando que não foi parte no processo n.º 904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...) e não está vinculado pela sentença que foi proferida, mais acrescentando que não sabe se os dividendos reclamados pela autora são devidos a esta ou à cessionária e que por este motivo tem a quantia de € 62.500,00 cativa até ficar decidido a quem é devida.
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O tribunal a quo, considerando permitirem os autos conhecer imediatamente da causa, sem necessidade de mais provas, nos termos do art. 595.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil, face à invocada autoridade de caso julgado da sentença que foi proferida no processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...), julgou a acção parcialmente procedente, condenando, em consequência, o réu a pagar à autora a quantia de € 62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o dia 26 de novembro de 2020 até integral pagamento, sendo os juros vencidos no valor de € 18.301,37 (dezoito mil trezentos e um euros e trinta e sete cêntimos), bem como a pagar à autora os dividendos deliberados distribuir pelo réu respeitantes ao primeiro semestre de 2019, a liquidar posteriormente, no mais, absolvendo o réu dos pedidos contra si formulados.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida, veio o Réu interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

A) O Réu, aqui Recorrente, nunca foi parte na ação judicial respeitante ao processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...), referida na decisão da qual agora se recorre;
B) Nem o objeto dos presentes Autos, agora em recurso, é referida no processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...);
C) Deve aqui ser sublinhado os requisitos/pressupostos essenciais do instituto em causa, realçando a importância da identidade de sujeitos (requisito subjetivo);
D) Acerca do instituto da autoridade de caso julgado, devem ser considerados os seus requisitos essenciais, com vista a garantir a estabilidade do dispositivo de uma decisão transitada em julgado, impedindo-se a reabertura da discussão processual acerca de idêntica relação jurídica, impõe-se, por conseguinte, que o teor decisório seja respeitado em decisões posteriores cujo objeto o pressuponha ou com ele colida;
E) A força de caso julgado de uma decisão é suscetível de revelar-se sob a forma de exceção dilatória, enquanto impedimento processual à apreciação de idêntico objeto, ou nas vestes de autoridade positiva, quando o que foi decidido, a título principal, é prejudicial numa segunda ação;
F) A verificação da autoridade de caso julgado não prescinde da aferição dos seus requisitos, quais sejam: (i) objeto, (ii) sujeitos e (iii) efeito positivo interno e, efeito positivo externo:
G) O caso julgado abrange os sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objeto da decisão; dito de outro modo, os limites subjetivos do caso julgado coincidem com os limites subjetivos do próprio objeto da decisão;
H) Decorre que a autoridade de caso julgado pode ser oposta pelas concretas partes entre si e não pode ser oposta a quem é terceiro;
I) Releva assim no caso da autoridade do caso julgado, relação de conexão e prejudicialidade entre os dois objetos processuais;
J) No que diz respeito aos sujeitos, é essencial verificar as partes das duas ações, porquanto a autoridade do caso julgado não prescinde da identidade de sujeitos, que há de ser aferida à luz do que vem enunciado no n.º 2 do artigo 581.º do CPC;
K) A força vinculativa da decisão anterior só se verifica quando estejam em causa os mesmos sujeitos, sob o ponto de vista da qualidade física e intervenção processual;
L) Exige-se assim a identidade entre as partes não podendo terceiros, como é o caso do ora Recorrente, ser sujeito aos efeitos de julgado alheio, sob pena de violação da garantia constitucional e ordinária do direito de defesa, prevista no artigo 20.º n.º 4 da Constituição e no artigo 3.º n.º 2 do CPC;
M)O requisito subjetivo, que corresponde à identidade de partes das duas ações, do «ponto de vista da sua qualidade jurídica» (artigo 581º nº2 do CPC), foi violado na decisão agora em recurso;
N) Face ao exposto, entende o Recorrente que o recurso e as alegações devem ser procedentes e em consequência e o Réu, aqui Recorrente, ser absolvido.
Nestes termos, devem as presentes alegações e recurso serem procedentes e em consequência a decisão que condenou o ora Recorrente ser revogada e substituída por outra que reconheça que não há caso julgado aplicável no âmbito dos presente Autos, absolvendo assim o Recorrente, tudo com custas a cargo da Recorrida. Justiça.
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A A./Recorrida veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo no sentido do recurso interposto pelo Recorrente ser julgado totalmente improcedente e a ampliação do objecto do recurso ser julgada procedente e, caso se entenda que o recurso interposto pelo Recorrente deve proceder, o que em caso algum se admite, sejam conhecidas as outras questões suscitadas na acção e que ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio pelo Tribunal a quo, por forma a fazer-se, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!
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Foram colhidos os vistos legais, após recebimento do recurso.
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III - O Direito

Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2, 635º., nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso. 
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre proceder à apreciação da questão respeitante à autoridade do caso julgado.
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Fundamentação de facto

Factos provados
1. O réu é um agrupamento complementar de empresas;
2. A autora era agrupada do réu com uma participação de 12,5%;
3. No dia 17 de dezembro de 2019, a autora acordou com a sociedade comercial EMP03..., Sa. na cessão da sua participação no réu;
4. No dia 28 de julho de 2020 a cessão da participação da autora foi autorizada pela assembleia geral do réu;
5. No dia 26 de junho de 2019, a assembleia geral do réu deliberou e aprovou a distribuição de dividendos do exercício de 2018;
6. Atendendo à sua participação, cabia à autora a quantia de € 62.500,00;
7. O réu entregou esta quantia à autora;
8. A autora devolveu esta quantia ao réu porque estava convencida que respeitava aos dividendos do segundo semestre de 2019, os quais não lhe pertenciam atendendo a que havia acordado com a sociedade comercial EMP03..., Sa. que a cessão da participação produzia efeitos por referência ao dia ../../2019;
9. No dia 26 de novembro de 2020, a autora apercebeu-se do seu lapso e reclamou ao réu que devolvesse a quantia;
10. O réu recusou devolver a quantia à autora;
11. No dia 17 de fevereiro de 2021, a sociedade comercial EMP03..., Sa. intentou contra a autora a ação do processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...);
12. Nesta ação a sociedade comercial EMP03..., Sa. reclamava os dividendos relativos ao período entre o dia ../../2017 e o dia ../../2019;
13. A sociedade comercial EMP03..., Sa. sustentava que havia ficado acordado que a cessão da participação produzia efeitos por referência ao dia ../../2017;
14. A autora contestou a ação sustentando que havia sido acordado que a cessão da participação produzida efeitos por referência ao dia ../../2019;
15. Por sentença proferida no dia 19 de dezembro de 2022 a ação foi julgada improcedente;
16. Na parte que agora interessa, o fundamento para esta decisão foi o seguinte:
­ ‘nada se provou quanto à alegada produção de efeitos destes negócios nas relações internas entre as partes à data de ../../2017 para além do que consta desse acordo - essa data releva apenas para o pagamento do passivo aos bancos relacionado com o financiamento para a aquisição das participações sociais em causa’.
17. A sociedade comercial EMP03..., Sa. interpôs recurso desta sentença, mas o recurso foi julgado improcedente por acórdão da Relação de Guimarães de 21 de setembro de 2023;
18. Atualmente, a sociedade comercial EMP03..., Sa. tem a designação de EMP04..., Sa.;
19. No dia 26 de outubro de 2023, a autora comunicou ao réu a sentença e o acórdão que foram proferidos e reclamou novamente a devolução da quantia de € 62.500,00;
20. No dia 8 de janeiro de 2024, o réu respondeu à autora que a sociedade comercial EMP04..., Sa. tinha informado através de carta que considerava que a quantia de € 62.500,00 devia ser-lhe entregue;
21. No dia 18 de janeiro de 2024, o réu recusou devolver a quantia à autora por não saber a quem eram devidos os dividendos.
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Fundamentação jurídica

Defende o R./Recorrente não se verificar caso julgado, pedindo consequentemente que seja revogada a decisão proferida e substituída por outra que absolva o recorrente, invocando, em suma, para esse efeito, que não foi parte na acção judicial respeitante ao processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...) e que como a autoridade do caso julgado não prescinde da identidade de sujeitos, que há-de ser aferida à luz do que vem enunciado no n.º 2 do artigo 581.º do CPC, sendo terceiro, não pode ser sujeito aos efeitos de caso julgado alheio, sob pena de violação da garantia constitucional e ordinária do direito de defesa, prevista no artigo 20.º n.º 4 da Constituição e no artigo 3.º n.º 2 do CPC.
Já, por sua vez, a A./Recorrida defende que há identidade de sujeitos não só quando as partes são as mesmas, do ponto de vista da sua qualidade jurídica, mas também quando envolvem terceiros juridicamente indiferentes, como é o caso do Recorrente, por a referida acção ter decorrido entre os únicos interessados na definição dos respectivos interesses da relação subjacente e legítimos contraditores, sem que resulte para o R./recorrente qualquer prejuízo.
Acrescenta que ainda que se entendesse que não há identidade de sujeitos, também a autoridade do caso julgado não a exige, podendo atingir terceiros se uma dada acção tiver decorrido entre todos os interessados directos, como é o caso, e sempre à mesma conclusão - – de vinculação do Recorrente à decisão proferida na anterior acção – se chegaria por via da eficácia reflexa do caso julgado.
Vejamos.
A resposta a esta questão assim enunciada prende-se, pois, com a problemática da eficácia objectiva do caso julgado material formado com o trânsito em julgado da decisão anteriormente proferida na acção em que o R./Recorrente não foi parte.
Como é sabido, o caso julgado material radica no disposto nos art.ºs 619º, nº 1 e 621º, ambos do NCPC, dispondo o primeiro que “t[T]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “a[A] sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”
Manuel de Andrade fornece-nos a seguinte noção de caso julgado material (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 305): “Consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.”.
Na verdade, o caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurí­dica, fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido – art.º 2º da Constituição da República Portuguesa –, destinando-se a evitar que no exercício da função jurisdicional, duplicando-se as decisões sobre idêntico objecto processual, se contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
Como referiu Alberto dos Reis, “se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo, a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação, da anarquia.” (in, Código de Processo Civil, anotado, p. 94).
Pode dizer-se então que o caso julgado consubstancia a ideia de uma decisão judicial firme, ou que traduz a decisão judicial que se consolidou na ordem jurídica.
Esta excepção pressupõe, nos termos do art.º 497º, nºs 1 e 2 do NCPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua Anselmo de Castro (in “Processo Civil Declaratório”, Vol. II, p. 242), ao afirmar que tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias.
O caso julgado pode ser formal ou material. Haverá caso julgado formal se a sentença ou o despacho incidirem, apenas, sobre a relação processual, circunscrevendo-se a sua força obrigatória à questão processual concreta julgada no processo (art.º 620º do NCPC). Já o caso julgado material respeita ao mérito da causa subjacente à relação material controvertida, passando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, de acordo com o nº 1 do art.º 619º do NCPC.
No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina, quer a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida a excepção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em acção futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Segundo Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, p. 93, o caso julgado material exerce a sua função positiva quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões, na sua força obrigatória, exercendo a sua função negativa quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal.
Citando Castro Mendes, escreveu também Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, p. 325) que: “(…) pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, enquanto que a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (...).”.
Este efeito positivo do caso julgado material assenta, pois, numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

Como se referiu no Ac. do STJ, de 5.12.2017, relatado por Pedro Lima Gonçalves e disponível in www.dgsi.pt:
«I - A lei processual civil define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado traduz-se na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do respectivo trânsito em julgado – arts. 619.º, n.º 1, e 628.º, ambos do CPC.
II - Ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“exceção do caso julgado”).
III - A função positiva opera por via de “autoridade de caso julgado”, que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em acção anterior e que se inscreve, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda – não possa voltar a ser discutida.
IV - A função negativa opera por via da “excepção dilatória do caso julgado”, pressupondo a sua verificação o confronto de duas acções – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.».

Desta distinção resulta mesmo o entendimento de que os requisitos ou pressupostos da excepção, que enunciamos supra, e da autoridade do caso julgado não serem necessariamente iguais.
Assim, para que a autoridade do caso julgado actue não se exige a coexistência das três identidades referidas no art.º 498.º do NCPC, sujeitos, pedido e causa de pedir.
Neste sentido podem ver-se, entre outros, o ac. do STJ de 06.03.2008, relatado por Oliveira Rocha e disponível in www.dgsi.pt, quando refere que: “(…) a excepção de caso julgado tem por fim evitar a repetição de causas e os seus requisitos são os fixados no art. 498.º do CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. A autoridade de caso julgado, diversamente, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que se aludiu, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida (…).”.
Na verdade, e no que se refere à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, a verdade é que se estende àqueles que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa, consoantes os casos.
Nesses casos, quem não for parte na acção pode beneficiar do efeito favorável do caso julgado, não sendo repetível o objecto da acção já definitivamente julgada (neste sentido, entre outros, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, p. 593 e o Ac. do STJ de 28.03.2019, relatado por Tomé Gomes e acessível in www.dgsi.pt).
O problema da autoridade do caso julgado conduz ainda à questão de saber o que é que na sentença constitui a autoridade de caso julgado e o que é que não pode constituir.
A corrente predominante relativamente a esta questão perfilha um entendimento mitigado, no sentido de que, muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não deva, como princípio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se apenas à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final, será, todavia, de se estender também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado [cfr. Manuel de Andrade, in ob. cit., p. 285; Castro Mendes, in Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, p. 152 e seguintes, e Miguel Teixeira de Sousa, in Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, p. 309 a 316].
Com efeito, nas impressivas palavras de Teixeira de Sousa “n[N]ão é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.” [vide, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 578-579].
Na esteira desta doutrina, entre muitos outros, o Ac. do STJ de 12.07.2011, já acima citado, decidiu que “(…) III - A expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673.º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção. IV - Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado. V - Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada.” (no mesmo sentido veja-se também o Ac. do STJ, de 22.02.2018, revista n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1, o Ac. do STJ de 12.04.2023, o Ac. da RP de 5.02.2024, e os Acs. desta Relação de Guimarães, de 16.02.2023, e de 23.11.2023, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Como o referiu, com relevante interesse para o presente caso, o Ac. do STJ, de 08.10.2018, prolatado no processo nº 478/08.4TBASL.E1.S1 e acessível in www.dgsi.pt, ‘a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em acção posterior no quadro da relação material controvertida’.
Especificamente quanto à questão de saber quais são os terceiros que, por serem titulares de relações jurídicas conexas, dependentes ou concorrentes com a que foi apreciada e definida pelo caso julgado, devem considerar-se sujeitos a ele, diz-nos Alberto dos Reis, ob.cit., págs.246 e 247, o «caso julgado formado sobre uma determinada relação jurídica só deve fazer sentir a sua influência sobre outras relações jurídicas quando estas estejam para com aquela num nexo de dependência tal que seja logicamente inevitável a repercussão. E para se caracterizar esta dependência parece-nos aceitável o critério de Allorio – o critério da prejudicialidade. Se a relação coberta pelo caso julgado entre na formação doutras relações, como pressuposto ou como elemento necessário, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado sobre essas relações, na medida em que ele fixou e definiu a relação prejudicial».
E tem sido esse o critério seguido pela jurisprudência e pela doutrina atrás citadas.
Claro que, quanto aos terceiros juridicamente indiferentes, o caso julgado não pode causar-lhes prejuízo de natureza jurídica, pelo que não pode deixar de admitir-se que estão sujeitos ao caso julgado alheio.
A questão coloca-se, precisamente, em relação aos terceiros juridicamente interessados, sendo que, como já vimos, é o nexo de prejudicialidade que nos fornece o critério geral de solução do problema da repercussão do caso julgado sobre as relações jurídicas de terceiros.
Em função do que se explanou, deve entender-se que quando opere a autoridade de caso julgado o tribunal em que se faça valer essa excepção resulta impedido de apreciar os factos inerentes ao objeto prejudicial, na medida em que, também eles, como premissa do silogismo que conduziu à decisão desse objecto, se inscrevem no objecto da acção dependente.
Teixeira de Sousa, no seu estudo sobre o ‘Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material’, pg. 132, apontou que «das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva». E que «a consumpção objectiva pode ser reciproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão, e não reciproca, se os objectos processuais tem distinta extensão». Relativamente à consumpção não reciproca, a mesma pode ser inclusiva, «se o objecto antecedente engloba o objecto subsequente, e prejudicial, se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente. Assim, a consumpção reciproca e a consumpção não reciproca inclusiva firmam-se na repetição de um objecto antecedente num objecto subsequente e a consumpção não reciproca prejudicial apoia-se na condição de um objecto anterior para um objecto posterior». Acrescentando: «Esta repartição nas formas e consumpção objectiva, acrescida de identidade de partes adjectivas, é determinante para a qualidade da relevância em processo subsequente da autoridade de caso julgado material ou da excepção de caso julgado: quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior».
E a respeito da eficácia reflexa do caso julgado, acrescentou que a mesma verifica-se «quando a acção decorreu entre todos os interessados directos (quer activos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (na expressão do art.2503 § único , CC/1867) deve ser aceite por qualquer terceiro» (cfr. mesmo autor, in  «Estudos Sobre o Novo Processo Civil», p 590).
A lei pode, ainda, admitir mecanismos de extensão eventual do caso julgado a terceiros secundum eventum litis, em que o terceiro tem a faculdade de fazer seus os efeitos da sentença para os opor à parte contrária.
Se é o próprio a querer “usar” da decisão, parece ser de defender a existência de um princípio de adesão ao caso julgado alheio.
Posto isto, importa agora ter em consideração as circunstâncias concretas do caso, levando em conta que a matéria de facto dada como provada não foi impugnada.
Assim, dos factos resulta, para o caso que agora nos interessa, que no dia 26 de Junho de 2019, a assembleia geral do réu deliberou e aprovou a distribuição de dividendos do exercício de 2018, considerando caber à A a quantia de € 62.500,00, atendendo à sua participação, pelo que o réu entregou esta quantia à autora (cfr. pontos 5, 6 e 7).
Contudo, a autora devolveu essa quantia ao réu porque estava convencida que respeitava aos dividendos do segundo semestre de 2019, os quais não lhe pertenciam atendendo a que havia acordado com a sociedade comercial EMP03..., Sa. que a cessão da participação produzia efeitos por referência ao dia ../../2019 (ponto 8).
Apercebendo-se do seu lapso, a A. reclamou ao réu a devolução dessa quantia, que o R. recusou (pontos 9 e 10).
Entretanto, a 17 de Fevereiro de 2021, a sociedade comercial EMP03..., Sa. intentou contra a A. a acção do processo n.º 904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...), reclamando os dividendos relativos ao período entre o dia ../../2017 e o dia ../../2019, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, confirmada por este tribunal.
Face ao decidido, de novo, a A. reclamou a devolução da quantia de € 62.500,00, decorrente da comunicação do decidido nessa acção, mantendo o R. a sua posição de recusa (cfr. pontos 11, 17, 19 e 21).
Ora, a questão essencial que importava esclarecer na anterior acção era se o acordo de transmissão do negócio das águas, celebrado a ../../2017 (incluído no acordo geral de partilha de negócios que as duas famílias tinham em comum), através do qual ficou definido que o autor, directamente, ou através de sociedade por si a indicar, adquiria as águas pelo preço global de 35 milhões de euros, vinculava as partes desde ../../2017, estando, por isso, os réus obrigados a entregar aos autores as quantias que receberam do ACE EMP02... e referentes ao período entre ../../2017 e ../../2019 (data em que foi formalizada a transmissão das participações sociais relativas às sociedades “EMP05...” e “EMP06...”), sem pagamento do preço, que foi objeto de acordo em 18/10/2019, e que apenas viria a ocorrer em 17/12/2019, data em que também foi celebrado o contrato de cessão da posição contratual no ACE EMP02..., através do qual a aqui A. cedeu à 3.ª autora na referida acção a participação por si detida no ACE, livre de quaisquer ónus ou encargos e com todas as obrigações e direitos inerentes, tendo as partes previsto, nesse contrato, que a cessão produzia efeitos a 10/07/2019.
A este respeito, em sede de recurso, teve-se em conta, quanto ao decidido que ‘no momento em que se iniciaram as conversações e se concluiu o acordo para partilha de negócios, não era, ainda, possível saber, com certeza, como iria, a final, ficar delineado o negócio das águas, pelo que, seria de todo improvável que se fixasse a sua produção de efeitos, com vinculação das partes, a uma data em que não era ainda possível saber quais seriam os contornos finais do dito negócio’, pelo que o ‘facto de ter ficado consignado que, a partir de dezembro de 2017, seria o autor a realizar os aportes necessários para fazer face aos pagamentos da dívida e dos juros, não pode considerar-se para o efeito pretendido pelos recorrentes’.
Assim, considerou-se resultar dos factos provados ‘que o acordo inicial só se concretizou em todas as suas vertentes, a partir de 10/07/2019, data em que foi formalizada a transmissão das participações sociais’ (…) Com o particular relevo dado ao facto de aí se ter consignado que a cessão produzia efeitos a 10/07/2019. No mesmo sentido vai o facto de a 3.ª ré ter devolvido à ACE a quantia de €62.500,00 por ter partido do pressuposto (errado, como se veria depois) de que a referida verba respeitava ao segundo semestre de 2019 e, como tal, não lhe pertencia a si, mas à 3.ª autora (porque posterior a julho de 2019), sendo que reteve todas as outras verbas pagas pela ACE entre dezembro de 2017 e julho de 2019, considerando que a formalização e transmissão das participações sociais só nessa data ocorreu e, como supra descrevemos, só a partir dessa data produziu efeitos, designadamente quanto a todos os ativos integrados no negócio das águas’.
Concluiu-se, assim, que outra não poderia ser a interpretação dos negócios em causa e que os AA. não fizeram prova do seu direito aos pagamentos  referentes ao período entre ../../2017 e ../../2019, data do contrato de compra e venda das participações sociais e em que aquele acordo de transmissão se concretizou.
Como tal, não sendo devido o valor que se reivindica na presente acção à AA, ora EMP04..., S.A., em conformidade cm o que se decidiu na anterior acção, está o R. obrigado a acatar o já decidido, constituindo o objecto da 1ª acção questão prejudicial na presente acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.
Assim sendo, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado formado na 1ª acção, na medida em que ela fixou e definiu a relação prejudicial.
Na verdade, estamos perante relações jurídicas com um nexo de dependência tal que é, logicamente, inevitável a repercussão.
Aliás, o próprio R. reconheceu ser devido esse valor à A., a quem entregou inicialmente essa quantia, resultando do facto dado como provado no ponto 6, dos factos dados como provados e não impugnados, que atendendo à participação da A. no exercício de 2018 no ACE, lhe cabia a quantia de €62.500,00€.
Aliás, como o próprio R. deixa patente, para si importa definir a quem entregar essa quantia, sendo indiferente se é a um ou outro dos interessados que intervieram na anterior acção.
Ora, se já se decidiu que não é aos AA. na anterior acção que cabe receber os dividendos até ao primeiro semestre de 2019, mas sim à aqui A./Recorrida, face à data de referência a que tem de se atender, nenhum prejuízo para si decorre, face ao exposto.
Como tal, por via do já decidido por decisão transitada em julgado, do que decorre dos factos provados postos em evidência e questões colocadas em evidência na anterior acção, é de julgar improcedente o recurso interposto pela Ré, confirmando-se, consequentemente, o decidido.
Uma vez que a ampliação do recurso foi deduzida a título
subsidiário para o caso de o recurso interposto ser julgado procedente, fica prejudicado o seu conhecimento.
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IV- Decisão

Nestes termos, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se, consequentemente,  a  decisão  proferida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 27.02.2025
(A presente decisão foi elaborada em processador de texto pela primeira signatária sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nas transcrições que a ele atenderam, e é assinada electronicamente)

Maria dos Anjos Melo
Raquel Baptista Tavares
José Cravo Dias Cravo