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DOAÇÃO
NULIDADE
VÍCIO DE FORMA
Sumário
1 - Tendo ocorrido a identificação de doadora em escritura pública de doação apenas por abonadores, estrangeiros, sem que tenha sido certificado o seu conhecimento da língua portuguesa e sendo um deles pai do donatário menor e não se provando que o outro conhecesse sequer a doadora, o ato está inquinado por vício de forma e, como tal, nulo, sem possibilidade de suprimento da nulidade uma vez que a incapacidade surge em ambos os abonadores. 2 –A nulidade dos atos por vício de forma, decorrente da preterição das normas imperativas aí fixadas, é determinada por razões de interesse público visando fins de certeza e segurança do comércio em geral, que regem a forma do ato e que, por isso mesmo, não podem ser preteridas, sob pena de violação do princípio da confiança que lhe está ínsito.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO
AA deduziu ação declarativa contra BB e CC, em que formula os seguintes pedidos:
A – Ser declarado que no momento de assinatura da escritura de DOAÇÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO E DE MEAÇÃO, celebrada no dia 29 de abril de 2022, no Cartório Notarial ... da Dra. DD a Primeira Ré/Doadora, enquanto declarante, se encontrava acidentalmente incapacitada de entender o sentido da declaração ou, não tinha o livre exercício da sua vontade, por força das limitações físicas e psíquicas de que padece.
B - Ser declarada anulada e sem nenhum efeito obrigacional entre a Primeira
Ré/Doadora e o Segundo Réu/Donatário a escritura de DOAÇÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO E DE MEAÇÃO, celebrada no dia 29 de abril de 2022, no Cartório Notarial ... da Dra. DD.
C – Ser comunicado ao Cartório Notarial ... da Dra. DD a anulação da escritura de DOAÇÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO E DE MEAÇÃO, celebrada no dia 29 de abril de 2022, outorgada pela Primeira Ré/Doadora a favor do Segundo Réu/Donatário.
Para o efeito alegou, em suma, que aquando da assinatura da referida escritura, a Primeira Ré/Doadora, enquanto declarante, se encontrava acidentalmente incapacitada de entender o sentido da declaração e não tinha o livre exercício da sua vontade, por força das limitações físicas e psíquicas de que padece e, ainda, sem prescindir, que a escritura lavrada padece de diversos vícios e/ou irregularidades formais no que concerne à identificação da doadora.
Regularmente citados, apenas o 2.º réu deduziu contestação, arguindo a exceção dilatória decorrente da ineptidão da petição inicial e, no mais, impugnou o alegado. Mais acrescentou que foi a 1.ª ré que decidiu ir viver com o aqui autor, em meados de agosto de 2022 e que até essa altura, a primeira ré estava na posse das suas faculdades mentais. Desconhece o seu estado atual, pois desde então o réu não teve contacto com a mesma. Acrescenta que os abonadores, na escritura em causa, conheciam pessoalmente a sua avó, aqui primeira ré.
Após convite para o efeito, o autor pronunciou-se sobre a matéria da exceção deduzida e apresentou petição inicial aperfeiçoada, deduzindo, em aditamento ao anteriormente peticionado, os seguintes pedidos aperfeiçoados (na sequência da alegação de facto que já constava da petição inicial) e sem prescindir dos anteriores:
– Deve o invocado vício formal na Identificação da 1.ª ré ser dado como provado e, em consequência ser anulada a escritura pública de doação celebrada que no dia 29 de abril de 2022, no Cartório Notarial ... da Dra. DD.
Sem prescindir
- Deve a escritura de doação alegadamente assinada pela 1.ª ré em benefício do 2.º réu no dia 29 de abril de 2022, no Cartório Notarial ... da Dra. DD, ser anulada com fundamento na ofensa da legítima dos filhos da doadora seus herdeiros.
O réu contestante exerceu o contraditório.
Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou tempestiva a contestação em face da maioridade do réu entretanto atingida, e se julgou válida a citação da ré não contestante, ordenando-se a intervenção acessória do Ministério Público, uma vez que o acompanhante da ré, designado na ação de maior acompanhado que correu termos, é o próprio autor. Mais se julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial. Dispensou-se a enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:
“Nos termos e fundamentos expostos, julgo a presente ação procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
A. Declaro a nulidade do ato notarial, designadamente, da escritura de doação assinada pela Primeira Ré em benefício do Segundo Réu no dia 29 de abril de 2022, no Cartório Notarial ... da Dra. DD, por violação do disposto no art. 68º nº 1, als. b), e) e g) do DL/nº 207/05, de 14 de agosto, alterado pela Lei 8/2022 de 10/01.
B. Absolvo os RR. de todos os demais pedidos formulados pelo A.
Custas pela A. e RR., na proporção do decaimento, que se fixa em 70% e 30%, respetivamente – art. 527.º do Código de Processo Civil.
Valor da ação: o já fixado em sede de despacho saneador.
Registe e Notifique.
Comunique ao Cartório Notarial ... onde foi celebrada a escritura de doação impugnada nestes autos, com a menção de que a sentença não transitou em julgado.
Após trânsito, cumpra de imediato:
Comunique, com certidão da sentença, à competente Conservatória de Registo Predial.
Comunique ao Cartório Notarial ... onde foi celebrada a escritura de doação impugnada nestes autos, com certidão e sentença e menção do respetivo trânsito”.
O réu contestante interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes Conclusões:
1ª O âmbito do presente recurso restringe-se à decisão de nulidade da doação de quinhão hereditário e de meação, especificamente referente aos abonadores, segundo a decisão recorrida, por falta de indicação do conhecimento da língua portuguesa.
2ª Das vezes que o recorrido viu a possibilidade de perder bens, que não são seus, a forma que tem de tentar reverter essa situação, é socorrer-se do processo de maior acompanhado alegando problemas psíquicos da mãe, não hesitando em socorrer-se de mentiras para que seu intento siga adiante.
3ª Esteve bem a Meritíssima Juiz do processo de acompanhamento de maior intentado em 2017, que percebeu muito bem qual era a intenção por trás do processo quando referiu que que “os filhos devem ter mais cuidado com a propositura de ações de interdição. Não é pelo facto de uma pessoa ser idosa que automaticamente reúne critérios para ser interdita. A preocupação pelo património da requerida é tanta, que se esqueceram das mais elementares regras do Direito, ou seja, uma herança só existe após a abertura da sucessão.”
4ª No segundo processo de acompanhamento de maior instaurado em 2022, apesar de no relatório da perícia referir que não existe nenhuma indicação de demência no historial clínico na ULS... e que a data da demência foi indicada pela família (tal como no processo anterior) sem possibilidade de ser confirmada pela clínica que avaliou a 1ª Ré, foi o mesmo decretado, retroagindo os seus efeitos a data anterior à que havia sido considerada perfeitamente consciente no primeiro processo.
5ª Conforme o depoimento da senhora notária, a doadora encontrava-se em pleno uso das suas faculdades mentais, lucida, consciente do que estava a fazer, sendo essa a sua vontade no momento em que foi outorgada a escritura de doação “a doadora não lhe pareceu coagida nem confusa, fez a leitura e não foi levantada nenhuma questão (…) foi a própria doadora que assinou, parecendo lucida e capaz”.
6ª Era ao recorrido que incumbia provar que a sua mãe, doadora, no ato da escritura não se encontrava consciente nem em pleno uso das suas faculdades mentais, o que não logrou provar.
7ª A testemunha EE, sua filha, afirmou até que a avó tinha momentos de lucidez.
8ª Relativamente ao ponto em que é pedida a nulidade da doação por vicio relativamente aos abonadores por não ser feita referência ao domínio da língua portuguesa, uma vez que são cidadãos espanhóis, não podemos concordar.
9ª Compete ao notário verificar da idoneidade dos intervenientes, podendo recusar algum caso entenda que não é digno de crédito. Não é o caso.
10ª Um dos abonadores – FF – é pai do donatário e por isso, nos termos do artigo 68º, nº1, b) do Código de Notariado, não poderá ser abonador.
11ª O outro abonador – GG – é amigo da família há muitos anos. É de nacionalidade espanhola, mas com descendência portuguesa, vivendo na raia, convivendo diariamente com portugueses, não só pelos laços familiares, mas pela sua profissão.
12ª Por ser tão parecida a língua e por todos compreendida, portugueses e galegos, não foi indicado pela senhora notária que os abonadores percebiam perfeitamente a língua portuguesa, porque efetivamente a percebem e muito bem e tal não tem que ficar mencionado na escritura.
13ª Segundo Fernando Neto Ferreirinha e Zulmira Neto Lino da Silva, in Manual de Direito Notarial Teoria e Prática, referem podem intervir nos instrumentos notariais abonadores para identificarem o(s) outorgante(s), indicando nessa identificação quem é a pessoa que se encontra perante o notário sendo necessário referir o nome e a morada.
14ª Não é de todo necessário identificar os outorgantes com a data de nascimento, tal como é referido na sentença recorrida, exigir que se saiba a data de nascimento, não está previsto na lei.
15ª Compete ao notário verificar se os intervenientes acidentais, leia-se abonadores, são ou não pessoas idóneas e se cumprem os requisitos elencados no artigo 71º do Código de Notariado, sem ter de fazer referência a esses requisitos.
16ª Se a senhora notária falou com os abonadores e os considerou aptos a serem abonadores (desconhecendo o grau de parentesco do abonador FF), verificando que entendiam a língua portuguesa, não pode ser agora posto em causa esse requisito.
17ª Mais, a única pessoa que esteve em contacto com os abonadores foi a senhora notária. Nenhum deles foi ouvido em tribunal, pelo que não há fundamento na decisão do Meritíssimo Juiz a quo, com o devido respeito, que é muito, sobre o entendimento que cada um deles tem da língua portuguesa, pois, repita-se, não foram ouvidos em tribunal.
18ª Importa referir o disposto no artigo 526º, nº 1 do CPC, que dispõe: “1 - Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.”
19ª O artigo 526º, nº 1 do CPC constitui uma concretização do princípio do inquisitório, prescrito no artigo 411º do CPC, nos termos do qual se estabelece que deve o juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
20ª E refira-se, a lei fala em entendimento da língua portuguesa, não em domínio da língua portuguesa, como é referido na douta sentença. É muito diferente entender uma língua estrangeira e dominar uma língua estrangeira.
21ª O 2º Réu é de nacionalidade espanhola, tendo sido, por isso, pedida a presença de intérprete, o que veio a ser indeferido por se entender muito bem o que o mesmo dizia e por o mesmo também perceber o que lhe era questionado.
22ª Desta forma, está posto em causa o poder que os notários têm de aferir se as testemunhas/abonadores/outorgantes são pessoas idóneas, se entendem a língua em que é praticado o ato, etc., ou seja, todos os elementos elencados no artigo 71º do Código de Notariado.
23ª Quanto ao último ponto do pedido do recorrido – a ofensa da legitima dos filhos da doadora, seus herdeiros – não houve grandes considerações por ter sido considerada nula a doação quanto à questão dos abonadores, de qualquer forma, esse não será fundamento de anulação da doação, pois há forma de suprir, recorrendo à redução de liberalidades por inoficiosidade.
24ª Os depoimentos do recorrido bem como das testemunhas do mesmo foram dúbios, hesitantes, pouco isentos, pouco espontâneos, mostrando preocupação quanto à possibilidade de ficar sem os bens da herança referindo por diversas vezes “se tem outros netos, porque só o ... foi beneficiado?”.
25ª Pelo que deve a sentença recorrida ser substituída por acórdão que conclua pela procedência do presente recurso e em consequência considere improcedente a ação considerando como válida a doação do quinhão hereditário e da meação, por ser essa a vontade da doadora, e seja ordenada a sanação do vicio quanto ao abonador FF, nos termos do artigo 73º, nº 3, c) do Código de Notariado, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA.
O autor contra-alegou pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Notificado o MP, nada disse.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
A questão a resolver traduz-se em saber se os vícios formais da escritura, constatados na mesma, deveriam ou não conduzir à nulidade do ato.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
FACTOS PROVADOS:
1. O Autor é o mais velho dos quatro filhos da Primeira Ré.
2. A Primeira Ré tinha, à data da propositura da ação, 87 anos, é viúva e vive, atualmente, com o Autor, seu filho.
3. A Primeira Ré, anteriormente ao negócio colocado em crise nestes autos, já havia anteriormente efetuado doação dos únicos imóveis que possuía a uma filha.
4. Tal doação acabou por ser dada sem efeito, por comum acordo das partes, em processo judicial que correu termos no Tribunal de Monção no Processo Cautelar nº 408/18.....
5. No dia 29 de abril de 2022, no Cartório Notarial ... da Dra. DD, a Requerida outorgou uma escritura de doação do seu quinhão hereditário e da sua meação no acervo hereditário a partilhar por morte de seu marido, cujo teor consta dos autos – doc. n.º 7 da petição inicial - e aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.
6. A Primeira Ré é pessoa idosa, com 87 anos e padece de diversas doenças próprias da sua idade, deslocando-se com dificuldades físicas e motoras.
7. O A. requereu o acompanhamento de maior da sua mãe, 1.ª R., com as medidas de proteção e acompanhamento adequadas, em ação que correu termos junto do Juízo de Competência Genérica de Monção, no Processo nº 326/22...., autuada a 29.8.2022.
8. A Primeira Ré tem, atualmente, défices cognitivos patentes, com dificuldades de gerir a sua vida pessoal e patrimonial e cuidar dos seus bens.
9. Atualmente, a Primeira Ré não tem a noção do valor da moeda nas transações económicas da vida corrente, não consegue usar um cartão multibanco, nem ir sozinha ao banco.
10. À data da outorga da doação a 1.ª R. atribuiu-lhe o valor de três mil euros.
11. Atualmente, a Primeira Ré é totalmente dependente de terceiros para a realização das mais básicas tarefas da vida quotidiana, tais como cozinhar e confecionar alimentos, frequentar consultas médicas sozinha e cumprir a medicação que lhe é prescrita, realizar compras, cumprir obrigações perante as entidades administrativas públicas ou privadas, pagar contas.
12. Atualmente a Primeira Ré evidencia défice de memória e denota dificuldades evidentes em verbalizar e raciocinar sobre diversos aspetos da sua vida pessoal e social mostrando-se confusa
13. Aquando da celebração da escritura, uma das testemunhas presentes na qualidade de abonador foi FF que é pai do menor/donatário e cidadão de nacionalidade espanhola.
14. A Sr.ª Notária verificou a identidade da outorgante apenas pelas declarações dos abonadores, dois cidadãos espanhóis.
15. A Sr.ª Notária não conhecia a Primeira Ré aquando da outorga da doação.
16. A Sr.ª Notária não conferiu, porque não podia, a assinatura da doadora pois não lhe foi exibido o documento de identificação legal válido da outorgante.
17. A 1.ª R. fixou residência com o A. desde meados de agosto de 2022.
18. O abonador FF, de nacionalidade Espanhola, conhecia pessoalmente a doadora BB.
19. O quinhão hereditário e a sua meação sobre os bens da herança doados valem mais do que trezentos mil euros.
Mais se provou (instrução da causa):
20. No Processo de Acompanhamento de Maior nº 326/22.... foi proferida sentença, devidamente transitada em julgado, na qual consta que:
a. A aqui 1.ª R. padece desde 2018 de alterações psicopatológicas compatíveis com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major Grave com incapacidade na realização de atividades da vida diária, quer básicas quer instrumentais.
b. Doença crónica e irreversível.
c. Por força da doença de que padece a primeira Ré não sabe o dia, a estação ou o ano em que se encontra.
d. Não sabe o local em que se encontra nem consegue orientar-se sozinha na rua.
e. Não consegue realizar a sua higiene pessoal, vestir-se e calçar-se sozinha e por si mesma.
f. Não consegue realizar qualquer tarefa doméstica de arrumação, limpeza e organização da casa, nem consegue confecionar e providenciar as suas próprias refeições.
g. Não consegue ir ao médico sozinha nem marcar consultas médicas.
h. É incapaz de exercer qualquer atividade profissional.
i. Depende de terceiros, nomeadamente do Autor, para tratar de assuntos relacionados com as instituições públicas e administrativas ou bancos.
j. Não consegue determinar por si mesma as prestações sociais e o valor que recebe nem usá-las para pagar as suas despesas domésticas e de saúde.
21. O processo n.º 326/22...., de acompanhamento de maior, foi autuado em 29.8.2022.
a. A propositura da ação foi anunciada em 31.8.2022.
b. Foi proferida sentença a 17.3.2023, que decretou o acompanhamento, por razões de doença da 1.ª R., nomeou o A. como seu acompanhante e atribuiu-lhe poderes gerais de representação e administração total de bens, e fixou como conveniente o início do acompanhamento a partir de 2018;
c. A sentença transitou em julgado a 4.4.2023 e foi publicitada a 11.4.2023.
22. No processo n.º 528/17...., o aqui A. requereu a interdição por anomalia psíquica da aqui 1.ª R., tendo esta sido absolvida por sentença de 29.10.2018, da qual se fez constar, entre o mais, à data:
a. A requerida encontra-se orientada no tempo e no espaço;
b. Apresenta atenção e concentração na tarefa por tempo prolongado; Não tem alterações das funções executivas ou da capacidade de abstração, já que cumpre uma sequência de ações e realiza cálculos simples;
c. Não existe uma alteração da capacidade visuo-construtiva;
d. Não apresenta alterações da memória a curto prazo;
e. A sua linguagem é simples, sem construções sintáticas complexas, optando por respostas monossilábicas, mas com capacidade para construir um relato elaborado e contínuo;
f. Reconhece não ter instrução por falta de colaboração durante a infância, mas sabe ler e escrever;
g. É capaz de exprimir com assertividade o que pensa e deseja;
h. Apresenta tristeza patológica e tendência ao exagero na expressão emocional;
i. Mostra-se independente nas atividades diárias básicas ou de autocuidado (banho, alimentação e vestuário) e nalgumas atividades de vida instrumentais (preparo dos alimentos, capacidade para fazer compras, manuseio de dinheiro, uso de telefone);
j. Mostra-se mais dependente na gestão económica, obtenção de documentos e relação com as novas tecnologias, como é próprio da idade por falta de instrução e não por falta de capacidade;
k. A requerida apresenta alterações psicopatológicas compatíveis com o diagnóstico de perturbação de adaptação, que é transitória e não confere incapacidade ao seu portador.
23. Mais se consignou como não provado na referida sentença, proferida no âmbito do processo n.º 528/17....:
a) Que a Requerida seja facilmente sugestionável por terceiros, fazendo tudo o que lhe mandam, sendo incapaz de juízos críticos autónomos;
b) Que a Requerida esteja impossibilitada de reger a sua pessoa e os seus bens;
c) Que não consiga conduzir os seus atos diários da sua vida;
d) Que a falta de juízo crítico autónomo não lhe permita decidir em consciência ou a forma de gerir a sua vida ou o seu património;
e) Que a Requerida tenha vindo gradualmente a perder a memória, já não reconhecendo familiares e amigos próximos;
f) Que desde 2015 que a Requerida tenha começado a revelar deficiências profundas das suas faculdades intelectuais e volitivas;
g) Que sofra de anomalia psíquica;
h) Que em consequência da doença de que é portadora a Requerida não se consiga orientar sozinha;
i) Que necessite constantemente de apoio e orientação de um terceiro para a prática de qualquer ato relacionado com a sua pessoa e com o seu património;
j) Que não seja capaz de movimentar as contas bancarias de que é titular e co-titular com o seu marido;
k) Que não consiga conduzir-se por ela própria nos atos diários da sua vida;
l) Que seja incapaz de reger a sua pessoa e bens, e angariar meios suficientes à subsistência;
m) Que necessite de orientação de terceiros para satisfazerem aquelas necessidades;
n) Que as limitações mentais de que a Requerida padece sejam permanentes e duradouras;
o) Que o seu estado seja conhecido da família e de todas as pessoas que a rodeiam;
p) Que a Requerida tenha vindo a perder as suas faculdades de discernimento e de consciência crítica, deixando de ter inteligência e vontade suficientes para ter consciência dos assuntos relacionados com o seu património;
q) Que sempre que pretende fazer compras, proceder a pagamentos e movimentações de contas bancárias precise de auxílio de terceiros, dado que não o consegue fazer autonomamente;
r) Que a Requerida não pague o IMI à administração tributária referente aos imóveis que lhe pertencem;
s) Que fantasie histórias sobre o seu quotidiano;
t) Que a sua debilidade mental seja notória quando se fala e priva com a mesma;
u) Que se encontre completamente dependente da vontade de outrem.
FACTOS NÃO PROVADOS:
24. Nas semanas que antecedem a propositura da presente ação a Primeira Ré vem praticado diversas disposições patrimoniais inusitadas, efetuando doações e levantando avultadas quantias das contas bancárias que vai gastando em benefício de terceiros.
25. Nos autos com o n.º 408/18...., a Mm.º Juiz Titular consignou nos autos que a donatária – aqui 1.ª R. – não estaria nas melhores condições físicas e psíquicas para, de forma consciente e informada e no uso pleno das suas faculdades e capacidades fazer a doação [objeto daqueles autos]
26. Nos anos precedentes à propositura da ação a Primeira Ré efetuou levantamentos de muitas dezenas de milhares de euros que não foram aplicados em seu benefício.
27. A outorga da doação feita pela 1.ª R, em 29.4.2022, foi feita sob evidente anomalia física e psíquica, não estando a mesma capaz de querer e compreender o negócio que celebrou.
28. Ao outorgar a dita escritura, a 1.ª R. não o fez em plena consciência do ato e do seu significado.
29. A vontade expressa pela 1.ª R. na dita escritura não correspondia à sua vontade.
30. À data da escritura de 29.4.2022, no Cartório Notarial ..., a Primeira Ré, não tinha capacidade psíquica e intelectual para interpretar o sentido dos documentos pois nem sequer sabe ler, apesar de os ter assinado.
31. As debilidades físicas e psíquicas da 1.ª R. têm levado a que diversas pessoas se aproveitem da Primeira Ré para conseguir desta a assinatura de doações de imóveis e outras, bem como o levantamento de avultadas quantias em dinheiro das suas contas bancárias.
32. A 1.ª R., a Doadora não se encontrava nas posses das suas capacidades físicas e psíquicas para entender o ato gratuito que estava a praticar, no momento em que o declarou, em 29.4.2022.
33. Na sequência da doação outorgada, a 1.ª R. foi posta na rua pelo 2.º R. e sua mãe (à data do negócio aquele segundo era menor).
34. Depois da doação em causa nos autos, a Primeira Ré foi impedida de viver na sua casa, pois a sua filha e mãe do donatário mudou as fechaduras da porta da habitação para impedir a Primeira Ré de ali entrar.
35. A Primeira Ré está atualmente muito desgostosa e depressiva
36. O abonador GG, de nacionalidade Espanhola, conhecia pessoalmente a doadora BB.
Nesta ação estava pedida a nulidade da escritura de doação efetuada pela 1.ª ré ao 2.º réu por três ordens de razões: - por incapacidade acidental da doadora para entender o ato que praticou; - por vício formal na identificação da doadora; - por ofensa da legítima dos filhos da doadora.
O apelante, apesar de tecer algumas considerações sobre alguns depoimentos prestados em audiência de julgamento, não impugna a decisão de facto, pelo que os factos a considerar são os supra enumerados.
Na sentença sob recurso, a escritura foi declarada nula por vício formal na identificação da doadora e é esta a questão de que cabe conhecer, uma vez que foram julgados improcedentes os 1.º e 3.º pedidos.
Não está em causa a legitimidade do autor para peticionar a nulidade do ato, conforme bem explicitado na sentença e que o apelante não põe em causa.
O que está em causa é a nulidade do ato por vício decorrente das irregularidades formais que ocorreram na identificação da doadora através de abonadores.
Não há dúvida e resulta dos factos provados e do teor da escritura, que a Sra. Notária não conhecia a doadora e não a identificou através do seu documento de identificação, que não lhe foi fornecido (pelo que também não pôde conferir a sua assinatura), tendo verificado a identidade da outorgante por declaração dos abonadores, que também não conhecia, e cuja identidade verificou pelos seus documentos emitidos pelo Ministério do Exterior de Espanha, sendo ambos de nacionalidade espanhola. Também não há dúvida que um dos abonadores era pai do beneficiário da doação (sendo que o parentesco podia ser facilmente averiguado face ao facto de terem o mesmo nome) e quanto ao outro, não se provou que conhecesse a doadora. Em momento nenhum da escritura ficou a constar que os abonadores conhecessem ou percebessem a língua portuguesa ou que entendessem o que ali foi dito no Cartório (tendo a Sra. Notária referido expressamente que não se certificou que os mesmos dominassem a língua portuguesa). Quanto ao conhecimento efetivo por parte dos abonadores da doadora, apenas se logrou demonstrar, com certeza, que o pai do 2.º réu a conhecia devido à ligação por parentesco com este último, o mesmo não se podendo dizer quanto ao 2.º abonador.
A este propósito, pode ler-se no Código do Notariado (DL 207/95 de 14 de agosto e suas sucessivas atualizações):
Artigo 48.º
Verificação da identidade
1 - A verificação da identidade dos outorgantes pode ser feita por alguma das seguintes formas:
a) Pelo conhecimento pessoal do notário;
b) Pela exibição do bilhete de identidade, de documento equivalente ou da carta de condução, se tiverem sido emitidos pela autoridade competente de um dos países da União Europeia;
c) Pela exibição do passaporte;
d) Pela declaração de dois abonadores cuja identidade o notário tenha verificado por uma das formas previstas nas alíneas anteriores, consignando-se expressamente qual o meio de identificação usado.
Artigo 68.º
Casos de incapacidade ou de inabilidade
1 - Não podem ser abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas:
a) Os que não estiverem no seu perfeito juízo;
b) Os que não entenderem a língua portuguesa;
c) Os menores não emancipados;
d) Os funcionários e o pessoal contratado em qualquer regime em exercício no cartório notarial;
e) O cônjuge, os parentes e afins, na linha recta ou em 2.º grau da linha colateral, tanto do notário que intervier no instrumento como de qualquer dos outorgantes, representantes ou representados;
f) O marido e a mulher, conjuntamente;
g) Os que, por efeito do acto, adquiram qualquer vantagem patrimonial;
h) Os que não saibam ou não possam assinar.
2 - Não é permitida a intervenção de qualquer interveniente acidental em mais de uma qualidade, salvo o disposto no n.º 4 do artigo 48.º
3 - Ao notário compete verificar a idoneidade dos intervenientes acidentais.
4 - O notário pode recusar a intervenção do abonador, intérprete, perito, tradutor, leitor ou testemunha que não considere digno de crédito, ainda que ele não esteja abrangido pelas proibições do n.º 1.
Artigo 71.º
Outros casos de nulidade
1 - É nulo o acto lavrado por funcionário incompetente, em razão da matéria ou do lugar, ou por funcionário legalmente impedido, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil.
2 - Determina também a nulidade do acto a incapacidade ou a inabilidade dos intervenientes acidentais.
3 - O acto nulo por violação das regras de competência em razão do lugar, por falta do requisito previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo anterior ou por incapacidade ou inabilidade de algum interveniente acidental pode ser sanado por decisão do respectivo notário, nas seguintes situações:
a) Quando for apresentada declaração, passada pelo notário competente, comprovativa da sua ausência na data em causa e as partes justificarem, por escrito, o carácter urgente da celebração do acto;
b) Quando as partes declararem, por forma autêntica, que as palavras inutilizadas, quaisquer que elas fossem, não podiam alterar os elementos essenciais ou o conteúdo substancial do acto;
c) Quando o vício se referir apenas a um dos abonadores ou a uma das testemunhas e possa considerar-se suprido pela idoneidade do outro interveniente.
Da análise das normas transcritas resulta que o pai do outorgante da escritura, como donatário (2.º réu) não podia ser abonador – artigo 68.º, n.º 1, alínea e).
O referido interveniente é parente em primeiro grau na linha reta do 2.º réu/donatário, que, além do mais e como bem se refere na sentença recorrida, era menor à data da celebração da escritura, podendo, portanto, agir como seu representante legal – art. 1881.º, 1888.º, nº 1, als. a) a c), a contrario, 1889.º, 1890.º, todos do Código Civil, não sendo os bens doados no ato expressamente excluídos da administração dos pais do menor, pela doadora, e, nessa medida, podendo obter uma vantagem patrimonial com o ato, o que, também, por esta via, lhe retira a capacidade para abonar a identidade da doadora – artigo 68.º, n.º 1, alínea g).
Acresce que a Sra. Notária não se certificou que os abonadores entendiam a língua portuguesa e, de qualquer modo, não o fez constar da escritura, de onde resulta que, sem esse conhecimento, nenhum dos dois poderia ter atuado como abonador – artigo 68.º, n.º 1, alínea b). Veja-se que não é feita qualquer menção pela entidade certificadora da declaração quanto ao domínio da língua portuguesa por parte dos dois abonadores, de nacionalidade espanhola, fosse no momento da sua identificação, fosse no momento da leitura e explicação do conteúdo do ato a todos os intervenientes.
Assim, ainda que se considerasse que o vício se referia apenas a um dos abonadores – por ser pai de um dos outorgantes – o mesmo não pode considerar-se suprido pela idoneidade do outro abonador, que não só não se provou que sequer conhecesse a doadora, como não se sabe se entendia a língua portuguesa.
Daí que o ato nulo por incapacidade ou inabilidade de algum interveniente acidental não pudesse ser sanado por decisão do respetivo notário, nos termos do artigo 71.º, n.º 3, alínea c), uma vez que não só a Sra. Notária não se apercebeu da incapacidade de um dos abonadores (por ser pai do donatário), como não tratou de averiguar se os mesmos conheciam ou percebiam a língua portuguesa, não podendo, por isso considerar-se idóneos para o ato que realizavam, o que cabia à Sra. Notária verificar, e não aconteceu.
O apelante insurge-se contra a decisão, afirmando que os abonadores, sendo galegos, e não catalães, percebiam perfeitamente o português e que, se a Sra. Notária nada fez constar da escritura, é porque reconheceu que ambos percebiam o português.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tais conclusões.
Por um lado, não existe nos autos nada que nos permita concluir de que região espanhola são naturais os abonadores e, ainda que tal ocorresse, daí não resultaria automaticamente o conhecimento e compreensão da língua portuguesa, o que a Sra. Notária, como já referimos, não se certificou (que os mesmos dominassem a língua portuguesa). Ora, sendo os abonadores estrangeiros e sendo um caso de incapacidade o facto de não entenderem a língua portuguesa, teria o seu contrário que ser certificado, o que não foi. Aliás, ao contrário do que parece resultar das alegações do apelante, o contacto da Sra. Notária com os abonadores deve ter sido mínimo, uma vez que nem sequer se apercebeu da incapacidade de um deles resultante do facto de ser pai de um dos outorgantes e com interesse direto na doação (apesar de terem o mesmo nome).
O outro argumento utilizado em sede de alegações de recurso também não procede.
Com efeito, não é ao tribunal que cabe suprir eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes. Se o réu considerava necessário arrolar como testemunhas os abonadores, poderia tê-lo feito (correndo o risco de se vir a revelar que um dos abonadores era pai do donatário e o outro não conhecia a doadora). O princípio do inquisitório, como é sabido, não existe para suprir as falhas probatórias das partes e nada, no decurso do julgamento ou da ação poderia fazer presumir que estas pessoas tinham conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa – artigos 411.º e 526.º do Código de Processo Civil.
O que está aqui em causa não é o eventual conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, mas sim vícios formais da escritura de doação que a inquinam nos termos já atrás descritos.
Ora, as normas citadas do Código do Notariado, que impõem a nulidade dos atos por vício de forma, decorrente da preterição das normas imperativas aí fixadas, são determinadas por razões de interesse público visando, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, que regem a forma do ato e que, por isso mesmo, não podem ser preteridas, sob pena de violação do princípio da confiança que lhe está ínsito – cfr. Acórdão do STJ de 17/03/2016, processo n.º 2234/11.3TBFAF.G1.S1 (Lopes do Rego)
Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.
III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 27 de fevereiro de 2025
Ana Cristina Duarte
Alcides Rodrigues
Carla Maria Sousa Oliveira