CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
VALOR DA CAUSA
FORMA DE PROCESSO
INJUNÇÃO
Sumário

1 – O valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento.
2 – A utilidade económica imediata do pedido serve para determinar a competência do Tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do Tribunal, sendo que, no caso concreto, não importa o valor global da empreitada celebrada, mas tão só o montante da dívida reclamada.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 97742/24.4YIPRT.E1
Juízo Local de Competência Genérica de Montemor-o-Novo/Juízo Central de Competência Cível e Criminal de Évora
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Conflito de competência
I – Relatório:
A Requerente “(…), Unipessoal, Lda.” apresentou um requerimento de injunção ao abrigo do disposto no artigo 1.º do DL 269/98, de 01/09, contra a Requerida (…).
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A Requerida (…) é pessoa singular e não comerciante.
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Através de tal procedimento de injunção, a Requerente pretendia obter o pagamento do valor global de € 9.182,10 (sendo € 8.790,60 a título de capital, € 39,50 a título de juros de mora vencidos, € 250,00 a título de outras quantias e € 102,00 por conta da taxa de justiça paga com a apresentação do requerimento de injunção).
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Após ter feito o historial do processo, por decisão datada de 24/10/2024, o Juízo Local de Competência Genérica de Montemor-o-Novo (J2) prolatou a seguinte decisão:
«(…) compulsado o teor dos Documentos juntos aos autos, constata-se que o preço estipulado pelas partes no que respeita ao acto jurídico, nomeadamente, a empreitada em referência corresponde à quantia total de € 127.400,00 (cento e vinte e sete mil e quatrocentos euros).
Por seu turno, a Ré no seu articulado de oposição deduziu reconvenção na qual peticiona da Autora o pagamento da indemnização referente ao valor orçamentado para a eliminação dos defeitos da obra por sua conta, recorrendo a outro construtor, o que alega que perfaz a importância de € 18.036,30.
Verifica-se que o valor é superior a metade do valor da alçada da Relação, o que determina no caso concreto, não só que o processo seguirá trâmites da forma de processo comum, como, contende com a competência deste tribunal para julgar a presente ação, por referência ao disposto nos artigos 117.º e 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Nestes termos, e atento o supra exposto, julgo verificada a incompetência relativa deste Tribunal, em razão do valor da causa, conforme o disposto nos artigos 66.º, 104.º, n.º 2, 301.º, n.º 1, do C.P.C. e artigos 41.º, 117.º, n.º 1, alínea a), a contrario, e 130.º, n.º 1, todos da Lei n.º 62/2013, de 26.08».
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Na sua parte mais pertinente, por decisão datada de 26/11/2024, o Juízo Central de Competência Cível e Criminal de Évora (J2) prolatou a seguinte decisão:
«(…) da aplicação do disposto no artigo 18.º do DL 268/98, de 1 de Setembro, resulta que o valor da causa é de € 9.080,10 (nove mil e oitenta euros e dez cêntimos).
Neste ponto cumpre mencionar que, por via do plasmado no artigo 17.º, n.º 1, do já mencionado DL 268/98, de 1 de Setembro, entende-se não ser admissível a dedução de reconvenção em sede de procedimento de injunção. Efectivamente este procedimento quer-se simplificado, prevendo-se apenas a existência de dois articulados. Nessa esteira, não se atende à Reconvenção deduzida pela Ré para a fixação do valor da causa, por se entender que a mesma não será de admitir. Porém, ainda que não fosse essa a posição deste Tribunal, sempre a soma de ambos os pedidos (€ 9.080,10 + € 18.036,30 = € 27.116,40) não tornaria este processo da competência do presente Tribunal.
Aliás, o entendimento favorável ao recebimento da Reconvenção e à fixação do valor da causa em € 27.116,40 acarretaria a inadmissibilidade de discussão da causa no âmbito dos procedimentos previstos no DL 268/98, de 1 de Setembro. O mesmo acontecendo caso se entendesse que deveria ser fixado à causa o valor global do contrato celebrado entre as partes. E isto porque a presente não seria passível de convolar em acção de processo comum.
Efectivamente, prevê-se a convolação da acção especial emergente dos procedimentos de injunção em acção comum quando o seu valor seja superior a € 15.000,00, mas apenas nos casos previstos no artigo 10.º, n.º 1 e 2, do DL 62/2013, de 10 de Maio. Ou seja, quando a mesma tenha como objecto os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais, sendo entendidas como tal as transacções que ocorrem «entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração». Podendo uma pessoa singular enquadrar-se neste âmbito apenas quando «desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma», cfr. artigo 3.º, alíneas b) e c), respectivamente.
Ora, não sendo este o caso vertido nos autos, já que o contrato foi celebrado com a Ré apenas enquanto pessoa singular, no seu interesse particular e não enquanto enquadrada em actividade económica ou profissional, tal convolação jamais poderia operar.
O que torna este Tribunal também materialmente incompetente para o conhecimento da eventual acção que resultasse da aplicação dos critérios de atribuição de valor acima mencionados, já que a acção em causa sempre teria forma especial, apenas competindo aos Juízos Centrais a preparação e julgamento de acções sob a forma de processo comum, cfr. artigos 117.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Nestes termos, fixa-se o valor da causa em € 9.080,10 (nove mil e oitenta euros e dez cêntimos), declarando-se a incompetência deste Tribunal em razão do valor da causa e igualmente da forma especial do processo, cfr. artigos 18.º do DL 268/98, de 1 de Setembro, 66.º, 104.º, n.º 2, do CPC e 41.º e 117.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Para o conhecimento da presente acção é, assim, competente o Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, conforme decorre do disposto nos artigos 18.º do DL 268/98, de 1 de Setembro, 66.º, 104.º, n.º 2, do CPC, 41.º e 130.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e 77.º, n.º 2, alínea c) e Mapa III do DL n.º 49/2014, de 27 de Março».
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Ambas as decisões transitaram em julgado.
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Foi suscitado o competente conflito negativo de competência.
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II – Factualidade com interesse para a justa decisão do incidente:
Os factos com interesse para a justa decisão do incidente constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Estamos perante um enquadramento em que existe um conflito negativo de competência; isto é, dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional consideram-se incompetentes para conhecer da mesma questão, tal como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 109.º[1] do Código de Processo Civil, com referência ao artigo 76.º[2] da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido[3]. A este valor se atenderá para determinar a competência do Tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do Tribunal.
Na esteira de Mariana França Monteiro, para efeitos de competência, a causa de pedir deve ser identificada com os factos jurídicos alegados pelo autor que, analisados na lógica jurídica da petição inicial, permitam a aplicação de uma norma de competência. Isto significa que a estrutura de causalidade entre causa de pedir e pedido que o autor estabelece na petição inicial, ou no conjunto dos seus articulados, é suficiente, é o contexto, o enquadramento da relação jurídica alegada e, em consequência, da aplicação das normas de competência[4].
A lei processual estabelece que compete ao juiz fixar o valor da causa no despacho saneador ou, não existindo este, na sentença[5].
O artigo 18.º[6] do DL n.º 269/98, de 01 de Setembro – Regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância – regula a questão do valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir.
A injunção inicial, de valor inferior a metade da alçada da Relação, após a distribuição e por virtude da oposição deduzida, segue os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (artigos 3.º a 5.º do Dec.-Lei n.º 269/98 e 10.º, n.º 4, do Dec.-Lei n.º 62/2013).
Não cabe aqui – nem se torna necessário – abordar a questão da possibilidade de dedução de reconvenção no requerimento de injunção ao abrigo do disposto no art. 1.º do DL 269/98, de 01 de Setembro[7] [8], a qual é jurisprudencialmente controvertida.
O Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo tratou da presente situação como se estivesse perante uma hipótese enquadrável na disciplina do artigo 301.º[9] do Código de Processo Civil.
Porém, além de não retirar qualquer consequência jurídica ao nível da prévia fixação do valor da causa, da análise integrada das disposições aplicáveis, resulta que o valor processual da causa corresponde não ao do valor global da empreitada, mas tão só ao montante reclamado pela requerente “(…), Unipessoal, Lda.”, o qual constitui a causa de pedir e onde se peticiona o pagamento da quantia final de € 9.182,10.
Nestes termos, ainda que fosse somado o montante reclamado na reconvenção (€ 9.182,10 + € 18.036,30 = € 27.218,40), tal como é admitido por uma das correntes jurisprudenciais, o valor obtido seria inferior àquele que é fixado para a competência dos juízos centrais cíveis e que genericamente ascende a € 50.000,00, tal como ressalta da leitura do artigo 117.º[10] da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Na realidade, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa referem que «sempre que o pedido reconvencional determine o aumento do valor da acção (artigo 299.º, n.º 2) passando a exceder o valor de € 50.000,00 pode daí resultar uma modificação da competência do Tribunal inicialmente fixada em função do valor indicado na petição (artigo 310.º, n.º 1)»[11].
No entanto, como já se demonstrou não é esse o caso e, assim, neste enquadramento, a competência para tramitar e decidir a presente causa pertence ao Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo.
Efectivamente, a utilidade económica imediata do pedido serve para determinar a competência do Tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do Tribunal, sendo que, no caso concreto, não importa o valor global da empreitada celebrada, mas tão só o do montante da dívida reclamada.
Nestes termos, decido este conflito, declarando competente para a tramitação da acção o Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo (J2).
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IV – Conclusões: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decido resolver o conflito negativo de competência surgido nos autos, atribuindo a competência para conhecer do processo ao Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo (J2).
Sem tributação.
Notifique (artigo 113.º do Código de Processo Civil) e, oportunamente, baixem os autos.
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Processei e revi.
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Évora, 11/03/2025

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora, no uso de competências delegadas)


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[1] Artigo 109.º (Conflito de jurisdição e conflito de competência):
1 - Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.
2 - Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
3 - Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência
[2] Artigo 76.º (Competência do presidente):
1 - À competência do presidente do tribunal da Relação é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a d), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 62.º.
2 - O presidente do tribunal da Relação é competente para conhecer dos conflitos de competência entre tribunais de comarca da área de competência do respetivo tribunal ou entre algum deles e um tribunal de competência territorial alargada sediado nessa área, podendo delegar essa competência no vice-presidente.
3 - Compete ainda ao presidente dar posse ao vice-presidente, aos juízes e ao secretário do tribunal.
4 - É aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 62.º às decisões proferidas em idênticas matérias pelo presidente do tribunal da Relação.
[3] Artigo 296.º (Atribuição de valor à causa e sua influência):
1 - A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
2 - Atende-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.
3 - Para efeito de custas judiciais, o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no presente diploma e no Regulamento das Custas Processuais.
[4] Mariana França Monteiro, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 507-508.
[5] Artigo 306.º (Fixação do valor):
1 - Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.
2 - O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença.
3 - Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641.º.
[6] Artigo 18.º (Valor processual):
O valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento.
[7] Artigo 17.º (Termos posteriores à distribuição):
1 - Após a distribuição a que se refere o n.º 1 do artigo anterior, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 1.º e nos artigos 3.º e 4.º.
2 - Tratando-se de caso em que se tenha frustrado a notificação do requerido, os autos só são conclusos ao juiz depois de efectuada a citação do réu para contestar, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º.
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
4 - Se os autos forem apresentados à distribuição em virtude de dedução de oposição cuja falta de fundamento o réu não devesse ignorar, é este condenado, na sentença referida no n.º 7 do artigo 4.º, em multa de montante igual a duas vezes o valor da taxa de justiça devida na acção declarativa.
[8] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/06/2017, consultável em www.dgsi.pt, pode ler-se que «a partir do momento em que é deduzida oposição com reconvenção ao procedimento de injunção e este adquire cariz jurisdicional, há que aplicar as regras dos artigos 299.º e seguintes do CPC (que o disposto no n.º 2 do artigo 10.º do DL n.º 62/2013 não afastam), cabendo então e caso os pedidos sejam distintos, adicionar o valor do pedido formulado pelo réu ao valor do pedido formulado pelo autor».
[9] Artigo 301.º (Valor da ação determinado pelo valor do ato jurídico):
1 - Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais.
3 - Se a ação tiver por objeto a anulação do contrato fundada na simulação do preço, o valor da causa é o maior dos dois valores em discussão entre as partes.
[10] Artigo 117.º (Competência):
1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.
3 - São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.
[11] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 130.