CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL
TRÂNSITO EM JULGADO
Sumário

1 – O nosso sistema jurídico não comporta nem prevê a existência de conflitos de competência relativa.
2 – O conflito de competência apenas se pode suscitar nas situações de competência absoluta (alínea a) do artigo 96.º do Código de Processo Civil).
3 – As decisões sobre incompetência relativa são, nos termos do n.º 2 do artigo 105.º do Código de Processo Civil, vinculativas para o tribunal designado como competente.
4 – Caso existam duas decisões sobre a competência em razão do território, transitadas em julgado, há que observar o estabelecido no n.º 1 do artigo 625.º do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 2198/24.3T8LLE.E1
Juízo de Execução de Loulé (J1) / Juízo de Execução de Silves (J1)
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Conflito de competência
I – Relatório
A presente acção executiva foi proposta por «(…) – Comércio de Peças, SA» contra “(…), Unipessoal, Lda.”.
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O formulário que deu início aos autos de execução indicava que a executada tinha sede/estabelecimento na (…), (…), Caixa Postal (…), 8200-633 Albufeira.
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Por decisão de 16 de Janeiro de 2024, o Mm.º Juiz do Juízo de Execução de Loulé julgou verificada a excepção da incompetência territorial desse Juízo e ordenou a remessa dos autos para o Juízo de Execução de Silves, por ser o territorialmente competente.
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Após tecer alguns considerandos sobre as regras da competência territorial, a decisão apontou para a seguinte argumentação: «(…) o (a) Exequente intentou a presente execução contra a executada «(…), Unipessoal, Lda.», com sede/estabelecimento em (…), (…), Caixa Postal (…), 8200-633 Albufeira, área do município de Albufeira, e foi aí que a executada foi citada para a execução, pelo que competente para apreciação do mérito da causa é o Juízo de Execução de Silves do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sediado em Silves, que não este Juízo de Execução de Loulé do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sediado em Loulé.
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerandos, julgo verificada a exceção da incompetência territorial deste Juízo de Execução de Loulé do Tribunal Judicial da Comarca de Faro e ordeno a remessa dos autos para o Juízo de Execução de Silves do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sediado em Silves».
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As partes e o Ministério Público foram notificados de tal decisão e não foi apresentada qualquer reclamação ou recurso.
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Após o trânsito em julgado, os autos foram remetidos para o Juízo de Execução de Silves do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sendo distribuídos ao Juiz 1.
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Por decisão de 17 de Outubro de 2024, a Mm.ª Juíza do Juízo de Execução de Silves julgou-se territorialmente incompetente e julgou competente o Juízo de Execução de Loulé.
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Da sua decisão consta, para além do mais, a seguinte fundamentação:
«(…) não obstante a sede da Executada se situar em Albufeira, a Executada é uma pessoa colectiva.
E sendo uma pessoa colectiva, e nada tendo esta dito ou requerido, a eventual excepção não é de conhecimento oficioso.
Tal resulta das disposições conjugadas dos artigos 89.º n.º 1, 2.ª parte (é esta que se aplica, a não a primeira parte da norma) e 104.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (que apenas refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 89.º).
Há vasta jurisprudência sobre a questão, que este Tribunal se dispensa de citar.
Assim sendo, e porque se não trata de excepção de conhecimento oficioso, nem a Executada requereu o que quer que fosse a tal respeito, o Tribunal competente para a acção é aquele onde a mesma foi proposta».
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As partes e o Ministério Público foram notificados de tal decisão e não foi apresentada qualquer reclamação ou recurso.
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Após o trânsito em julgado, os autos foram devolvidos ao Juízo de Execução de Loulé.
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Foi suscitado o competente conflito negativo de competência.
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II – Factualidade com interesse para a justa decisão do incidente:
Os factos com interesse para a justa decisão do incidente constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Está-se perante um conflito negativo de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão, tal como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 109.º[1] do Código de Processo Civil, com referência ao artigo 76.º[2] da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal nos termos regulados no artigo 104.º[3] do Código de Processo Civil, sendo que neste caso a situação mostra-se alocada ao disposto no artigo 89.º[4] do mesmo diploma e foi aplicada a disciplina contida no artigo 105.º[5] do diploma em análise.
Cumpre, antes de mais, salientar que a tarefa da Presidência do Tribunal da Relação de Évora não visa sindicar o mérito de qualquer das decisões em apreço, designadamente avaliar da possibilidade de conhecimento oficioso da excepção de incompetência territorial.
Dito isto, é consensualmente admitido que o nosso sistema jurídico não comporta nem prevê a existência de conflitos de competência relativa[6]. Na realidade, verifica-se o conflito de competência quando dois tribunais, chamados a decidir um determinado pleito, se declaram ambos competentes ou incompetentes para o efeito, sendo o conflito positivo quando ambos os tribunais se declaram competentes e negativo quando ambos declinam a competência. O conflito de competência apenas se pode suscitar nas situações de competência absoluta (alínea a) do art.º 96.º do CPC), considerando que as decisões sobre incompetência relativa são, nos termos do artigo 105.º, n.º 2, do CPC, vinculativas para o tribunal designado como competente[7] [8].
Assim, tal como resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional, a norma ínsita no n.º 2 do artigo 111.º do Código do Processo Civil, que determina que a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência territorial, não afronta outros interesses dotados de tutela constitucional, designadamente a organização hierárquica dos tribunais[9].
Por conseguinte, as decisões sobre a relação jurídica processual transitadas em julgado ao longo do processo, ou seja, as que não foram adequada e tempestivamente impugnadas, formam caso julgado sendo vinculativas para todos os sujeitos e intervenientes processuais, incluindo os próprios tribunais[10].
Em suma, sem necessitar de exercitar o contraditório, a decisão que se tenha pronunciado sobre a questão da incompetência relativa e que tenha transitado em julgado, mostra-se definitiva, no sentido de vincular tal decisão a definição da questão de incompetência correspondente. E, consequentemente, caso existam duas decisões sobre a competência em razão do território, transitadas em julgado, há que observar o estabelecido no n.º 1 do artigo 625.º[11] ou seja, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.
Nestes termos, não existe um verdadeiro conflito de competência[12] [13] e para a tramitação da presente acção executiva é competente o Juízo de Execução de Silves (J1).
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IV – Conclusões: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, indefiro o pedido de resolução de conflito negativo de competência e determino a remessa dos autos ao Juízo de Execução de Silves (J1).
Sem tributação.
Notifique (artigo 113.º do Código de Processo Civil) e, oportunamente, baixem os autos.
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Processei e revi.
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Évora, 11/03/2025

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora, no uso de competências delegadas)

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[1] Artigo 109.º (Conflito de jurisdição e conflito de competência):
1 - Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.
2 - Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
3 - Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência
[2] Artigo 76.º (Competência do presidente):
1 - À competência do presidente do tribunal da Relação é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a d), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 62.º.
2 - O presidente do tribunal da Relação é competente para conhecer dos conflitos de competência entre tribunais de comarca da área de competência do respetivo tribunal ou entre algum deles e um tribunal de competência territorial alargada sediado nessa área, podendo delegar essa competência no vice-presidente.
3 - Compete ainda ao presidente dar posse ao vice-presidente, aos juízes e ao secretário do tribunal.
4 - É aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 62.º às decisões proferidas em idênticas matérias pelo presidente do tribunal da Relação.
[3] Artigo 104.º (Conhecimento oficioso da incompetência relativa):
1 - A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:
a) Nas causas a que se referem o artigo 70.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 71.º, os artigos 78.º, 83.º e 84.º, o n.º 1 do artigo 85.º e a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 89.º;
b) Nos processos cuja decisão não seja precedida de citação do requerido;
c) Nas causas que, por lei, devam correr como dependência de outro processo.
2 - A incompetência em razão do valor da causa é sempre do conhecimento oficioso do tribunal, seja qual for a ação em que se suscite.
3 - O juiz deve suscitar e decidir a questão da incompetência até ao despacho saneador, podendo a decisão ser incluída neste sempre que o tribunal se julgue competente; não havendo lugar a saneador, pode a questão ser suscitada até à prolação do primeiro despacho subsequente ao termo dos articulados.
[4] Artigo 89.º (Regra geral de competência em matéria de execuções):
1 - Salvos os casos especiais previstos noutras disposições, é competente para a execução o tribunal do domicílio do executado, podendo o exequente optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deva ser cumprida quando o executado seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do exequente na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o executado tenha domicílio na mesma área metropolitana.
2 - Porém, se a execução for para entrega de coisa certa ou por dívida com garantia real, são, respetivamente, competentes o tribunal do lugar onde a coisa se encontre ou o da situação dos bens onerados.
3 - Quando a execução haja de ser instaurada no tribunal do domicílio do executado e este não tenha domicílio em Portugal, mas aqui tenha bens, é competente para a execução o tribunal da situação desses bens.
4 - É igualmente competente o tribunal da situação dos bens a executar quando a execução haja de ser instaurada em tribunal português, por via da alínea b) do artigo 63.º, e não ocorra nenhuma das situações previstas nos artigos anteriores e nos números anteriores deste artigo.
5 - Nos casos de cumulação de execuções para cuja apreciação sejam territorialmente competentes diversos tribunais, é competente o tribunal do domicílio do executado.
[5] Artigo 105.º (Instrução e julgamento da exceção):
1 - Produzidas as provas indispensáveis à apreciação da exceção deduzida, o juiz decide qual é o tribunal competente para a ação.
2 - A decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada.
3 - Se a exceção for julgada procedente, o processo é remetido para o tribunal competente.
4 - Da decisão que aprecie a competência cabe reclamação, com efeito suspensivo, para o presidente da Relação respetiva, o qual decide definitivamente a questão.
[6] Decisão sumária do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora de 26/03/2012, publicitado no sítio www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/11/2020 (Proc. n.º 866/14.7TBPVZ.P1), pesquisável em www.dgsi.pt.
[8] Na mesma linha pode ser consultada jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente os acórdãos de 02/02/2000, proc. n.º 99S246, 08/05/2003, proc. n.º 03B234, 29/01/2004, proc. n.º 03B3747, 10/02/2004, proc. n.º 03A3748, 20/05/2005, proc. n.º 04B885, de 05/11/2009, proc. n.º 461/09.2YFSLSB.S1 e de 09/11/2011, Proc. n.º 130/11.6YFLSB.S1, todos disponíveis na plataforma www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/1009 (Proc. n.º 120/07, rel. Carlos Pamplona de Oliveira), cuja leitura pode ser feita em www.tribunalconstitucional.pt.
[10] Decisão sumária do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/08/2024, depositada em www.dgsi.pt.
[11] Artigo 625.º (Casos julgados contraditórios):
1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
2 - É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
[12] Decisão sumária do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2020 (proc. n.º 12489/15.9T8LSB-A.G1.S1), in www.dgsi.pt.
[13] No mesmo sentido, podem ser consultadas as decisões do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2019 (2027/11.8TBPNF.S1), de 29/05/2020 (4165/20.7T8LSB-B.S1) e de 02/07/2020 (5349/15.5T8MTS.G1.S1).