I - As regras da experiência comum permitem concluir que a quantidade de droga que o Arguido detinha, correspondente a 128 doses, conjugada com a sua deficiente condição económica, e na ausência de qualquer outra explicação para aquela detenção, era destinada a ser cedida a terceiros a troco de dinheiro;
II - Após a alteração do art.º 40º do DL 15/93, de 22/01, pela L 55/2023, de 08/09, a detenção de estupefacientes que se destine exclusivamente ao consumo do agente, independentemente da quantidade, é punida como contra-ordenação, e a detenção estupefacientes, sem que se apure o fim a que o agente os destinava, é punida como crime de tráfico de estupefacientes.
(Sumário elaborado pelo Relator)
[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Código de Processo Penal.
[4] Supremo Tribunal de Justiça.
[5] Nesse sentido, ver Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pág. 1292.
Ver também a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que com a devida vénia, reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[6] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[7] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[8] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[9] Cfr., entre outros, Damião Cunha, «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37; Paulo Saragoça da Matta, «A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença - Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», pág. 253.
[10] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[11] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.
[12] Citação publicada no jornal “Público” de 18//11/2014.
[13] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt.
[14] Veja-se, a este propósito, o acórdão da RC de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. 444/14.0JACBR.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - A reapreciação da prova, por erro de julgamento, é ouvir as pessoas nas passagens concretas do seu depoimento, em que no entender do recorrente está inquinado, para saber se disseram ou não o que se mostra vertido na decisão da matéria de facto e não se destina a apurar uma interpretação diferente do tribunal a quo....”.
[15] Nos seguintes termos:
“... Desde logo, resulta das declarações prestadas pelo arguido que o mesmo realizava, à data, alguns biscates, conseguindo auferir rendimentos médios mensais no valor de 100,00€ (cem euros), conforme passagem transcrita pela ora signatária:
MMO. JUIZ (01:11) – Estava a trabalhar na altura? (01:12)
ARGUIDO (01:12) – Como eu disse, andava a fazer biscates. (01:14) MMO. JUIZ (01:19) – Na construção civil. É isso? (01:20)
ARGUIDO (01:20) – Exatamente. (01:21)
Mmo. Juiz (01:24) – Em média, ganhava quanto por mês? (01:27) ARGUIDO (01:27) – Então, era cinquenta euros por dia. (01:28)
MMO. JUIZ (01:28) – Quantos dias é que trabalhava por mês em média? (01:30) ARGUIDO (01:32) – Era sete horas. (01:33)
MMO. JUIZ (01:33) – Quantos dias? (01:33)
ARGUIDO (01:33) – Quantos dias? Era… (01:35)
MMO. JUIZ (01:35) – Trabalhava a semana toda? (01:37)
ARGUIDO (01:37) – Conforme. Podia ser uma semana, podia ser duas. Podia ser um mês. (01:40)
MMO. JUIZ (01:40) – Nos últimos seis meses antes de ser detido, quanto é que o senhor recebia por mês mais ou menos? (01:44)
Arguido (01:44) – Mais ou menos por mês… Sei lá. Não faço ideia. (01:52) MMO. JUIZ (01:52) – Trazia duzentos, trezentos, quatrocentos euros? (01:54)
ARGUIDO (01:54) – Não, não, não. Era menos. Trazia uns cento e poucos euros. (01:58)
...
Com efeito, resulta da seguinte passagem do depoimento prestado pela testemunha CC, Agente da PSP, transcrita pela ora signatária, o seguinte:
PROCURADORA DA REPÚBLICA (04:02) – Então, só para sintetizar. O arguido foi abordado, porque tinham um mandado para cumprir? Não… (04:07)
TESTEMUNHA (04:07) – (impercetível) Dois anos e qualquer coisa. (04:09)
PROCURADORA DA REPÚBLICA (04:09) – Não porque tinham notícia de que o arguido estivesse a traficar? (04:12)
TESTEMUNHA (04:12) – Não. Não. (04:13)
PROCURADORA DA REPÚBLICA (04:13) – E quando apanharam o arguido, o que é que ele estava a fazer? (04:15)
TESTEMUNHA (04:15) – Estava juntamente com a família dele, com a mãe e com o irmão. Acho eu. (04:19)
PROCURADORA DA REPÚBLICA (04:19) – Não houve qualquer sinal de que estivesse a vender alguma coisa…? (04:24)
TESTEMUNHA (04:24) – Não, não, não. Não. Estava só juntamente com a família. Era a família que estava com ele. (04:26) …”.
[16] Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana – art.º 349º e 351º do CC (Cf. P. Lima e A. Varela, in "CC Anot.", I Vol., 4ª Ed., p. 312), e o recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional e legítima em processo penal.
Ver, neste sentido, Ac. do STJ de 11/11/2004, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 04P3182, do qual citamos: “… O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.
Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º).
Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.). O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas. No caso, o próprio recorrente aceita que a decisão recorrida não ficou em estado de dúvida, mas entende que deveria ter ficado, o que como vimos é agora insindicável pelo Tribunal de Revista.”.
Ainda no mesmo sentido, cf. Ac RC de 06/03/1996, relatado por Santos Cabral, in CJ, II, pp. 44 e ss. Ac RC de 09/02/2000, relatado por Santos Cabral, in CJ, I, pp. 51 e ss.;, e Ac. RC de 11/05/2005, relatado por Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt, processo 1056/05, do qual citamos: “I – Na ausência de prova directa nada impede que o tribunal deduza racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária (prova artificial ou por concurso de circunstâncias). II – No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos: - Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis; - Racionalidade da inferência obtida, de maneia que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio).”.
Ver também o acórdão da RC de 28/10/2009, Processo 31/01, relatado por Jorge Jacob, no processo 31/01, in JusNet 6710/2009, donde citamos: “…Esta afirmação não colide, no entanto, com a validade da prova obtida através de presunção judicial. Não oferece dúvida que são admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por "livre convicção", é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada "experiência comum", assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis "saltos" lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria - desconhecida - de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede). …”.
No sentido de que o recurso à presunção judicial em processo penal não põe em causa o princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º da CRP, cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “CRP Anotada”, tomo I, Coimbra Editora, 2005, a págs. 356 e 357.
Sobre a constitucionalidade do recurso a presunções judiciais em processo penal, ver o acórdão do TC n.º 391/2015, de 12/08/2015, relatado por João Cura Mariano, do qual citamos: “…Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.
Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar.
Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
Como já acima se disse, no ponto 2.2., constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.
Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente.
Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional.
Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional. …”.
Quanto às condições em que operam as presunções, ver a seguinte jurisprudência:
- do STJ de 07/01/2004, relatado por Henriques Gaspar, in www.gde.mj.pt, processo 03P3213, in www.dgsi.pt, donde citamos: “…Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, n° 112 pág, 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, n°2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea b). …”;
- da RP de 14/01/2015, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 502/12.6PJPRT.P1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário (sublinhado nosso): “I- Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
II -Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:
a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal;
b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito;
c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
III- Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.”.
[17] Neste sentido, cf. o acórdão da RP de 10/05/2006, relatado por Paulo Valério, in www.gde.mj.pt, processo 0315948, do qual citamos: “… Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ª instância». Ou, consoante se escreveu no igualmente douto Ac. Rel Coimbra de 3-11-2004 (recurso penal n.º 1417/04) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. no mesmo sentido, entre outros: Ac de 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03, todos da Relação de Coimbra).
É que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. …”.
Ora, sendo os factos dados como provados na sentença conclusões lógicas da prova produzida produzidas em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007). Na verdade, refere o mesmo acórdão, «a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ». Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe. “…”.
[18] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.
[19] [19] Assim, o acórdão do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção, in BMJ 402, pág. 232, do qual citamos: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
No sentido da constitucionalidade deste entendimento, cf. o acórdão do TC n.º 573/98, relatado por Messias Bento, que decidiu, para além do mais, nos seguintes termos: “... (a). não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum ...”.
[20] Que revogou o art.º 40º, excepto quanto ao cultivo, que então tinha a seguinte redacção: “... Artigo 40.º Consumo
1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena. ...”.
[21] Antes desta alteração, o art.º 40º tinha a seguinte redacção: “... ...”(nota nossa).
[22] Neste sentido, veja-se o importante acórdão da RL de 07-12-2011, relatado por Carlos Almeida, no proc. 5/11.6GACLD-A.L1-3, in www.dgsi.pt, cuja jurisprudência subscrevemos inteiramente, com o seguinte sumário:
”... I. O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua versão originária, na linha, de resto, do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, que o antecedeu, punia tanto o tráfico como o consumo de droga, quaisquer que fossem as quantidades de substâncias ou preparações que fossem objecto de cada uma destas actividades.
II. O artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estabelecia a punição como tráfico de droga da prática dolosa e não autorizada de qualquer uma das 18 modalidades de conduta que o preceito descrevia, desde que essa prática tivesse por objecto alguma das substâncias incluídas nas tabelas I a IV a ele anexas.
III. O cultivo, a aquisição e a mera detenção para consumo dessas mesmas substâncias ou preparações (para além do próprio consumo) eram puníveis de uma forma significativamente atenuada pelo artigo 40.º do mesmo diploma, independentemente da quantidade das substâncias ou preparações envolvidas no acto.
IV. O que distinguia os tipos incriminadores descritos nos artigos 21.º, n.º 1, e 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, era, para além do leque de actos tipificados, que era compreensivelmente muito mais amplo no artigo 21.º, um elemento subjectivo especial da ilicitude, o propósito de destinar a substância a consumo próprio, que tinha de se encontrar presente para a conduta ser punível como um acto de consumo.
V. A determinação da quantidade de produto, para além de poder ter reflexos na eventual qualificação do crime de tráfico, se fosse esse o caso, e na pena concreta aplicada, apenas era relevante como indício que contribuía para a distinção dos actos de consumo dos de tráfico.
VI. De acordo com as regras de experiência comum, podia inferir-se que a detenção de uma elevada quantidade de droga se destinava ao tráfico, ao passo que a detenção, em determinadas circunstâncias, de uma pequena quantidade do mesmo produto, indiciava que a droga se destinava a consumo próprio.
VII. Para além disso, a lei delimitava alguns tipos incriminadores ou a medida da pena aplicável a certas condutas atendendo ao facto de a substância ou preparação em causa exceder ou não o «necessário para o consumo médio individual» durante determinado período de tempo (artigos 26.º, n.º 3, e 40.º, n.º 2).
VIII. Embora o conceito de «consumo médio individual» não fosse completamente rígido (artigo 71.º, n.º 3), era um conceito objectivo que não variava segundo os consumos mais ou menos elevados de cada utilizador do produto.
IX. Para esse efeito, a lei previu a publicação de uma Portaria que estabelecesse «os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV de consumo mais frequente» – alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º.
X. Foi no cumprimento dessa injunção que veio a ser publicada a Portaria n.º 94/96, de 26 de Março. Do seu artigo 9.º e do mapa que se lhe refere resulta que o valor diário a considerar quanto ao consumo médio individual de diacetilmorfina (heroína) é de 0,1 grama.
XI – Só se pode ver se uma determinada porção desse produto excede ou não um determinado limite depois de ter sido determinado o seu peso líquido e o grau de pureza.
XII. A descriminalização do consumo, aquisição e detenção para consumo próprio das plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, operada pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (artigos 2.º e 28.º), não alterou a distinção entre os actos de tráfico e de consumo.
XIII. Depois da publicação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, de 25 de Junho de 2008, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações incluídas nas tabelas I a IV do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, constituirá contra-ordenação (artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro) ou crime (artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) consoante o produto não exceda ou exceda «a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
XIV. Se a aquisição ou a detenção não se destinarem ao consumo próprio estaremos perante actos de tráfico, independentemente da quantidade de plantas, substâncias ou preparações que estiverem em causa. ...”.
[23] Que entrou em vigor em 01/10/2023.
[24] Código Civil.
[25] In “Interpretação e aplicação das leis”, Arménio Amado – Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pp. 139/140.
[26] Quanto à interpretação das normas jurídicas, importa ter em conta, para além doutras, as seguintes doutrina e jurisprudência:
- Parecer n.º 26/1998, de 24-09-1998 do CCPGR, relatado por Esteves Remédio, do qual citamos: “... A matéria da interpretação da lei tem sido objecto de repetida atenção por parte do Conselho Consultivo ([16]).
Escreveu-se no parecer nº 61/91:
«5.2.1 - O limite da interpretação é a letra, o texto da norma (x).
A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma ‘tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal’ (x1).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático ‘compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o [lugar sistemático] que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico’ (x2).
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.
5.2.2 - Segundo a doutrina tradicional, o intérprete, socorrendo-se dos elementos interpretativos acabados de referir, acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa.
Na interpretação declarativa, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo (x3).
Ou seja: há interpretação declarativa quando o sentido da lei cabe dentro da sua letra, quando o intérprete fixa à norma, como seu verdadeiro sentido, o sentido ou um dos sentidos literais, nada mais fazendo que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo (x4).
A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões que têm vários significados: tal distinção, como adverte FRANCESCO FERRARA (x5), não deve confundir-se com a de interpretação extensiva ou restritiva, pois nada se restringe ou se estende quando entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que parece mais adaptado à mens legis.» ...”;
- acórdão da RP de 28-05-2008, relatado por Ernesto Nascimento, no proc. 1715/08, in JusNet 7545/2008, do qual citamos: “... Como interpretar esta evolução legislativa?
Na interpretação das normas jurídicas, o argumento literal, não deve ser desprezado e deve-lhe mesmo ser concedido peso decisivo, na tarefa, por vezes árdua, de procurar o sentido da norma querido pelo legislador.
O texto é o ponto de partida da interpretação, quando o sentido para que nos remete não seja paradoxal.
Por um lado, apresenta-se com uma função negativa:
a de eliminação daqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, correspondência ou ressonância nas palavras da lei, e, por outro,
com uma função positiva, nos seguintes termos:
primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma - com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador;
quando, como é de regra, as normas, fórmulas legislativas, comportam mais que um significado, então a função positiva do texto produz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis; e que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita; ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto, nem sempre exacto, de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento", cfr. João Baptista Machado, in "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 12ª reimpressão, 2000, pág. 182.
Em termos de regras de interpretação, dispõe o art. 9º-1 do Cód. Civil, que "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos jurídicos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada".
Por outro lado, dispõe o nº 2 da mesma norma que "não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".
"Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados", nº 3 da mesma norma. ...”;
- acórdão Da RP de 09-06-2010, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 60/09, in JusNet 3587/2010, do qual citamos: “… Como escreveu Manuel de Andrade (In "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", 1963, pág. 26) "Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva" ... "O legislador é plenamente livre para investigar a melhor regulamentação a estatuir, ao passo que o intérprete tem de mover-se sempre no quadro do texto e do sistema e sem perder de vista outros dados - e em especial as sugestões do texto - que, não sendo de todo irrefragáveis, podem ser altamente persuasivos".
Ou ainda, como se escreveu no Parecer n.º 92/81 da Procuradoria-Geral da República, de 8-10-2001 (6) "é das mais elementares regras da hermenêutica dever o intérprete esforçar-se por situar a norma interpretanda num quadro lógico com as demais disposições legais, nomeadamente as que respeitem a institutos e figuras afins ou paralelos";
- acórdão do STJ de fixação de jurisprudência 4/2015, de 24-03-2015, relatado por Pires da Graça, no proc. 533/12.6T3AMD.L1-A.S1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... Como salienta o acórdão fundamento:
"É indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que parece evidente um "claro teor literal" (JESCHECK, sublinhado neste ponto pelo acórdão do STJ de 14.3.2013, no proc. 287/12.6TCLSB.L1.Sl).
E a interpretação há-de levar-se a efeito seguindo uma metodologia hermenêutica que, levando em conta todos os elementos de interpretação - gramatical, histórico, sistemático e teleológico (este a impor que o sentido da norma se determine pela ratio legis) -, permita determinar o adequado sentido normativo da fonte correspondente ao "sentido possível" do texto (letra) da lei."
Com efeito, resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
Refere BAPTISTA MACHADO[ Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 188 e ss.], a propósito da posição do nosso Código Civil perante o problema da interpretação:
"I - O art. 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...]
II - Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso". Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador. Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.
III - Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
IV - Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas".
Este n.º 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagra as soluções mais acertadas (mais correctas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correcta. Este modelo reveste-se claramente de características objectivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorrecto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstracto: sábio, previdente, racional e justo. Só que não convém exagerar a tónica objectivista, pois já vimos ser ponto assente que a nossa lei não tomou partido entre as duas correntes (a subjectivista e a objectivista).
Pode, porém, acontecer que a interpretação mais natural e directamente condizente com a fórmula verbal não corresponda à solução mais acertada. Nesta hipótese, as duas presunções entrarão em conflito. Por qual das interpretações optar?
Manuel de ANDRADE propõe para esta hipótese a procura de um certo ponto de equilíbrio, nos seguintes termos: "Dentre os dois sentidos, cada um deles o mais razoável sob um dos aspectos considerados, deve preferir-se aquele que menos se distanciar da razoabilidade sob o outro aspecto". É esta uma directriz equilibrada, sem dúvida; mas é óbvio que apenas será de observar se o "impasse" se mantiver depois de exauridos os outros elementos de interpretação mencionados pelo art. 9.º e que ainda falta referir.
V - O n.º 1 do art. 9.º refere mais três desses elementos de interpretação: a "unidade do sistema jurídico", "as circunstâncias em que a lei foi elaborada" e as "condições específicas do tempo em que é aplicada".
Tomemos em primeiro lugar estes dois últimos elementos. Entre eles não existe qualquer hierarquia ou melhor, como diz A. VARELA, "nenhum significado especial possui a ordem por que são indicados esses dois factores".
O primeiro destes factores, "as circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada", representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os factores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa. Por vezes o conhecimento destes factores é mesmo indispensável para se poder atinar com o sentido e alcance da norma - sobretudo quando esta é já antiga e foi fortemente condicionada por factores de conjuntura.
O segundo dos dois elementos, as circunstâncias vigentes ao tempo em que a lei é aplicada, tem decididamente uma conotação actualista e, talvez deva afirmar-se, a referência que o art. 9.º lhe faz significa que o legislador aderiu ao actualismo. Com efeito, este não é de forma alguma incompatível com a utilização de elementos históricos como meios auxiliares da interpretação da lei. A posição historicista, essa é que seria incongraçável com a consideração das circunstâncias do tempo de aplicação da lei para efeitos de determinar o sentido decisivo com que esta deve valer.
Não tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na "unidade do sistema jurídico", de que falaremos a seguir.
Cumpre ainda anotar que, quanto mais uma lei esteja marcada, no seu conteúdo, pelo circunstancialismo da conjuntura em que foi elaborada, tanto maior poderá ser a necessidade da sua adaptação às circunstâncias, porventura muito alteradas, do tempo em que é aplicada. O que bem mostra que a consideração, para efeitos interpretativos, da occasio legis (circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada) tem em vista uma finalidade bem diversa da consideração, para os mesmos efeitos, das condições específicas do tempo em que é aplicada. Acolá trata-se muito especialmente de conferir à letra (ao texto) um sentido possível (quando o texto de per si seja totalmente equívoco) ou de identificar o ponto de vista valorativo que presidiu à feitura da lei; aqui trata-se, por um lado, de transpor para o condicionalismo actual aquele juízo de valor e, por outro lado, de ajustar o próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) pelo ordenamento em cuja vida ela se integra.
VI - Com isto abeiramo-nos de um último factor ou ponto de referência da interpretação: "a unidade do sistema jurídico". Dos três factores interpretativos a que se refere o n.º l do art. 9.º, este é sem dúvida o mais importante. A sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica.
Como diz LARENZ, "a lei vale na verdade para todas as épocas, mas em cada época da maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica". A isto há que acrescentar que, se o legislador actual insuflou de espírito novo o ordenamento jurídico ou o regime de uma dada matéria, se altera o termo de referência para a compreensão da fórmula verbal de uma norma antiga que se mantenha em vigor.
[...] A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha. Mas uma incompletude relativamente a quê? Uma incompletude relativamente a algo que protende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma "incompletude contrária a um plano" [...].
Tratando-se de uma lacuna jurídica, dir-se-á, pois, que ela consiste numa incompletude contrária ao plano do Direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global. Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica".
PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA [Código Civil Anotado, Volume I (artºs 1º a 761º), 4ª edição revista e actualizada, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 58.], anotam que "[...] o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada (nota vincadamente actualista).
O facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis).
2. Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios, de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3."
Por seu lado, FIGUEIREDO DIAS [Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, Limitada, -1974, p. 95.], elucida: "2. Nas suas linhas essenciais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia: trata-se aí, como em geral, da necessidade de uma actividade - prévia em relação à aplicação do direito e que, por isso mesmo, em nada contende com o carácter não subsuntivo desta operação - tendente a descortinar o conteúdo de sentido ínsito em um certo texto legal. Só convirá aqui relembrar dois pontos já devidamente acentuados: é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina, assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o princípio da interpretação conforme à Constituição."
E como refere este mesmo Distinto Professor [Direito Penal. Parte Geral I, Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2ª ed. Coimbra Editora, 2007,8.º Cap., § 20] "O legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único sentido, mas pelo contrário se apresentam polissémicas. Por isso o texto legal se toma carente de interpretação (e neste sentido, atenta a primazia da teleologia legal, de concretização, complementação ou desenvolvimento judicial), oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Um tal quadro não constitui por isso critério ou elemento, mas limite da interpretação admissível em direito penal". ...”;
- acórdão do STJ de 29-04-2015, relatado por Santos Cabral, no proc. 85/14.2YFLSB, in www.dgsi.pt, do qual citamos:
“... Assim sendo, também ... se aplica a norma fundamental da hermenêutica jurídica radicada no art. 9º do Código Civil que incide sobre a interpretação da lei. “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
É nessa lógica que, também neste domínio, têm aplicabilidade as palavras de Manuel de Andrade Cfr. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, pp. 21 e 26. quando afirmava que interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.
Interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva. Neste sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 6ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1965, Vol. I., p. 145. Cfr. Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I., pp.58/59 de Pires de Lima e Antunes Varela onde se afirma que o sentido de a lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Assim, e repetindo as palavras de Baptista Machado, a letra assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, “a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei” Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, pp. 187 ss..
Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se, como refere Francesco Ferrara de vários meios: “Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.” Cfr. Interpretação e Aplicação das leis, tradução de Manuel de Andrade, 3ª ed., Coimbra, 1978, pp. 127 ss e 138 ss. Ora, nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende, ainda, o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico, por seu turno, compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional, ou teleológico, consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. A propósito deste critério realça Ferrara que “É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para com o fim: quem quer o fim quer também os meios.
Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências económicas que brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa Idem, p. 141. ...”.
[27] Cfr. Eduardo MAIA COSTA, “Consumo de estupefacientes, evolução e tensões no direito português”, Julgar, 32, Maio-Agosto de 2017.
[28] No mesmo sentido se pronuncia Maria Inês Godinho, in “A Lei n.º 55/2023 de 8 de setembro: uma nova Lei da Droga?”, Revista Julgar Online, Junho de 2024, págs. 10 e 25, donde citamos: “... O projeto de lei afirma claramente a vontade de retornar ao caminho inicialmente traçado, de descriminalização do consumo de estupefacientes, concentrando os esforços do Estado na recuperação da pessoa adicta.
Clarificado o pensamento do legislador, temos que, sem sombra de dúvida, a detenção para consumo exclusivo das substâncias mencionadas no artigo 40.º, quando ocorrida após 1 de outubro de 2023, constitui contraordenação, independentemente do número de doses em que aquelas possam ser repartidas.
...
A posição que defendemos, que considera a Lei n.º 55/2023 como lei interpretativa, é aquela que, a nosso ver, melhor reconstitui o pensamento legislativo, partindo da letra da lei, sem descurar a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a mesma foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada- artigo 12.º, do Código Civil.
É também a solução que permite salvaguardar o interesse que sempre norteou o Legislador ao descriminalizar o consumo com a aprovação da Lei n.º 30/2000: a proteção da dignidade do consumidor, encarando-o como doente48 49, não o abandonando, entregue à sua própria sorte. ...”.
[29] Acórdão da RE de 12-09-2023, relatado por Maria Clara Figueiredo, no proc. 10/19.4GAODM.E1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“I - As exigências estabelecida pelo artigo 21º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro correspondem a elementos negativos do tipo, restritivas do âmbito de aplicação da referida norma penal, pelo que a simples detenção do estupefaciente, só será proibida e punível como crime de tráfico – seja o do artigo 21.º, seja o do artigo 25.º – se não estiver autorizada e se não se encontrar abrangida pela previsão do artigo 40.º.
II - Por outro lado, a detenção, só por si, e desacompanhada do facto relativo à destinação da droga ao consumo exclusivo do seu detentor, não permite igualmente a sua integração no crime de consumo p. e p. no artigo 40º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, conquanto também este reclama a prova de tal facto.
III - Não cumpre ao julgador aditar ao objeto do processo fixado na acusação os factos essenciais sem os quais a conduta aí descrita não constituirá crime. Fazê-lo, traduzir-se-ia numa flagrante violação do princípio do acusatório e da vinculação temática estrutural ao nosso direito processual penal.
IV - Os princípios gerais do processo penal português não comportam a atribuição de quaisquer ónus de prova ao arguido, ou sequer, a utilização de tal conceito civilista no âmbito do processo penal, ao qual, manifestamente se sobrepõem os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
V - Em nome do respeito absoluto pelas garantias de defesa do arguido, entendemos que o interesse do mesmo no recurso deverá aferir-se apenas em função do fim visado, ou seja, terá interesse em recorrer o arguido que com a interposição do recurso vise alcançar uma decisão que lhe seja mais favorável, independentemente da posição que tenha assumido no decurso do processo, nomeadamente nas alegações orais produzidas pela sua defensora na audiência de julgamento.”.
[30] Como resulta da seguinte passagem do referido acórdão: “... legislador proibir e punir na referida norma penal. Tendo querido abranger na sua previsão todas as modalidades de ação que, por referência àquelas substâncias, pudessem colocar em perigo o bem jurídico tutelado, o legislador previu várias condutas, nas quais se incluem, entre muitas outras, e com relevo para a situação dos autos, o transportar, o fazer transitar e a detenção. Porém, tais ações só são proibidas e puníveis se:
- O agente que as praticar não estiver para tanto autorizado e
- Desde que estejamos fora do âmbito de aplicação do art.º 40.º.
Parece-nos incontornável que tais exigências correspondem a elementos negativos do tipo, restritivas do âmbito de aplicação da norma penal em análise, pelo que a simples detenção do estupefaciente, verificada in casu, só será proibida e punível como crime de tráfico – seja o do artigo 21.º, seja o do artigo 25.º – se não estiver autorizada e se não se encontrar abrangida pela previsão do artigo 40.º.
Ora, nos termos do disposto no aludido art.º 40.º, e em conformidade com o definido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, pune-se, entre o mais, a detenção para consumo das plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a IV, desde que a quantidade em causa exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. Da análise das previsões dos artigos 21.º e 40.º ressalta que os respetivos campos de aplicação têm uma zona de sobreposição, quer no que tange tipo de estupefacientes objeto da conduta – os previstos nas tabelas I a III – quer quanto à modalidade da ação – a detenção. (10)
Assim, do confronto dos regimes legais aplicáveis, decorre que, consubstanciando-se a conduta do agente na detenção de estupefacientes, a imputação de cada um daqueles ilícitos criminais dependerá, não apenas da concreta modalidade da ação, como ainda do destino do estupefaciente, ou seja, da finalidade dessa detenção, facto sem o qual não será possível determinar a norma aplicável e, portanto, o crime a imputar ao agente. ...” (sublinhado nosso).