I -O contrato de arrendamento urbano está sujeito a forma escrita (art. 1069.º/1 CC), sendo a omissão desta causa de nulidade (art. 220.º).
II - O art. 1069.º, n.º 2, determina que, se essa falta não for imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer meio, demonstrando a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses. Nestes casos, a sanção para a falta de forma não será a nulidade, mas a invalidade mista. Para além disso, poderá ainda ocorrer uma inalegabilidade formal, no caso de a invocação da nulidade por falta de forma se apresentar como contrária à boa fé, por haver abuso de direito na sua invocação.
III - A figura prevista no art. 268.º CC – representação sem poderes – mesmo inexistindo ratificação pelo representado, não confere a este o direito de se valer da ineficácia do negócio, se a sua atuação, prolongada no tempo, induziu a contraparte a confiar na atuação (aparente) do representante sem poderes, por tal constituir abuso de direito.
IV - Compete à Ré alegar e demonstrar factos modificativos ou extintivos do direito do direito de crédito do A., nomeadamente os que integram a negociação das partes com vista à modificação das rendas relativas ao contrato de arrendamento, por força da alteração das circunstâncias, prevista no art. 437.º CC.
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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RELATÓRIO
Autor: AA, com domicílio na R. ..., ..., ....
RÉ: A..., Unipessoal, Ld.ª, com sede na R. B..., lote ...3, loja ..., ....
Por via da presente ação declarativa de condenação, pretende o A. seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 8.500,00, de capital, com juros legais, sobre € 4.000,00, desde 1.1.2021 e até 18.12.2013, no valor de € 954, 58, e juros vencidos desde a citação e vincendos.
Para tanto, alegou ser dono de um imóvel sito em ..., cujo gozo (para alojamento local) foi cedido, à Ré pelo seu pai, então usufrutuário, contra o pagamento de € 10.500,00, em 2018, repartidos em nove prestações.
O contrato foi sendo renovado, entre 2019 e 2022, com aumento da contrapartida a pagar pela Ré que era, em 2020, de € 13.000, 00, da qual a Ré apenas pagou € 9.000. Por ser ano pandémico, a Ré informou o autor, nesse ano, que pagaria apenas € 5.500, 00, o que o demandante não aceitou, tendo aquela, além disso, procedido ilegitimamente ao cancelar a licença de exploração do alojamento local, o que obrigou o A. a despender € 79, 57, em nova licença, tendo ficado impedido de explorar o imóvel até junho de 2023, assim perdendo € 4.500, 00.
Contestou a Ré, dizendo que o contrato foi celebrado com o pai do A., em 3.5.2016, cessando os seus efeitos no mesmo dia do ano seguinte, apesar disso manteve-se nos anos seguintes, até a renda ter sido alterada, em 2020, por força da pandemia, com o acordo do pai do A., para € 5.000, 00, acrescidos de 50% do que a Ré conseguisse com reservas, pelo que nada deve a Ré ao A.
O contrato foi terminado por acordo das partes em 31.12.2022, tendo a Ré comunicado a cessão da exploração ao Balcão do Empreendedor, a 28.2.2023, cabendo ao A. ou ao novo explorador alterar a indicação do titular.
Em reconvenção, pede a condenação do A./reconvindo na quantia de € 5.101,40, quantia correspondente a intervenções no imóvel que o pai do A. se recusava a efetuar e que a Ré teve que fazer, bem como pelas perdas de reservas, entre 14.10.2019 e 31.12.2019, que decorreram da falta de condições mínimas para receber hóspedes.
Termina pedindo a condenação do A. como litigante de má fé.
O A. replicou, opondo-se à pretensão da reconvinte, arguindo abuso do direito por parte desta, pedindo, de igual forma, a condenação da Ré como litigante de má fé.
Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 22.7.2024, a qual julgou improcedentes ação e reconvenção.
Desta sentença recorre o A., visando a revogação da sentença, na parte em que absolveu a Ré do pedido por aquele formulado.
Para tanto alinhou os argumentos que assim sintetizou em conclusões:
1) A sentença de que ora se recorre consubstancia um claro exemplo de deficiente
apreciação do material probatório disponível e uma insuficiente (quase inexistente, dir-se-á) fundamentação da decisão.
2) Estamos, pois, perante uma manifesta nulidade, prevista no artigo 615.º n.º 1 al. b) do C.P.C., que a comina para os casos em que a sentença (i) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, (ii) os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível ou (iii) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
3) Ora, a sentença funda a convicção do Tribunal nos “documentos juntos aos autos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, mediante o seu confronto, apreciação das suas contradições, hesitações e incertezas”, sem dizer concretamente quais os depoimentos que considerou para cada facto e as razões para atribuir maior ou menor relevância a cada um deles.
4) Ademais, há que ter em atenção que os nºs. 3, 4, 8, 9, 14, 15 e 16 dos factos provados não são factos, mas sim documentos nos quais, como é inerente à sua qualificação, são mencionados múltiplos factos, sem que a sentença destrince quais são, de entre estes, os relevantes e os impertinentes para a decisão do pleito.
5) Indiscutível que os emails fotocopiados na sentença evidenciam uma correspondência continuada, traduzida na sucessiva troca de emails entre o pai do A. e a gerente da Ré. e uma das regras fundamentais na análise de cada afirmação é o contexto em que a mesma é proferida, aspeto que, nem sequer ao de leve, é aflorado na sentença.
6) A título meramente exemplificativo, salientar-se-á que não é apenas do email referido no n.º 10 dos Factos Provados que pode extrair-se qualquer conclusão acerca da posição do A. quanto à redução das rendas que a R. tenta fazer vencer, quando, na verdade, dos demais meios de prova se poderia obter decisão diversa.
7) Continuando, é o próprio Tribunal a quo que principia a fundamentação de direito declarando que a relação jurídica em análise se trata de um contrato de arrendamento.
8) Ora, atendendo ao princípio da relatividade em matéria contratual, necessário se tornava encontrar um facto (meridianamente claro), sem prejuízo da sua habitual participação nos diálogos com a representante legal da R., que, por um lado, justificasse realmente o reconhecimento de legitimidade ao pai do Autor para aceitar uma eventual redução de renda mensal, e, por outro, precisasse concretamente qual a redução alegadamente proposta e aceite!
9) Torna-se, pois, premente justificar que um terceiro ao contrato possa ter alterado (devida e legitimamente) tal obrigação e, por outro lado, se o fez, em que medida.
10) O Tribunal a quo saltou, assim, um passo lógico impreterível pois que, não sendo o pai do Autor parte na relação provada nos autos (e aceite pela R.), e a concluir-se que tal declaração negocial lhe era assacável, necessário se tornava procurar-lhe uma qualidade que lhe atribuísse legitimidade para o efeito.
11) Irrelevante era também o usufruto a seu favor que em tempos existiu e cessou, ainda que ambos os factos tenham sido considerados não provados, concluindo-se sempre, então, pela necessidade de uma legitimidade para um tal ato.
12) A sentença em crise simplesmente não apresentou qualquer enquadramento para a atuação que pretende imputar ao pai do Autor e cujos efeitos pretende fazer repercutir na esfera jurídica do A. e, por isso, a invocada nulidade adensa-se!
13) Aliás, mesmo se pela via do mandato enveredasse, o art. 1159.º CC, para além de estabelecer a distinção entre “mandato geral” e “mandato especial”, determina que este “abrange, além dos actos nele referidos, todos os demais necessários à sua execução””, exigindo, pelo menos, que o mandato especial conste de documento escrito.
14)E dúvidas não restam que o perdão de dívida, acto com manifestas repercussões patrimoniais, representa um acto de disposição cuja prática por mandatário terá que estar legitimada por mandato especial, ou seja, escrito.
15) Compulsando os autos, não se vislumbra neles uma única informação trocada
entre o A. e a gerente da Ré e muito menos qualquer documento cujo conteúdo pudesse ser interpretado uma transmissão de poderes especiais – ou de natureza dispositiva – que constituem a característica essencial do mandato especial.
16) Assim, é indiscutível que a frase transcrita no nº. 10 dos factos provados carece de relevância no contexto da lide que os autos representam, aspeto que a decisão deveria ter juridicamente analisado mas não fez!
17) Não obstante, o A., na sua réplica, explicou amplamente qual o sentido atribuído por seu pai à expressão transcrita no nº. 10 dos Factos Provados, factualismo a que a sentença negou qualquer relevância e, mesmo quando inquirido, o pai do A. não teve reservas em esclarecer o real sentido da expressão “suportei”.
18) Assim, o seu depoimento, ao minuto 17.20 a 18.00, esclareceu cabalmente em
sentido oposto ao assumido pelo Tribunal a quo.
19) De resto, proferida esta declaração, por um lado, por quem não tinha poderes de disposição relativamente ao perdão de parte das rendas da habitação ... – a que é objecto do litígio – mas, ainda assim, esclarecido o seu real sentido, não podendo retirar-se de um singelo parágrafo num email toda a extensão que o Tribunal a quo dela retirou.
20) Mas o que é certo é que, em vez de lha negar, a sentença confere-lhe a maior importância, uma vez que é exclusivamente com base nela que absolve a Ré!
21) Mais flagrante ainda é o facto de a frase em causa constar num email de 27.05.2022 e o Tribunal a quo propor-se considerá-la uma resposta a uma proposta constante de 06.07.2020!
22) Ou seja: na alteração dos termos de um contrato de arrendamento, a sentença
assume que é possível que entre a proposta e a aceitação possam mediar quase dois anos!
23) E mais esqueceu a sentença – mas tal resultava de forma inequívoca dos autos porque foi expressamente aceite pela R. – que esta pagou na prática valor superior à proposta de 06.07.2020, a saber, de 9.000,00 € em vez de 5.500,00 €.
24) De resto, o depoimento da testemunha Dr. BB, a quem a sentença, por um lado, pretende retirar credibilidade, mas no qual, por outro, pretende alicerçar a aceitação de uma redução, foi bem claro a esse respeito, ao minuto 15.59 a 17.05.
25) E também resultou claro do depoimento da Testemunha CC, funcionária da Ré, ao minuto 07:49 até 08:49 que a pretensa redução em momento algum ficou verdadeiramente fixada, o que foi também corroborado por DD, igualmente funcionário da R. – Minuto 34:40 a 35:37.
26) Não tendo o silêncio valor declarativo, afigura-se que a proposta da Ré foi manifestamente recusada e que esta ou pagou, na prática, menos do que os termos iniciais do contrato, entrando em incumprimento, ou pretendeu formular nova proposta com o pagamento de 9.000,00 €, o que também não foi aceite!
27) Para além do art. 1159 CC, as demais regras atinentes ao contrato de mandato foram postergadas na sentença que se bastou com uma singela frase vertida em email – nem sequer fotocopiado, como os da Ré – da autoria de pessoa que não é parte na relação contratual, nem para os termos da mesma tem expressos poderes.
28) Assim, impunha-se fazer constar dos factos provados que i) “o autor não aceitou a redução da quantia anual paga pela fruição da moradia no ano de 2020”; e ii) “a Ré, apesar de ter proposto pagar o valor anual de 5.000,00 € a título de renda por referência ao ano de 2020, veio a pagar 9.000,00 € por conta desse mesmo ano”.
29) E isto porque quer a prova documental quer as passagens dos depoimentos acima transcritas impunham decisão diversa quanto a tais pontos, o que se pretende ver alterado com o presente recurso.
29[1]) Acontece ainda que a matéria de facto dada como provada pela sentença é ininteligível, quanto aos factos Provados 15 e 16, no mesmo email não foram ventilados os assuntos que constam de cada um deles.
30) Em tais factos se afirma que “O pai do autor respondeu…” o que implica que
tenha recebido previamente um email da gerente da Ré mas o Facto Provado 16 não aponta qual o email a que o pai do autor tenha respondido.
31) Mais grave ainda, identifica erradamente o email, como sendo o de 24.10.2022
quando o que fotocopia é de 25.05.2023, donde decorre que o Facto Provado 16 não existe, uma vez que não é, seguramente, o identificado pela sentença, devendo por isso ser eliminado.
32) A sentença revela-se nula, dada a sua inteligibilidade e a censurável organização da matéria de facto que impossibilita a impugnação apropriada, uma vez que se desconhece quais os factos que as “fotocópias” trazem para o âmbito da lide, ou seja,
os que contribuíram para formar a convicção do juiz.
33) Por outro lado, no momento em que se dedica a declaração de improcedência
dos pedidos, a sentença afirma que “nenhum meio de prova foi apresentado que demonstrasse o lucro cessante invocado, sendo certo que o autor se o tivesse querido desde o dia 1.1.2023 poderia ter assumido a exploração da moradia ou entregá-la a outrem distinto da ré”.
34) Ora, por natureza, o lucro cessante pressupõe, no caso em específico, do arrendamento ou exploração de alojamento local, a ausência de benefício durante um certo período de tempo, que o A. balizou concretamente nos autos.
35) Aquilo que não se descortina, porém, é a razão de ciência da afirmação da sentença quando indica que se provou que o autor poderia ter assumido ou entregado a exploração da moradia a partir de 01.01.2023.
36) Aquilo que ficou claro foi que a R. manteve a licença de exploração do alojamento local em seu poder e apenas a cancelou no final de fevereiro, sem que apresentasse qualquer justificação para tão aberrante comportamento.
37) É certo, no entanto, não podem existir simultaneamente duas licenças de alojamento local para a mesma propriedade.
38) É, aliás, sintomático o depoimento da testemunha DD, funcionário da R., a esse respeito (Minuto 2P3:00 a 24:25; 25.19 a 26.00; 27.26 a 28.35; 29:45 a 30:10; e 31:30 a 31:52), que relatou o cancelamento como uma tarefa algo incómoda, não apresentando qualquer real justificação para a vontade de cancelar a licença.
39) O que, na verdade, confirmou a afirmação da A. de que o ato de cancelamento foi uma pura retaliação da R., pela cessação das relações contratuais, devendo considerar-se provada a ilicitude desse ato e, consequentemente, concluindo-se pela obrigação de reparar o lucro cessante reportado aos meses de privação da licença.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Objeto do recurso:
Da nulidade da sentença prevista no art. 615.º/1 b) CPC.
Da impugnação da decisão de facto.
Do contrato de arrendamento.
FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Em primeira instância, foram dados como provados os factos seguintes:
1. Mostra-se descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ...10/19880808 o prédio urbano, situado em ..., correspondente à moradia ...9, inscrito na matriz sob o art.º ...45.º, o qual se encontra inscrito a favor do autor mediante a inscrição Ap. ...29 de 2005/05/16
2. Tal moradia, pelo menos desde o ano de 2016, foi afeta ao alojamento de turistas, tendo o autor estabelecido com a ré uma relação, já anteriormente existente entre a ré e o seu pai, BB, o qual, pelo menos a partir do ano de 2019, passou a atuar junto da ré, em nome do autor e sendo o único interlocutor junto desta.
3. Em 3/5/2016, o pai do autor e a ré celebraram um acordo escrito que intitularam de “Acordo de exploração turística em controle de reservas”, nos termos do qual estabeleceram que:
4. Em 27/1/2018, o pai do autor e a ré celebraram novo acordo que sujeitaram às seguintes cláusulas, apesar de não o terem assinado:
5. Pese embora a data de termo estipulada no acordo referido em 4., este foi-se mantendo ao longo dos anos.
6. Para o ano de 2020 foi acordada como contrapartida pecuniária o montante de 12.000,00 euros.
7. Nesse ano a ré procedeu à entrega apenas da quantia de 9.000,00 euros.
8. Por email de 1/4/2020 a ré comunicou ao pai do autor que:
9. Por email de 9.7.2020 a ré comunicou ao pai do autor que:
10. No email de 27.5.2022 enviado pelo pai do autor à ré este afirmou que “Aceitei tudo o que me propôs até agora, suportando eu, na íntegra, note-se, a quebra da pandemia.”.
11. O autor, no ano de 2023, decidiu entregar a exploração do imóvel a outra empresa do mesmo ramo da ré, pelo que solicitou a entrega, pela ré, da documentação de alojamento local, tendo tomado conhecimento que a ré havia procedido ao cancelamento da licença de exploração nos termos constantes do ponto 16.
12. O autor solicitou a emissão de nova licença despendendo a quantia de 79,57 euros.
13. O imóvel era objeto de furtos constantes, com e sem hóspedes, do que o pai do autor tinha conhecimento e o qual sempre recusou suportar qualquer custo para tentar debelar a situação.
14. Por email de 14.10.2022 endereçado pela ré ao pai do autor esta comunicou que:
apesar de ter mantido o acordo celebrado até 31.12.
15. O pai do autor respondeu por email de 24.10.2022 afirmando que:
16. O pai do autor respondeu por email de 24.10.2022 afirmando:
Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Os factos alegados nos arts. 1.º (quanto ao usufruto e à data da sua renúncia), 9.º, 13.º, 14.º (quanto à data início do ano de 2023), 15.º (quanto à má fé), 16.º (segunda parte), 17.º e 18.º da petição inicial.
2. Os factos alegados no art. 34.º e nos pontos XV, XX, XXI, XXVI, XV, XVI da contestação.
Da nulidade da sentença prevista no art. 615.º/1 b) CPC:
O normativo em apreço refere-se a vício estrutural da sentença por violação do disposto no art. 607.º/3, na medida em que este dispõe que, entre o mais, e quanto aos factos, estes devem ser discriminados.
É no n.º 4 que se alude à análise crítica das provas.
A al. b) do art. 615.º/1, porém, apenas se refere à falta em absoluto da indicação dos fundamentos de facto (não da sua motivação) ou da indicação dos fundamentos de direito.
Porém esta nulidade só ocorre quando faltem, de todo, os factos, e não a simples deficiência da fundamentação (ac. STJ, de 9.12.2021, Proc. 7129/18.7T8BRG.G1.S1).
Já à falta de fundamentação, não se lhe aplica aquela nulidade da repontada al. b), porquanto para estas situações já dispõe o art. 662.º/2 d) e 3 b) e d), ou seja, o Tribunal da Relação nova fundamentação da decisão pelo tribunal de primeira instância, a repetição da prova na parte viciada ou de toda a prova.
A solução não é, assim, a da nulidade da sentença (neste sentido Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 4.ª Ed., p. 736).
Finalmente, não é verdade que o tribunal se não refira, na fundamentação de facto, aos testemunhos prestados em audiência, como se vê na segunda p. da fundamentação.
Quanto à nulidade por ininteligibilidade, o 615.º/1 c) CPC, ao referir-se a ininteligibilidade da decisão, refere-se às situações em que ocorra incompreensão da sua parte decisória[2] de tal forma que um declaratário normal - de harmonia com o disposto nos arts. 236.º, n.º 1, e 283.º, n.º1, do CC - não consegue obter do dispositivo um sentido inequívoco ou unívoco. Sucede assim quando os termos ou expressões empregues na decisão são incertos, duvidosos ou suscetíveis de diferentes significados.
Na situação dos autos, afigura-se-nos ser o dispositivo expresso quanto ao indeferimento da pretensão do A. e da Ré.
Já no tocante à forma como foram redigidos os factos provados, ou se obtém dos autos a informação necessária para os alterar – se obscuros ou ambíguos – ou se recorre aos remédios previsto no art. 662.º CPC.
Julgam-se, assim, improcedentes a arguições de nulidade.
Não há dúvida que se trata aí da reprodução de documentos (contratos e teor de correio eletrónico) e que a melhor técnica impunha se dessem como provados os factos que deles decorrem e não os documentos de onde poderão resultar os factos.
O próprio recorrente diz que nestes documentos são mencionados múltiplos factos que a sentença não discrimina.
Ora, o normativo acima mencionado, quanto à impugnação da matéria de facto, é claro, impondo ónus ao recorrente que são muito específicos: indicar os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados (n.º 1 al. a), os meios probatórios donde resultem (al. b), e a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto mencionadas.
É exatamente este último ónus que foi omitido pelo recorrente que em lado algum indica se os pontos de facto que atacou devem manter-se, devem dar-se como não provados ou que redação, na sua ótica, seria a apropriada.
Limitando-se a criticar a técnica utilizada para descrever os factos e da fundamentação empregue para os justificar, o recorrente não cumpre aquele ónus pelo que, nesta parte, é rejeitada a impugnação de facto. Afinal, quais destes factos pretende ver como provados, não provados ou provados com redação distinta?
O mesmo sucede com o que expôs nas conclusões 6 a 12, com a agravante de naquele ponto 12 se insistir com a invocação da nulidade que já anteriormente de julgou improcedente.
Rejeita-se a impugnação da decisão de facto nesta parte.
No tocante ao mencionado em 23, já resulta ali expresso o que pretende o A. se dê como provado e a prova em que se ancora essa sua pretensão: que a Ré pagou € 9.000, 00, em 2020, facto que foi alegado pelo A. em 7.º da pi, impugnado pela Ré em 6.º da contestação, já está dada como provada no ponto 7 dos factos provados.
Quanto ao ponto 28 das conclusões:
A prova de que o A., mesmo através do seu pai, aceitou o pedido da Ré para reduzir a quantia anual paga pela Ré, em 2020, é matéria a demonstrar por esta, por se tratar de facto extintivo do direito que este exercita.
Contudo, neste tocante, não pode aceitar-se o que se escreveu na motivação da decisão de facto quando ali se refere ter-se demonstrado que o A., através do seu pai, aceitou o pedido de redução, por efeito dos prejuízos provocados pela pandemia. Na verdade, diz o tribunal que esse facto resultaria da circunstância que está provada em 10, este relativo a um mail remetido pelo pai do A. à Ré, em maio de 2022, onde afirma” aceitei tudo o me propôs até agora”.
Ora, o pedido da Ré, quanto à redução da renda foi endereçado ao pai do A., por mail de 6.7.2020, ou seja, quase dois anos antes daquele mail de maio de 2022.
Em lado algum, de entre os mails trocados, após o pedido de redução da renda, constante do ponto 9, vislumbramos ter sido aceite aquela proposta de redução, sendo certo que o silêncio não vale aqui como meio declarativo (art. 218.º CC), e o mail de 27.5.2022, mencionado no ponto 10 não tem conteúdo suficiente para cobrir todos e quaisquer pedidos (alude-se ali a propostas) que ocorreram nos anos anteriores e o certo é que o pedido da Ré remetido pelo mail de 9.7.2000 referia valores inferiores aos que acabaram por ser pagos pela Ré, nesse ano de 2022, o que contradiz a afirmação de que o A. aceitou a redução proposta pela Ré. Já o doc. 5 junto com a contestação - mail do pai do A., datado de 27.7.2020, que a Ré (art. 19) alega corresponder à resposta do seu mail de 6.7.2020, nada contém relativamente a rendas ou aceitação da pretendida redução.
Assim, tratando-se de facto extintivo do direito do A., não poderia dar-se como provado que o A., ou o seu pai, não tenham aceite a redução da quantia anual paga pela fruição da moradia do ano de 2020, devendo eliminar-se, nos factos não provados, a referência ao conteúdo do art. 9.º da pi e dar-se como não provado que o A. ou o seu pai aceitaram a redução proposta pela Ré pelo mail mencionado em 9 dos factos provados.
Quanto aos factos constantes dos pontos 15 e 16, verifica-se existir, de facto, erro:
Enquanto o mail referido em 15 (datado de 24.10.2022), que se refere à surpresa do pai do A. quanto à proposta da Ré de entrega imediata das casas, proposta essa que corresponde ao mail da Ré, de 14.10.2022, mencionado em 14, já o conteúdo do ponto 16 é antitético, pois começa por afirmar que o pai do A. respondeu a um mail (não referindo a que mail responde), e que o faz por mail de 24.10.2022 (o qual já consta do ponto 15), apresentando de seguida, afinal, um mail daquele datado de 25.3.2023.
Este último mail corresponde ao doc. 10 junto com a contestação e, no art. 30.º da contestação, onde se alude a este doc. 10, nada se diz quanto ao facto de este mail, de 25.3.2025, ser resposta ao que que quer que seja, mas sim uma manifestação de BB quanto à situação das licenças para exploração do alojamento local, já depois de as casas terem sido entregues pela Ré.
Assim, o ponto 16 passa a ter a seguinte redação:
O pai do A. remeteu à Ré o mail de 25.3.2023, com o seguinte teor:
Novamente, no tocante aos pontos 33 a 39, verifica-se, não ter o A. referenciado quais os factos que pretende ver dados como provados, a título de lucros cessantes, sendo certo que apenas alegou que, entre janeiro e julho de 2023, fiou impedido de explorar o imóvel, por falta da licença, tendo tido um prejuízo de € 4.500, 00. Não alega – nem, por isso, demonstra – que, naquele período, ao arrendamento comercial do imóvel correspondia aquele valor de prejuízo ou outro e porquê. Aliás, caso tivesse sido alegado este prejuízo desta forma, certamente não deixaria de se decidir por perícia acerca dos valores dos arrendamentos para alojamentos locais naquela área.
Pelo que, nesta parte, igualmente se rejeita a impugnação da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto no art. 640.º/1 al c) do CPC.
Fundamentos de direito
Na situação dos autos temos que, em 2016, o pai do autor, relativamente a imóvel que pertence àquele, deu-o em locação para a Ré aí explorar o chamado alojamento local, categoria autónoma dos empreendimentos turísticos, alternativa aos serviços hoteleiros, que que visa proceder à prestação de serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante um pagamento, desde que não reúna os requisitos legalmente exigidos para ser considerado empreendimento turístico, regulado no Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local, aprovado pelo Decreto-Lei 128/2014, de 29 de Agosto, atualmente, com várias versões introduzidas ao longo do tempo, até à atual, resultante da DL n.º 76/2024, de 23/10.
Trata-se, assim, de um arrendamento não habitacional (arts. 1067.º e 1108.º e ss. CC), posto que a Ré não o destinava à habitação, mas ao exercício daquele tipo de indústria turística.
O contrato de arrendamento urbano está sujeito a forma escrita (art. 1069.º/1 CC), sendo a omissão desta causa de nulidade (art. 220.º). Porém, o art. 1069.º, n.º 2, determina que, se essa falta não for imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer meio, demonstrando a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses. Nestes casos, a sanção para a falta de forma não será assim a nulidade, mas a invalidade mista. Para além disso, poderá ainda ocorrer uma inalegabilidade formal, no caso de a invocação da nulidade por falta de forma se apresentar como contrária à boa fé, por haver abuso de direito na sua invocação.
No caso, o pai do A., a determinada altura, passou a agir, não em nome próprio, mas em representação do filho, por – ao que parece – ter renunciado ao usufruto que o ligava ao imóvel passando a pertencer ao A. a propriedade plena (cfr. facto provado 2).
A intervenção do pai do A., que se manteve até ao fim das relações negociais estabelecidas com a Ré, surge enquadrada nos termos do art. 268.º CC – representação sem poderes – figura em que faltam poderes ao representante, nomeadamente os conferidos por procuração.
Neste caso, o negócio mantém eficácia relativamente ao representado (aqui A.), por via da ratificação, que pode se expressa ou tácita. Não existindo ratificação, o representado não pode valer-se da ineficácia do negócio, se a sua atuação, prolongada no tempo, induziu a contraparte a confiar na atuação (aparente) do representante sem poderes, por tal constituir abuso de direito.
Na situação dos autos, o A. não coloca em causa o negócio celebrado entre o seu pai e a Ré e a representação exercida pelo primeiro, tanto que é com base nos negócios firmados entre aquele e a Ré que formula o seu pedido.
Contrato escrito, com assinatura só existiu de 3.5.2016 a 3.5.2017, o qual poderia renovar-se automaticamente (cláusula 11.ª do contrato), o que se ignora se sucedeu, parecendo assim não ter sido por a Ré e o pai do A. terem acordado novo contrato, não assinado, onde declaram que o imóvel foi entregue à Ré, em 27.1.2018 para se prolongar até 27.1.2019, de modo improrrogável (cláusula 10.º do contrato de 27.1.2018).
De modo que, a partir de 2019, pelo menos, as negociações subsequentes, com vista ao arrendamento (mormente para o ano de 2020, não submetidas a escrito), terão sido efetuadas por BB em nome do A., sem poderes de representação, mas não tendo este último considerado ineficaz o negócio, antes se valendo do mesmo para exigir o seu integral cumprimento pela Ré.
Apesar de não reduzidos a escrito os contratos, esta nulidade não foi invocada e a Ré admitiu ter ali permanecido até ao final do ano de 2022.
É, pois, do integral cumprimento da obrigação de pagamento das rendas (art. 1038.º a) CC, que aqui se trata e o facto é que está provado que a renda, nesse ano, seria de € 12.000, 00, tendo a Ré pago apenas € 9.000, 00.
A Ré invocou um facto extinto do direito do A., qual seja o de este, por representação do pai, ter aceite redução da renda, por efeito da pandemia.
Estaríamos, assim, caídos no âmbito da modificação do contrato por alteração das circunstâncias, prevista no art. 437.º CC, normativo que disciplina a fase de execução dos contratos quando se verifica uma alteração anormal ou extraordinária das condições externas que se encontravam reunidas na época da contratação, mas que se modificaram de tal forma que o cumprimento de uma ou mais obrigações acaba por redundar em flagrante violação da justiça contratual.
A fim de evitar a erosão quase total da estabilidade contratual, P. Mota Pinto[3] enuncia cinco requisitos, descritos no art. 437.º/1, para que funcionem a resolução ou alteração dos contratos em função da alteração das circunstâncias:
1 – que estejam em causa circunstâncias que integrem a base do negócio;
2 – as quais tenham sofrido uma alteração anormal depois da conclusão do negócio;
3 – alteração que lesou de forma grave uma das partes[4];
4 – não estando coberta pelos riscos próprios do contrato[5] e de tal modo que a ”exigência das obrigações assumidas”, mantendo-se o contrato qua tale, afete gravemente os princípios da boa-fé[6]. O normativo não faz referência à base negocial objetiva ou subjetiva, de acordo com a formulação de Larenz[7]. Porém, entende P. Mota Pinto[8], que ambas merecem tratamento à luz do regime atual, atendendo-se não só ao contexto exterior (mormente à ordem pública), mas sobretudo à alteração das circunstâncias que ultrapasse a vontade hipotética das partes.
Além disso, o art. 437.º, tal como postularam os autores germânicos, refere-se ainda à grave afetação dos princípios da boa-fé, não como regra de conduta das partes[9], mas como injustiça do contrato ou profunda alteração da equivalência das prestações ou do equilíbrio do contrato em consequência de eventos imprevistos, como a inflação, as guerras, as revoluções, a alteração da legislação (atente-se, v.g. no caso mais recente da pandemia de Covid-19), etc…[10]
Ora, nem a Ré colocou assim a questão ao A. ou ao seu putativo representante (veja-se o mail dado como provado em 9), nem invocou o art. 437.º CC nesta ação, o que podia e devia, em ordem a ver eventualmente reduzida a prestação acertada antes da pandemia segundo juízos de equidade.
De modo que não cabe conhecer das razões invocadas pela Ré no mail, que podem até ter alterado a base negocial, uma vez que aqui o não pediu.
O que disse a Ré foi que as partes teriam, elas próprias, modificado o contrato, quanto à renda devida, assim agindo no campo da sua autonomia privada. Embora na lei se não estabeleça a prévia obrigação das partes renegociarem os termos do contrato, em caso de alteração das circunstâncias, há entre nós quem tenha defendido a existência desse dever como emergente da boa-fé[11], existindo mesmo uma tendência firme, no plano pré-legislativo internacional (PECL e UNIDROIT) para considerar a via renegociatória como primeiro mecanismo[12].
Porém, tal modificação, porque alterando de forma significativa um dos âmagos do contrato, haveria de resultar demonstrada pela Ré, o que esta não logrou fazer, pois uma modificação contratual exige um encontro expresso de vontades, equivalendo o silêncio a uma total ausência de comunicação (nem tal se pode deduzir do mail que foi remetido dois anos depois e que não alude a esta pretendida alteração contratual e sendo certo ter a Ré pago mais do a redução proposta). O silêncio é, pois, um nullum jurídico.
Não se verifica in casu qualquer das exceções previstas no art. 218.º CC, quanto ao valor do silêncio como meio declarativo: a lei não lhe alude, no contrato de arrendamento (que até é um negócio formal, devendo nele constar a renda a pagar e qualquer alteração a esta), não é usual modificar-se a renda relativa a um contrato de arrendamento, sem estar estabelecido acordo expresso quanto a esse ponto, nem foi estabelecida entre as partes convenção dando valor ao silêncio de qualquer das partes negociais.
Assim, considerando não ter sido devidamente julgado o pedido do A., relativamente à parte das rendas devidas em 2020 - € 3.000, 00 (12.000, 00 – 9.000, 00) – a que acrescem juros desde a constituição da Ré em mora, sendo certo não se ter demonstrado quando deveriam ser pagos estes € 3.000, 00, o que faz funcionar a regra do art. 279.º a), considerando-se a mora desde 31.12.2020[13], à taxa legal vigente.
Quanto às licenças de exploração do local como AL, disciplinadas pelo DL 92/2010, de 26.7, trata-se de uma obrigação que recai sobre os prestadores do serviço de alojamento local, como resulta do art. 2.º, resultando do doc. 6 com a pi, que no balcão único eletrónico estaria o registo efetuado em nome do A. ou de seu pai, sendo ao titular da licença que cabe a sua renovação (ou taxa de vistoria), nos termos do art. 18.º.
Finalmente, não se demonstraram os pretendidos lucros cessantes, o seu valor, e a ligação destes a qualquer atuação ilícita da Ré.
Dispositivo
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se a sentença na parte em que absolveu a Ré do pedido de condenação de pagamento ao A. da quantia de € 3.000, 00, condenando-se a mesma a pagar ao demandante, € 3.000, 00, com juros legais, à taxa de 4%, desde 31.12.2020 e até integral pagamento.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
Custas da ação por ambas as partes e custas do recurso pelo A. (art. 527.º/1 in fine do CPC).
Porto, 24.2.2025.
Fernanda Almeida
Miguel Baldaia de Morais
José Eusébio Almeida
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[1] A enumeração com o número 29 encontra-se repetida, embora com conteúdos distintos.
[2] A ininteligibilidade prevista nesta al. c) respeita à parte decisória da sentença (Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª Ed., anotação 2 ao art. 615.º, ps. 734 e 735).
[3] O contrato como instrumento de gestão do risco de alteração das circunstâncias, p. 79.
[4] Nuno Pinto Oliveira, em A Alteração das Circunstâncias 55 Anos depois. Revista Julgar. Lisboa: Edições Almedina, n.º 44 (2021). ISBN, 16446853, ps. 187 e ss. enuncia os seguintes critérios para que a lesão seja considerada grave: a) Os critérios convocados para apreciar a gravidade da alteração são sobretudo dois. O primeiro atende à perspectiva das partes — o juízo de valor sobre a gravidade da alteração deveria fazer-se atendendo à vontade das partes —; o segundo relaciona a perspectiva das partes com a perspectiva do sistema — o juízo de valor sobre a gravidade de alteração deveria fazer-se atendendo aos princípios e aos valores do sistema. Em consonância com o primeiro critério, deveria averiguar-se se a alteração foi grave perguntando pela vontade das partes. O facto de não haver uma vontade real, por não terem as partes previsto a alteração das circunstâncias, faria com que devesse perguntar-se pela sua vontade conjectural ou hipotética: caso as partes tivessem previsto a alteração, teriam querido concluir algum contrato? caso tivessem querido concluir um contrato, teriam querido concluí-lo nos mesmos termos? Em consonância com o segundo critério, deveria averiguar-se se a alteração foi grave perguntando pelas valorações de sistema, contidas em fórmulas como boa fé, como razoabilidade ou desrazoabilidade. (…) b) entendemos que o art. 437.º do Código Civil português deverá interpretar- se no sentido de exigir que a lesão seja tão grave que a parte prejudicada não teria concluído o mesmo contrato, ou em todo o caso não teria concluído o mesmo contrato nos mesmos termos. Em primeira linha, deve atender-se a um critério predominantemente subjectivo; deve atender-se à situação concreta das partes e reconstruir-se, a partir dos indícios facultados pelas partes, a sua vontade conjectural ou hipotética. Em segunda linha, caso não haja indícios facultados, deve atender-se a um critério predominantemente objectivo; deve atender-se à situação abstracta de partes racionais e razoáveis — “deve considerar-se, como ponto de referência, a situação de partes racionais e razoáveis, em circunstâncias análogas (comparáveis)”. (…) Entre os critérios relevantes para determinar se foram, ou não, ultrapassados os limites do risco e os limites do sacrifício encontrar-se-iam, p. ex., a distribuição contratual e legal do risco, a previsibilidade e a responsabilidade. O juízo sobre se o cumprimento excede, ou não, os limites do risco e do sacrifício seria ainda um juízo particular. O juízo sobre se o cumprimento é, ou não, inexigível seria já um juízo global. O aplicador só poderia ponderar a adaptação ou a resolução se, consideradas todas circunstâncias relevantes para o contrato, concluísse que a vinculação ao contrato é inexigível à parte prejudicada.
[5] Incluindo-se também aqui as normas que regulamentam o risco, como por ex. a do art. 1040.º, relativa à redução da renda ou aluguer. Cfr. Vasco Lobo Xavier, Alteração das circunstâncias e risco (arts. 437.º e 796.º do Código Civil), CJ VIII (1983) 5, 17-23 (19 ss.), sufragado por Carlos Mota Pinto, idem, 21-23; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., 342-343. Trata-se aqui da Res domino suo perit: um complemento da regra anterior, presente em vários preceitos gerais: 796.º/1, o risco corre pelo adquirente de um direito real, mesmo antes da entrega da coisa e salvo o disposto no 796.º/2; nas obrigações genéricas, funciona o 540.º: até à concentração, o risco não se transfere para o adquirente.
[6] A boa-fé é vista como um “pseudo-critério” por J. Oliveira Ascensão, Onerosidade Excessiva por “alteração das circunstâncias”, ponto 7. Já Manuel de Andrade, em Direito das Obrigações, Vol. I, ed. 1958, ps. 242-243, e Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, ed. de 1996, p. 407, entendia que a referência da lei à boa-fé substituía a referência à vontade hipotética ou conjetural das partes porque poderia acontecer que a vontade presumível das partes, mesmo que apurada segundo o critério da boa-fé, aponte no sentido de não aceitação de uma cláusula condicionante, no momento da celebração do contrato, mas, ainda assim, a boa-fé impunha os remédios atualmente permitidos pelo art. 437.º. Para Nuno Pinto Oliveira, A Alteração das circunstâncias 55 anos depois, ps.195-196: “entre os conceitos indeterminados de afectação da boa fé, de exigibilidade e de inexigibilidade, de razoabilidade e de desrazoabilidade e o conceito indeterminado de riscos próprios do contrato há uma remissão recíproca. O cumprimento do contrato só afecta a boa fé, só se torna inexigível à parte lesada, desde que a alteração ou que a lesão não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato e, inversamente, a alteração ou a lesão só não estará coberta pelos riscos próprios do contrato desde que afecte a boa fé, em termos de tornar o cumprimento inexigível à parte lesada (…). Também para Mário Júlio de Almeida Costa, cit., p. 280, esta delimitação negativa (riscos próprios do contrato) já decorre dos ditames da boa-fé. Joaquim de Sousa Ribeiro, no seu trabalho intitulado A Boa Fé como Norma de Validade, in Ars IVdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. II: Direito Privado. Organizado por Figueiredo Dias, José Gomes Canotilho e José de Faria Costa. Coimbra: Coimbra Editora (2008). ISBN9789723216981, ps. 667 e ss., explica que o conteúdo dos contratos deve ser valorado à luz dos ditames da boa fé, “de modo que não há desequilíbrio que justifique a ineficácia que não seja, ao mesmo tempo, de per si, uma manifestação de contrariedade à boa fé, pela elementar razão de que aquela valoração é guiada pelos padrões normativos da boa fé”. Mais desenvolvido na Tese de Doutoramento de Joaquim de Sousa Ribeiro, O Problema do Contrato, As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual. Coimbra: Livraria Almedina. 2003. ISBN 9724011763, ps. 562 e ss.
[7] Citado por A. Varela, no Parecer Resolução ou modificação do Contrato por Alteração das Circunstâncias. Coletânea de Jurisprudência. Coimbra. Ano VII, Tomo 2 – 1982, p. 9: Conforme escreve Larenz: «Os contratos, muitas vezes, não pensam na perduração daquelas circunstâncias que eles têm plenamente seguras, como por exemplo, a estabilidade da moeda (die bestehende Gesetzgebung) ou o sistema económico (das Wirtschaftssystem)” (…). Num contrato “pressupõe-se, geralmente, muito mais do que aquilo de que as partes têm consciência. Para que o contrato possa preencher o seu escopo, por exemplo, como contrato de troca, ou para que possa realizar o fim aceite por ambas as partes, cuja falta tem como consequência que o contrato se torne sem sentido, sem fim ou sem objeto». Estas circunstâncias seriam, para Larenz, a base negocial objetiva.
[8] Em O contrato como instrumento de gestão do risco de alteração das circunstâncias, ps. 80 e 81.
[9] Oliveira Ascensão, Onerosidade Excessiva…, cit., notas 7 e 8: (…) não basta qualquer alteração extraordinária para desencadear a aplicação do instituto. Pode uma alteração ser extraordinária e não revestir gravidade que o justifique. Um facto superveniente (como um sismo) representa uma alteração extraordinária, mas pode, para a concreta relação, não apresentar particular gravidade. (…). É este afinal o conteúdo útil do art. 437/1, ao prever que a exigência das obrigações afecte gravemente os princípios da boa fé. A “exigência” e a “boa fé” vêm a despropósito, como vimos, mas a “gravidade” não. Só uma alteração significativa, grave, portanto, leva a reconsiderar os termos do contrato. A alteração anormal é, não só a alteração extraordinária e imprevisível, como também uma alteração que afecta gravemente, manifestamente, a equação negocialmente estabelecida. Este factor permite-nos ainda distinguir a alteração das circunstâncias prevista no art. 437 de outras situações em que a lei dá igualmente relevo a uma alteração, mas sem exigir o mesmo carácter extraordinário e grave. Tomemos o art. 567/2 CC, relativo à indemnização em renda: “Quando sofram alteração sensível as circunstâncias em que assentou, quer o estabelecimento da renda, quer o seu montante ou duração, quer a dispensa ou imposição de garantias, a qualquer das partes é permitido exigir a correspondente modificação da sentença ou acordo”. Aqui a lei exige apenas uma alteração sensível. É algo menos que a “alteração anormal” do art. 437, porque não tem de ser extraordinária nem grave. O contexto em que surge, que é relativo à fixação da indemnização a cargo do responsável, permite que a alteração das circunstâncias releve a um nível muito menos exigente, que a lei exprime através do recurso ao qualificativo sensível. Não basta toda e qualquer alteração, mas também não tem de representar a alteração anormal que desencadeia a aplicação do art. 437. Com isto se desenha a figura da onerosidade excessiva, como a resultante da alteração anormal.
[10] Veja-se, contudo, Carlos Mota Pinto, 4.ªed., por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, cit., ps. 125-126: (…) a boa fé reporta-se a um estado subjectivo, tem em vista a situação de quem julga actuar em conformidade com o direito, por desconhecer ou ignorar, designadamente, qualquer vício ou circunstancia anterior. Neste sentido, tradicional, a lei recorre a boa fé em inúmeras situações. Assim, p. ex., no artigo 243.º, n.º 2, ao dizer que ≪a boa fé consiste na ignorância da simulação≫; no artigo 291.º, n.º 3, ao considerar de boa fé o terceiro que ≪desconhecia, sem culpa, o vicio do negocio nulo ou anulável≫; no artigo 612.º ao entender por ma fé ≪a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, no artigo 1260.º, n.º 1, ao dizer que a posse e de boa fé ≪quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem≫ (relevante para determinar os prazos para se poder adquirir por usucapião, nos termos dos arts. 1294.º e segs.); etc. Em muitos outros casos, porem, a lei recorre a boa fé em sentido objectivo (…) Aplicado aos contratos, o principio da boa fé em sentido objectivo constitui uma regra de conduta segundo a qual os contraentes devem agir de modo honesto, correcto e leal, não só impedindo assim comportamentos desleais como impondo deveres de colaboração entre eles. É neste sentido que o artigo 227.º, n.º 1, fala das ≪regras da boa fé≫; que o artigo 239.º apela aos ≪ditames da boa fé≫ na integração do negócio jurídico; que o artigo 334.º menciona os ≪limites impostos pela boa fé≫ como critério do abuso do direito; que o artigo 437.º, n.º 1, consagra o ≪princípio da boa fé≫ como exigência a ponderar em caso de alteração anormal das circunstancias (…). É também enfática a posição de Manuel Carneiro da Frada, Autonomia Privada e Justiça Contratual. Duas Questões, nos 50 anos do Código Civil, in Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Coord. de Elsa Vaz Sequeira e Fernando Oliveira e Sá. Lisboa: Universidade Católica Editora. (2017). ISBN 9789725405741, ps. 249 e ss., onde o autor coloca ênfase no sentido de justiça subjacente ao regime ora em causa:” é legítimo vender-se a corda ao suicida, mesmo argumentando-se que se informou do perigo que corria? E, ainda, se porventura foi ele quem tomou a iniciativa e pediu essa corda. Supomos que nenhuma ordem jurídica o pode permitir, pelo menos enquanto não estiver disposta a sacrificar o seu compromisso com o valor da Justiça [referia-se ao caso dos swaps de taxas de juro de que daremos nota mais adiante]. Por isso, alude a normas como as dos arts. 282.º/1, relativa ao negócio usurário, 1146.º que respeita à usura de juros (quando sejam estabelecidos juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real) e ao próprio 280.º/2, que considera nulo um contrato contrário à ordem pública e aos bons costumes, à redutibilidade da cláusula penal manifestamente excessiva (art. 812.º), concluindo que “não há autonomia sem justiça, nem vice-versa”. O tema da ordem pública no domínio dos contratos já havia sido tratado pelo autor em artigo com esse título, in Ars IVdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. II: Direito Privado. Organizado por Figueiredo Dias, José Gomes Canotilho e José de Faria Costa. Coimbra: Coimbra Editora (2008). ISBN9789723216981, ps. 255 e ss.
[11] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II (Parte Geral – Negócio jurídico). [S.L.]. Almedina, 4.ª Ed., 2014. ISBN 9724055299, p. 778.
[12] Cfr. Pereira Coelho, Alteração das circunstâncias e dever de renegociação – algumas observações. Revista de Legislação e de Jurisprudência. Coimbra: Gestlegal, ano 152, n.º 4037 (nov.-dez. de 2022), p. 131. Favoráveis à solução da renegociação, que extrai da boa-fé e do abuso do direito, Henrique Sousa Antunes, cit., ps. 158 e 159, onde o autor cita, em abono da sua tese, vários outros autores. Sobre a alteração das circunstâncias nos instrumentos de harmonização do direito privado europeu, pode ver-se, por ex., Renato Lovato Neto e Maria Raquel Guimarães, Times they are a-changin’: De novo sobre a alteração superveniente das circunstâncias no direito privado português, no direito europeu e nos instrumentos europeus e internacionais de harmonização do direito privado, in Ars Iuris Salmanticensis. ESTUDIOS, Vol. 4, jun. 2016. ISSN: 2340-5155, ps. 170-186.
[13] O que também parece resultar do acordo das partes, como se vê do mail dado como provado em 15.