Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DECISÃO ADMINISTRATIVA
EXTEMPORANEIDADE DA DEFESA
NULIDADE
Sumário
No caso de prolação de decisão administrativa sem considerar a defesa do arguido, atempadamente apresentada, mas que erradamente por aquela entidade administrativa foi considerada extemporânea e, perante tal decisão administrativa, o arguido apresentou recurso de impugnação judicial em que não se limitou a invocar a nulidade da decisão administrativa por erroneamente ter considerado a defesa extemporânea, como também se pronunciou sobre o objeto dos autos, apresentando prova, ou seja, prevalecendo-se da faculdade a cujo exercício o ato preterido se destinava (artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, ex vi, artigo 41.º do RGCO), a nulidade invocada encontra-se sanada.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Proc. n.º 1919/23.6Y9PRT.P1 Tribunal de origem: Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto– J1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto
I. Relatório:
No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ..., a “Câmara Municipal ...”, proferiu decisão, devidamente notificada ao arguido AA, nos seguintes termos: “(…). Nestes termos, ponderados os elementos determinantes na medida de sanção constantes no art.º 139.º do Código da Estrada, determino: Infração 1: Pela violação do art.º 48.º, n.º 5, do Código da Estrada, ilícito previsto e punido pelo art.º 48.º, n.º 8, do Código da Estrada, que o valor da coima a aplicar seja de 45,00 (quarenta e cinco) euros. (…)”.
Notificado da decisão administrativa, o arguido apresentou requerimento de impugnação judicial, conforme consta a fls. 61 a 66 dos autos.
O Ministério Público, a 16.11.2023, apresentou o recurso da decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal ..., apresentado por AA, fazendo valer tal apresentação como acusação (cf. fls. 83).
Em 23.11.2023, foi proferido despacho judicial, terminado nos seguintes termos: “(…). Assim, notifique o recorrente para que, no prazo de 10 dias, apresente no requerimento de recurso de impugnação judicial do qual constem alegações e conclusões, sob pena de imediata rejeição do recurso (…). (…)”.
A 07.12.2023, o recorrente, através do seu mandatário, apresentou requerimento, constante a fls. 86/94 dos autos.
A 18.12.2023, foi proferido despacho judicial, constante dos autos a fls. 95 dos autos, a admitir o recurso de contraordenação apresentado por AA e a designar dia para a realização de audiência de julgamento.
Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida, a 03.09.2024, decisão judicial nos seguintes termos: “Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo recorrente AA e, em consequência, decide-se manter a decisão administrativa recorrida, que condenou o recorrente ao pagamento de uma coima no montante de € 45,00, acrescida de custas no valor de € 51,00, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelo artigo 48.º, n.º 8, do Código da Estrada. (…)”.
Desta decisão veio o arguido, ao abrigo do disposto no art.º 73.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações, apresentar recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
- O autor interpreta os artigos 41.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, artigo 4.º, do Código de Processo Penal e artigo 150.º, n.º 1 (hoje artigo 144.º, n.º 1 e n.º 7, pois foi o próprio autor que enviou a defesa) do Código de Processo Civil, como inconstitucionais quando interpretados no sentido de não considerar tempestivo o envio pelo próprio autor, para o órgão administrativo, do seu direito de defesa, nos termos do art.º 50.º do RGCO, e o tribunal na decisão da impugnação judicial não ordenar o reenvio prejudicial para aquele órgão por violação do direito de defesa do autor, e do direito ao recurso, no âmbito do art.º 32.º, n.º 1 e n.º 10 da CRP.
- A nulidade da fase administrativa não se sana com a produção de prova em sede judicial, pois, como já se apontou, o autor ficou prejudicado com a passagem de tempo na produção de prova testemunhal - as testemunhas não estavam relembradas corretamente dos factos-, e por ter ficado reduzido em um grau os recursos a que tem direito, pois não pode recorrer de facto da decisão de impugnada, mas poderia recorrer de facto da decisão do órgão administrativo. Acresce que a produção de prova foi ordenada oficiosamente pelo Tribunal, não tenho o autor o controlo da produção de prova.
- Pelas razões expostas, o autor ficou limitado no seu concreto acesso ao direito e aos tribunais, a um processo equitativo, na vertente recurso de arguido, previsto no art.º 20.º, n.º 1 e 4 e art.º 32.º, n.º 1 e 4, ambos da CRP.
- Ainda que se considere a nulidade sanável, a mesma foi tempestivamente invocada na impugnação judicial, pelo que o Tribunal deveria ter reenviado, a título prejudicial, a decisão para o órgão administrativo, e só depois ter ordenado a produção de prova que considerasse pertinente para o caso, ainda que em benefício do autor.
- O autor interpreta como inconstitucional as normas dos artigos 121.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, e artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, quando interpretadas no sentido de se considerar sanada a invocada nulidade da fase administrativa quando o autor requereu produção de prova por cautela, por violação do acesso ao Direito e aos Tribunais, vertente de direito de defesa e recurso do autor, e direito a um processo equitativo.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso apresentado e, em consequência, seja revogado a decisão recorrida e substituída por outra que ordene o reenvio prejudicial para o órgão administrativo para sanação da nulidade invocada e fundamentação específica sobre a defesa invocada pelo autor.
Ao recurso apresentado respondeu o Ministério Público, nos termos constantes dos autos, com os fundamentos expostos:
- De acordo com o disposto no artigo 73.º, n.º 1, alínea a), do D.L. 433/82, de 17 de outubro, tal recurso é inadmissível.
- Por recurso manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito tem de se considerar que se esteja perante uma questão complexa, de difícil resolução, cuja importância ultrapasse o caso concreto.
- Não é manifestamente o que ocorre na situação em análise.
- A questão não é complexa, nem de difícil solução.
- Acresce que o Recorrente faz referência a um AUJ.
- Ora, se sobre a questão até já existe um AUJ, a mesma está solidamente pacificada na jurisprudência, não sendo necessário à melhora na aplicação do direito a análise do recurso interposto.
- O Recorrente invoca antes no seu recurso inconstitucionalidades.
- E não se pode considerar que o recurso é necessário à promoção de uniformidade da jurisprudência.
Termina pedindo seja rejeitado o recurso, condenado o arguido em taxa sancionatória excecional.
Neste Tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 113/114 dos autos, pugna pela admissibilidade do recurso apresentado pelo recorrente ao abrigo do disposto no art.º 73.º, n.º 2, do RGCO, defendendo que o mesmo pretende ver decidida matéria atinente às consequências jurídicas da violação do seu direito de defesa ainda em sede de processo administrativo. Mais pugna a Digna Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer pela nulidade insanável de que padece a decisão administrativa.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II- Fundamentação:
II.2.1. Com interesse para a decisão da questão suscitada, consideram-se provados os seguintes factos: 1) No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ..., a “Câmara Municipal ...”, proferiu decisão, devidamente notificada ao arguido AA, nos seguintes termos: “(…). Nestes termos, ponderados os elementos determinantes na medida de sanção constantes no art.º 139.º do Código da Estrada, determino: Infração 1: Pela violação do art.º 48.º, n.º 5, do Código da Estrada, ilícito previsto e punido pelo art.º 48.º, n.º 8, do Código da Estrada, que o valor da coima a aplicar seja de 45,00 (quarenta e cinco) euros. (…)”. 2) O recorrente foi notificado para, querendo, apresentar defesa escrita a 19.11.2021 (cf. fls. 9), tendo, nesse seguimento, requerido a consulta do processo por requerimento enviado à PSP, Divisão de Trânsito, no dia 13.12.2021 (cf. fls. 34 e decisão administrativa – fls. 55-v). 3) Por não ter tido atempadamente conhecimento, a autoridade administrativa proferiu uma primeira decisão administrativa, datada de 17.03.2023 (cf. fls. 12-v a 14), na qual refere que o arguido não apresentou defesa. 4) Notificado de tal decisão (cf. fls. 15-v), o ora recorrente apresentou uma impugnação judicial que deu entrada na Câmara Municipal ... a 05.05.2023, na qual, entre o mais, invoca o pedido de consulta dos autos e a anulação da decisão administrativa (cf. fls. 16-22). 5) Depois de encetar algumas diligências com vista a apurar a existência do mencionado pedido de consulta do processo, a autoridade administrativa, por despacho de 02.06.2023, revogou a (primeira) decisão administrativa, datada de 17.03.2023 (cf. fls. 37), e, sequentemente, notificou o recorrente de uma data (03.07.2022) para que consultasse o processo. 6) Em tal notificação refere que o prazo para apresentação de defesa está suspenso desde o momento em que o recorrente solicitou a consulta do processo até ao momento em que este tem acesso ao mesmo, salientando que a consulta do processo foi efetuada no 14.º dia útil de um prazo de 15 dias úteis. 7) A 17.07.2023 o recorrente envia para a autoridade administrativa uma defesa (cf. fls. 41-49), que a Câmara Municipal ... considera ser extemporânea, pelo que profere de imediato nova (uma segunda) decisão administrativa, datada de 28.07.2023 (cf. fls. 55-59). 8) Notificado da decisão administrativa, o arguido apresentou requerimento de impugnação judicial, conforme consta a fls. 61 a 66 dos autos. 9) O Ministério Público, a 16.11.2023, apresentou o recurso da decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal ..., apresentado por AA, fazendo valer tal apresentação como acusação (cf. fls. 83). 10) A 18.12.2023, foi proferido despacho judicial, constante dos autos a fls. 95 dos autos, a admitir o recurso de contraordenação apresentado por AA e a designar dia para a realização de audiência de julgamento. 11) Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida, a 03.09.2024, decisão judicial nos seguintes termos: “Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo recorrente AA e, em consequência, decide-se manter a decisão administrativa recorrida, que condenou o recorrente ao pagamento de uma coima no montante de € 45,00, acrescida de custas no valor de € 51,00, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelo artigo 48.º, n.º 8, do Código da Estrada. (…)”.
Fundamentos do recurso: Questões a decidir no recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5.ª Secção).
Questões que cumpre apreciar:
- Tempestividade da apresentação da defesa por parte do arguido no âmbito do processo administrativo.
- Consequências jurídicas de uma (segunda) decisão administrativa proferida sem considerar a defesa do arguido.
Vejamos.
Alega o recorrente que interpreta os artigos 41.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, artigo 4.º, do Código de Processo Penal e artigo 150.º, n.º 1 (hoje artigo 144.º, n.º 1 e n.º 7, pois foi o próprio autor que enviou a defesa) do Código de Processo Civil, como inconstitucionais quando interpretados no sentido de não considerar tempestivo o envio pelo próprio autor, para o órgão administrativo, do seu direito de defesa, nos termos do art.º 50.º do RGCO, e o tribunal na decisão da impugnação judicial não ordenar o reenvio prejudicial para aquele órgão por violação do direito de defesa do autor, e do direito ao recurso, no âmbito do art.º 32.º, n.º 1 e n.º 10 da CRP.
A este propósito a decisão recorrida refere que “A primeira questão a ser apreciada deve ser (por basilar) a de que ao suspender o prazo e não concedendo um prazo razoável de defesa após anulação da sua primeira decisão, a autoridade administrativa violou o direito de defesa do recorrente, o que, na ótica deste, deve acarretar a sua anulação (cf. pontos n.º 17-18 da impugnação). Compulsados os autos, e ordenando cronologicamente a tramitação do processo na fase administrativa, verifica-se que o recorrente foi notificado para, querendo apresentar defesa escrita a 19.11.2021 (cf. fls. 9), tendo, nesse seguimento, requerido a consulta do processo por requerimento enviado à PSP, Divisão de Trânsito do, no dia 13.12.2021 (cf. fls. 34 e decisão administrativa – fls. 55-v). Contudo, porque de tal pedido não teve atempadamente conhecimento, a autoridade administrativa proferiu uma primeira decisão administrativa, datada de 17.03.2023 (cf. fls. 12-v a 14), na qual refere que o arguido não apresentou defesa. Notificado de tal decisão (cf. fls. 15-v), o ora recorrente apresentou uma impugnação judicial que deu entrada na Câmara Municipal ... a 05.05.2023, na qual, entre o mais, invoca o pedido de consulta dos autos e a anulação da decisão administrativa (cf. fls. 16-22). Depois de encetar algumas diligências com vista a apurar a existência do mencionado pedido de consulta do processo, a autoridade administrativa, por despacho de 02.06.2023, revogou a (primeira) decisão administrativa, datada de 17.03.2023 (cf. fls. 37), e, sequentemente, notificou o recorrente de uma data (03.07.2022) para que consultasse o processo. Em tal notificação refere que o prazo para apresentação de defesa está suspenso desde o momento em que o recorrente solicitou a consulta do processo até ao momento em que este tem acesso ao mesmo, salientando que a consulta do processo foi efetuada no 14.º dia útil de um prazo de 15 dias úteis. A 17.07.2023 o recorrente envia para a autoridade administrativa uma defesa (cf. fls. 41-49), que a Câmara Municipal ... considera ser extemporânea, pelo que profere de imediato nova (uma segunda) decisão administrativa, datada de 28.07.2023 (cf. fls. 55-59). Aqui chegados cumpre referir que cremos assistir, em parte, razão ao recorrente. Concorda-se com a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferida no processo n.º 288/16.5T8CTB.C1, de 18.01.2017, disponível em www.dgsi.pt, no sentido de, perante uma tramitação regular do processo, o pedido de consulta do processo apenas suspender o prazo em curso. Contudo, cremos que esse mesmo entendimento deixa de ser adequado na situação em concreto, em que o recorrente pediu a consulta dos autos, tal pedido não foi considerado (de forma assumidamente errada), foi proferida uma decisão administrativa, tal decisão administrativa foi posteriormente revogada, apenas tendo o recorrente acesso ao processo mais de 6 meses depois do pedido de consulta deste, devendo-se tal atraso a causas exclusivamente imputáveis à autoridade administrativa (note-se que o recorrente pediu a consulta do processo a 16.12.2021 e apenas teve acesso ao mesmo no dia 03.07.2022). Ora, consideramos que tal dilação compromete severamente a operacionalidade dos trabalhos de defesa realizados nos primeiros 14 dias úteis do prazo para apresentação de defesa. Não nos parece semelhante a situação em que o recorrente, já decorrido parte do prazo para apresentação de defesa, apresenta um pedido de consulta do processo e, no seguimento de uma regular tramitação, tal pedido é deferido pela autoridade administrativa dentro de um período adequado, sendo permitida a consulta dos autos a breve trecho (caso em que a atribuição de mais prazo apenas porque foi pedida a consulta do processo constituiria uma benesse injustificada para quem pratica tal ato, já que passaria a dispor de mais tempo para a apresentação de defesa); daquela outra, como ocorreu nos presentes autos, em que o pedido de consulta do processo é ignorado, é proferida uma decisão administrativa, o recorrente impugna judicialmente a mesma, a autoridade administrativa revoga a decisão (mantendo-se o processo na fase administrativa, contra a legítima expectativa do impugnante) e notifica-o recorrente para consultar os autos, o que apenas acontece largos meses depois (mais de 6 meses). Qual a eficácia/proveito dos trabalhos realizados com vista à apresentação de uma defesa quando feitos mais de seis meses antes de um ato que se considerou essencial para a mesma, como seja o da consulta dos autos? Não terá o recorrente visto o seu direito de defesa limitado injustificadamente com o procedimento da autoridade administrativa, concretamente, ao não conceder um prazo razoável (por exemplo, de 10 dias) após a consulta do processo? Conforme se depreende do já exposto, cremos que sim, que estamos perante uma deficiente satisfação do direito de defesa do recorrente, que, na prática leva a uma consequência mais gravosa: ao não considerar a defesa apresentada, por extemporaneidade – algo que (sempre se refira) claramente não seria (extemporânea) se tivesse sido concedido o prazo razoável de 10 dias para apresentação de defesa após a consulta do processo (uma vez que apresentou a defesa no dia 17.07.2023 e não a 18.07.2023 – cf. fls. 49) –, este acaba por não ser ouvido antes da aplicação da coima. À mesma conclusão se chegaria caso se aderisse ao entendimento do recorrente no sentido de um dos efeitos do ato praticado pela autoridade administrativa pelo qual foi anulada a primeira decisão administrativa passava pelo regresso ao início do prazo de defesa e não somente a sua suspensão. (…)”.
Considerando o que se deixa exposto, é manifesto que não assiste razão ao recorrente ao invocar como questão (prévia) a tempestividade da apresentação da defesa por parte do arguido, pois, tal como acima se deixou expresso, a decisão recorrida decidiu a seu favor, a qual, aliás, seguiu o entendimento do Acórdão de Fixação de Jurisprudência mencionado pelo recorrente na sua motivação de recurso.
Assim, e ao contrário do pretendido pelo recorrente, a decisão recorrida não fez qualquer interpretação inconstitucional das citadas normas, tendo, aliás, como se disse, aplicado o entendimento defendido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência.
Improcede, nesta parte, o recurso apresentado pelo recorrente.
Vejamos agora quais as consequências a retirar de uma (segunda) decisão administrativa proferida sem considerar a defesa do arguido (atempadamente apresentada, mas que erradamente por aquela entidade administrativa foi considerada extemporânea).
Sem dúvida que, nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de fevereiro de 2023 (Processo nº 3140/21.9T8CBR.C1), citado no parecer emitido pela Digna Procuradora-Geral Adjunta, a «redação do artigo 50.º, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, veio enfatizar e incrementar o direito de audição e de defesa do arguido de modo a assegurar-lhe a faculdade de se pronunciar sobre a contraordenação imputada e a sanção correspondente, atribuindo-lhe um alcance mais abrangente do que aquele que resultava da primitiva versão do preceito (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/82 e mantida pelo Decreto-Lei n.º 356/89), o qual se limitava a assegurar ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre o caso. Algo semelhante defende o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 99/2009, ao consagrar que “dos direitos de audição e de defesa consagrados no artigo 32.º, n.º 10 da CRP e densificados no artigo 50.º do RGCO, extrai-se com toda a certeza que qualquer processo contraordenacional deve assegurar ao visado o contraditório prévio à decisão».
Contudo, não poderemos esquecer que os citados arestos visavam a notificação efetuada aos arguidos em processo contraordenacional onde, a par de um conteúdo que abarcava, em toda a sua extensão, os fundamentos de facto e de direito e a coima aplicável à infração, contemplava ainda o que aí se intitula de Decisão, a respeito da qual a autoridade administrativa fazia constar que “Caso não seja apresentada defesa nem efetuado o pagamento voluntário da coima no prazo fixado, considera-se, face aos elementos já recolhidos, que a arguida cometeu a infração que lhe vem imputada, a título de negligência, por não ter promovido as ações a que estava obrigada, não agindo com o cuidado devido e de que era capaz”. Acresce que citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, após a análise da questão, concluiu: “Em suma, face ao acima exposto, é forçoso concluir que não houve violação do direito de defesa da arguida, nem violação da presunção de inocência ou qualquer valoração ilegal do seu silêncio.As decisões proferidas não valoraram o silêncio da arguida em contravenção do disposto no artigo 61.º do CPP nem em violação da presunção de inocência, aplicável ao processo contraordenacional em decorrência do artigo 32.º, n. os 2 e 10 da Constituição.Não se presumiu que, no silêncio da arguida, esta praticou os factos, atuando com negligência. Não se tratou de fazer constar da notificação para defesa a decisão condenatória e, a par dela, a cominação de um efeito não permitido para o silêncio da arguida, pelo que não houve violação das garantias constitucionais de defesa. (…)”.
Afigura-se que o mesmo se aplica ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (cuja data ou outro elemento identificativo impediu este Tribunal de o ler na sua integralidade apesar dos esforços efetuados) mencionado no mesmo parecer pela Digna Procurador-Geral Adjunta. Ora, de acordo com a citação efetuada no parecer, o que parece também estar em causa é a notificação efetuada em cumprimento do disposto no art.º 50.º do RGCO, entendendo-se como sanável a nulidade da mesma que não forneça todos os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer os aspetos relevantes, de facto e de direito, para a decisão; ocorrendo nulidade insanável no caso de total omissão do cumprimento do aludido artigo 50.º do RGCO por parte da entidade administrativa.
Ora, no caso dos presentes autos não houve omissão da notificação prevista no art.º 50.º do RGCO, nem insuficiência da mesma notificação.
No presente caso dos autos foi proferida uma (segunda) decisão administrativa sem considerar a defesa do arguido, atempadamente apresentada, mas que erradamente por aquela entidade administrativa foi considerada extemporânea e, perante tal decisão administrativa, o arguido apresentou recurso de impugnação judicial em que não se limitou a invocar a nulidade da decisão administrativa por erroneamente ter considerado a defesa apresentada pelo arguido extemporânea, como também se pronunciou sobre o objeto dos autos, apresentando prova, ou seja, prevalecendo-se da faculdade a cujo exercício o ato preterido se destinava (artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, ex vi, artigo 41.º do RGCO).
A este propósito não poderemos deixar de concordar com a decisão recorrida quando refere “Aqui chegados, há, contudo, que referir que discordamos da consequência invocada pelo recorrente para tal atuação - como seja a da nulidade da decisão administrativa que obrigue a ser proferida nova decisão (a seu tempo) que se pronuncie sobre as questões elencadas na defesa -; e isto porque o recorrente apresentou impugnação judicial na qual não se limita a invocar tal nulidade, mas também se pronuncia sobre o objeto dos autos, apresentando prova, ou seja, prevalecendo-se da faculdade a cujo exercício o acto preterido se destinava (artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, ex vi, artigo 41.º do RGCO), encontrando-se sanada a referida nulidade. Assim sendo, diremos que logicamente (para assim decidir) não se considera existirqualquer inconstitucionalidade em tal entendimento, sendo este, de resto, partilhado porvariada doutrina e jurisprudência, conforme se exporá mais abaixo. Cumpre ainda referir que a conclusão acima mencionada (sobre a nulidade ter sido sanada) sempre seria a mesma caso se visse a questão sob a ótica da falta de fundamentação da decisão administrativa, em violação do regime previsto no artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações. A propósito do supra exposto sobre a nulidade ser sanável, leia-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, página n.º 259, onde escreveu que “a falta de audição do arguido antes da aplicação da coima no processo contraordenacional é causa de nulidade sanável da decisão administrativa final, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al.ª d), do CPP”. Acresce poder ler-se na fundamentação do Assento n.º 1/2003 (apesar de não fixar jurisprudência sobre aspeto em concreto), transcrito para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2016, processo n.º 42/15.1TNLSB.L1-A.S2, disponível em www.dgsi.pt, que: “Com efeito, não faria sentido (e seria, mesmo, processualmente antieconómico) anular a «acusação» (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o «participante processual interessado» aproveitasse a impugnação (da «decisão administrativa» assim volvida «acusação») para exercer — dele enfim se prevalecendo — o preterido direito de defesa, em ordem (cf. artigo 286.º, n.º 1) à «comprovação judicial» (negativa) da «decisão de deduzir acusação».” E mais tarde concluiu: “A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no ato da impugnação [artigos 120.º, n.ºs 1, 2, alínea d), e 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações]. Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações]. Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objeto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações]”. Face ao exposto, sem necessidade de maiores considerações, o Tribunal entende que a nulidade invocada encontra-se sanada”.
Pelo exposto, é manifesto não ter existido qualquer violação do acesso ao direito e aos tribunais, pois o arguido viu a sua defesa apreciada e pode de tal decisão recorrer, nem do direito a um processo equitativo, pois a prova arrolada pelo arguido foi ouvida em audiência de julgamento da impugnação judicial, tendo o mesmo em audiência exercido o seu direito ao contraditório quanto às demais provas apresentadas.
A decisão recorrida, ao contrário do defendido pelo recorrente, não padece, por isso, de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 10, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Assim, e por força do que se deixa expresso, a decisão recorrida deverá manter-se, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo recorrente.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) Uc’s a taxa de Justiça.
Porto, 26 de fevereiro de 2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Natércia Rocha
Lígia Trovão
Paulo Costa