ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
DIREITO A PENSÃO
DESONERAÇÃO DA OBRIGAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
CAUSA DE PEDIR
CONHECIMENTO DE MÉRITO NO SANEADOR
TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Sumário

Acidente de trabalho e de viação – Desoneração da obrigação da seguradora – Insuficiência dos factos alegados para a procedência da pretensão – Tutela jurisdicional efectiva – Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa – Artigo 17.º n.º 3 da Lei n.º 98/2009 – Artigo 342.º n.º 1 do Código Civil

Texto Integral

Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Sentença recorrida
1. Por despacho saneador-sentença de 12.6.2024 que apreciou o mérito da causa e pôs termo ao processo (referência citius 161231914), o 2.º Juízo do Trabalho de Loures, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferiu a seguinte decisão:
“V – Decisão:
Pelo exposto julgo a ação improcedente, porque não provada, e, em consequência:
1º) Absolvo a Ré do pedido;
2º) Condeno a Autora no pagamento das custas do processo.”
Alegações da recorrente
2. Inconformada com a decisão mencionada no parágrafo anterior, a recorrente dela veio interpor o presente recurso (cf. referência citius 15420377 de 4.7.2024), pedindo que seja revogada a sentença impugnada.
3. Os principais motivos de discordância da recorrente com a decisão impugnada prendem-se com a alegada violação do seu direito à tutela jurisdicional efectiva, em particular, o direito a produzir prova sobre os factos controvertidos que alegou e que lhe cabe provar.
4. Em síntese, a recorrente alega o seguinte:
• A seguradora do veículo responsável pelo acidente pagou à sinistrada uma indemnização que compreende o valor de 15 000 euros pelo dano biológico;
• Essa indemnização foi paga extrajudicialmente e cobre apenas a perda de capacidade de ganho da sinistrada como foi indicado à recorrente pela seguradora automóvel;
• O facto de essa indemnização se poder confundir com a pensão anual e vitalícia que a recorrente está obrigada a pagar à recorrida, confere à recorrente o direito de ficar desonerada do pagamento dessa pensão;
• Esses factos foram alegados nos artigos 16.º e 17.º da petição inicial;
• Por isso a recorrente não respondeu ao convite ao aperfeiçoamento da petição inicial uma vez que não tinha nada a responder ou acrescentar ao que já tinha alegado, ou seja, já tinha alegado que a indemnização paga a título de dano biológico abarca apenas a perda da capacidade de ganho da sinistrada;
• Sendo controvertido saber se o valor de 15 000 euros se destinou a indemnizar a perda de capacidade de ganho, ou que parte dessa quantia se destinou a indemnizar esse dano, o ónus da prova de tais factos cabe à recorrente que tem o direito de produzir prova sobre esses factos;
• A sentença recorrida confunde o plano jurídico, em que existe divergência na interpretação da noção de dano biológico, com o plano dos factos, pois seja qual for a configuração jurídica do dano biológico, a indemnização desse dano engloba a capacidade de ganho;
• A recorrente não dispõe de elementos para concretizar o dano biológico, nos termos indicados pelo Tribunal no despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, porque quem pagou a indemnização à sinistrada no contexto do acidente de viação foi a seguradora automóvel;
• Na audiência de partes a recorrida declarou que a quantia de 15 000 euros lhe foi paga a título de indemnização para compensação da perda e diminuição da capacidade de ganho, mantendo-se válidas essas declarações;
• A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 5.º n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), 342.º do Código Civil (CC) e 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Contra-alegações da recorrida
5. A recorrida contra-alegou (cf. referência citius 15467022 de 16.7.2024), pugnando pela improcedência do recurso, defendendo, em síntese:
• Na presente acção já houve recurso e o Tribunal da Relação decidiu que o Tribunal de primeira instância devia convidar a recorrente a aperfeiçoar a petição inicial para lhe permitir alegar os factos pertinentes para demonstrar que existe identidade, total ou parcial, entre o dano biológico alegadamente coberto pela quantia de 15 000 euros paga pela seguradora automóvel e os danos que a pensão fixada no âmbito da responsabilidade pelo acidente de trabalho se destina a reparar;
• Cabe à recorrente o ónus de alegar e provar tais factos;
• Tendo o Tribunal de primeira instância notificado a recorrente para aperfeiçoar a petição inicial mediante a alegação dos factos em falta, a recorrente não o fez;
• A petição inicial contém uma formulação conclusiva e factualmente omissa de equiparação do dano biológico na sua totalidade à perda da capacidade de ganho que não é suficiente para a procedência da acção e para que os autos prossigam para a produção de prova, como pretende a recorrente.
6. Admitido o recurso e colhidos os vistos cumpre decidir.
Antecedentes do litígio
7. Na audiência de partes, realizada em 3.11.2022, as partes celebraram a transacção judicial constante da acta junta com a referência citius ..., aí homologada por sentença, cujo teor de dá por reproduzido.
8. Por decisão singular do relator, proferida em 9.2.2023, junta com a referência citius 19681290 e transitada em julgado, cujo teor se dá por reproduzido, proferida em recurso de apelação no qual foi apelante a sinistrada, aqui recorrida, e apelada a seguradora, aqui recorrente, o Tribunal da Relação revogou a sentença homologatória da transacção judicial mencionada no parágrafo anterior e julgou extemporânea e ilegal a transacção judicial por meio do dispositivo seguinte:
“ (...) revogar a sentença “homologatória” da transacção judicial constante dos autos e, ao não admiti-la, por ser extemporânea e ilegal, face aos factos conhecidos nos autos , em determinar a normal tramitação da acção, nos moldes constantes da fundamentação desta Decisão Singular.”
Os moldes constantes dessa decisão singular, para os quais remete o dispositivo acima citado são os seguintes: “(...) tem o tribunal de primeira instância de permitir à Apelada e demandante no seio desta acção a devida e completa alegação quanto aos prejuízos que são cobertos pela mencionada indemnização do dano biológico da trabalhadora, no valor de € 15.000,00 eventualmente mediante a proferição de um despacho de aperfeiçoamento, nos termos do [artigo 27.º****] n.º 2, alínea b) do CPT] e a posterior e subsequente prova dos factos pertinentes e tendentes a demonstrar essa identidade – total ou parcial – entre tal dano biológico e a redução da dita capacidade de trabalho ou de ganho, assim como os correspondentes montantes indemnizatórios, pois o ónus de alegação e prova de tais factos recai indiscutivelmente sobre a companhia de Seguros GENERALI SEGUROS, SA. “.
**** Resulta do contexto em que foi escrito que se trata do artigo 27.º n.º 2 – b) do Código de Processo do Trabalho e por lapso de escrita, faltou mencionar “artigo 27.º” – cf. artigo 249.º do Código Civil.
9. Por despacho de 23.3.2023, com a referência citius 156253996, cujo teor se dá por reproduzido, o Tribunal de primeira instância, ao abrigo do disposto no artigo 27.º n.º 2 – b) do Código de Processo do Trabalho (CPT) convidou a recorrente a aperfeiçoar a petição inicial, nomeadamente, a alegar factos que permitam aferir em concreto quais os exactos prejuízos que são cobertos pela indemnização paga à sinistrada a título de dano biológico.
10. A recorrente, notificada do despacho mencionado no parágrafo anterior (cf. referência citius156316544 de 24.3.2023), não aperfeiçoou a petição inicial.
Delimitação do âmbito do recurso
11. Tem relevância para a decisão do recurso a seguinte questão, suscitada nas alegações e vertida nas conclusões:
A. Violação do direito à tutela jurisdicional efectiva
Factos
12. Os factos provados serão a seguir agrupados num parágrafo, antecedidos da numeração/alíneas, pelas quais foram designados na sentença recorrida, para facilitar a leitura e remissões.
13. Factos provados:
1) A Autora exerce a atividade comercial de seguros;
2) No exercício da sua atividade, a Autora (à data com a designação “Açoreana Seguros, S.A.”), celebrou com a sociedade “XX, Lda.” um contrato de seguro de acidentes de trabalho titulado pela apólice n.º ...;
3) O referido contrato de seguro abrangia a trabalhadora AA, aqui Ré, tendo por base a sua remuneração anual de €6.790,00;
4) No dia 22 de fevereiro de 2012, pelas 08h40, a Ré foi vítima de um acidente de trabalho, que se consistiu, simultaneamente, num acidente de viação;
5) Tal acidente consistiu no seguinte: a Ré circulava ao volante do veículo com a matrícula ..-..-MT da Praceta..., em ..., onde morava, para o seu local de trabalho, no “...”, em ..., quando na entrada da rotunda existente na Rua..., em ..., o seu veículo foi embatido na traseira por outro veículo automóvel;
6) O veículo automóvel que embateu na traseira do veículo da Ré e que foi considerado responsável pelo acidente estava seguro na Tranquilidade – Companhia de Seguros, S.A. por contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º 2442521;
7) Em consequência deste acidente, a Ré embateu com a cabeça no volante e no encosto do seu assento, sofrendo lesões no ouvido esquerdo e traumatismo cervicodorsal;
8) Este acidente de trabalho deu origem ao processo especial emergente de acidente de trabalho em apenso, no qual, em 25-09-2019, foi proferida sentença que reconheceu o acidente da Ré como um acidente de trabalho indemnizável à luz da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro (LAT);
9) Tendo em consideração o resultado da Junta Médica realizada nesses autos, o douto Tribunal fixou à Ré uma IPP de 30,035%, desde 22-02-2012, tendo condenado a Autora a pagar à Ré uma pensão anual e vitalícia, anualmente atualizável, de € 1.427,56, desde 23-02-2012;
10) Na sequência dessa decisão, a Autora tem vindo a pagar mensalmente à Ré a referida pensão anual e vitalícia;
11) Tendo o acidente acima descrito sido simultaneamente “de trabalho” e “de viação”, a Ré também reclamou da Tranquilidade - Companhia de Seguros, S.A., seguradora do veículo responsável pelo acidente, a regularização dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de viação;
12) Pela regularização desse sinistro, a Tranquilidade - Companhia de Seguros, S.A. pagou à Ré uma indemnização no valor de €18.160,67;
14. Factos não provados:
Não foram mencionados nenhuns na sentença recorrida.
Quadro legal relevante
15. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Constituição da República Portuguesa ou CRP
Artigo 20.º
(Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Código Civil ou CC
Artigo 342.º
(Ónus da prova)
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro também apenas Lei 98/2009
Artigo 17.º
Acidente causado por outro trabalhador ou por terceiro
1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.
Código de Processo Civil ou CPC
Artigo 5.º
Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Artigo 130.º
Princípio da limitação dos atos
Não é lícito realizar no processo atos inúteis.
Artigo 291.º
Nulidade e anulabilidade da confissão, desistência ou transação
1 - A confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do artigo 359.º do Código Civil.
2 - O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transação não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.
3 - Quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o ato ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito.
Artigo 410.º
Objeto da instrução
A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.
Artigo 581.º (art.º 498.º CPC 1961)
Requisitos da litispendência e do caso julgado
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Artigo 595.º (art.º 510.º CPC 1961)
Despacho saneador
1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
2 - O despacho saneador é logo ditado para a ata; quando, porém, a complexidade das questões a resolver o exija, o juiz pode excecionalmente proferi-lo por escrito, suspendendo-se a audiência prévia e fixando-se logo data para a sua continuação, se for caso disso.
3 - No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença.
4 - Não cabe recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão de matéria que lhe cumpra conhecer.
5 - Nas ações destinadas à defesa da posse, se o réu apenas tiver invocado a titularidade do direito de propriedade, sem impugnar a posse do autor, e não puder apreciar-se logo aquela questão, o juiz ordena a imediata manutenção ou restituição da posse, sem prejuízo do que venha a decidir-se a final quanto à questão da titularidade do direito.
Doutrina e jurisprudência que o Tribunal leva em conta
16. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos, mencionados na fundamentação:
Doutrina
Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume III, Coimbra Editora LIM
Maria da Graça Trigo, O Conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo, Julgar – Nº 46 – 2022
Jurisprudência disponível em dgsi.pt
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 103/2002
Apreciação do recurso
A. Violação do direito à tutela jurisdicional efectiva
17. Por meio da presente acção, a recorrente veio exercer o direito previsto no artigo 17.º n.º 3 da Lei 98/2009, de ser desonerada do pagamento da reparação (pensão anual e vitalícia) devida à recorrida/trabalhadora em consequência da incapacidade parcial permanente para o trabalho que para ela resultou do acidente de trabalho ojecto dos autos principais, pelo facto de tal acidente ter sido causado por terceiro (acidente de viação). A recorrente pede a sua desoneração até ao limite de 15 000 euros, por ter sido esse o valor da indemnização pelo dano biológico, pago à recorrida pela seguradora automóvel.
18. Segundo o Tribunal julga perceber, a recorrente censura a decisão impugnada pelo facto de ter posto termo ao processo e julgado improcedente a acção na fase do saneamento do processo, sem conferir à recorrente a faculdade de produzir prova sobre os factos controvertidos por si alegados nos artigos 16.º e 17.º da petição inicial. Na ótica da recorrente, a prova de tais factos seria suficiente para daí derivar a sua pretensão de se desonerar do pagamento à recorrida da pensão anual e vitalícia que foi condenada a pagar-lhe, até ao limite de 15 000 euros.
19. Nesse contexto, a recorrente defende que não há necessidade de aperfeiçoamento da petição inicial e apesar de ter sido convidada pelo Tribunal a quo a completar/aperfeiçoar a petição inicial, em conformidade com a decisão singular do Tribunal da Relação, a recorrente não o fez, como resulta dos autos e termos processuais acima mencionados nos parágrafos 8 a 10.
20. Feito este enquadramento, o presente recurso coloca os seguintes problemas: (i) o primeiro problema consiste em saber qual é a causa de pedir na presente acção; (ii) o segundo problema consiste em saber se foram alegados pela recorrente todos os factos jurídicos que a integram, isto é, todos os factos constitutivos do direito que pretende exercer; (iii) e o terceiro problema consiste em saber se, para garantir o direito à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º da CRP, a acção deve prosseguir para que a recorrente possa produzir prova sobre os factos controvertidos que alegou ainda que o Tribunal julgue que tais factos são insuficientes para que deles derive a pretensão da recorrente.
21. Segue-se a análise dos três problemas mencionados no parágrafo anterior.
22. Para saber em que consiste a causa de pedir na presente acção, o Tribunal leva em conta o disposto nos artigos 17.º da Lei 98/2009 e 581.º n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC).
23. Assim, sendo a presente acção uma acção declarativa de condenação (cf. artigo 10.º n.º 3 -b) do CPC) a noção de causa de pedir corresponde à que é mencionada na primeira parte do n.º 4 do artigo 581.º do CPC e consiste nos factos jurídicos concretos, cujos contornos se enquadram na configuração legal, eg. no artigo 17.º n.º 2 da Lei 98/2009. Com efeito, sem prejuízo de o Tribunal não estar sujeito à qualificação jurídica invocada pelas partes e poder optar por outra, como estabelece o artigo 5.º n.º 3 do CPC, no presente caso, a aplicação do disposto no artigo 17.º n.º 2 da Lei 98/2009 é a solução de direito que se afigura plausível.
24. A causa de pedir não é, pois, o facto jurídico abstracto tal como a lei o configura, mas um certo facto que é relevante porque pode ter influência na formação da vontade concreta da lei (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume III, Coimbra Editora LIM, páginas 121 e 123, em particular, o trecho a seguir citado):
“Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enqudram na configuração legal. Por outras palavras: se eu demando certa pessoa com base num contrato de compra e venda, a causa de pedir da acção não é a categoria legal – contrato de compra e venda; é aquele contrato particular de compra e venda que eu invoco e identifico.”
25. À luz das disposições legais e da doutrina acima mencionadas, os factos jurídicos concretos que podem ter influência na aplicação do artigo 17.º n.º 3 da Lei 98/2009 são os seguintes:
• A existência de um acidente de trabalho causado por terceiro (acidente de viação);
• A lesão, neste caso a lesão corporal, sofrida pela recorrida em consequência do acidente de trabalho;
• A incapacidade parcial permanente para o trabalho que daí resultou, fixada pelo Tribunal no âmbito da responsabilidade por acidentes de trabalho;
• A obrigação de a recorrente pagar uma pensão para reparar esse dano;
• O pagamento à recorrida de uma indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil extracontratual, pelos danos que sofreu em consequência do mesmo acidente;
• Destinar-se essa indemnização a reparar os mesmos danos concretos na capacidade para o trabalho habitual que a recorrida exercia na altura do acidente, consequência da lesão corporal sofrida pela recorrida, que já foram objecto de reparação no âmbito da responsabilidade pelo acidente de trabalho.
26. Assim, para que a pretensão da recorrente se possa enquadrar na configuração legal do artigo 17.º nº 3 da lei 98/2009, que se afigura ser a solução de direito plausível, a recorrente tem o ónus de alegar e provar os factos jurídicos concretos que preencham os pressupostos enunciados no parágrafo anterior.
27. O que sucede é que a recorrente, sobre a qual impende o ónus de alegar os factos constitutivos do seu direito, como prevê o artigo 342.º n.º 1 do CC, não alegou os factos jurídicos concretos, constitutivos do seu direito, enunciados em último lugar no parágrafo 25, a saber, a recorrida não alegou factos dos quais resulte que a indemnização paga pela seguradora do ramo automóvel (alegadamente uma parte dessa indemnização no montante de 15 000 euros) se destinou a reparar os mesmos danos concretos na capacidade para o trabalho habitual que a recorrida exercia na altura do acidente, consequência da lesão corporal sofrida pela recorrida, que já foram objecto de reparação no âmbito da responsabilidade pelo acidente de trabalho.
28. Sobre os factos jurídicos concretos que integram a causa de pedir, aqui em crise, a recorrente defende que é suficiente a matéria que alegou nos artigos 16.º e 17.º da petição inicial a seguir transcritos (cf. referência citius 12588531 de 17.7.2022):
“16. Sendo que, deste valor, € 15.000,00 dizem respeito ao dano biológico na sua vertente patrimonial, ou seja, visam indemnizara R. pela perda da capacidade de ganho em virtude das lesões decorrentes do acidente (cfr. doc. n.º 4 já junto).
17. Ora, tendo a Tranquilidade - Companhia de Seguros, S.A., pago à R. uma indemnização no valor de € 15.000,00 por esta perda de capacidade de ganho futura, a A. tem o direito de se desonerar do pagamento das prestações patrimoniais (pensão anual e vitalícia) a que foi condenada no âmbito do processo emergente do acidente de trabalho, até esse montante.
29. Porém, resulta da análise dos artigos 16.º e 17.º da petição inicial que a recorrente alegou apenas conceitos jurídicos e conclusões quando aludiu a “dano biológico na sua vertente patrimonial” e a “perda de capacidade de ganho futura” e não os factos concretos que integram esses conceitos e/ou permitem chegar a essas conclusões.
30. Isto é assim, pelas razões que o Tribunal explica a seguir (cf. sobre esta questão, Maria da Graça Trigo, O Conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo, Julgar – Nº 46 – 2022, páginas 260 a 268, doutrina que o Tribunal aqui acompanha).
31. A lesão corporal, dano-evento ou dano real sofrido pela recorrida e apurado nos autos principais (cf. lesão no ouvido esquerdo e traumatismo cervicodorsal, mencionados no facto provado 7), é um dano em sentido naturalístico do qual podem resultar consequências patrimoniais (dano-consequência patrimonial) ou não patrimoniais (dano-consequência-não patrimonial). Daí decorre que a distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais não assenta tanto na natureza dos bens atingidos como nas suas consequências.
32. A esse propósito, a doutrina desenvolveu o conceito de dano corporal, no qual se incluem o dano de afirmação pessoal ou dano à vida de relação, o dano estético, o dano psíquico, o dano sexual, o dano à capacidade laboral genérica.
33. Com base em idênticas preocupações, a jurisprudência nacional desenvolveu a noção de dano biológico, para dar resposta à necessidade de indemnizar não apenas a perda de capacidade laboral específica para a profissão exercida pelo sinistrado à data do acidente, mas também a perda de capacidade laboral geral.
34. Percebe-se, assim, que além dos danos patrimoniais futuros (traduzidos em perda de rendimento), causados pela incapacidade laboral específica, isto é, causados pela incapacidade parcial permanente da recorrida para o exercício da sua actividade profissional à data da ocorrência da lesão física apurada, que são indemnizados por meio da reparação fixada no âmbito da responsabilidade pelo acidente de trabalho, há que levar em conta a maior ou menor afectação da capacidade laboral genérica da recorrida, que também é susceptível de lhe causar perdas de rendimentos e portanto danos patrimoniais futuros. Foi nesse contexto que a noção de dano biológico, desenvolvida pela jurisprudência nacional procurou dar resposta à necessidade de indemnizar também a capacidade laboral genérica (cf. nesse sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 103/2002, cujo sumário a seguir é transcrito e que constitui um acórdão de princípio sobre a questão):
“1. O dano biológico, perspectivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre , é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial.
2. A indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo lesado - consubstanciado em relevante limitação funcional ( 10% de IPP genérica) - deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente reflectida no nível salarial auferido, quer da relevante e substancial restrição às possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade profissional actual, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas, garantindo um mesmo nível de produtividade e rendimento auferido.
3.O juízo de equidade das instâncias, concretizador do montante a arbitrar a título de dano biológico, assente numa ponderação , prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.”
35. À luz da jurisprudência mencionada no parágrafo anterior, o conceito de dano biológico que a recorrente alega no artigo 16.º da petição inicial, é um conceito jurídico, que engloba a perda de capacidade laboral especifica (para a profissão exercida no momento do acidente) e a perda de capacidade laboral geral (eg. danos futuros causados pela diminuição da mobilidade entre carreiras profissionais diferentes, pela falta de progressão na carreira, pela limitação ocupacional). Adicionalmente, a recorrente, no artigo 17.º da petição inicial, não especifica se a perda de capacidade de ganho futura que aí alega, se refere à incapacidade laboral específica ou à incapacidade laboral geral.
36. Ora, para saber se existe a alegada sobreposição dos danos indemnizados pela recorrente, no âmbito da responsabilidade por acidente de trabalho, e indemnizados pela seguradora do ramo automóvel, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, não basta alegar que tanto o valor pago pela seguradora do ramo automóvel como a pensão paga pela recorrente, se destinam a indemnizar o dano biológico. Isto porque, como já foi explicado, o dano biológico é um conceito jurídico, que abrange tanto a incapacidade funcional específica como a perda de capacidade de ganho geral e sendo o dano biológico um conceito jurídico, não é sequer um facto que possa ser objecto de instrução (cf. artigo 410.º do CPC).
37. Assim como não basta alegar que o valor pago pela seguradora do ramo automóvel se destina a indemnizar a perda da capacidade de ganho, sem alegar factos concretos que permitam saber se se trata da mesma perda de capacidade de ganho funcional, específica, para a profissão exercida pela recorrida no momento do acidente ou da perda de capacidade de ganho geral, ou de ambas e, nesse caso, em que medida.
38. Com efeito, impende sobre a recorrente o ónus de alegar os factos concretos dos quais resulte que os danos sofridos pela recorrida, em consequência da lesão corporal em causa, levados em conta pela seguradora automóvel, são os mesmos já levados em conta na fixação da pensão devida por acidente de trabalho – cf. artigo 342.º n.º 1 do CC.
39. As dificuldades alegadas pela recorrente no que se refere à obtenção de elementos concretos, recolha de informação e/ou prova sobre os concretos danos indemnizados extrajudicialmente pela companhia de seguros do ramo automóvel podiam ser superadas, consoante o caso, com recurso ao incidente de liquidação intentado antes de ser proposta a presente acção, nos termos do artigo 358.º n.º 1 do CPC, ou com recurso ao disposto nos artigos 417.º e 432.º do CPC, ex vi artigo 1.º n.º 2-a) do CPC.
40. Acresce que, a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação, acima mencionada no parágrafo 8, não só revogou a sentença que homologou a transacção judicial celebrada entre as partes como também não admitiu essa transacção por tê-la julgado extemporânea e ilegal. Pelo que, contrariamente ao que parece defender a recorrente, sendo a transacção um contrato (cf. artigo 1248.º do CC), que neste caso foi julgado ilegal por decisão do Tribunal da Relação, essa ilegalidade acarreta a produção dos efeitos previstos nos artigos 291.º n.º 1 do CPC (nulidade e anulabilidade da transacção) e 1249.º do CC (matérias insusceptíveis de transação), conjugado com o artigo 78.º da Lei 98/2009. Em consequência, as declarações prestadas pela recorrida na transacção são nulas.
41. Mas ainda que assim não fosse, quod non, falta a alegação de factos essenciais, constitutivos do direito que a recorrente pretende exercer. Pelo que, mesmo que as declarações da recorrida prestadas na transacção judicial fossem válidas e mesmo que a recorrente, conseguisse provar todos os factos alegados na petição inicial, incluindo a matéria alegada nos artigos 16.º e 17.º desse articulado, pelas razões acima enunciadas, isso seria insuficiente para que daí derivasse a pretensão da recorrente de excluir a sua responsabilidade até ao limite de 15 000 euros, ao abrigo do disposto no artigo 17.º da Lei 98/2009.
42. Em consequência, contrariamente ao que defende a recorrente, o prosseguimento dos autos para a produção de prova é inútil e não deve ser ordenado à luz do disposto no artigo 130.º do CPC, que proíbe a realização de actos inúteis.
43. Assim, não tendo a recorrente cumprido o ónus de alegar todos os factos constitutivos do direito que se arroga (cf. artigo 342.º do CC), apesar de convidada pelo Tribunal a fazê-lo (cf. artigo 27.º n.º 2 – b) do CPT), afigura-se que o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas, conhecer imediatamente do mérito da causa (cf. artigo 595.º n.º 1 – b) do CPC, ex vi artigos 49.º e 151.º do CPT).
44. Pelo que, pelas razões acima enunciadas, nem merece censura a sentença recorrida que julgou improcedente a acção, nem foi violado o direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º da CRP, nem existiu erro na aplicação e interpretação dos artigos 5.º n.º 1 do CPC e 342.º do CC.
45. Motivos pelos quais improcede o recurso e mantém-se a decisão recorrida.
Em síntese
46. A recorrente não cumpriu o ónus de alegar todos os factos jurídicos concretos constitutivos do direito que se arroga (cf. artigo 342.º do CC) e que integram a causa de pedir, apesar de convidada pelo Tribunal a fazê-lo (cf. artigo 27.º n.º 2 – b) do CPT).
47. Mesmo que a recorrente conseguisse provar todos os factos alegados na petição inicial, incluindo a matéria alegada nos artigos 16.º e 17.º desse articulado, pelas razões acima enunciadas isso seria insuficiente para que daí derivasse a pretensão da recorrente de excluir a sua responsabilidade até ao limite de 15 000 euros, ao abrigo do disposto no artigo 17.º n.º 3 da Lei 98/2009.
48. Assim sendo, o processo permite, sem necessidade de mais provas, conhecer imediatamente do mérito da causa (cf. artigo 595.º n.º 1 – b) do CPC, ex vi artigos 49.º e 151.º do CPT).
49. A sentença recorrida não merece censura nem infringiu o direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º da CRP, assim como não infringiu o disposto nos artigos 5.º n.º 1 do CPC e 342.º do CC.
50. Motivos pelos quais improcede o recurso e se mantém a decisão recorrida.

Decisão
Acordam as Juízes desta secção em:
I. Julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.
II. Condenar a recorrente nas custas do recurso – artigo 527.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 87.º n.º 1 do CPT.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2025
Paula Pott
Susana Silveira
Eugénia Guerra