REGULAMENTO INTERNO
EFICÁCIA
RESERVA DA VIDA PRIVADA
REVISTA
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário

I - Nos termos do artigo 99.º n.º 3 do Código do Trabalho, a eficácia do regulamento interno da empresa depende apenas da sua publicitação.
II -É excessivo e desproporcionado, bem como intrusivo e violador do direito de reserva à intimidade da vida privada, o sistema de auto revista aleatória, instituído por regulamento da empresa, que abrange bens pessoais e vestuário, que tanto pode ocorrer numa sala existente para o efeito como na saída do local de trabalho à vista de outros trabalhadores e cujos limites não estão devidamente definidos.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório

AA, operador de armazém, residente na Rua..., ..., ..., mediante a apresentação do formulário a que aludem os artigos 98.º- C e 98.º-D do Código de Processo do Trabalho (CPT), intentou acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra XX, S.A., com sede na Rua..., ..., ..., opondo-se ao despedimento que lhe foi promovido e requerendo que seja declarada a ilicitude ou a irregularidade do mesmo, com as legais consequências.
Realizou-se a audiência de partes sem se conseguir a conciliação.
Notificada, a Ré apresentou articulado a motivar o despedimento invocando, em suma, o seguinte:
-Todos os trabalhadores ao serviço da Ré no entreposto, incluindo o Autor, estão sujeitos a auto-revista aleatória à saída das instalações da empresa;
-Tal sistema aleatório de segurança visa prevenir o furto de artigos armazenados no entreposto, nomeadamente os de pequena dimensão;
-A auto-revista consiste no facto do trabalhador mostrar o que traz nas mãos, esvaziar os bolsos da farda de trabalho e mostrar que não traz nenhum artigo consigo, o que faz parte dos procedimentos internos da Ré;
-O Autor, tal como todos os trabalhadores, é conhecedor de tal procedimento;
- Nos dias 12.11.2022 pelas 17:12h, 18.11.2022 pelas 17:14h, 22.11.2022 pelas 17:12h e 24.11.2022 pelas 17:13h, o Autor saiu do entreposto sem passar pelo sistema de controlo aleatório;
-Além de se recusar a cumprir tal procedimento, o Autor nem sequer aguarda na fila de saída como está obrigado e como o fazem os seus colegas de trabalho;
-O Autor já foi abordado pela equipa de segurança e pelos colegas para o seu comportamento, bem como já foi disciplinarmente sancionado pela prática de factos idênticos, mas continua a recusar-se a a cumprir os procedimentos internos da Ré;
- Esta atitude reiterada do Autor não só faz suspeitar, fundadamente, se este se fazia acompanhar de bens da Ré que não podia transportar para o exterior, como é fomentador da eventual vontade de outros trabalhadores adoptarem a mesma postura e, assim, tornarem a gestão da atividade do entreposto inviável;
-O comportamento do Autor consubstancia uma violação muito grave dos deveres de respeito, urbanidade, probidade e obediência, previstos nas alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho e face à sua gravidade torna impossível a subsistência da relação de trabalho constituindo justa causa de despedimento nos termos do artigo 351.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d) do Código do Trabalho;
-Caso venha a ser declarado ilícito o despedimento do Autor, à compensação peticionada terão de ser deduzidos os valores a que alude o artigo 390.º do CT; e
- O Autor litiga com má fé, pois deduz uma pretensão cuja falta de fundamento não ignora.
Finalizou pedindo que fosse reconhecida a licitude e validade do despedimento e condenado o Autor como litigante de má-fé e ainda no pagamento de uma multa e indemnização à Ré não inferior a € 2.500,00.
O Autor contestou invocando, em resumo, que:
-Tem sofrido de assédio e discriminação por parte da Ré, sendo que, os processos disciplinares que lhe foram movidos o foram no âmbito e surgiram como retaliação pelo facto de ter constante e incessantemente pugnado pelos seus direitos;
-Desde o ano de 2010, altura em que o Autor concluiu uma licenciatura em informática, nunca lhe foi proporcionada a sua promoção profissional na Ré, tendo sido preterido em favor de colegas com menos qualificações;
- Os três processos disciplinares que lhe foram instaurados surgem na sequência de denúncia que fez aos representantes da empresa e as sanções disciplinares foram aplicadas como uma forma de retaliação pelo exercício daquele direito por parte do Autor, pelo que são abusivas;
- A Ré recorre à segurança privada para efetuar revistas aos seus trabalhadores;
-A Ré, sem informar nem consultar os seus trabalhadores ou os seus representantes, fez entrar em vigor o Regulamento n.º 1/2019 através do qual definiu que o que se passaria a fazer eram “ auto revistas “ e não revistas;
-Este Regulamento interno nunca foi dado a conhecer aos trabalhadores da Ré e o Autor apenas teve conhecimento do mesmo quando, em finais de 2021, foi publicado no quadro legal informativo, nas instalações da Ré, sem qualquer carimbo ou assinatura;
-No dia 27 de Dezembro de 2021, o Autor enviou um email à Ré, deduzindo oposição ao Regulamento, o que fez dentro do prazo legal;
-As revistas realizadas aos trabalhadores da Ré não estão em conformidade com o disposto no artigo 19.º-A da Lei n.º 34/2013 de 16 de Maio;
-O Autor comunicou à direcção da Ré que não iria submeter-se a qualquer acto de “ auto – revista “ até que fossem respondidas as diversas questões que expôs sendo que, desde 1 de Fevereiro de 2022, nunca mais se submeteu às “ auto-revistas “, o que a Ré omitiu no processo;
- No local onde as revistas são efetuadas, no entreposto, não existe nenhum aviso da possibilidade de controlo através de revista, nem há referência a revistas no CCT publicado no BTE n.º 22 de 15 de Junho de 2008, pelo que o trabalhador teria que prestar o seu consentimento;
-O Autor nunca prestou o seu consentimento individual relativamente às revistas, pelo que é legítima a sua recusa;
-O Autor invoca o Direito de Resistência para se ter oposto às revistas que lhe queriam ser impostas pela Ré;
-Nas outras saídas da empresa não existe um sistema aleatório de segurança, nem nos entrepostos da ... e da ..., pelo que os trabalhadores da Ré não são todos submetidos a auto revista;
- O Autor pretende ser reintegrado no seu posto de trabalho;
-A longo dos anos o Autor tem vindo a sofrer práticas retaliatórias, perseguição e humilhações por parte da Ré com consequente sofrimento, grande stress, vivendo angustiado e deprimido, tendo a sua situação de saúde se agravado com a actuação da Ré;
- O despedimento é ilícito; e
- Quem litiga de má fé é a Ré.
Terminou pedindo que:
1. Seja declarado ilícito o despedimento nos termos previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do artigo 331º do Código do Trabalho por ter sido decretado por sanção disciplinar abusiva;
2. Em consequência de tal declaração seja a Ré condenada a pagar ao Autor a importância a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor das retribuições, incluindo de férias e os subsídios de férias e de Natal que o Autor deixou de auferir desde a data do despedimento ilícito até trânsito em julgado da sentença.
3. Seja a Ré condenada a reintegrar o Autor no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 331.º do Código do Trabalho;
4. Seja a Ré condenada a indemnizar o Autor por danos não patrimoniais em montante não inferior a 30.000,00 € (trinta mil euros);
5. Seja a Ré condenada como litigante de má fé nos termos previstos no n.º 1 e nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 542º do Código de Processo Civil a indemnizar o Autor em montante não inferior a 25.000,00 (vinte e cinco mil euros ) ;
6. Seja a Ré condenada a pagar os juros de mora à taxa legal de 4 % calculados sobre as quantias em que venha a ser condenada, contados desde a data do vencimento até integral pagamento;
7. Seja a Ré condenada, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 829.º - A do Código de Processo Civil na sanção pecuniária compulsória de 150,00 € por cada dia de atraso no pagamento das indemnizações em que venha a ser condenada, a contar desde a data do trânsito em julgado da decisão; e
8. Seja a Ré condenada no pagamento de custas do processo, procuradoria e nos demais encargos.
A Ré respondeu pugnando pela inadmissibilidade dos pedidos condenatórios formulados pelo Autor na reconvenção e pela falta de pagamento da taxa de justiça devida pela dedução daquele articulado. Mais invocou ser o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé manifestamente infundado.
Pediu que se declare indeferidos os pedidos condenatórios formulados pelo Autor na contestação apresentada, por inobservância do disposto no art. 98.º L, n.º 3 do CPT e que, caso assim não se entenda, se rejeite a admissão da reconvenção pela omissão do pagamento da taxa de justiça devida e, caso assim não se entenda, se declare improcedentes, por não provados, os pedidos condenatórios formulados pelo Autor na contestação, absolvendo-se a Ré, com as legais consequências e que, em todo o caso, se declare, ainda, improcedentes por não provadas quaisquer excepções que entenda terem sido invocadas.
Foi proferido despacho que convidou o Autor a apresentar novo articulado de contestação com integral observância do disposto no art.º 583º do CPC.
O Autor apresentou nova contestação na qual, invocando o disposto no artigo 265.º n.º 2 do CPC, ampliou o pedido e alegou novos factos.
A Ré pronunciou-se reafirmando a falta de pagamento da taxa de justiça devida e inadmissibilidade do pedido reconvencional.
Foi proferido despacho que julgou improcedente a pretensão quanto à falta de pagamento da taxa de justiça, indeferiu os pedidos identificados sob 4 e 5 da contestação aperfeiçoada e considerou não escrita a alegação de facto e de direito constante dos artigos 119º a 148º, 159º, 160º (parte), 163º, 165º, 169º a 178º, 181º, 182º, 185º a 188º e 190º do mesmo articulado.
O pedido reconvencional, por seu turno, foi admitido com excepção da parte em que não foi admitida a ampliação do pedido.
Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova nos seguinte termos:
“Em causa nos autos está a regularidade do procedimento disciplinar e existência de justa causa de despedimento, esta a apreciar com referência aos factos e fundamentos da decisão de despedimento (cfr. art.º 387º nº 3 e 4 do Código do Trabalho) e, em função dessa decisão, as consequências da cessação do contrato de trabalho decorrentes da mesma, bem como a determinação de existência de créditos do trabalhador por danos decorrentes da execução e cessação do contrato.
Temas de prova:
1. Relação entre o exercício de acção disciplinar visando o trabalhador e a queixa/reclamação pelo mesmo apresentada em 2017
2. Desempenho/competências do trabalhador e categoria profissional do mesmo durante a execução da relação laboral
3. Preterição do trabalhador em relação a BB (caucasiana) quando da promoção desta a operadora principal
4. Desconsideração pela empregadora das queixas do trabalhador quanto ao uso de óculos e viseira
5. Publicitação do Regulamento 1/2019 e momento do seu conhecimento pelo trabalhador
6. Reacção do trabalhador ao dito Regulamento e sua comunicação à empregadora
7. Existência e prática de procedimentos instituídos pelo Regulamento em momento anterior à elaboração deste
8. Procedimentos de segurança implementados nas diversas saídas do local de trabalho
9. Impacto na saúde e bem-estar psíquico do trabalhador da reacção da empregadora à queixa/comunicação do trabalhador em 2017
Procedeu-se a julgamento.
Após foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Termos em que, com a fundamentação de facto e de direito supra exposta, se decide declarar a ilicitude do despedimento de AA por XX, S.A. e em consequência condenar esta a:
a) Reintegrar o trabalhador no seu posto de trabalho sem prejuízo da sua categoria e antiguidade;
b) Pagar ao trabalhador as retribuições e subsídios que o mesmo deixou de auferir desde 14-03-2023 e até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, deduzidas das importâncias que o trabalhador tenha auferido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento e do subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador entre a data do despedimento e a data do trânsito em julgado, devendo a empregadora entregar essa quantia à segurança social.
c) Julgar improcedente por não provado o pedido reconvencional deduzido pelo trabalhador contra a empregadora.
d) Condenar a empregadora nas custas da acção.
e) Condenar o trabalhador nas custas do pedido reconvencional.
f) Fixar o valor da acção em 57 011,91€ (15 480,00€/acção+41 531,91€ pedido reconvencional).”
Proferida a sentença vieram as partes, alegando terem iniciado conversações com vista à obtenção de um acordo, requerer a suspensão da instância por 50 dias.
O pedido foi indeferido com o fundamento de se mostrar esgotado o poder jurisdicional com a prolação da sentença.
Veio a Ré, invocando não ter a sentença transitado em julgado, renovar o pedido de suspensão da instância.
Foi proferido despacho que, fundamentando-se na circunstância de o tribunal já ter apreciado a requerida suspensão da instância e indeferido a mesma, estar esgotado o poder jurisdicional quanto a tal matéria.
Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso e formulou as seguintes conclusões:
“1. Sempre salvaguardando o devido respeito pela decisão emanada, como V.ª Exas. terão oportunidade de verificar, trata-se de uma decisão que padece de graves erros, quer no que a alguma da matéria de facto diz respeito, mas, sobretudo, quanto ao enquadramento legal.
2. Resumindo num parágrafo: (i) perante um trabalhador admitido em 2005 (facto provado 2); (ii) que, desde a sua admissão, sempre se submeteu – tal como todos os demais trabalhadores já o faziam – ao já existente sistema aleatório de auto-revista (facto provado 5); (iii) sistema esse que constava de regulamento publicado, relativamente ao qual nunca o Recorrido manifestou a sua oposição, bem como nunca o fez relativamente ao referido sistema de auto-revista na prática; (iv) sistema esse, mediante o qual – perante a luz vermelha do sistema aleatório – os trabalhadores devem demonstrar que não transportam consigo nenhum dos bens da empresa existentes no entreposto (factos provados sob os números 5 a 7 e 9 a 15), (v) procedimento este que é conhecido por todos os trabalhadores e por este observado (facto provado 17); (vi) sistema e procedimento que o Recorrido decidiu desrespeitar a partir abril de 2022, ou seja, ao fim de mais de 18 anos; (vii) trabalhador este que à data do despedimento somava três sanções disciplinares (factos provados 30, 31 e 32); (viii) sendo a última sanção por comportamento exatamente igual ao que justificou o despedimento e que tinha ocorrido escassos meses antes,
3. O Tribunal a quo entendeu que o Trabalhador não desobedeceu à entidade patronal porque a auto-revista é uma medida desproporcionada e violadora da vida privada do Trabalhador.
- Da nulidade da Sentença proferida.
4. Na decisão proferida e após avaliar da publicação do regulamento 1/2019, veio o Tribunal a quo debruçar-se sobre as concretas regras do regulamento em causa, concluindo que “Uma tal medida preventiva revela-se injustificada e excessiva para o contexto de execução da relação laboral, tal como este é conhecido nos autos, pelo que, afastada a eficácia do Regulamento, nunca a mesma pode ser considerada válida em quanto ordem ou determinação não regulamentar da empregadora por violadora do art.º 16º do Código do Trabalho.
Consequentemente, por contrária ao direito de personalidade do trabalhador, na sua vertente de reserva de intimidade da vida privada, não pode a sua inobservância conduzir à afirmação de violação do dever de obediência”- vide Sentença proferida. Ora,
5. Considerando o objeto do litígio bem como os temas de prova fixados no despacho saneador e, como muito bem se resume ab initio da Sentença a quo na parte do “Relatório”, em momento algum o Trabalhador Recorrido suscitou a violação dos direitos de personalidade no que se refere ao Regulamento, nem tão pouco da auto- revista que aquele visava.
6. Vir, na Sentença proferida, o Tribunal a quo pronunciar-se sobre a admissibilidade do Regulamento bem como do procedimento de auto-revista, para além da sua publicação, excedeu claramente as questões que lhe cabiam conhecer.
Nesta medida,
7. A sentença proferida padece de uma nulidade, a qual se invoca aqui de forma expressa, nos termos do disposto no artigo 77º do CPT, ex vi artigos 615º n.º 1 alínea d) e 617º n.º 1, ambos do CPC
Sem prescindir e para o caso não se considerar a nulidade invocada,
Da impugnação sobre a decisão da matéria de facto
A. Do facto provado sob o número 8
8. O facto considerado provado sob o ponto 8 da Sentença a quo não corresponde à verdade.
9. No depoimento prestado pela testemunha CC (depoimento registado em ata de 09.01.2024, gravado no sistema habilus com início às 10:03 e fim às 11:03, na concreta passagem desde o minuto 00:25:55 ao minuto 00:26:50) foi afirmado que o Regulamento 1/2019 foi uma continuação dos anteriormente existentes e, antes da sua entrada em vigor, o regulamento teria sido afixado pelo prazo de 30 dias para que os trabalhadores o lessem e se pronunciassem. Aliás,
10. Por conseguinte, deve ser considerado não provado o facto sob o ponto 8, considerando-se provado o seguinte teor:
“8. A Recorrente apresentou e discutiu o teor do regulamento de auto revista com os trabalhadores antes da sua primeira publicação”
B. Do facto provado sob o número 16
11. O facto considerado provado sob o ponto 16 não corresponde à verdade.
12. No depoimento prestado pela testemunha DD (registado em ata de 26.01.2024 gravado no sistema habilus com início às 09:41 e fim às 10:02, na concreta passagem desde o minuto 00:05:35 ao minuto 00:05:58), foi afirmado que no entreposto existem avisos relativos à existência de controlo por revista aleatória, bem como relativos à existência de câmaras de videovigilância.
13. Por conseguinte, deve ser considerado não provado o facto sob o ponto 8, considerando-se provado o seguinte teor:
“16. No local junto aos torniquetes existe indicação de controle por revista”
C. Ponto 34 dos factos provados
14. Relativamente ao facto provado sob o ponto 34, considerando a confissão do próprio Recorrido no ponto 23.º da sua Contestação, mas também o depoimento de EE (no depoimento registado em ata de 26.01.2024, gravado no sistema habilus com início às 10:16 e fim às 10:37, na concreta passagem desde o minuto 00:16:06 ao minuto 00:16:56),
15. Deverá ser igualmente considerado provado que o trabalhador foi remetido para consulta na medicina do trabalho, não tendo daí resultado qualquer restrição médica, devendo o ponto 34 dos factos provados passar a ter a seguinte redação:
34. O trabalhador, em 2020, queixou-se junto da empregadora que a utilização de viseiras/óculos tinha consequências para a sua saúde, tendo sido remetido para consulta da medicina do trabalho, não tendo resultado qualquer restrição”
D. Do aditamento à matéria de facto provada
16. No depoimento prestado pela testemunha CC (depoimento registado em ata de 09.01.2024, gravado no sistema habilus com início às 10:03 e fim às 11:03, na concreta passagem desde o minuto 1:50 a 2:15 e do minuto 00:25:00 ao minuto 00:26:50, bem como confirmou na passagem 00:24 a 00:25) e na mesma exata passagem já referida, afirmou que, o regulamento 1/2019 é uma atualização do anterior que foi publicado no entreposto da empresa, pelo menos, em 2008.
17. Por conseguinte, não corresponde à verdade a conclusão que o Tribunal a quo retira de que não foi possível apurar a data em que tal regulamento foi publicado.
18. Por conseguinte, deve ser considerado provado que:
“o regulamento 1/2019 substituiu o anterior vigente que foi publicado, pelo menos, em novembro de 2008”
– De Direito
19. Independentemente da decisão que recair sobre a impugnação da matéria de facto tal como descrito no capítulo anterior, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deverá, sempre, ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente e reconheça a licitude do despedimento.
20. Podemos sistematizar do seguinte modo as questões suscitadas pelo Tribunal a quo na solução de direito que aplicou ao caso concreto:
a. Da proporcionalidade da auto-revista;
b. Da eficácia e vigência do regulamento;
c. Da justa causa de despedimento e da reincidência disciplinar
21. Acerca da proporcionalidade da auto-revista, refere Tribunal a quo que era desconhecido do Tribunal a quo as atividades da Recorrente no caso em concreto do local de trabalho.
22. Os factos provados 3 e 5 deixam claro que se trata de um entreposto onde são manuseados bens, ou seja, por definição, um armazém de depósito de mercadorias.
23. Depois, considerando o objeto da Recorrente provado sob o ponto 1, conclui-se que esta se resume a exploração de comércio retalhista e armazenista dos bens ali descriminados: charcutaria; confeitaria, restaurante; padaria; talhos etc.
24. Aliás, sobre este mesmo facto foi questionada a testemunha CC que, a instâncias do Sr. Procurador descreveu os produtos ali armazenados (vide depoimento prestado pela testemunha CC, registado em ata de 09.01.2024, gravado no sistema habilus com início às 10:03 e fim às 11:03, na concreta passagem desde o minuto 19:20 ao minuto 20:00).
Por conseguinte,
25. Não é admissível o Tribunal a quo concluir que desconhece a atividade no local de trabalho dos autos.
26. Mas ainda que o Tribunal a quo tivesse ainda algumas dúvidas (e não se percebe como) do local em causa nos autos, bastava que tivesse tido o cuidado de analisar o Regulamento 1/2019 a que se reportam, desde logo, os factos provados sob os pontos 6 e 7 e que consta do processo disciplinar junto aos autos com o AMD.
27. Do qual resulta claro, evidente e manifestamente cristalina, qual a atividade em causa no entreposto e, essencialmente, da necessidade do sistema de controlo de circulação de bens e pessoas.
Mais,
28. Considerou ainda o Tribunal a quo que “O concreto sistema de revista, que é executado para além dos sistemas de vídeo vigilância, afigura-se excessivo e desproporcionado para o invocado risco de furto de objectos manuseados no seu estabelecimento. (…)”
Ora,
29. A matéria factual que resulta provada na Sentença a quo sob os pontos 7, 12, 13, 14 e 15, impõe concluir que, pese embora o Tribunal a quo reconheça que “Não se trata de negar o direito da empregadora a diligenciar pela tutela dos seus bens (…)” (vide Sentença a quo), a verdade é que acaba, precisamente, por negar à Recorrente esse seu legítimo direito.
30. É que, perante a matéria factual apurada e a indiscriminabilidade do sistema aleatório de auto-revista que perdura há mais de 18 (dezoito) anos e é conhecido de todos os trabalhadores; mas também ponderado o legítimo interesse do empregador de proteger o seu património, trata-se de um regime manifestamente respeitador dos direitos de personalidade dos trabalhadores e, claramente justificado em função das circunstâncias da atividade da Recorrente ali exercida.
31. A este propósito, justifica-se sublinhar – ao contrário do que pondera o Tribunal a quo – o sistema de CCTV instalado no local – como se apurou na matéria probatória – não serve nem pode servir para a Recorrente fazer um acompanhamento do percurso de cada trabalhador no local de trabalho, algo que configuraria uma manifesta e flagrante violação do artigo 20º do Código do Trabalho.
32. Um sistema aleatório de auto-revista com as regras e características demonstradas e provadas, com o objetivo óbvio de prevenir o furto de artigos, não pode em momento algum configurar uma medida intrusiva ou violadora da reserva dos trabalhadores.
33. Trata-se, aliás, de um sistema já de longa data e sobejamente conhecido e já discutido nos nossos Tribunais sem nunca se ter suscitado a sua inadmissibilidade por ofensa à privacidade do trabalhador (neste sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.07.2014, processo 461/12.5TTMAI.P1).
34. E como resultou do Regulamento 1/2019 e da prova produzida, o procedimento é conduzido por profissionais que, nos termos da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio (regime da segurança privada), estão habilitados e podem exercer essas funções, conforme dispõe o art. 18.º desse regime. Por conseguinte,
35. Estamos, pois, perante um sistema de autocontrolo que – conforme aliás consta do Regulamento 1/2019 e dos próprios factos provados – assenta, essencialmente, na vontade e disponibilidade dos trabalhadores em demonstrar que não detêm qualquer bem da entidade patronal na sua posse,
36. Mediante a decisão proferida, o Tribunal a quo pretende impedir a entidade patronal de manter um sistema aleatório de controlo que, em bom rigor, serve como modo dissuasor para a prevaricação de qualquer trabalhador ou terceiro que frequente o entreposto, relativamente à apropriação ilegítima dos bens da empresa.
37. É de facto uma decisão impercetível e que só por isso, merece, pois, ser revogada.
38. Quanto à eficácia e vigência do regulamento 1/2019, concluiu o Tribunal a quo que a aplicação de tal regulamento era ineficaz porque (i) a entidade empregadora não efetuou qualquer consulta ou negociação com os trabalhadores a esse propósito; (ii) que o Recorrido considera que se opôs validamente através da comunicação que enviou em Dezembro de 2021 e; (iii) a publicação e vigência do regulamento nos termos do disposto no artigo 104º n.º 2 do Código do Trabalho, não constitui qualquer cumprimento do dever de informação e negociação com os trabalhadores.
Ora,
39. Começando pelo argumento citado sob o ponto (ii), o único facto provado relativamente a esta matéria é o correspondente ao ponto 18 da Sentença a quo,
40. Perante, apenas, este singelo facto considerado provado, é inegável que o Trabalhador Recorrido em momento algum manifestou e muito menos concretizou, qualquer recusa à aplicação do Regulamento 1/2019 ou qualquer outro que lhe antecedeu.
41. Inexiste qualquer facto material que possa permitir concluir que o Trabalhador Recorrido se opôs validamente ao regulamento de auto- revista em vigor na Recorrente.
42. Em todo o caso, ainda que, por mera hipótese, se queira entender que a mera iniciativa do trabalhador em colocar questões à Recorrente vale como forma de oposição à aplicação do regulamento, certo é que essa prerrogativa seria, sempre, extemporânea, pois que, nos termos do n.º 2 do art. 104.º do CT, presume-se a adesão do trabalhador a um regulamento interno da empresa quando este não se opuser por escrito, no prazo de 21 dias, a contar da data de divulgação do regulamento momento a partir do qual tanto Recorrente como o Recorrido estavam vinculados, respetivamente, ao cumprimento do Regulamento. E mais,
43. Com se refere no facto provado sob o ponto 18, o Recorrido, nessa comunicação de 27.12.2021, afirmou que não se sujeitaria a qualquer outra auto-revista, enquanto não visse esclarecidas as suas dúvidas, afirmação essa que não cumpriu, uma vez que após essa data submeteu-se entre 28.12.2021 e 31.01.2022; bem assim como nos demais dias de trabalho que não lhe foram imputados no processo disciplinar.
44. Por conseguinte, sob nenhum ponto de vista pode o Tribunal a quo considerar que existiu da parte do Trabalhador uma válida recusa quanto ao cumprimento das regras inerentes ao regulamento 1/2019.
45. O que existiu, isso sim, foi um incumprimento que o Recorrido que ao fim de dezasseis anos decidiu recusar-se a cumprir um procedimento ao qual nunca se opôs.
46. Passando então à análise dos pontos (i) e (iii) respeitante aos fundamentos invocados pelo Tribunal a quo para concluir pela ineficácia do regulamento, se por um lado já vimos – sob o capítulo da impugnação da matéria de facto – que a Recorrente reuniu com os trabalhadores a quem deu conhecimento do Regulamento que ia aplicar,
47. A verdade é que, mesmo que tal não tivesse ocorrido, importa atentar se, de facto, era impositivo que tal sucedesse quando se trata de um regulamento que, antes do início da sua vigência, esteve ao dispor dos trabalhadores para se poderem opor ao mesmo.
48. Considerou o Tribunal a quo que o prazo de que os trabalhadores dispõe, para se opor ao regulamento, nos termos do n.º 2 do artigo 104º do CT, não constitui o dever de partilhar aquelas regras com os trabalhadores, olvidando por exemplo o que se diz sobre esta norma no acórdão do TRL de 17.05.2023 processo 19347/21.6T8LSB.L1-
4. Vejamos,
49. Em momento algum o legislador exige a aceitação expressa dos trabalhadores como requisito para aplicação de um regulamento emanado pelo empregador.
50. Ora, considerando que o direito de oposição dos trabalhadores à vigência do regulamento é estendido no tempo impede a vigência do mesmo e, após a publicação do regulamento os trabalhadores ficam na posse de toda a informação atinente a esse procedimento; dos seus direitos e deveres no que a tais regras diz respeito e, assim, com todas as condições e tempo disponível para exercer o seu direito de oposição ao regulamento e vedar a sua vigência,
51. Não há qualquer razão objetiva que justifique e imponha a necessidade de qualquer negociação da entidade patronal com os trabalhadores, prévia à publicação do regulamento nos termos do artigo 104º do Código do Trabalho, nem o legislador a impõe.
52. O tribunal a quo faz uma errada aplicação do Código do Trabalho e, mais que isso, invoca a Diretiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2002, a qual em momento algum impõe que a disponibilização dos elementos por parte do empregador tenha de ser prévia à publicação do regulamento.
53. Voltando ao art. 99.º do CT já referido, o empregador dispõe da prerrogativa de poder elaborar regulamento interno de empresa sobre organização e disciplina do trabalho, sendo o caso dos autos uma dessas situações.
54. A norma é inequívoca: a aplicação de um determinado regulamento apenas deve a sua eficácia a um só elemento: a publicidade.
55. O facto de eventualmente não ter sido ouvido algum dos intervenientes mencionados no n.º 2 do art. 99.º do CT – nomeadamente, comissão de trabalhadores, comissões intersindicais, comissões sindicais ou delegados sindicais – em não seria motivo para ferir a eficácia de um regulamento que tenha sido devidamente publicitado.
56. Admitir o contrário seria atribuir àquelas entidades um poder de bloqueio e de ingerência no poder de direção do empregador ou impedir que uma determinada empresa, onde não existisse qualquer forma de manifestação coletiva, não pudesse simplesmente elaborar regulamentos.
57. A consequência da não audição tem, quando muito, uma consequência meramente contraordenacional.
58. Por tudo isto, a invocação da Diretiva anteriormente referida por parte do Tribunal a quo não tem qualquer efeito quanto à eficácia do regulamento. Aliás,
59. Refere o Tribunal a quo que a Diretiva de 2002, foi transposta para o Código do Trabalho pela lei 7/2009.
60. Ora, com o devido e guardado respeito, se tal diploma foi acolhido, não cabe, pois, ao Tribunal conferir àquele uma aplicação autónoma do Código do Trabalho, chegando até ao ponto de afirmar que “Quanto aos parâmetros ou densidade material de tal direito de consulta ou audição, sobre o qual o art.º 99º nada particulariza, entende- se que os mesmos não podem ser vistos apenas à luz do art.º 425º do Código do Trabalho e com respeito às matérias neste mencionadas como de consulta obrigatória.”.
61. É que o Tribunal a quo quis-se substituir ao legislador, determinando requisitos que a própria lei não impõe e aplicando um raciocínio que esvazia por completo o objeto do que está preceituado tanto no artigo 99º do Código do Trabalho, como no 104º do mesmo diploma.
62. Mal andou e anda o Tribunal a quo ao desconsiderar a relevância da publicação do regulamento ao abrigo do artigo 104º n.º 2 do Código do Trabalho, no que à possibilidade de oposição e análise do Trabalhador diz respeito.
Aqui chegados,
63. O Recorrido, tal como os demais trabalhadores, tinham conhecimento do procedimento de auto-revista; aceitaram-no; foi-lhes disponibilizado o Regulamento e, em momento algum exerceram o seu direito de oposição, como lhe era admissível.
Por conseguinte,
64. Não se pode admitir a conclusão pela ineficácia ou inadmissibilidade da aplicação do regulamento, como fez o Tribunal a quo.
Dito isto
65. Quanto à justa causa de despedimento e da reincidência disciplinar do recorrido que decorre dos factos provados 30, 31 e 32,
66. O Tribunal a quo, na sequência da conclusão de que o Recorrido não estava obrigado a cumprir o procedimento de auto-revista, considerou a sanção provada sob o ponto 30 como abusiva. Ora,
67. Não relevou o Tribunal a quo os factos provados 2, 3, 5, 16 e 17, no âmbito dos quais resulta que estávamos perante um procedimento com mais de 18 (dezoito) anos de vigência, pelo menos, e com o qual o Recorrido sempre conviveu e nunca reclamou.
68. Não é, pois, verdade que se verifique o preenchimento da alínea b) do artigo 331º do Código do Trabalho.
69. E muito menos se pode admitir a conclusão do Tribunal a quo de que tal sanção é abusiva pela verificação da presunção prevista no artigo 331º n.º 2 do mesmo diploma, atendo o facto provado sob o ponto 30 bem como na matéria considerada assente sob a alínea G) no despacho saneador e do processo disciplinar anexo ao articulado motivador do despedimento como doc. 1, do qual é imperioso concluir que a Recorrente afastou a presunção prevista no n.º2 do artigo 331º, no que a eventual sanção abusiva diz respeito.
70. Não há qualquer caráter abusivo da sanção disciplinar.
71. É inegável a verificação da justa causa no caso sub júdice.
72. O Recorrido é reincidente na violação dos seus deveres, tendo, como vimos, três sanções disciplinar anteriores (factos provados 30, 31 e 32);
73. A conduta que motivou o despedimento, foi a mesma que motivo ou processo disciplinar exatamente anterior ao despedimento, cuja sanção lhe foi aplicada em setembro de 2022 (facto provado 30);
74. A Recorrente foi manifestamente tolerante com o Recorrido.
75. O Recorrido, por outro lado, quis ser despedido e, para tanto, não teve pejo em violar uma regra da Recorrente que, se não fosse observada, tornaria a gestão da atividade do entreposto inviável.
76. Estamos, por isso, perante uma conduta de grave impacto para a atividade da Recorrente que, por tal motivo, jamais se poderá permitir ou tolerar, no quadro que manda atender o número 3 do artigo 351º do Código do Trabalho. (veja-se Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13 de janeiro de 2010, processo n.º2277/03.0TTPRT.S1 bem como Ac. do TRP, datado de 27 de abril de 2020, processo n.º 256/19.5T8VFR.P1 e Acórdão do TRP, datado de 10 de setembro de 2018, processo n.º 2673/15.0T8MAI.P1).
Aqui chegados,
77. Face aos factos provados, dever-se-á considerar que o comportamento do Recorrido consubstanciou uma violação muito grave, intolerável e séria dos deveres de respeito, urbanidade, probidade e obediência, violando as alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho,
78. Integrando ainda os mesmos factos justa causa para o despedimento que veio a ocorrer, ao abrigo do disposto no artigo 351.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e d) do Código do Trabalho.
Nestes termos, requer a Vossas Excelências se dignem julgar procedente por provado o presente recurso e, em consequência, julguem nula a decisão proferida pelo Tribunal a quo, nos termos no disposto no artigo 77º do CPT, ex vi artigos 615º n.º 1 alínea d) do CPC
Caso assim não se entenda, o que apenas por mera e estrita cautela de patrocínio se pondera,
Requer-se a Vossas Excelências se dignem julgar procedente por provado o presente recurso e, em consequência, revogar a Sentença proferida, reconhecer a licitude do despedimento proferido pela Recorrente, com todas as legais consequências.
Assim se fará a mais adequada,
JUSTIÇA
E.D.”
O Autor contra-alegou e requereu a ampliação do âmbito do recurso apresentando as seguintes conclusões:
“17. Deve manter-se a decisão de declarar a ilicitude do despedimento de AA por XX, S.A. e em consequência condenar esta a:
a) Considerar o despedimento ilícito e reintegrar o trabalhador no seu posto de trabalho sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, concordando com o Tribunal a quo que entendeu que o Trabalhador não desobedeceu à entidade patronal, porque a auto revista é uma medida desproporcionada e violadora da vida privada do Trabalhador;
b) Condenar a entidade empregadora a pagar ao trabalhador as retribuições e subsídios que o mesmo deixou de auferir desde 14-03-2023 e até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, deduzidas das importâncias que o trabalhador tenha auferido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento e do subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador entre a data do despedimento e a data do trânsito em julgado, devendo a empregadora entregar essa quantia à segurança social;
c) Não considerar os factos e argumentos de direito da Alegante;
d) Aceitar a presente resposta com o pedido de aumento da matéria do recurso, prevista no nº 2 do artigo 636º do CT;
e) Condenar a Alegante, no que se refere ao abuso de direito e, consequentemente, condená-la a alterar ou eliminar tal procedimento de revista no local de trabalho do Autor ou a solicitar o consentimento dos trabalhadores para o efeito;
f) Condenar a Alegante em litigância de má-fé, por uso indevido dos autos para evitar aplicar a lei, nomeadamente o disposto no artigo 19.º - A da Lei n.º 34/2013 de 16 de maio;
g) Julgar procedente o direito à indemnização por parte do trabalhador contra a empregadora;
h) Condenar a Ré em práticas que consubstanciam abuso de direito
i) Condenar a Ré as custas da ação e reconvenção”
A Ré contra-alegou à ampliação do objecto do recurso e concluiu nos seguintes termos:
“1. Deve improceder a ampliação do objeto de recurso, por manifesta falta de fundamento fáctico e legal, mas também porque deverá proceder, por provado, o recurso da Recorrente,
2. Desde logo e no que ao abuso de direito diz respeito, o Recorrido formula, a esse propósito, pedidos completamente desconexos, como seja o de condenar a Recorrente a solicitar autorização dos trabalhadores para a aplicação de um procedimento, algo que não tem qualquer sustentação legal nem, aliás, foi sequer defendido na sentença a quo.
3. Algo que naturalmente se compreende, pois que, se a entidade patronal necessitasse de autorização dos trabalhadores para regular a sua atividade, isso seria a subversão da relação laboral contratual, cuja direção compete, exclusivamente, à entidade empregadora.
4. O Recorrido parece confundir a “consulta” com o “poder de decisão”. Por fim,
5. No que à litigância de má-fé diz respeito, é, isso sim, um instituto que assenta na perfeição à atuação do Recorrido nos presentes autos, que tanto se diz sem resposta da Recorrente, para logo depois se invocar como “resistente”.
Nestes termos, deve, pois, improceder, por não provados, os argumentos invocados na ampliação do objeto de recurso, julgando-se o recurso de Apelação apresentado pela Recorrente integralmente procedente, por provado, com as legais consequência.
Assim se fará a mais adequada,
JUSTIÇA
E.D”
O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguida nulidade da sentença concluindo que não se verifica.
Foi proferido despacho que admitiu o recurso e a ampliação do seu âmbito.
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
A Recorrente respondeu não ser de acolher o vertido no Parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º nº 2 do CPC).
No presente recurso foram submetidas à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:
- Se a sentença é nula.
- Se deve ser alterada a decisão que recaiu sobre a matéria de facto.
- Se existe justa causa de despedimento conhecendo-se, nesta sede, das sub questões relativas à ineficácia do Regulamento 1/2019 e do excesso e desproporcionalidade da auto revista.
-Se a sanção aplicada em Setembro de 2022 não é abusiva.
Da ampliação do âmbito do recurso:
- Do alegado abuso do direito
-Da alegada litigância de má fé.
Fundamentação de facto
A sentença considerou provados os seguintes factos:
1. A empregadora tem por objecto social o comércio retalhista e armazenista, nomeadamente a exploração de centros comerciais, grandes armazéns, charcutarias, confeitarias, cafés, restaurantes, padarias, talhos, relojoarias e ourivesarias e, ainda as indústrias de confeitaria, padaria, charcutaria e outras pequenas indústrias e a distribuição em livre serviço, a importação de todos os bens destinados ao comércio retalhista. A sociedade pode ainda importar e comercializar medicamentos não sujeitos a receita médica, e a título acessório, prestar serviços na área de comércio retalhista e grossista a outros estabelecimentos de livre serviço, bem ainda como a promoção, desenvolvimento e gestão imobiliária, compra e venda de imóveis próprios ou alheios e revenda dos adquiridos para esse fim e arrendamento de imóveis.
2. O trabalhador foi admitido ao serviço da empregadora em 15-06-2005, tendo em 2022 a categoria profissional de Operador de Armazém A.
3. O trabalhador sempre prestou a sua actividade ao serviço da empregadora no entreposto desta em ....
4. Em 2023 o trabalhador auferia uma remuneração mensal base de 860,00€ acrescida de prestações de montante variável em função da concreta prestação realizada.
5. No referido local a empregadora tem, desde sempre, implementados sistemas de videovigilância e sistemas de controle que, tendo variado o seu concreto modo de execução ao longo do tempo, visam obstar à saída de bens que são manuseados nas suas instalações.
6. A empregadora elaborou e aprovou o Regulamento n.º 1/2019 sobre Controlo de Circulação de Pessoas e Bens, datado de 2019, visando implementar procedimentos de controlo e circulação de pessoas e bens nos entrepostos que gere.
7. O referido Regulamento instituiu um sistema de auto-revista em que cerca de 15% dos trabalhadores, aleatoriamente seleccionados, ao saírem das instalações são solicitados a demonstrar que, nos seus bolsos ou vestuário, nos seus sacos ou mochilas, não transportavam qualquer mercadoria que se encontra no interior do entreposto.
8. Não foi efectuada qualquer consulta ou negociação com trabalhadores, ou representantes destes, previamente e com vista à sua elaboração.
9. O mesmo foi afixado em placard existente em espaço ao qual acedem todos os trabalhadores e que é usado para transmissão de informações aos mesmos.
10. Quando da sua afixação foi concedido um prazo de trinta dias para os trabalhadores se pronunciarem, após que seria implementado.
11. Em 2022 a empregadora tinha implementado na principal portaria de saída de trabalhadores do entreposto de ... um sistema que funcionava através do accionamento de um botão junto aos torniquetes de saída.
12. Cada trabalhador, ao passar nos mesmos, devia accionar o botão que, aleatoriamente, ou acendia uma luz verde ou uma luz vermelha.
13. Se a luz fosse verde o trabalhador saia das instalações.
14. Se a luz fosse vermelha era solicitado, pelos seguranças, de empresa contratada pela empregadora, que se encontravam na dita portaria, que abrisse os sacos ou mochilas transportadas e exibisse o conteúdo de bolsos com vista a verificar se era transportado algum bem dos que a empregadora tinha nas suas instalações.
15. Essa exibição pode ter lugar no local ou em sala existente junto à portaria de saída.
16.No local junto aos torniquetes existe indicação de controle por revista. (redacção alterada conforme decisão infra)
17. O procedimento de controle é conhecido de todos os trabalhadores da empregadora e por estes observado.
18. Em 27-12-2021 o trabalhador remeteu à empregadora correio electrónico no qual, entre outras questões, enunciava um conjunto de apreensões que o sistema de auto-revista lhe suscitava e informava que após o envio da mensagem não se sujeitaria a mais nenhuma auto-revista até que lhe fossem esclarecidas as questões que colocava.
19. Desde então o trabalhador deixou de accionar o botão que determinava o accionamento de luz verde ou vermelha quando passava nos torniquetes.
20. Recusando, quando interpelado pelos seguranças ou solicitado por colegas, a fazê-lo e não aguardando na fila de saída como os demais trabalhadores.
21. Como sucedeu em 12-11-2022 pelas 17h12m, em 18-11-2022 pelas 17h14m, em 22-11-2022 pelas 17h12m e em 24-11-2022 pelas 17h30m em que saiu do entreposto da ... sem se submeter ao referido sistema de controle aleatório.
22. Na sequência da participação efectuada pelos seguranças, a empregadora, em 15-12-2022, comunicou ao trabalhador a instauração de procedimento disciplinar com vista ao seu despedimento com justa causa enviando-lhe nota de culpa e indicação que podia consultar o processo e responder à mesma no prazo de dez dias.
23. Da nota de culpa a empregadora fez constar os seguintes factos:
“4. Todos os colaboradores ao serviço da Arguente no entreposto, incluindo o aqui arguido, estão sujeitos a auto-revista aleatória à saída das instalações da empresa.
5. Tal sistema aleatório de segurança visa prevenir o furto de artigos armazenados no entreposto, nomeadamente os de pequena dimensão.
6. Tal sistema aleatório de auto-revista implementado pela Arguente obriga os colaboradores, à saída, a acionar o botão, sendo posteriormente emitido um sinal verde ou encarnado.
7. No caso do sinal verde, o colaborador pode seguir o seu caminho e sair das instalações; em caso de sinal encarnado, o colaborador deve fazer a auto-revista imediata.
8. Tal auto-revista consiste no facto do colaborador mostrar o que traz nas mãos; esvaziar os bolsos da farda de trabalho e mostrar que não traz nenhum artigo consigo.
o faz parte dos procedimentos internos da Arguente.
9. O arguido, tal como todos colaboradores, é conhecedor de tal procedimento,
Aliás,
10. Em setembro de 2022 e na conclusão de um processo que lhe foi movido por factos iguais aos retratados na presente nota de culpa, o arguido foi sancionado com uma suspensão da prestação de trabalho por 15 (quinze) dias, com perda de antiguidade e de retribuição.
Posto isto,
Factos:
11. O arguido não tem cumprido a obrigação de proceder ao acionamento do sistema aleatório de segurança aquando da saída das instalações.
12. Além de se recusar a cumprir tal procedimento, o arguido nem sequer aguarda na fila de saída como está obrigado e como o fazem os seus colegas de trabalho.
Concretamente,
13. Nos dias e horas que a seguir se descrevem, o arguido saiu do entreposto sem passar pelo sistema de controlo aleatório:
- dia 12.11.2022 pelas 17:12h;
- dia 18.11.2022 pelas 17:14h;
- dia 22.11.2022 pelas 17:12h e;
- dia 24.11.2022 pelas 17:13h
14. O arguido já foi abordado pela equipa de segurança e pelos colegas para o seu comportamento, bem como já foi disciplinarmente sancionado, no entanto, continua a mantê-lo, recusando-se a cumprir os procedimentos internos da Arguente.
Da reincidência:
15. Como já se disse, o arguido é reincidente na violação dos seus deveres.
16. Além da sanção disciplinar de setembro de 2022 por um comportamento igual ao retratado na presente nota de culpa,
17. Também em 2017 e 2020 na sequência de processos disciplinar que lhe foram instaurados, o arguido foi sancionado com uma suspensão da prestação de trabalho por 8 (oito) dias e com a perda de 1 (um) dia de férias respectivamente”.
24. Factos que considerou configurarem violação dos deveres de respeito, urbanidade, probidade e obediência previstos no art.º 128º al. a) e e) do Código do Trabalho e que o arguido praticou de forma livre e consciente.
25. O trabalhador respondeu à nota de culpa em 17-01-2023, requerendo diligências e indicando testemunhas.
26. As testemunhas foram inquiridas em 25-01-2023, não tendo comparecido a testemunha cuja inquirição fora reagendada para 17-02- 2023.
27. Foram juntos documentos que o trabalhador havia requerido.
28. Em 24-02-2023 foi elaborado relatório final no qual foram considerados provados os factos constantes da nota de culpa.
29. Em 27-02-2023 a empregadora, sustentando-se no relatório final que anexou, comunicou ao trabalhador a decisão de proceder ao seu despedimento com justa causa, tomando o mesmo conhecimento nessa data.
30. Em Setembro de 2022 o trabalhador, por não ter accionado o sistema aleatório de auto-revista quando saiu do entreposto nos dias 1 e 26 de Fevereiro, 26 de Abril, 3 de Junho e 4, 7, 14 e 21 de Julho de 2022, foi sancionado com pena de suspensão por quinze dias.
31. O trabalhador fora objecto de um procedimento disciplinar intentado pela empregadora em 26-07-2017 no qual lhe era imputada recusa a ordem de trabalho em operação de temperatura controlada e lhe foi aplicada uma sanção de oito dias de suspensão com perda de retribuição e antiguidade.
32. Foi ainda objecto de um outro procedimento intentado em 25-08-2020 no qual lhe era imputado incumprimento na utilização de equipamentos de protecção covid-19 e no qual lhe foi aplicada sanção de perda de um dia de férias.
33. Em 22-03-2017 o trabalhador apresentou junto da empregadora exposição na qual relatava factos que considerava serem assédio moral e discriminação com reflexo, para além do mais, na sua progressão profissional.
34. O trabalhador, em 2020, queixou-se junto da empregadora que a utilização de viseiras/óculos tinha consequências para a sua saúde, tendo sido remetido para consulta da medicina do trabalho. (redacção alterada conforme decisão infra)
35. Em Dezembro de 2021 o trabalhador, retomando a exposição efectuada em 2017, apresentou junto da empregadora exposições em que referia ser objecto de assédio moral, no qual enquadra os procedimentos disciplinares que lhe haviam sido movidos e discriminação, seja em relação ao grau académico que obteve, enquanto trabalhador estudante, seja pela sua origem africana.
36. A empregadora iniciou procedimento de averiguações que concluiu pela falta de fundamento do alegado.
37. O trabalhador foi formador de outros trabalhadores.
38. O trabalhador tem registos de avaliação de 4/5 pelos seus superiores nas avaliações anuais que é objecto.
39. É considerado pelos seus superiores um trabalhador competente e cuidadoso na execução das tarefas que lhe são atribuídas, mas denotando inflexibilidade perante os outros trabalhadores e chefias, revelando-se crítico do trabalho destes.
40. O trabalhador apresentou junto da ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho) pedido de acção inspectiva por assédio e discriminação racial em 3-10-2017.
41. Em Fevereiro de 2022 apresentava sintomatologia compatível com perturbação de ansiedade e insónia.
42. O trabalhador vive obcecado com o procedimento disciplinar movido pela empregadora que reputa de infundado e injusto, tal como reputa os que anteriormente lhe foram movidos.
43. Pelo menos em 27 de Dezembro de 2021, o Regulamento 1/2019 estava publicitado. (facto aditado conforme decisão infra)
44.O Regulamento 1/2019 tem a data de 18 de Novembro de 2019. (facto aditado conforme decisão infra)
*
A sentença considerou que não se provou:
1. Quando o autor se queixou das consequências para a sua saúde de viseiras/óculos a empregadora nada fez para averiguar tais consequências.
2. O trabalhador apenas teve conhecimento do Regulamento 1/2019 em meados de Dezembro de 2021.
3. Foi nessa altura que o mesmo foi afixado no placard de informações da empregadora.
4. O trabalhador apresentou junto da ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho) pedido de acção inspectiva por assédio e discriminação racial em 12-01-2013.
5. A instauração de procedimentos disciplinares pela empregadora tem sido a causa de sofrimento e stress para o trabalhador.
6. O mesmo vive triste e deprimido.
7. Os procedimentos disciplinares deixaram o trabalhador triste e deprimido.
8. O trabalhador sofre de hidradenite supurativa e a mesma é agravada pela conduta da empregadora para consigo.
9. A BB foi promovida por ser caucasiana.
10. Quais as tarefas que esta atribui ao trabalhador enquanto sua superiora hierárquica.
11. Quando é que o trabalhador foi formador ou que o mesmo tenha sido convidado em 2019 para integrar equipa de formadores/treinadores no domínio da formação continua.
12. Com a apresentação da denúncia em Dezembro de 2020 o trabalhador deixou de integrar as actividades de formação dos demais colaboradores.
13. Nas outras saídas do entreposto da empregadora em ... não é efectuado controle de saídas com auto-revista como na entrada/saída principal.
14. Nos demais entrepostos da empregadora não são aplicados mecanismos de controle de saídas com auto-revistas.
Fundamentação de direito
Comecemos por apreciar se a sentença é nula.
A este propósito invoca a Recorrente, em suma, que, em momento algum, o Trabalhador suscitou a violação dos direitos de personalidade no que se refere ao Regulamento 1/2019, nem tão pouco da auto-revista que aquele visava, que, em momento algum, o Autor suscita a validade do Regulamento por outro motivo que não seja relacionado com a sua publicação, conhecimento e alegada falta de consentimento ou acordo da sua parte e tanto assim é que os temas de prova fixados pelo Tribunal a quo, em momento algum, se relacionam minimamente com esse tópico e que entendeu o Tribunal a quo avaliar a legitimidade das regras descritas no Regulamento 1/2019, substituindo-se à Entidade Empregadora e, mais do que isso, fazendo um juízo sobre uma questão que não tinha sido suscitada nos autos, como aliás é evidência o resumo que se faz no relatório da Sentença, excedendo, assim, as questões que lhe cabia conhecer, incorrendo a sentença em nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1 al.d) do CPC.
Sobre a arguida nulidade, pronunciou-se o Tribunal a quo nos seguintes termos:
“Nas suas alegações de recurso a empregadora sustenta a verificação de nulidade da decisão proferida, ora impugnada, por o tribunal se ter pronunciado sobre a regularidade e validade do Regulamento, o que determinou que tivesse conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento
Salvo melhor opinião, não se verifica a arguida nulidade.
O trabalhador era acusado de incumprimento/recusa de procedimentos instituídos pela empregadora em Regulamento desta.
A defesa do trabalhador colocou em causa a validade/conformidade legal do dito Regulamento para o que esgrimiu a argumentação de direito que bem entendeu.
Entende o tribunal que colocada em causa a validade do dito Regulamento se não encontra condicionado à argumentação de direito do trabalhador, motivo pelo qual apreciou a validade do dito Regulamento – do qual emanava a ordem cujo incumprimento é imputada ao trabalhador – nos termos em que o fez.”
Vejamos:
O artigo 615.º do CPC, aplicável ao caso por força do artigo 77.º do CPT, enuncia, de modo taxativo, as causas de nulidade da sentença.
Nos termos do n.º 1, al.d) do referido artigo, “é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Esta norma está em estreita relação com a 2.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC que estatui que o juiz “ não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Assim, como escrevem os Professores José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre no “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, Almedina, pag. 737 “ Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.608.º-2) é nula a sentença em que o faça”.
E como elucida o Professor Alberto dos Reis no “Código de Processo Civil anotado”, Volume V, (Reimpressão), Coimbra Editora, LIM, pags.143 e 144: “O juiz conheceu na sentença, de questão de que não podia tomar conhecimento. Quando isso suceder, a sentença é nula.(…).Proíbe-se aqui ao juiz que se ocupe de questões que as partes não tenham suscitado, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso. Portanto, a nulidade prevista na 2.ª parte do n.º 4 do art.668.º desenha-se assim: A sentença conheceu de questão que nenhuma das partes submeteu à apreciação do juiz.
Mas não existe nulidade, se por lei o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer ex officio da questão respectiva.”
Regressando ao caso em análise:
Na contestação ao articulado motivador do despedimento, o Autor invocou que a Ré recorre à segurança privada para efectuar revistas aos seus trabalhadores, que sem informar nem consultar os seus trabalhadores, ou os seus representantes, fez entrar em vigor o Regulamento n.º 1/2019, através do qual a Ré definiu que, nas entradas e saídas de serviço, seriam efetuadas “auto revistas“, que para contornar o artigo 99.º do CT a Ré terá aplicado ao Regulamento Interno o previsto no artigo 104.º do CT, mas que o referido Regulamento nunca foi divulgado pela Ré aos trabalhadores, que teve conhecimento deste Regulamento interno quando, em meados de Dezembro de 2021, ele surgiu discretamente afixado no quadro legal informativo nas instalações da Ré, sem qualquer carimbo ou assinatura, e sem qualquer divulgação, que o Regulamento está datado de 18.11.2019, mas apenas em meados de Dezembro de 2021 foi afixado no quadro legal informativo, que, no dia 27 de Dezembro de 2021, o Autor enviou um e-mail à Ré expondo os seus receios relativamente às revistas, solicitando uma solução por parte da Ré, mas esta não lhe respondeu, que as revistas efectuadas pela Ré não estão em conformidade com o artigo 19.º-A da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, que, no local onde as revistas são efectuadas no entreposto, não existe nenhum aviso da possibilidade de controlo através de revista, o CCT publicado no BTE n.º 22, de 15 de Junho de 2008, cuja última actualização foi publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 36, 29/9/2022, não faz qualquer referência a revistas, pelo que o trabalhador teria, necessariamente, que prestar o seu consentimento, o que nunca fez e que é legítima a recusa do Autor em submeter-se às revistas.
E nos artigos 42.º e 43.º da contestação ao articulado motivador do despedimento o Autor alegou:
“42.º Nos termos do disposto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, “ todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão … “ ,
43.º O A. invoca o Direito de Resistência para se ter oposto ás revistas que lhe queriam ser impostas pela R.;”
E nos artigos 64.º, 65.º e 66.º da contestação ao articulado motivador do despedimento aperfeiçoada o Autor alegou igualmente:
“64.º Nos termos do disposto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão … “.
65.º o que determina a ilegalidade e mesmo a inconstitucionalidade da pretensão da Ré em obrigar o Autor a submeter-se às revistas impostas mo mencionado regulamento, o qual contende com direitos de personalidade do Autor, v.g. direito à reserva da intimidade da vida privada (art.º 21º. e CRP).
66.º O Autor invoca o Direito de Resistência para se ter oposto às revistas que a Ré lhe queria impor (art.º 21.º da CRP).”
A sentença recorrida, por seu turno, pronunciou-se sobre o Regulamento1/2019 e a conduta do trabalhador nos seguintes termos:
“(…).
Apurou-se que, no local onde o trabalhador sempre desempenhou as suas funções, a empregadora mantem implementados sistemas de videovigilância e de sistema de controle que visa obstar à saída de bens manuseados nas suas instalações.
Tendo os sistemas de controle variado ao longo do tempo, em 2022 encontrava-se em execução um sistema estabelecido pela empregadora no Regulamento 1/2019, sobre Controlo de Circulação de Pessoas e Bens, datado de 2019, que instituiu um sistema de auto-revista em que cerca de 15% dos trabalhadores, aleatoriamente seleccionados, ao saírem das instalações são solicitados a demostrar que, nos seus bolsos ou vestuário, nos seus sacos ou mochilas, não transportavam qualquer mercadoria que se encontra no interior do entreposto.
Na principal portaria de saída de trabalhadores do entreposto de ... em que o trabalhador prestava funções, tal sistema funcionava através do accionamento de um botão junto aos torniquetes de saída da seguinte forma:
- Cada trabalhador, ao passar nos torniquetes, devia accionar o botão que, aleatoriamente, ou acendia uma luz verde ou uma luz vermelha.
-Se a luz fosse verde o trabalhador saia das instalações.
-Se a luz fosse vermelha era solicitado, pelos seguranças, de empresa contratada pela empregadora, que se encontravam na dita portaria, que abrisse os sacos ou mochilas transportadas e exibisse o conteúdo de bolsos com vista a verificar se era transportado algum bem dos que a empregadora tinha nas suas instalações.
Essa exibição podia ter lugar no local ou em sala existente junto à portaria de saída.
Os factos imputados ao trabalhador e apurados nos autos traduziram em, nos dias 12, 18, 22 e 24 de Novembro de 2022, ao sair das instalações não se ter submetido ao referido controle aleatório por accionamento do botão.
Objectivamente a conduta contraria o determinado pela empregadora no dito Regulamento.
O trabalhador sustenta que não deu o seu assentimento ao mesmo, o que comunicou à empregadora, reputando o procedimento de ilegal.
Vejamos
Através do poder de direcção do empregador, consequência da relação de contrato de trabalho estabelecida, a mesma determina regras genéricas de organização e disciplina no trabalho – cfr art.º 97º do Código do Trabalho.
Tais regras são estabelecidas unilateralmente pela empregadora, podendo as mesmas, como foi o caso, serem vertidas num Regulamento interno.
Sobre este dispõe o art.º 99º do Código do Trabalho que “1 - O empregador pode elaborar regulamento interno de empresa sobre organização e disciplina do trabalho. 2 - Na elaboração do regulamento interno de empresa é ouvida a comissão de trabalhadores ou, na sua falta, as comissões intersindicais, as comissões sindicais ou os delegados sindicais. 3 - O regulamento interno produz efeitos após a publicitação do respectivo conteúdo, designadamente através de afixação na sede da empresa e nos locais de trabalho, de modo a possibilitar o seu pleno conhecimento, a todo o tempo, pelos trabalhadores. 4 - A elaboração de regulamento interno de empresa sobre determinadas matérias pode ser tornada obrigatória por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho negocial. 5 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 2 e 3.”.
Na elaboração e implementação do Regulamento 1/2019 a empregadora não efectuou qualquer consulta ou negociação com trabalhadores, ou representantes destes, previamente e com vista à sua elaboração.
O mesmo foi afixado em placard existente em espaço ao qual acedem todos os trabalhadores e que é usado para transmissão de informações aos mesmos, sendo concedido um prazo de trinta dias para os trabalhadores se pronunciarem, após que seria implementado.
Se bem se entende a leitura da empregadora a mesma considera, ao abrigo do disposto no art.º 104º nº 2 do Código do Trabalho, que não tendo sido deduzida oposição os trabalhadores aceitaram o dito Regulamento.
Por sua vez o trabalhador considera que se opôs, válida e tempestivamente, ao mesmo através de comunicação que enviou em Dezembro de 2021.
Sucede que é desconhecida a data em que o Regulamento foi afixado – data não alegada pela empregadora e sendo certo que não se apurou a alegada pelo trabalhador – pelo que, com respeito por distinta leitura, se entende que nenhuma dessas leituras (aceitação ou oposição tempestiva) pode ser acompanhada.
De qualquer modo, considerando que não foi efectuada qualquer consulta ou negociação com trabalhadores, ou representantes destes, previamente e com vista à sua elaboração, configurando-se o mesmo como uma declaração unilateral da empregadora sobre a disciplina dos trabalhadores no local de trabalho, entende-se que a validade do mesmo se mostra afectada por essa falta de consulta.
A audição prevista no nº 2 do art.º 99º não visa qualquer controle da legalidade dos actos regulamentares da empregadora, mas sim o exercício de um direito de consulta dos trabalhadores por via dos efeitos negativos que, directa ou indirectamente, possam resultar para os interesses dos trabalhadores – vd neste sentido Monteiro Fernandes, em loc. cit a pág. 362.
Quanto aos parâmetros ou densidade material de tal direito de consulta ou audição, sobre o qual o art.º 99º nada particulariza, entende-se que os mesmos não podem ser vistos apenas à luz do art.º 425º do Código do Trabalho e com respeito às matérias neste mencionadas como de consulta obrigatória.
É que a “questão tem e ter em consideração a Diretiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2002, que estabelece um quadro legal relativo à informação e à consulta dos trabalhadores na Comunidade Europeia, que foi transposta pelo Código do Trabalho [artigo 2º, al m) da Lei 7/2009, de 12 de fevereiro]. Nos termos do artigo 4º, nº 2, al c) da Diretiva, a informação e consulta incluem “a informação e a consulta sobre as decisões susceptíveis de desencadear mudanças substanciais a nível da organização do trabalho ou dos contratos de trabalho”. Contendo o regulamento interno uma decisão sobre a organização e disciplina do trabalho, está sujeito às regras de informação e consulta. Logo, quando o Código do Trabalho fala em audição temos de interpretar a expressão à luz do direito europeu aplicável, ou seja, de que os trabalhadores têm direito à informação – leia-se, à “transmissão de dados por parte do empregador aos representantes dos trabalhadores, a fim de que estes possam tomar conhecimento do assunto tratado e analisá-lo” – e a consulta – isto é, à “ troca de opiniões e o estabelecimento de um diálogo entre os representantes dos trabalhadores e o empregador” [artigo 2º, al f) e g) da Diretiva], a concretizar nos termos do artigo 4º, nos 3 e 4 da Directiva. Daqui resulta que os trabalhadores têm mais do que um mero direito de emitir parecer sobre o regulamento interno: eles têm o direito a que o empregador lhes forneça os dados necessários à cabal análise da situação e uma participação ativa na elaboração do regulamento interno que implica, nomeadamente, que as opiniões e sugestões incluídas no seu parecer, ainda que não vinculativas, sejam tomadas em consideração na decisão final do empregador” – Ana Lambelho, em O poder regulamentar do empregador, publicado em Prontuário de Direito do Trabalho, ano 2020 – I, a pág. 235 e ss.
A desconsideração na elaboração de regulamento interno das condições fixadas na Directiva não pode deixar de conduzir à invalidade ou ineficácia do regulamento e consequentemente “não lhe poder ser reconhecido o valor de proposta contratual, relativamente à qual o silêncio do trabalhador declaratário desencadeie os efeitos estipulados pelo art.º 104º, nº 2, do CT” – Liberal Fernandes em Elaboração do regulamento interno à luz do Código do Trabalho e da Directiva nº 2002/14, em Questões Laborais, nº 54, pág. 48.
Afastada, nos termos expostos, a validade do Regulamento 1/2019 entende-se que o facto de o facto de o mesmo ser, quanto ao concreto procedimento de auto-revista, observado por todos os trabalhadores, ou de o ter sido pelo trabalhador até final de 2021 – o incumprimento inicia-se em 2022 e após comunicação do mesmo – não se mostra bastante para a consideração do procedimento como uma regular e válida ordem ou determinação da empregadora à margem de qualquer disposição regulamentar.
Não se trata de negar o direito da empregadora a diligenciar pela tutela dos seus bens, mas sim da proporcionalidade e adequação do concreto procedimento de auto-revista, cujo incumprimento é imputado ao trabalhador.
É que, independentemente da designação de “auto-revista”, ou seja, de a mesma ser efectuada pelo próprio trabalhador, e não por um qualquer profissional de segurança, o facto de a mesma envolver a exibição do conteúdo de sacos ou mochilas que o trabalhador transporta ou dos bolsos do seu vestuário não pode deixar de ser considerada, vista a normal afectação funcional de sacos, mochilas ou bolso, como uma medida que envolve o acesso a aspectos ou conteúdos privados do trabalhador.
O art.º 16º do Código do Trabalho estabelece que “1 - O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada. 2 - O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas.”.
Os aspectos mencionados no nº 2 são meramente exemplificativos, podendo compreender outros aspectos relativos a opções ou hábitos de vidas do trabalhador, mas a norma mostra-se clara na proibição de acesso e de divulgação.
Na sua aplicação e visto o contexto dinâmico de execução da relação laboral e dos interesses potencialmente contrapostos de empregadora e trabalhador não pode deixar de ser ponderado o facto de à primeira ser constitucionalmente reconhecido do direito à propriedade privada (art.º 62º da Constituição da República Portuguesa) e ao trabalhador, enquanto cidadão, ser reconhecido o direito à intimidade da sua vida privada (art.º 26º nº 1 do mesmo diploma).
A articulação destes dois direitos e da sua efectivação prática terá de ser efectuada segundo uma lógica de necessidade e proporcionalidade que não pode prescindir da consideração do concreto contexto e finalidade do acto em causa.
Na ponderação do conceito contexto sempre será de relevar o concreto sector de actividade e em particular os bens (suas características e valor, sua potencialidade de apropriação) que são envolvidos na mesma, realidade em relação à qual, no caso concreto e não obstante o amplo âmbito de actividades prosseguidas pela empregadora, se desconhece quais sejam.
Depois, não existindo consagração legal de um qualquer direito ou faculdade de revista no âmbito de execução da relação laboral, na qual rege para ambas as partes o dever de proceder de boa-fé (art.º 126º do Código do Trabalho), o direito ou faculdade de revista deve ter-se, em principio, por excluído.
O concreto sistema de revista, que é executado para além dos sistemas de vídeo vigilância, afigura-se excessivo e desproporcionado para o invocado risco de furto de objectos manuseados no seu estabelecimento.
Note-se que se trata de uma revista à saída do estabelecimento e com vista à detecção retirada indevida de objectos, situação que visa apenas interesses da empregadora, e não de uma revista à entrada e visando obstar à entrada de objectos que, por exemplo, afectem a segurança do local de trabalho ou particulares aspectos da execução da prestação laboral ou funcionamento da empresa.
Assim, a revista sob apreciação é uma revista promovida pelo empregadora, uma forma de exclusiva autotutela da mesma no âmbito de execução de um contrato de trabalho.
A mesma não pode ser equiparada a uma revista por autoridade pública e no exercício de funções públicas que lhe estão atribuídas (vg autoridade policiais) ou de uma qualquer entidade privada de segurança sob vigilância ou acompanhamento de autoridade pública.
Ora, como se tem por pacífico a autuação destas autoridades na execução de uma revista pressupõe a existência de indícios concretos relacionados com acto ilícito – cfr art.º 174º do Código de Processo Penal.
O facto de, no caso concreto, as revistas serem efectuadas de forma aleatória e de abrangerem 15% dos trabalhadores que passam nos torniquetes, revela que as mesmas são realizadas independentemente de qualquer suspeita ou indício de retenção indevida de objectos pelos trabalhadores.
Como medida preventiva de substração de objectos a solução implementada mostra-se excessiva e desproporcionada no confronto e articulação dos direitos em causa -- a propriedade privada da empregadora e a privacidade dos trabalhadores – conferindo a uma prevenção da propriedade privada uma compreensão infundada do direito à privacidade e intimidade dos trabalhadores ao facultar o acesso a conteúdos privados (bens transportados destes) com uma amplitude superior à que seria permitida a uma autoridade pública.
Uma tal medida preventiva revela-se injustificada e excessiva para o contexto de execução da relação laboral, tal como este é conhecido nos autos, pelo que, afastada a eficácia do Regulamento, nunca a mesma pode ser considerada válida em quanto ordem ou determinação não regulamentar da empregadora por violadora do art.º 16º do Código do Trabalho.
Consequentemente, por contrária ao direito de personalidade do trabalhador, na sua vertente de reserva de intimidade da vida privada, não pode a sua inobservância conduzir à afirmação de violação do dever de obediência.
Sendo a conduta imputada ao trabalhador, na nota de culpa e na decisão da empregadora (cfr art.º 387º nº 3 do Código do Trabalho), apenas a inobservância de procedimento de auto revista nos dias 12, 18, 22 e 24 de Novembro de 2022, impõe-se, pelos motivos e com a fundamentação enunciada, concluir pela inexistência de comportamento disciplinar relevante do trabalhador e pela improcedência do motivo justificativo do despedimento com a consequente declaração de ilicitude deste nos termos do art.º 381º al b) do Código do Trabalho.”
Ora, do confronto daquilo que foi alegado pelo Autor na contestação ao articulado motivador do despedimento com o que se escreve na sentença, ressalta à vista que as normas que são referidas não são exactamente um decalque das normas que foram invocadas pelo Autor, nomeadamente nenhuma referência é feita à Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio que este chamara à colação para fundamentar a afirmação de que o Regulamento violava a Lei. Contudo, como já vimos, o Autor também apelou ao artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa e ao seu direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades, e garantias, onde se inclui o direito à reserva da intimidade da vida privada, considerando-se, pois, ofendido nesses seus direitos.
Ou seja, o Autor pôs em causa a legalidade, validade e eficácia do Regulamento 1/2019 e foi essa a questão que foi conhecida pelo Tribunal a quo, sendo certo ainda que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º n.º 3 do CPC).
Acresce que, no recurso, a Recorrente não invocou ter sido proferida uma decisão surpresa ou ter sido violado o princípio do contraditório, o que apenas veio fazer em resposta ao Parecer da Exma. Procuradora-Geral Adjunta, pelo que, este Tribunal não se pode pronunciar sobre tal questão, posto não se tratar de questão de conhecimento oficioso.
Em conclusão, improcede a arguida nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
*
Apreciemos, agora, se deve ser alterada a decisão que recaiu sobre a matéria de facto.
A Recorrente expressou a sua vontade no sentido de ver alterados os factos provados 8, 16 e 34 e de ver aditado um novo facto.
A Recorrente cumpriu os ónus a que alude o artigo 640.º do CPC, pelo que resta apreciar a sua pretensão.
Entende a Recorrente que:
1-O facto provado sob 8 deve ter a seguinte redacção:
“8. A Recorrente apresentou e discutiu o teor do regulamento de auto revista com os trabalhadores antes da sua primeira publicação”.
Como meios de prova indicou o depoimento da testemunha CC.
O Recorrido não indicou as passagens da gravação do depoimento das testemunhas que indicou, incumprindo o disposto no artigo 640.º n.º 2 al.a) do CPC.
Vejamos:
O facto provado sob 8 tem a seguinte redacção:
“8. Não foi efectuada qualquer consulta ou negociação com trabalhadores, ou representantes destes, previamente e com vista à sua elaboração.
Foi motivado pelo Tribunal a quo nos seguintes termos:
“Quanto ao teor do Regulamento 1/2019 foi considerado o exemplar do mesmo junto ao procedimento disciplinar.
Não foi feita prova que o mesmo tenha sido objecto de qualquer negociação, sendo a sua publicitação junto dos trabalhadores efectuada através de afixação em placard informativo existente em espaço comum a todos.
A existência deste placard é referida pelas testemunhas CC, FF, GG, HH e II, ainda que as testemunhas GG e II tenham referido que nunca foram ver o mesmo, nem tiveram curiosidade para tanto.
A testemunha CC referindo que, sendo uma actualização de anteriores regulamentos, foi concedido um prazo de trinta dias para os trabalhadores, querendo, se pronunciarem.”
Ouvida a prova, constatou-se que a testemunha CC não confirmou o facto em causa. Na verdade, tendo a testemunha sido questionada se, previamente à entrada em vigor, o Regulamento tinha sido alvo de negociações entre a Ré e os trabalhadores, respondeu não saber.
Não merece, pois, reparo, o decidido pelo Tribunal a quo quanto ao facto provado 8 que se mantém nos seus exactos termos.
2- O facto provado 16 deve ter a seguinte redacção:
“16. No local junto aos torniquetes existe indicação de controle por revista.”
Como meios de prova indicou o depoimento da testemunha DD (a testemunha chama-se HH).
O facto provado 16 tem a seguinte redacção:
“16. No local junto aos torniquetes não existe qualquer indicação de controle por revista.”
O Tribunal a quo não motivou este facto.
A testemunha HH confirmou esta matéria, referindo que, no entreposto, existem avisos colocados relativamente ao sistema aleatório de revista e ao sistema de videovigilância.
Nesta sequência, impõe-se a alteração do facto provado 16 que passa a ter a seguinte redacção:
“16. No local junto aos torniquetes existe indicação de controle por revista.”
3- O facto provado 34 deve ter a seguinte redacção:
“34. O trabalhador, em 2020, queixou-se junto da empregadora que a utilização de viseiras/óculos tinha consequências para a sua saúde, tendo sido remetido para consulta da medicina do trabalho, não tendo resultado qualquer restrição”
Como meios de prova indicou a confissão do Autor constante do artigo 23.º da sua contestação e o depoimento da testemunha EE.
O Recorrido não indicou prova.
O facto provado 34 tem a seguinte redacção:
“34. O trabalhador, em 2020, queixou-se junto da empregadora que a utilização de viseiras/óculos tinha consequências para a sua saúde.
Foi motivado nos seguintes termos:
“Que o trabalhador em 2020 se queixou junto da empregadora sobre o uso em simultâneo de viseira/óculos e outros mecanismos de protecção resulta dos depoimentos das testemunhas CC (o trabalhador referia desconforto na vista), FF (o trabalhador dizia que lhe prejudicava a saúde) e EE (o trabalhador queixou-se, mas como não apresentou qualquer declaração médica enviaram-no para serviço de medicina no trabalho).
O que não se considerou provado foi que a empregadora nada tenha feito perante tais queixas pois, como referiu a testemunha EE foi dado seguimento para os serviços de medicina do trabalho.”
Vejamos:
No artigo 23.º da contestação aperfeiçoada invoca o Autor:” Posteriormente, no processo disciplinar n.º 535/2020, veio o Instrutor do Processo afirmar que foi disponibilizada ao Autor uma consulta de medicina do trabalho e que nesta consulta não havia sido levantada qualquer restrição ao uso da viseira.”
No artigo 24.º alega: “Contudo esta consulta mencionada pelo Instrutor foi efetuada num momento muito posterior, aliás, já no decurso do processo disciplinar, portanto apenas para legitimar o processo disciplinar instaurado ao Autor,”
E no artigo 25.º alega “sendo que da mesma nada pois a médica afirmou que a consulta não fora marcada para esse efeito.”
Salvo o devido respeito, não retiramos das mencionadas alegações qualquer confissão do Autor.
A testemunha EE confirmou as queixas relativamente ao uso da viseira e que enviaram o Autor para o departamento de medicina do trabalho para avaliação. Tendo sido questionada se houve limitação, respondeu: ”que me recorde não”.
A resposta em causa não é suficiente para impor a alteração do facto em causa na parte relativa à inexistência de restrições.
Contudo, face ao depoimento da mencionada testemunha, que também foi salientado pelo Tribunal a quo, o facto provado 16 passa a ter a seguinte redacção:
“34. O trabalhador, em 2020, queixou-se junto da empregadora que a utilização de viseiras/óculos tinha consequências para a sua saúde, tendo sido remetido para consulta da medicina do trabalho.”
4-A Recorrente ainda pretende que seja aditado o seguinte facto:
“o regulamento 1/2019 substituiu o anterior vigente que foi publicado, pelo menos, em novembro de 2008”
Como meios de prova indicou o depoimento da testemunha CC.
O facto em causa não foi alegado e não é essencial na medida em que está em discussão um Regulamento em concreto: o Regulamento 1/2019. E de acordo com o que resulta dos autos, foi este Regulamento que instituiu o sistema de auto-revista (cfr. facto provado 7).
Consequentemente, não há que aditar o facto em causa.
Concluindo, apenas parcialmente procede a impugnação da matéria de facto.
*
Ao abrigo do disposto nos artigos 662.º n.º 1 e 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil e no artigo 352.º do Código Civil, por resultar de confissão do Autor, adita-se aos factos provados, sob o ponto 43, o seguinte facto:
“43. Pelo menos, em 27 de Dezembro de 2021, o Regulamento 1/2019 foi publicitado.”
*
Por resultar do Regulamento 1/2019 junto aos autos, ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 e 663.º n.º 2 do CPC, adita-se aos factos provados, sob o ponto 44. o seguinte facto:
“44. O Regulamento 1/2019 tem a data de 18 de Novembro de 2019.”
*
Analisemos, por fim, se existe justa causa de despedimento conhecendo-se, nesta sede, das sub questões relativas à ineficácia do Regulamento 1/2019 e ao excesso e desproporcionalidade da auto revista.
Considerou a Recorrente que, com a sua conduta, o Autor violou os deveres de respeito, urbanidade, probidade e obediência previstos no art. 128º al a) e e) do Código do Trabalho, que tal violação foi grave e tornou impossível a continuação da relação laboral, constituindo justa causa de despedimento nos termos do artigo 351.º n.ºs 1 e 2 do mesmo Código.
Apreciando:
O artigo 128.º do Código do Trabalho enuncia alguns dos deveres do trabalhador, aludindo as alíneas a) e e) do n.º 1, respectivamente aos deveres laborais de “Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade” e “Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias”.
No caso, em primeira linha, está em causa a violação do dever de obediência que, a verificar-se, redundará, em segunda linha, na violação do dever de respeito para com a empregadora, na medida em que são postas em causa as suas determinações.
Sobre o dever de obediência escreve a Professora Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Direito do Trabalho Parte II-Situações Laborais Individuais”, 3.ª Edição, Almedina, pag.415:
“Como se referiu a propósito do estudo da subordinação jurídica, o dever de obediência do trabalhador é especialmente vigoroso, tanto pela sua execução como pela sua intensidade.
Em termos extensivos, este dever envolve o cumprimento das ordens e instruções do empregador «respeitantes a execução ou disciplina do trabalho » (art.128.º n.º 1 do CT). Por outras palavras, o trabalhador deve obediência não apenas às directrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua actividade laboral (ou seja, ao poder directivo), mas também às directrizes emanadas do poder disciplinar prescritivo, em matéria de organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho ou outras.
Por outro lado, o dever de obediência é também especialmente intenso, uma vez que se estende às directrizes emanadas do empregador e dos superiores hierárquicos do trabalhador, no âmbito da delegação dos poderes laborais, a que o empregador tenha procedido (art.128.º n.º 2 do CT).”
Sucede que tal dever não é ilimitado.
Quanto aos seus limites, refere-se nas pags.415 e 416 da citada obra:” Apesar da sua intensidade e extensão, o dever de obediência do trabalhador tem limites gerais e específicos.
Os limites gerais do dever de obediência são os direitos e garantias do trabalhador: como refere o artigo 128.º n.º 1 e) in fine, o dever de obediência cessa quando a ordem ou instrução do empregador colida com os direitos e garantias do trabalhador, sendo, nestes casos, legítima a desobediência. (…).
Por outro lado, o dever de obediência não pode colidir com os direitos fundamentais e de personalidade do trabalhador, pelo que a desobediência a uma ordem que ofenda estes direitos será legítima. Por fim, o dever de obediência é limitado genericamente pela licitude da própria ordem, não devendo o trabalhador obediência a um comando ilegal.”
No caso é manifesto que o Recorrido, nos dias a que se refere a nota de culpa, não obedeceu ao determinado no Regulamento 1/2019.
Resta, contudo, saber se o trabalhador estava obrigado a obedecer à ordem emanada do Regulamento 1/2019 no que à auto revista respeita, o que nos leva à apreciação da sub questão relativa à ineficácia do mencionado Regulamento.
Entendeu a sentença recorrida que a validade do Regulamento 1/2019 se mostra afectada por falta de consulta ou negociação com trabalhadores e representantes destes, previamente à sua elaboração sendo, pois, ineficaz e que, por isso, o Recorrido não lhe devia obediência. E não lhe devendo obediência, concluiu que o trabalhador não cometeu qualquer infracção disciplinar, excluindo, assim, a existência de justa causa de despedimento.
Discordando do entendimento do Tribunal a quo invoca a Recorrente, em suma, que, por um lado inexiste qualquer comunicação expressa do Recorrido que possa constituir oposição ao Regulamento e, por outro, o comportamento do mesmo após a referida comunicação de Dezembro de 2021 não é consentâneo com a própria comunicação em si, pois este cumpriu a auto-revista entre 28.12.2021 e 31.01.2022, bem como nos demais dias de trabalho que não lhe foram imputados no processo disciplinar. Mais acrescentou que nada impõe a necessidade de qualquer negociação da entidade patronal com os trabalhadores ou seus representantes prévia à publicitação do regulamento nos termos do artigo 104º do Código do Trabalho, que, em parte alguma, da invocada Directiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março de 2002, se impõe que a disponibilização dos elementos por parte do empregador tenha de ser prévia à publicitação do regulamento, sendo que a aplicação de um determinado regulamento apenas deve a sua eficácia a um único elemento: a publicidade.
Antes de mais, importa referir que não está provado que o Recorrido cumpriu a auto-revista entre 28.12.2021 e 31.01.2022, bem como nos demais dias de trabalho que não lhe foram imputados no processo disciplinar (cfr. factos provados 19 e 20).
Por outro lado e sem prejuízo do que se dirá a propósito do artigo 99.º do Código do Trabalho, salienta-se que a sentença recorrida também não considerou ter havido oposição válida ao Regulamento por parte do Recorrido, sendo certo que não acompanhou o defendido por cada uma das partes quanto à aceitação do Regulamento e oposição tempestiva ao mesmo.
Ficou provado que a empregadora elaborou e aprovou o Regulamento n.º 1/2019 sobre Controlo de Circulação de Pessoas e Bens, datado de 2019, visando implementar procedimentos de controlo e circulação de pessoas e bens nos entrepostos que gere (facto 6); O referido Regulamento instituiu um sistema de auto-revista em que cerca de 15% dos trabalhadores, aleatoriamente seleccionados, ao saírem das instalações são solicitados a demostrar que, nos seus bolsos ou vestuário, nos seus sacos ou mochilas, não transportavam qualquer mercadoria que se encontra no interior do entreposto (facto 7); Não foi efectuada qualquer consulta ou negociação com trabalhadores, ou representantes destes, previamente e com vista à sua elaboração (facto 8); O mesmo foi afixado em placard existente em espaço ao qual acedem todos os trabalhadores e que é usado para transmissão de informações aos mesmos (facto 9); Quando da sua afixação foi concedido um prazo de trinta dias para os trabalhadores se pronunciarem, após que seria implementado (facto 10); pelo menos em 27 de Dezembro de 2021, o Regulamento 1/2019 estava publicitado (facto aditado sob 43); e o Regulamento 1/2019 tem data de 18 de Novembro de 2019 (facto aditado sob 44).
E ficou provado que em 27-12-2021 o trabalhador remeteu à empregadora correio electrónico no qual, entre outras questões, enunciava um conjunto de apreensões que o sistema de auto-revista lhe suscitava e informava que após o envio da mensagem não se sujeitaria a mais nenhuma auto-revista até que lhe fossem esclarecidas as questões que colocava (facto 18); Desde então, o trabalhador deixou de accionar o botão que determinava o accionamento de luz verde ou vermelha quando passava nos torniquetes (facto 19); e recusando, quando interpelado pelos seguranças ou solicitado por colegas, a fazê-lo e não aguardando na fila de saída como os demais trabalhadores (facto 20).
Da citada factualidade decorre, sem dúvidas, que a Recorrente publicitou o Regulamento em causa. E também resulta provado que, em 27.12.2021, o Recorrido enviou à Recorrente um e-mail a solicitar que lhe fossem esclarecidas as questões que colocava acerca do Regulamento e recusando-se a cumpri-lo até que lhe fossem dadas as respostas solicitadas.
E do facto provado sob 8 também decorre que não foi efectuada qualquer consulta ou negociação com trabalhadores, ou representantes destes, previamente e com vista à sua elaboração o que, naturalmente, faz pressupor que existiam na Ré as referidas estruturas de representação dos trabalhadores.
Nos termos do artigo 97.º do CT “Compete ao empregador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem.”
E de acordo com o artigo 99.º do CT:
“1 - O empregador pode elaborar regulamento interno de empresa sobre organização e disciplina do trabalho.
2 - Na elaboração do regulamento interno de empresa é ouvida a comissão de trabalhadores ou, na sua falta, as comissões intersindicais, as comissões sindicais ou os delegados sindicais.
3 - O regulamento interno produz efeitos após a publicitação do respetivo conteúdo, designadamente através de afixação na sede da empresa e nos locais de trabalho, de modo a possibilitar o seu pleno conhecimento, a todo o tempo, pelos trabalhadores.
4 - A elaboração de regulamento interno de empresa sobre determinadas matérias pode ser tornada obrigatória por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho negocial.
5 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.ºs 2 e 3.”
“ O poder regulamentar existe na justa medida em que o contrato de trabalho e as normas que o regem o permitem e tem fundamento na existência de uma relação laboral e versam sobre a organização e disciplina do trabalho. Tratam-se fundamentalmente de disposições que emanam do poder de organizar a empresa e portanto correspondem a regras de natureza organizatória, bem como a regras de disciplina. (…).”- Pedro Madeira de Brito, na anotação ao artigo 99.º do CT, in “ Código do Trabalho Anotado, 8.ª Edição – 2009, Almedina, pag.293.
E como refere a Professora Maria do Rosário Palma Ramalho, na pag.680 da obra citada, “Habitualmente reconduzido a uma manifestação do poder directivo ou identificado como um poder laboral autónomo, o poder regulamentar manifesta-se na possibilidade de delimitação das regras de prestação do trabalho e de disciplina na empresa através do regulamento da empresa. No nosso sistema, esta possibilidade encontra-se actualmente prevista no artigo 99.º do CT, e, no contexto desta norma, está em questão a faceta normativa do regulamento de empresa, que acresce ao seu conteúdo negocial, já apreciado a propósito da formação do contrato de trabalho.”
O Regulamento 1/2019, emanado da Recorrente, insere-se, em nosso entender, no exercício do poder de direcção, visando a organização e disciplina do trabalho por parte do empregador, sendo-lhe, pois, aplicável o disposto no artigo 99.º do Código do Trabalho.
Ora, de acordo com o n.º 2 do artigo 99.º do CT, na elaboração do regulamento são ouvidas as entidades que identifica. Contudo, de acordo com o n.º 5 da mesma norma, a não audição das referidas entidades constitui contra-ordenação grave. O legislador não prevê que essa falta de audição tenha como consequência a ineficácia do regulamento.
O que torna ineficaz o regulamento é, de acordo com o n.º 3 da norma, a falta de publicitação do mesmo.
Como escreve a Professora Maria do Rosário Palma Ramalho, obra citada, pag. 682: “ o não cumprimento dos deveres relativos à audição dos representantes dos trabalhadores e à publicitação do regulamento interno constitui contra-ordenação grave (art.99.º n.º 5).”
Por outro lado, da Directiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março de 2002, à qual apelou a sentença recorrida (estabelece um quadro geral relativo à informação e à consulta dos trabalhadores na Comunidade Europeia - Declaração Conjunta do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão sobre representação dos trabalhadores) e que, como refere, foi transposta para a ordem jurídica interna pelo Código do Trabalho (cfr. artigo 2º, al.m) da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro), não resulta que a falta de negociação dos regulamentos com as entidades referidas no n.º 2 do artigo 99.º do CT determina a sua ineficácia. Aliás, a Directiva remete para os Estados Membros a aprovação das disposições legislativas e regulamentares sobre a matéria da consulta e da informação, sendo certo que o legislador português, nessa transposição, considerou que apenas a falta de publicitação do regulamento interno determina a sua ineficácia.
Em suma, no que respeita aos regulamentos a que alude o artigo 99.º do CT, a sua eficácia não depende da negociação ou da sua aceitação pelos trabalhadores, mas sim da sua publicitação.
Como decorre do facto provado aditado, pelo menos, em 27 de Dezembro de 2021, o Regulamento 1/2019 já estava publicitado, estando, assim, cumprida a condição para a sua eficácia.
Por fim, refira-se que o artigo 104.º do Código do Trabalho não tem aplicação ao caso presente na medida em que se reporta aos denominados regulamentos negociais, cujas normas se integram no contrato de trabalho, estando, esses sim, sujeitos à adesão expressa ou tácita do trabalhador.
Com efeito, esta norma consagra a celebração de contratos de trabalho de adesão através da aceitação do regulamento da empresa. Como se escreve na pag. 144 da obra que vimos citando, “Não está aqui em causa, naturalmente a faceta normativa do regulamento de empresa, mas a sua faceta negocial, que, por integrar o contrato de trabalho, tem que ter o acordo do trabalhador, configurando esta solução legal um caso de atribuição de valor negocial ao silêncio (no caso, o silêncio do trabalhador), nos termos previstos no art. 218.º do CC.(…)”.
Mas tal não é o caso dos autos.
Consequentemente, é de concluir que, à luz do artigo 99.º do Código do Trabalho, o Regulamento 1/2019 é formalmente eficaz, pelo que, nesta parte, não acompanhamos a sentença recorrida.
Face à conclusão alcançada importa, agora, analisar a sub questão do excesso e desproporcionalidade da auto revista.
Invoca a Recorrente, em primeiro lugar, que atento o teor dos factos provados 1, 3, 5 e 7 só por mera distracção se pode concluir que se desconhece a que se reporta a actividade de entreposto da Recorrente no caso concreto. E se o Tribunal a quo tinha dúvidas sobre o local em causa bastava que tivesse analisado o Regulamento 1/2019, sendo manifesto qual a actividade em causa no entreposto e, essencialmente, a necessidade do sistema de controlo de circulação de pessoas e bens no qual se retrata o entreposto.
E, nessa sequência, entende a Recorrente que o Tribunal a quo não podia ter afirmado que “Na ponderação do conceito contexto sempre será de relevar o concreto sector de actividade e em particular os bens (suas características e valor, sua potencialidade de apropriação) que são envolvidos na mesma, realidade em relação à qual, no caso concreto e não obstante o amplo âmbito de actividades prosseguidas pela empregadora, se desconhece quais sejam (…).”
Ora, é certo que dos factos provados indicados pela Recorrente e do teor do Regulamento resulta, com clareza, qual a actividade desenvolvida no entreposto da Ré. E também é evidente que, tratando-se de um armazém onde são movimentadas mercadorias de diversa natureza, há a necessidade de existir um sistema de controlo de circulação de pessoas e bens. Contudo, entendemos que a sentença recorrida, apesar de afirmar o desconhecimento da actividade da Recorrente, acaba por não colocar em causa a necessidade de existência de um sistema de controlo de circulação de pessoas e bens, não sendo, pois, esse afirmado desconhecimento o pilar da decisão, antes o sendo a desproporcionalidade entre a necessidade de protecção dos bens da recorrente e as medidas que instituiu com vista à sua preservação.
Insurge-se, ainda, a Recorrente com a afirmação do Tribunal a quo de que o concreto sistema de revista que é executado, para além do sistema de videovigilância, afigura-se excessivo e desproporcionado para o invocado risco de furtos de objectos manuseados no seu estabelecimento e que embora o Tribunal reconheça que “Não se trata de negar o direito da empregadora a diligenciar pela tutela dos seus bens…”, a verdade é que acaba por negar esse direito, sendo certo que se trata de um sistema aleatório de auto revista, a executar pelo próprio trabalhador e não por terceira pessoa e que, pelo menos há 18 anos, existem mecanismos de controlo e com os quais o Recorrido sempre conviveu e respeitou desde a sua admissão.
Conclui que um sistema aleatório de auto-revista com regras e características provadas com o objectivo óbvio de prevenir furtos de artigos não pode, em momento algum, configurar uma medida intrusiva ou violadora da reserva dos trabalhadores.
Em abono do seu entendimento apelou ao que se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.07.2014, proferido no processo n.º 461/12.5TTMAI.P1.
Vejamos:
Antes de mais importa salientar que a circunstância de o trabalhador ter convivido, ao longo da relação laboral, com mecanismos de controlo que sempre respeitou não impede que, possa vir questionar a legalidade dos mesmos nos termos em que o faz na presente acção, tanto mais que alegou só em meados de Dezembro de 2021 ter sido afixado o Regulamento 1/2019 e resultou provado que, pelo menos, em 27 de Dezembro de 2021 foi publicitado.
Com interesse para a questão ficaram provados os seguintes factos: No referido local a empregadora tem, desde sempre, implementados sistemas de videovigilância e sistemas de controle que, tendo variado o seu concreto modo de execução ao longo do tempo, visam obstar à saída de bens que são manuseados nas suas instalações (facto 5); A empregadora elaborou e aprovou o Regulamento n.º 1/2019 sobre Controlo de Circulação de Pessoas e Bens, datado de 2019, visando implementar procedimentos de controlo e circulação de pessoas e bens nos entrepostos que gere (facto 6); O referido Regulamento instituiu um sistema de auto-revista em que cerca de 15% dos trabalhadores, aleatoriamente seleccionados, ao saírem das instalações são solicitados a demostrar que, nos seus bolsos ou vestuário, nos seus sacos ou mochilas, não transportavam qualquer mercadoria que se encontra no interior do entreposto (facto 7); Em 2022 a empregadora tinha implementado na principal portaria de saída de trabalhadores do entreposto de ... um sistema que funcionava através do accionamento de um botão junto aos torniquetes de saída (facto 11); Cada trabalhador, ao passar nos mesmos, devia accionar o botão que, aleatoriamente, ou acendia uma luz verde ou uma luz vermelha (facto 12); Se a luz fosse verde o trabalhador saia das instalações (facto 13); Se a luz fosse vermelha era solicitado, pelos seguranças, de empresa contratada pela empregadora, que se encontravam na dita portaria, que abrisse os sacos ou mochilas transportadas e exibisse o conteúdo de bolsos com vista a verificar se era transportado algum bem dos que a empregadora tinha nas suas instalações (facto 14); e essa exibição pode ter lugar no local ou em sala existente junto à portaria de saída (facto 15).
Sobre as revistas aos trabalhadores e reportando-se ao ET espanhol, escreve o Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes, em “Direito do Trabalho, Volume I, Relações Individuais de Trabalho”, Coimbra Editora, 2007, pag. 335: “(…) quaisquer revistas devem ser realizadas com o máximo de respeito pela dignidade e pela intimidade do trabalhador. Assim, devem fazer-se com a maior discrição e menor publicidade possíveis e devem ocorrer na presença de um representante dos trabalhadores ou, pelo menos, de outro trabalhador, escolhido pelo revistado. Se nem todos os trabalhadores forem revistados, os critérios para decidir quais os que o vão ser não poderão ser discriminatórios. Mesmo na ausência de regulamentação específica entre nós, julgamos que estas linhas de orientação serão igualmente válidas devendo ter-se como o corolário da necessidade do empregador agir de boa fé no exercício dos seus direitos ou faculdades contratuais.”
No caso, não obstante se tratar de um denominado sistema de auto revista, o que pressupõe ser o trabalhador a fazer a revista, a verdade é que não ficaram esclarecidos os limites exactos da mesma. Isto é, o trabalhador faz a auto revista e ninguém lhe toca nem aos seus pertences. Contudo, como resultou provado (facto7) e decorre do artigo 7.º do Regulamento 1/2019, a auto revista estende-se, além de outros, “ a qualquer parte do vestuário” e o acto implica a exibição do que está dentro de sacos ou mochilas mas também do que está dentro de bolsos do vestuário. Mas aqui cumpre questionar: Que vestuário?
Ora, como refere a sentença, o que se visa proteger com a auto revista em causa é apenas e tão só a propriedade de bens da empregadora. E o direito de proteger a sua propriedade é um direito que lhe assiste! Mas entendemos que em prol desse direito não pode ser sacrificado o direito à reserva da intimidade da vida privada dos trabalhadores obrigando-os, quando aleatoriamente escolhidos, a expor, sem motivo justificativo, bens próprios e o conteúdo das peças de vestuário que usam.
É que, sopesando os interesses em presença, rectas contas, nos moldes em que está instituída a auto revista, revela-se, de todo, indiferente que sejam os trabalhadores ou terceiros a fazerem a revista, posto que, o que está em causa é o acto em si mesmo e a devassa que representa.
Ora, face a este quadro, entendemos, como entendeu a sentença recorrida, que a auto revista é intrusiva e viola o direito garantido constitucionalmente de reserva à intimidade da vida privada (artigo 26.º da CRP). E, contrariamente ao que refere a Recorrente, o sistema de autocontrolo não assenta, essencialmente, na vontade e disponibilidade dos trabalhadores em demonstrar que não detêm qualquer bem da empregadora; o sistema implementado pela Ré, embora realizado pelos próprios trabalhadores, também está sujeito às solicitações dos profissionais de segurança e vigilância que dirigem a auto revista e cujos limites não ficaram devidamente definidos.
Mais, no caso, a auto revista tanto pode ocorrer numa sala existente para o efeito como na saída junto aos outros trabalhadores, sendo que, neste último caso, todas as pessoas que se encontram na fila da saída podem visualizar o conteúdo de bolsos, malas etc, pelo que, não se descortina como sustentar que está assegurado o direito de reserva à intimidade da vida privada.
Afinal onde está “a maior discrição possível” que deve presidir às revistas?
Por outro lado, no que respeita à auto revista a realizar na sala existente para o efeito, a Ré não provou que existem mecanismos implementados que assegurem a protecção da dignidade do trabalhador e do seu direito à reserva da intimidade da vida privada, como seria a presença de um terceiro indicado pelo trabalhador.
Acresce que, no facto provado sob 5 consignou-se que “No referido local a empregadora tem, desde sempre, implementados sistemas de videovigilância e sistemas de controle que, tendo variado o seu concreto modo de execução ao longo do tempo, visam obstar à saída de bens que são manuseados nas suas instalações.” Porém, não se extrai da factualidade provada que os sistemas de videovigilância e de controle implementados se revelam insuficientes para a protecção dos bens da empregadora e que essa insuficiência determina quebras consideráveis no seu stock, revelando-se imperioso a implementação de outros meios de controle. Ou seja, a Recorrente não provou a necessidade da auto revista.
Por fim, se é certo que a auto revista é aleatória afastando, assim, a possibilidade de discriminação, não é menos certo que é susceptível de gerar um sentimento de suspeita generalizada sobre os trabalhadores, que não está minimamente sustentada nos factos provados.
Por último, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.07.2014, processo 461/12.5TTMAI.P1 que vem indicado pela Recorrente, salvo o devido respeito, nada adianta sobre a matéria.
Assim, resta concluir, como concluiu a sentença recorrida, embora com fundamentação não totalmente idêntica, que, no caso, a auto revista se revela excessiva e desproporcionada aos bens que pretende tutelar e, nessa medida, é ineficaz o Regulamento que a institui.
Não devia, pois, o Recorrido obediência à Ré no que respeita ao cumprimento da ordem de auto revista instituída pelo Regulamento 1/2019, pelo que, inexiste infracção disciplinar. E inexistindo infracção disciplinar, não há justa causa de despedimento, o que acarreta a sua ilicitude (art.381.º b) do CT), com as consequências que retrata a sentença.
E mesmo que não se entendesse assim e entende-se, face à Lei n.º 34/2013 de 16 de Maio, a conclusão a retirar é a mesma: o trabalhador não devia obediência à ordem em causa.
Senão, vejamos.
A Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, institui o Regime do Exercício da Actividade de Segurança Privada.
O artigo 3.º da referida Lei, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º46/2019, de 8 de Julho, aditou, além de outros, o artigo 19.º-A que, sob a epígrafe Controlo de segurança, estatui:
“1 - O controlo de segurança à saída de um local, mediante recurso a meios técnicos adequados, com respeito pelos princípios da adequação e da proporcionalidade, deve preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Ser realizado em locais em que se desenvolvam atividades que, pela sua própria natureza, constituam um risco para a segurança;
b) Ser destinado à prevenção de subtração de bens do local de trabalho, ou de bens que estejam particularmente acessíveis a terceiros;
c) Sejam privilegiados os meios que não impliquem o contacto físico com a pessoa visada pelo controlo realizado;
d) Existência de avisos, à entrada e saída do local, da possibilidade da sua ocorrência.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o controlo à saída dos locais de trabalho deve ser realizado em conformidade com as condições relativas à informação e consentimento previstos em convenção coletiva de trabalho ou, quando não seja aplicável, o trabalhador tenha prestado o seu consentimento individual.”
Ora, embora fora do Código do Trabalho e destinando-se ao “controlo de segurança”, entendemos que, mesmo assim, face ao que dispõe o n.º 2 do artigo 19.º-A, podemos afirmar que esta Lei passou a regular o controlo à saída dos locais de trabalho (quaisquer) sujeitando-o ao respeito pelos princípios da adequação e da proporcionalidade e exigindo que aquele controlo preencha, cumulativamente, os requisitos que enumera.
No caso, como já vimos, a auto revista não cumpre o princípio da proporcionalidade, nem estão verificados todos os requisitos a que alude o n.º 1 do artigo 19.º-A. Donde, a auto revista, viola o n.º 1 do artigo 19.º-A da mencionada Lei.
E mesmo que se verificassem os requisitos a que alude o n.º 1 da norma, sucede que a Recorrente não provou, como lhe incumbia, que a auto revista é feita “em conformidade com as condições relativas à informação e consentimento previstos em convenção coletiva de trabalho” ou que o trabalhador prestou o seu “consentimento individual”, o que acarreta a inexistência do dever de obediência à ordem em causa, por ilegal, com as consequências já referidas.
Em consequência, improcede o recurso nesta parte.
Debrucemo-nos, agora, sobre a questão de saber se a sanção aplicada em Setembro de 2022 não é abusiva.
Invoca ainda a Recorrente que o Tribunal a quo, na sequência da conclusão de que o Recorrido não estava obrigado a cumprir o procedimento de auto-revista, considerou, erradamente, a sanção provada sob o ponto 30 como abusiva. Sucede que o Tribunal a quo não relevou os factos provados 2, 3, 5, 16 e 17, no âmbito dos quais resulta que estávamos perante um procedimento com mais de 18 (dezoito) anos de vigência, pelo menos, e com o qual o Recorrido sempre conviveu e nunca reclamou, não sendo, pois, verdade que se verifique o preenchimento da alínea b) do artigo 331º do Código do Trabalho e, muito menos, se pode admitir a conclusão do Tribunal a quo de que tal sanção é abusiva pela verificação da presunção prevista no artigo 331º n.º 2 do mesmo diploma, atento o facto provado sob o ponto 30, bem como a matéria considerada assente sob a alínea G) no despacho saneador e do processo disciplinar anexo ao articulado motivador do despedimento como doc. 1, do qual é imperioso concluir que a Recorrente afastou a presunção prevista no n.º2 do artigo 331º.
Sobre a sanção a que alude o ponto 30 dos factos provados, entendeu o Tribunal a quo:
“Já em relação ao procedimento disciplinar reportado a factos ocorridos em Fevereiro, Abril, Junho e Julho de 2022 e pelos quais o trabalhador foi sancionado em Setembro de 2022 – factos da mesma natureza dos do procedimento disciplinar que deu origem aos presentes autos – a situação mostra-se distinta.
As mesmas razões que conduziram à afirmação da não verificação de qualquer dever de obediência pelos factos de Novembro de 2022 não pode deixar de conduzir à afirmação que se tratou de uma aplicação de sanção por recusa de cumprimento de determinação da empregadora à qual não era devida obediência, preenchendo assim a previsão da alínea b) do nº 1 do art.º 331º do Código do Trabalho.
Mais, considerando que a sanção foi aplicada em Setembro de 2022 e que em Dezembro de 2021 o trabalhador tinha denunciado junto da empregadora um conjunto de situações que reputava de assediantes e discriminatórias, verifica-se igualmente a presunção do nº 2, presunção esta que não foi ilidida.
Donde que a sanção aplicada – suspensão por quinze dias – tenha de ser considerada como sanção abusiva.
Não demostrada nos autos a verificação de práticas discriminatórias contra o trabalhador e/ou determinadas pela sua raça, apurada apenas uma situação de sanção pecuniária abusiva entende-se não ser de afirmar a verificação de uma conduta da empregadora orientada desde 2017 para perturbar ou constranger o trabalhador, para afectar a sua dignidade ou lhe criar um ambiente hostil.
Um procedimento disciplinar em que foi aplicada uma sanção que é abusiva afigura-se insuficiente para a afirmação da conduta assediante que o trabalhador imputa à empregadora.”
Ou seja, a sentença não retirou quaisquer consequências da sanção que qualificou como abusiva. Aliás, considerou que a sua aplicação não permite a afirmação de que houve por parte da empregadora uma atitude assediante para com o trabalhador.
Porém, tendo-se concluído, como concluiu a sentença recorrida, que o trabalhador não devia obediência à Ré no que respeita à auto revista prevista no Regulamento 1/2019, não vemos como afastar o que dispõe o artigo 331.º n.º 1 al.b) do Código do Trabalho que determina que considera-se abusiva a sanção disciplinar motivada pelo facto de o trabalhador “Se recusar a cumprir ordem a que não deva obediência, nos termos da alínea e) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 128.º;”
Em conclusão, improcede o recurso.
*
Da ampliação do objecto do recurso.
Do alegado abuso do direito.
Nas contra alegações invoca o Recorrido, em síntese, que a negociação e publicitação do regulamento interno e a alteração das práticas de auto revista são essenciais para que a Recorrente cumpra os seus deveres de respeito ao trabalhador, a que está obrigada. Porém, a Recorrente pretende manter a sua conduta no que respeita às auto revistas, o que configura abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Conclui que a Ré deve ser condenada a indemnizar o Autor e a alterar as suas práticas sobre a publicitação do regulamento e das auto revistas.
Vejamos:
A questão do abuso do direito e pedido de condenação da Ré em indemnização por abuso do direito foi suscitada pela primeira vez nas contra-alegações do recurso. Trata-se, pois, de questão nova.
Não obstante, o abuso do direito é de conhecimento oficioso (neste sentido e entre outros veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2022, consultável em www.dgsi.pt), pelo que, pode este Tribunal apreciar a questão.
A Ré já teve oportunidade de se pronunciar sobre o instituto do abuso do direito na resposta que apresentou à ampliação do âmbito do recurso, concluindo que não se verifica.
Estatui o artigo 334.º do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Em anotação a esta norma escrevem os Professores Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, no “Código Civil Anotado”, Volume I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Limitada, pag.296 e 297: “ A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.
(…).
Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitima, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria geral das obrigações, pag.63). Vaz Serra refere-se, igualmente, à «clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante» (Abuso do direito, no B.M.J., n.º 85, pag.253). O Código suíço fala em «abuso manifesto de um direito» (art.2.º)
(…).
A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido (…).”
Em causa está o direito de a Ré elaborar regulamentos relativos à organização e funcionamento da empresa.
A circunstância de as auto revistas previstas no Regulamento 1/2019 se revelarem excessivas e desproporcionadas, posto que a Recorrente dispõe de outros meios para proteger o seu património, a par com o facto de com as auto revistas pretender a Recorrente prevenir a prática de furtos e, assim acautelar o seu património, não representa uma “clamorosa” ofensa aos princípios de justiça. Aliás, nem é percetível, nem o Recorrido refere, qual o interesse que a Recorrente visará prosseguir e que exorbita o direito que lhe assiste de fazer regulamentos.
Não há, pois, qualquer obrigação de indemnizar o Recorrido como consequência de abuso do direito por parte da Ré, que não se verifica.
Improcede a pretensão do Recorrido.
Da alegada litigância de má fé.
Entende, ainda, o Recorrido que a sentença recorrida errou por não ter condenado a Recorrente como litigante de má fé, imputação que é devolvida ao Recorrido, pela Recorrente, na resposta à ampliação do âmbito do recurso.
Sobre a litigância de má fé entendeu a sentença recorrida o seguinte:
“Ambas as partes se imputam, mutuamente, de má-fé processual por considerarem que a contraparte litiga com conhecimento da sua falta de razão e/ou omitindo factos que reputam relevantes.
Dispõe o art.º 542º n.º 1 do Código de Processo Civil que “Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”.
Concretizando a ideia e noção de má-fé processual o n.º 2 do preceito em causa considera como “litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito”.
Desde já se adianta ser entendimento que a nenhuma das partes pode ser imputada a reclamada má-fé.
As suas versões dos factos, que alegam e que impugnam, são opostas, tal com se mostra distinta a leitura e enquadramento legal que efectuam da realidade de facto.
Porém, independentemente da posição que o tribunal tomou em relação aos factos ou ao seu enquadramento, entende-se que não está em causa uma alegação ou exercício de factos sem fundamento, mas sim a alegação, convicta, da versão de cada uma das partes sobre a realidade da relação contratual.”
Adiantamos, desde já, não merecer reparo a decisão do Tribunal a quo.
O artigo 542.º do CPC dá-nos o conceito de litigância de má fé.
Como elucida o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.02.2012, consultável em www.dgsi.pt “I-Litiga de má-fé a parte que alega factos que sabe perfeitamente serem contrários à verdade com a intenção de obter uma decisão no litígio que lhe seja favorável.
II - O acesso ao direito consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa não compreende, nomeadamente, uma oposição que altere a verdade dos factos, disso tendo perfeita consciência a respectiva parte.”
E de acordo com o Acórdão do mesmo Tribunal de 11.9.2012, igual pesquisa:”1.A litigância de má-fé exige a consciência de que quem pleiteia de certa forma tem a consciência de não ter razão.
2. A defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 456º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, todavia, se não forem observados os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, patenteia-se litigância de má fé.
(…)”.
Também sobre a litigância de má fé trata o Acórdão do mesmo Tribunal de 12.11.2015, igual pesquisa em cujo sumário lemos:
“(…)
IX – A litigância de má-fé pressupõe a verificação de alguma das situações previstas no art. 542º do Novo CPC, de onde ressalta a dedução de oposição cuja falta de fundamento se não devia ignorar, desde que a parte tenha agido com dolo ou negligência grave.
X – Lide dolosa não se confunde com lide imprudente ou temerária e só aquela, com que a parte actua ou litiga com dolo, ou com negligência grave, merece censura e condenação fundada em litigância de má-fé.
(…)”.
Por fim, veja-se ainda o sumário do Acórdão do STJ de 2.6.2016, in www.dgsi.pt:”I – É bem antiga a preocupação no combate aos comportamentos processuais desvaliosos e entorpecedores da realização da justiça, consagrando já o direito romano e, depois, o direito pátrio, uma multiplicidade de institutos destinados a sancioná-los.
II – Com tais mecanismos sempre se visou sancionar apenas a ilicitude decorrente da violação de posições e deveres processuais, o também chamado ilícito processual, gerador de uma “responsabilidade de cunho próprio”, assente em deveres de lealdade, colaboração e probidade das partes.
III - Após a revisão processual de 1995, o quadro normativo em matéria de litigância de má fé passou a ser bem mais exigente, impondo a repressão e punição não só de condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (anterior art.º 456º, n.º 2, e actual 542º, n.º 2, do CPC).
IV - No entanto, deve continuar-se a ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, o que só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça.
V-(…).”
Em suma, podemos afirmar que litiga de má fé a parte que, dolosamente ou com negligência grave, adopta uma postura processual contra a verdade e ciente de que a sua pretensão não tem protecção legal.
E actuar dolosamente ou com negligência grave significa actuar deliberada e intencionalmente contra os princípios da boa fé no que respeita à violação das regras processuais.
Tal não é o caso! Na verdade, o que decorre dos presentes autos é a defesa convicta da posição de cada uma das partes, desprendida do objectivo de impedir a realização da justiça ou de entorpecê-la. E o direito de qualquer das partes impugnar uma decisão que lhe é desfavorável é um direito constitucionalmente reconhecido (art.20.º da CRP).
Improcede, também esta pretensão do Recorrido e a ampliação do objecto do recurso em toda a sua extensão.
Considerando o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade de ambas as partes na proporção do decaimento.

Decisão
Face ao exposto, acorda-se em:
- Julgar improcedente a arguida nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
- Julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto nos termos supra mencionados;
- Julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.
- Julgar improcedente a ampliação do âmbito do recurso.
Custas do recurso pelas partes na proporção do decaimento.
Registe e notifique.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2025
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Susana Martins Silveira
Alda Martins - Concordo com a decisão mas apenas porque entendo que a licitude do controle de segurança estabelecido pela Ré deve ser apreciada à luz do disposto no art. 19.º-A da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, e, apesar de considerar que a factualidade provada descrita nos pontos 7 a 17 observa o preceituado no seu n.º 1, nomeadamente quanto à necessária adequação e proporcionalidade, constata-se que não respeita a exigência de prestação de consentimento individual do Autor em conformidade com o previsto no n.º 2, sendo nesta estrita medida ilícito no que ao mesmo se refere.