CONTRATO DE MÚTUO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I. A ausência de prova, por banda da A., da causa invocada - no caso um mútuo -, ainda que demonstrada a deslocação patrimonial, não equivale à falta de causa, sendo de recusar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa subsidiariamente invocado, instituto que não traduz uma regra “residual” de decisão, ou sequer uma regra de decisão que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela ausência de prova da causa de uma deslocação patrimonial cuja invocação se dirigia a outro efeito.
II. A falta de prova da causa alegada, não autorizando o recurso ao enriquecimento sem causa, convoca antes a regra do artigo 342.º do Código Civil, sendo de julgar improcedente a pretensão de condenação dos RR. na restituição da quantia peticionada.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo 3137/23.4T8FAR.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Local Cível de Faro - Juiz 1

I – Relatório
(…), residente na Rua (…), n.º 15, r/c-Dto., 2810-418, em Almada, instaurou contra (…) e (…), casados no regime de comunhão de adquiridos e residentes na Av. da (…), n.º 96, 3.º, 8000-079, em Faro, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação dos demandados a restituírem à demandante a quantia de € 11.000,00 [onze mil euros], acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal civil em vigor até efetivo e integral pagamento, com fundamento na celebração de contrato de mútuo por aqueles incumprido.
Subsidiariamente, pediu a condenação dos RR no pagamento da mesma quantia de € 11.000,00 [onze mil euros], acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal civil em vigor até integral e efetivo pagamento, desta feita a título de enriquecimento sem causa.

Citados os RR, apresentaram contestação, peça na qual invocaram a excepção da nulidade de todo o processo, em conformidade com o disposto no art.º 577.º, al. b), do CPC, com fundamento na nulidade do invocado mútuo, por não ter observado a forma escrita, conforme impõe o artigo 1143.º do Código Civil.
Defenderam-se ainda por impugnação, alegando ter sido o R. marido quem, em diversas ocasiões, emprestou à autora quantias várias, perfazendo o aludido montante de € 10.000,00, que esta veio a restituir em Dezembro de 2019, aquando da venda de um apartamento que lhe pertencia, o que justifica a transferência bancária identificada na petição inicial.
Em 2021 foi a contestante (…) quem emprestou à Autora, a solicitação desta, a quantia de € 1.000,00, que veio a ser restituída em Março de 2022, sendo assim falso tudo o que, em contrário do alegado, consta da petição inicial.
Imputando à autora conduta integradora da litigância de má fé, pediram a condenação desta no pagamento de indemnização a seu favor de montante não inferior a € 2.000,00 e em multa a fixar pelo tribunal.

A autora respondeu, assinalando que eventual nulidade dos mútuos por inobservância da forma legal sempre daria lugar à condenação dos Réus na restituição das quantias recebidas, concluindo pela condenação destes nos termos peticionados.
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Teve lugar audiência prévia e nela foi julgada improcedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, tendo os autos prosseguindo com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi no seu termo proferida sentença, que na parcial procedência da acção, decretou como segue:
a) Julgou procedente a exceção de nulidade do contrato de mútuo invocada pelos Réus no seu articulado e, em consequência, declarou nulo o contrato de mútuo celebrado entre Autora e Réus por inobservância de forma legalmente prescrita, condenando os Réus (…) e (…) a restituírem à Autora (…) a quantia de € 10.000,00 [dez mil euros], acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
b) Condenou a ré (…) a restituir à Autora (…) a quantia de € 1.000,00 [mil euros] por via do enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
c) Absolveu os Réus (…) e (…) do demais peticionado.
d) Absolveu a Autora (…) do pedido de condenação como litigante de má-fé e, consequentemente, do pagamento da quantia de € 2.000,00 [dois mil euros].

Inconformados, apelaram os Réus e, tendo invocado na alegação apresentada os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:
“(…) deverá ser revogada a douta sentença ora recorrida e, consequentemente, ser proferida nova sentença que decida:
A – Ser atendida a compensação de créditos entre os montantes entregues pelo recorrente (…) e recorrida (…) e nunca colocados em crise neste processo judicial;
B – Ser declarada a ilegitimidade de parte da recorrente (…) no contrato de mútuo declarado nulo, por inobservância da forma legal prescrita, entre a A. (…) e o recorrente (…);
C – Na absolvição da recorrente (…) do pagamento da quantia de € 1.000,00 a título de enriquecimento sem causa e respectivos juros contados da data da citação por falta de fundamento legal”.
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Questão prévia: da delimitação do objecto do recurso
No corpo das alegações apresentadas, alegaram os Réus apelantes “se dúvidas houvesse sobre toda esta matéria alegada em sede de contestação, fácil se torna agora pela consulta do documento do Instituto do Emprego e Formação Profissional do Centro de Emprego de Almada junto pela A. em Janeiro do corrente ano de 2024 para se confirmar que anda invariavelmente em situação de desemprego, não se lhe conhece nenhuma actividade profissional estável nem outros meios de sobrevivência, a não ser pela venda de património ou de herança”.
Acrescentaram ter o Réu (…) demonstrado em juízo “que tinha saldo bancário suficiente para adquirir a viatura, como efectivamente o fez (…)” e “mais ficou assente em juízo que a Ré Fátima é vice-presidente da (…) Club de (…) há muitos anos, sendo pessoa íntegra e de relevante idoneidade”.
Pois bem, a ter sido intenção dos recorrentes impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto -o que não é claro-, dir-se-á liminarmente que sempre tal impugnação seria de rejeitar. Vejamos:
Resulta do disposto no n.º 1 do art.º 640.º do CPC que, sendo impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente está vinculado ao cumprimento de três requisitos formais, cuja inobservância conduz à rejeição do recurso nesta parte, a saber: i. terá necessariamente de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; ii. terá ainda de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo da gravação, que impunham uma decisão diversa sobre os pontos de facto objecto da impugnação, ónus cujo cumprimento demanda, nas palavras inspiradas do STJ (acórdão de 21 de Junho de 2022, no processo 644/20.4T8RA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt), “(…) a obrigatoriedade de cerzir cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes” e, estando em causa prova gravada, a exacta indicação das passagens em que o recorrente funda a sua discordância (podendo ainda, se assim o entender, proceder à respectiva transcrição) (al. b); iii. terá finalmente de enunciar a decisão alternativa (al. c).
Por outro lado, sabendo-se que é pelas conclusões que se define o objecto do recurso (cfr. artigo 635.º do CPC), delimitando os poderes de cognição do tribunal superior, havendo impugnação da matéria de facto é de exigir ao impugnante que nelas especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e, bem assim, o sentido da decisão que sobre eles, em seu entender, deverá ser proferida, sob pena de se terem tais questões de facto por excluídas.
Analisadas as alegações de recurso apresentadas pelos Réus condenados – corpo e conclusões – verifica-se serem estas últimas completamente omissas quanto a eventual discordância dos recorrentes em relação à decisão proferida sobre os factos, nenhuma indicação sendo feita quanto aos pontos de facto que conteriam erros de julgamento e qual a decisão que, no entender dos apelantes, a prova produzida imporia. O que, nos termos do citado preceito legal, é suficiente para se determinar o não conhecimento da impugnação deduzida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas pelos apelantes:
i. Da ilegítima condenação da Ré mulher e da compensação com crédito do Réu marido;
ii. Da (in)fundada condenação da ré mulher na restituição do montante de € 1.000,00 ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
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De facto
Não tendo sido validamente impugnada, e não havendo razão para proceder à sua modificação oficiosa, é a seguinte a factualidade a considerar:
1. A Autora e os réus, estes casados entre si, eram amigos de longa data, partilhando há longos anos convívios nos mesmos círculos sociais e lugares, apresentando uma convivência habitual e quase diária, criando fortes laços de amizade, ao ponto de se tratarem mutuamente por “primos”.
2. Em Novembro de 2019, a Autora procedeu à venda de um imóvel de família.
3. Posteriormente, mais concretamente em Dezembro de 2019, os Réus, num momento de habitual convivência, manifestaram junto da A. a sua intenção em adquirir um veículo automóvel.
4. Neste seguimento, questionaram a Autora sobre se esta lhes poderia disponibilizar a quantia de € 10.000,00 [dez mil euros] para adquirirem esse mesmo automóvel, declarando que iriam restituir todo o montante disponibilizado, realizando pagamentos, sem juros envolvidos, até perfazer a totalidade da quantia em causa, ao que a Autora acedeu por acreditar que os Réus, como seus amigos, iriam proceder a tal restituição.
5. Assim, no dia 28 de Dezembro de 2019, a Autora operou uma transferência bancária no valor de € 10.000,00 [dez mil euros] para uma conta titulada pelo Réu no Banco (…), S.A, com o IBAN PT50 (…).
6. Em 27 de Janeiro de 2020, os Réus adquiriram, pelo preço de € 15.000,00 [quinze mil euros] um automóvel de marca (…), modelo (…), de matrícula (…), montante esse que foi pago pelo Réu da sua conta pessoal no Banco (…).
7. O veículo automóvel aludido em 6) foi registado no dia 4 de Junho de 2020.
8. No dia aludido em 6) a Autora trocou correspondência com a Ré via whatsapp, com o seguinte teor:
Autora: “Transferência feita prima”, pelas 11:44.
Ré: “Ai prima…. Deixas-te o primo teso”, pelas 12:10.
Autora: “Mas de carro novo”, pelas 12:27.
Ré: “Ahahahah”, pelas 12:27.
9. No dia 16 de Agosto de 2021, a Autora trocou novamente correspondência com a Ré via whatsapp, a qual possuía o seguinte teor: Ré: “Estas mal do nariz”, pelas 21:47.
Autora: “Levas porrada”, pelas 21:47.
Autora: “Eu digo-te”, pelas 21:47.
Ré: “Então não levo”, pelas 21:48.
Ré: “Não posso pagar para 2 são 260€”, pelas 21:48.
Ré: “Vê se entendes”, pelas 21:48.
Ré: “Estou endividada até a ti devo”, pelas 21:48.
Autora: “A (…) paga o afilhado”, pelas 21:48.
Ré: “Achas”, pelas 21:48.
Autora: “Gosta tanto”, pelas 21:48.
10. No entanto, a Ré solicitou ainda à Autora que esta lhe disponibilizasse a quantia de € 1.000,00 [mil euros].
11. Posteriormente, a 5 de Março de 2022, a Autora operou uma transferência bancária no valor de € 1.000,00 [mil euros] para uma conta titulada pela Ré no Banco (…), SA com o IBAN (…).
12. No dia 17 de Maio de 2022, a Autora trocou novamente correspondência com a Ré via whatsapp, a qual possuía o seguinte teor: Autora: “[…] sapataria… Pago c uma nota de 100”, pelas 17:54.
Autora: “O sapato 24,99”, pelas 17:55.
Ré: “Ena”, pelas 17:55.
Ré: “Gostas essas notas são do Sporting”, pelas 17:55.
Autora: “Gosto […] gostava de ter muitas na carteira”, pelas 17:56.
Ré: “Também eu para pagar o que devo”, pelas 17:57.
Ré: “Nem sabes como estou”, pelas 17:57.
Autora: “Só pq faz contraste com a carteira, que é vermelha”, pelas 17:57.
13. A Autora, por intermédio de Solicitador, remeteu à Ré uma missiva, datada de 28 de Julho de 2023, com o seguinte teor:
Parede, 28 de julho de 2023,
Assunto: Dívida a (…), de empréstimo de € 10.000,00 (dez mil euros) concedido em 2019
Exma. Senhora,
Reportando-me ao assunto indicado em epígrafe, serve a presente para interpelar V.ª Ex.ª para efetuar o pagamento do valor de € 10.000,00 (dez mil euros) que lhe foi concedido por empréstimo pela Sra. (…), NIF (…).
Relembrando os factos, em 28 de dezembro de 2019, a Sra. (…) concedeu a V/Exa. um empréstimo no montante de € 10.000,00 [dez mil euros], conforme então acordado, sendo o montante destinado à compra de um veículo automóvel.
Recordamos que, para esse efeito, ou seja, para concretizar o empréstimo do montante indicado, a Sra. (…) transferiu para a conta bancária com o NIB (…), o montante já indicado supra, conforme sua solicitação, tendo V\Exa. com esse valor adquirido o veículo de Marca (…), Modelo (…), com a matrícula (…).
Tendo V\Exa. assumido, e reconhecido, a dívida supra descrita, vimos por esta via interpelar V\Exa. para proceder ao pagamento extrajudicial da dívida, e efetuar o pagamento da totalidade do montante que lhe foi concedido a título de empréstimo, no prazo de 30 dias seguidos, a contar da receção da presente carta, sob pena de recurso à via judicial para efetivação da cobrança.
O recurso à via judicial importará que, à quantia em dívida acrescerão os competentes juros de mora, à taxa de 4% (quatro por cento), contados do dia imediatamente posterior ao da data indicada no parágrafo anterior.
Caso V\Exa. não proceda ao pagamento do valor em dívida no prazo indicado, fui mandatado para recorrer à via judicial no sentido de defender os interesses da m\constituinte, na medida do necessário à efetivação do pagamento da dívida, com todas as consequências legais que tal procedimento acarreta.
Sem outro assunto, subscrevo-me,
Atentamente,
(…) – Solicitador”.
14. Em resposta, a R., por intermédio do seu Ilustre Mandatário, remeteu ao Solicitador que representava a Autora uma missiva, datada de 22 de Agosto de 2023, que continha o seguinte teor:
Exmo. Solicitador
Na qualidade de mandatário da D. (…), venho por este meio responder à v/carta de 28 de julho de 2023 que notei.
Antes de mais cumpre-me informar que se lamenta profundamente todo o teor da referida carta que mais não é que um arrazoado de inverdades relativamente a factos gratuitos de que V. Exa.ª não tratou nem soube da sua existência, pois como certamente não saberá a m/cliente está declarada incapaz a 68% por doença de foro cardíaco e este assunto já mereceu atenção hospitalar.
Como bem saberá, todo o contexto da vossa carta enquadra este eventual negócio jurídico num contrato de Mútuo que nos termos do disposto no artigo 1143.º do Código Civil, exige um documento escrito do devedor para contratos de valor superior a € 2.500,00 e de escritura notarial para empréstimos de valor superior a € 25.000,00, o que no presente caso não existiu nem um nem outro.
Mais se dirá que os referidos € 10.000,00 representaram vários empréstimos à v/cliente e ajuda na aquisição de uma cadeira elétrica no valor de € 8.000,00 que se ofereceu pelo (…) clube de (…) a um familiar da vossa cliente.
Só a presuntiva amizade da vossa cliente para com a minha é que foi a razão desencadeante para tantos empréstimos e tantos favores que a D. (…) fez ao longo dos anos à vossa cliente e que vos motivou o conhecimento e informação do negócio do (…) mas como deve saber uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Sem mais delongas manifesto por este meio que qualquer recurso à via judicial, será contestado com a utilização da vossa carta registada com AR como prova e muito provavelmente com o chamamento à demanda.
O Advogado”.
15. A presente ação foi proposta no dia 16 de Outubro de 2023.
16. Os Réus foram citados para contestar a presente ação no dia 27 de Outubro de 2023.
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Factos Não Provados
a) Que tenham sido recorrentes as ocasiões em que a Autora foi abordada pelos Réus, no sentido de lhes emprestar determinados montantes pecuniários para fazer face a várias despesas diárias daqueles.
b) As partes tenham acordado que os pagamentos aludidos em 4) fossem mensais.
c) Tenha sido a dificuldade de legalização do veículo automóvel aludido em 6) a provável causa do registo do mesmo na data referida em 7).
d) A solicitação aludida em 10) tenha tido como desiderato a Ré proceder à legalização do veículo automóvel que acabara de adquirir e que a Autora tenha acedido a tal solicitação com a condição de tal valor ser somado ao valor em dívida.
e) Após o ano de 2015 e por via da separação da Autora, esta tenha passado a deslocar-se regularmente ao Algarve, permanecendo vários dias em casa dos RR. em virtude de não ter qualquer ocupação profissional, tendo sido neste contexto, e por alegar dificuldades económicas, que pedia regularmente dinheiro emprestado ao Réu (…).
f) O Réu (…) tenha emprestado por diversas vezes, entre os anos de 2015 e final de 2019, à Autora, quantias de € 500,00 [quinhentos euros] ou de € 1.000,00 [mil euros] em dinheiro e que uma vez atingido o montante total de € 10.000,00 [dez mil euros] de empréstimos, aquele tenha colocado um ponto final em tal demanda e haja solicitado à Autora o seu reembolso.
g) Nos dois primeiros anos, o Réu tenha emprestado à Autora cerca de € 2.000,00 [dois mil euros] em cada ano e nos dois últimos, entregou-lhe a quantia restante até que atingiu o limite de € 10.000,00 [dez mil euros].
h) A Autora haja acordado com o Réu que, logo que aquela procedesse à venda do imóvel aludido em 2), faria o total reembolso daquele montante de € 10.000,00 [dez mil euros], e daí a consequente transferência aludida em 5).
i) A Ré Fátima nunca teve conhecimento dos empréstimos do marido à Autora, até que soube da existência do montante debitório de € 10.000,00 [dez mil euros].
j) Durante a pandemia ocorrida em 2020, e na sequência da mesma, a Autora tenha feito várias estadias na casa dos Réus em Faro porque não tinha outros circuitos alternativos de família e amigos para conviver, tendo sido nesta constância que a Autora, no final de ano de 2021, pediu a Ré que lhe emprestasse € 1.000,00 [mil euros], quantia que lhe devolveria no princípio do ano seguinte, o que veio a suceder com a transferência aludida em 11).
k) Todos os empréstimos efetuados pelo Réu à Autora hajam sido realizados em dinheiro que movimentava da conta de caixa da sua atividade comercial do quiosque que manteve até ao ano de 2023 na Estação (…) na cidade de Faro.
l) Os Réus tenham sido interpelados pela Autora, entre o período de Janeiro de 2020 e Maio de 2023, para procederem à restituição das quantias que lhes haviam sido entregues, nas seguintes ocasiões:
- Em Junho 2021: encontro da A. com a R. em Matosinhos para uma formação lionística;
- Em Julho 2021: o aniversário do clube no Vila Sol e Torneio de Golfe em Vilamoura;
- Em Outubro 2021: rastreio da Visão no (...) de Quarteira;
- Em Novembro 2021: rastreio da Diabetes com o apoio da Junta de Freguesia;
- Em Dezembro 2021: almoço de Natal com os sócios; ação de entrega de brinquedos no Hospital de Faro; ação de entrega de material escolar para a Fundação António Aleixo.
- Em Fevereiro 2022: Jantar Solidário no Casino de Vilamoura; preparação de 8 paletes de livros para enviar para Angola;
- Em Março 2022: Almoço de Aniversário do Clube de Setúbal; cerimónia no Convento de Odivelas com a presença do Presidente da República no evento correspondente ao envio dos livros para Angola; jantar no Clube Lisboa Norte; almoço aniversário do clube Alvalade;
- Em Abril 2022: evento Solidário nas Piscinas de Quarteira;
- Em Maio 2022: convenção de 3 dias na Maia; reunião de Gabinete do clube realizada no Hotel Hilton Vilamoura; em maio jantar Solidário no Casino de Vilamoura;
- Em Julho 2022: almoço de sócios do clube e transmissão de funções; Torneio de Golfe no Vila Sol;
- Em Novembro 2022: Evento Diabetes – caminhada e rastreio; almoço Solidário no clube Vila Sol;
- Em Dezembro 2022: almoço de natal com sócios do clube; encontro Solidário de Natal nas Piscinas de Quarteira; ação de entrega de Brinquedos no Hospital de Faro; Gala Solidária no Cineteatro Louletano. - Em Janeiro 2023: jantar no clube Lisboa Norte;
- Em Fevereiro 2023: festa da Paz e Almoço de aniversário do clube de Setúbal;
- Em abril 2023: reunião mensal do clube de Vilamoura com eleição da nova direção; Gala Solidária no Casino de Vilamoura;
- Em Maio 2023: 3 dias de Convenção Distrital na Figueira da Foz.
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De Direito
Do mútuo nulo por falta de forma e da vinculação da ré à obrigação de restituir
A autora veio a juízo pedir a condenação de ambos os Réus a restituírem a quantia de € 11. 000,00 com fundamento em contrato de mútuo com ambos celebrado.
Na definição do artigo 1142.º do Código Civil (diploma legal a que se reportarão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem), diz-se contrato de mútuo aquele “pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
À luz da factualidade apurada, tal como se deixou descrita, considerou-se na sentença recorrida ter a Autora logrado fazer prova, em cumprimento do ónus que sobre si recaía – cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil – de ter feito entrega a ambos os RR, a solicitação destes, da quantia de € 10.000,00, tendo-se estes obrigado a proceder à respectiva restituição, o que consubstancia a celebração de um contrato de mútuo, nos termos do transcrito artigo 1142.º.
Todavia, constatada a inobservância da forma escrita imposta por lei para os mútuos de valor superior a € 2.500,00 – artigo 1143.º, na redacção introduzida pela Lei 116/2008, de 4 de Julho – concluiu-se que o acordo celebrado entre a Autora e o os Réus era nulo por falta de forma por aplicação do regime do artigo 220.º, tal como, de resto, os próprios demandados haviam invocado na contestação apresentada, com a consequência de dever ser restituído tudo o que tivesse sido prestado, por força do disposto no artigo 289.º. Acrescentou-se que tal efeito restitutório poderia ser decretado pelo tribunal na esteira da doutrina fixada no Assento n.º 4/95, de 28 de Março de 1995, publicado no Diário da República n.º 114/95, I série A de 17 de Maio de 1995, hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência, nos termos do qual “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio jurídico como pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com o fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil”.
Como se vê das conclusões que os apelantes extraíram da sua alegação, questionam a condenação da ré mulher na restituição do montante emprestado, devendo ser declarada “a sua ilegitimidade”, impondo-se ainda fazer “operar a compensação com os montantes entregues pelo recorrente (…)”.
No que respeita à alegada ilegitimidade da ré mulher, é conhecida a distinção entre legitimidade para a causa e a legitimidade material ou substantiva, que atina à titularidade do direito – “legitimidade ad actum que consiste no complexo que representa os pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que invoque ou que lhe seja atribuído” (cfr. ac. do STJ de 4/7/2017, processo n.º 5297/12.0TBMTS.P1.S1, em www.dgsi.pt). Considerando que o artigo 30.º atribui legitimidade para a acção aos sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, assentando a solução legal numa presumida coincidência entre as partes na acção e os sujeitos da relação material, é a ré mulher claramente parte legítima atendendo à alegação da autora, que invocou ter emprestado a aludida quantia a ambos os RR, a solicitação destes. Daí que, interpretando a alegação, se afigure questionar a apelante a sua condenação por entender não se encontrar obrigada a restituir qualquer quantia, uma vez que não era a titular da conta destino da quantia mutuada. Trata-se, todavia, de facto sem relevância, atendendo aos pontos de facto 1 a 6, uma vez que, independentemente da titularidade da conta creditada, que funcionou como mero veículo da entrega, a quantia teve como destino ambos os RR, que a aplicaram em seu proveito, ambos dela tendo beneficiado (cfr. a presunção de comunhão dos bens móveis adquiridos na constância do casamento constante do artigo 1725.º).
No que respeita à invocada compensação que, no dizer dos apelantes, deveria ter operado a extinção do crédito invocado pela autora, não encontra o mínimo respaldo na factualidade apurada. Vejamos:
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados que sejam os requisitos ali previstos, a saber: a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente e a iliquidez da dívida não impede a compensação, soluções consagradas nos n.ºs 2 e 3 do preceito.
Finalmente, dispõe o artigo 848.º que a compensação se torna efectiva mediante declaração de uma das partes à outra (vide n.º 1 do preceito).
Face ao assim estipulado, e tendo ainda em mente a inserção sistemática das disposições referidas, não oferece dúvida que a compensação configura uma causa extintiva das obrigações, sendo um meio de o devedor se livrar da obrigação por extinção simultânea do crédito equivalente de que dispõe sobre o credor. Como decorre do artigo 847.º, n.º 1, do Código Civil, a compensação funda-se na reciprocidade de créditos, exigindo portanto que que duas pessoas sejam simultânea e reciprocamente credor e devedor.
Ora, no caso vertente, nunca os RR apelantes reconheceram a existência de um crédito da autora, antes tendo alegado que as quantias por esta entregues correspondiam à restituição de quantias que antes lhe haviam emprestado, actuando portanto a apelada, na versão que trouxeram a juízo, no cumprimento dos mútuos que com ela haviam celebrado. A negação do contra crédito da apelante impedia obviamente que operasse qualquer compensação.
Acresce que os apelantes, ao invés do que se verificou com a autora/apelada, alegaram mas não provaram, subsistindo a apurada entrega por esta da quantia de € 10.000,00, que com total acerto foram condenados a restituir.
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Do enriquecimento sem causa
Alega finalmente a apelante mulher que a sua condenação na restituição à autora da quantia de € 1.000,00 não encontra fundamento na lei.
A respeito desta quantia, escreveu-se na decisão recorrida:
“No que respeita à quantia de € 1.000,00 [mil euros], cuja Autora transferiu para a conta bancária da Ré no dia 5 de março de 2022, ainda que não se tenha provado a existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes tendo por objeto a entrega da referida quantia, ainda assim está em causa uma deslocação patrimonial [sem aparente causa justificativa para a sua existência], motivo pelo qual deverá ser tratada e enquadrada ao abrigo do regime do enriquecimento sem causa”.
E constatando embora a ausência de prova de que “a transferência bancária efetuada pela Autora no dia 5 de Março de 2022 e no valor de € 1.000,00 [mil euros] para a conta da Ré tenha tido causa na celebração de um contrato de mútuo entre as partes, desconhecendo-se a causa – diga-se justificativa – para tal deslocação patrimonial ter sido operada”, concluiu-se pela existência de um enriquecimento injusto do património da Ré à custa do empobrecimento da Autora na mesma exacta medida, condenando-se a demandada e apenas esta a restituir o “montante com que injustamente se locupletou [cfr. artigo 473.º do CC], considerando o disposto no artigo 1692.º, alínea b), do CC (…)”.
Quanto a este segmento decisório, adianta-se, com ele não podemos concordar.
Nos termos do artigo 473.º do Código Civil[2] “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Resulta da transcrita disposição legal que são pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa: i. a existência de um enriquecimento; ii. a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; iii. a ausência de causa justificativa para o enriquecimento. Todavia, como adverte o Prof. Menezes Leitão[3], os enunciados requisitos são de tal modo genéricos que seria possível efectuar uma aplicação indiscriminada desta cláusula geral, colocando em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo. Para obviar a tal efeito, o artigo 474.º consagra expressamente a subsidiariedade do enriquecimento sem causa, o qual só poderá ser convocado quando ao empobrecido não seja facultado outro recurso; existindo outro fundamento para a acção de restituição (v. g. como ocorre nos casos de invalidade ou existência de fundamento resolutivo do contrato), estará vedada a invocação do enriquecimento sem causa.
A obrigação de restituir fundada no instituto que se analisa exige em primeiro lugar, como referido, um enriquecimento, que há-de consistir na obtenção de uma vantagem patrimonial, seja qual for a forma que revista (aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio, ou ainda poupança de despesas); depois, a ausência de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido; finalmente, impõe-se que o enriquecimento haja sido obtido à custa daquele que requer a restituição[4].
Constitui ainda entendimento doutrinário e jurisprudencial constante o de que a falta de causa terá de ser não só alegada, como provada, de harmonia com o critério geral estabelecido no artigo 342.º, por aquele que pede a restituição. Não bastará, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer ainda o Tribunal da falta de causa[5].
Das categorias susceptíveis de integrarem o enriquecimento sem causa, importa ao caso dos autos, vistos os termos da sentença apelada, o denominado enriquecimento por prestação, o qual respeita a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem mas verifica-se uma ausência de causa jurídica para que o accipiens a possa recepcionar. “Nesta categoria, o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo, por isso, referida a uma determinada causa jurídica (…)”[6]. Está assim em causa um incremento consciente e finalisticamente orientado do património do terceiro, sendo a frustração (não realização) do fim visado com essa prestação que determina a obrigação de restituir.
A não realização do fim visado com a prestação pode ocorrer, consoante vem tipificado no n.º 2 do art.º 473.º: quando alguém realiza uma prestação com intenção de cumprir uma obrigação mas se verifica a inexistência da dívida que o prestante visava solver, o que fundamenta e legitima o pedido de restituição; quando o prestante realiza a prestação em vista de um determinado efeito futuro que se não verifica, não verificação que lhe permite igualmente exigir a restituição do que prestou; e, finalmente, quando a causa jurídica da prestação desaparece depois da sua realização[7].
No caso em apreço a autora invocou que a entrega da quantia de € 1.000,00, correspondendo a solicitação da ré, correspondia a um empréstimo, ficando esta obrigada à restituição do mesmo montante. Todavia, como se vê do elenco factual apurado, resultou provado apenas que “A Ré solicitou ainda à Autora que esta lhe disponibilizasse a quantia de € 1.000,00 [mil euros]” (cfr. ponto 10), tendo a A., posteriormente, “a 5 de Março de 2022, feito uma transferência bancária no valor de € 1.000,00 [mil euros] para uma conta titulada pela Ré no Banco (…), S.A. com o IBAN (…)” (ponto 11).
Tal factualidade, atendendo ainda a que resultou não provado quanto pela autora havia sido alegado no sentido de a “A solicitação aludida em 10)” ter como “desiderato a Ré proceder à legalização do veículo automóvel que acabara de adquirir”, tendo acedido “a tal solicitação com a condição de tal valor ser somado ao valor em dívida” (al. d) dos factos não provados), não permitindo que se conclua pela existência do alegado mútuo, não permite igualmente que se conclua que tal entrega é injustificada, evidenciando apenas que não se provou a causa, o que é coisa diversa.
Com efeito, a ausência de prova da causa invocada, ainda que demonstrada a deslocação patrimonial, não equivale à falta de causa, sendo de recusar nestes casos a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, que não traduz uma regra “residual” de decisão, ou sequer uma regra de decisão que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela ausência de prova da causa de uma deslocação patrimonial cuja invocação se dirigia a outro efeito (v., neste preciso sentido, o acórdão do TRC de 17/9/2012, processo 64/09.1TBTMR.C1, disponível em www.dgsi.pt ). A falta de prova da causa alegada convoca antes a regra do artigo 342.º do Código Civil, não autorizando o recurso ao enriquecimento sem causa, por não ser este o sentido a atribuir à natureza subsidiária da obrigação nele fundada (que interviria na falência de prova da causa alegada).
Por assim ser, e recaindo sobre a autora o ónus de prova da falta de causa da entrega, causa de pedir subsidiária por si invocada, suportará as desvantagens da ausência de prova deste facto essencial. O que implica a procedência dos termos de recurso neste derradeiro segmento, mantendo-se o demais que vem decidido.
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Sumário: (…)
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pelos RR, absolvendo a Ré mulher da condenação de entrega à A. da quantia de € 1.000,00, acrescida dos juros vencidos e vincendos, mantendo-se quanto ao mais.
Custas do recurso a cargo da Autora e dos Réus na proporção dos seus decaimentos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
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Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Cristina Dá Mesquita


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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.º Adjunto: Sr. Juiz Desembargador Vítor Sequinho dos Santos;
2.ª Adjunta: Sr.ª Juíza Desembargadora Cristina Dá Mesquita.
[2] Diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[3] Direito das Obrigações, vol. I, 9.ª edição, 2010, Almedina, pág. 428.
[4] Profs. Pires de Lima, A. Varela, CC anotado, vol. I, comentário ao artigo 473.º.
[5] Neste sentido, arestos do STJ de 4 de Julho de 2019, processo n.º 2048/15.1T8STS.P1.S1, no qual se afirma que “vii. Para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento sem causa, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial à custa de outrem, sendo ainda exigível mostrar que não existe uma causa justificativa para essa deslocação patrimoniais, importando anotar que a falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elementos constitutivo do direito à restituição, impondo-se assim ao demandante que reclama a restituição por enriquecimento sem causa o ónus da demonstração dos respectivos factos constitutivos que contém a falta de causa justificativa desse enriquecimento.
[6] Prof. Menezes Leitão, ob. e loc. citados.
[7] Idem, págs. 442/443 e 479.