EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS
EXPLORAÇÃO TURÍSTICA
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Sumário

I. Nos termos do artigo 49.º do DL n.º 167/97, ainda aplicável ao empreendimento turístico de que é entidade exploradora a requerida no presente procedimento cautelar comum, os proprietários reunidos em Assembleia Geral podem destituir livremente a entidade exploradora das suas funções de administradora, ficando a eficácia da deliberação dependente de caução a prestar pela administração nomeada, sendo o montante a caucionar “correspondente ao valor anual das despesas referidas na parte final do n.º 2 do artigo 47.º”.
II. Trata-se de uma caução destinada a garantir a boa governação e conservação do empreendimento, cabendo ao administrador nomeado prestá-la em favor da entidade exploradora, sem que se encontre prevista a possibilidade de ser dispensada ou reduzida.
III. Pretendendo apenas a administração nomeada, mediante o presente procedimento cautelar comum, ser investida na administração do empreendimento sem dar cumprimento à exigência legal, é patente a ausência de pressupostos para o seu decretamento, manifesta improcedência que, nos termos conjugados dos artigos 590.º, n.º 1 e 226.º, n.º 4, alínea b), do CPC, fundamenta a decisão de indeferimento liminar.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo 406/24.0T8GDL.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Grândola


I. Relatório
(…), na qualidade de administrador nomeado do empreendimento turístico denominado Aldeamento Turístico (…), instaurou contra (…) – Administração e Exploração Turística, Lda., procedimento cautelar comum, pedindo a final:
a) Fosse determinada a imediata entrada em funções do requerente enquanto administrador do Aldeamento Turístico (…), com dispensa de caução, por sua prestação a favor da requerida constituir um manifesto abuso de direito;
b) Fosse a requerida notificada para cessar, de imediato, a movimentação de qualquer conta bancária do Condomínio do Aldeamento Turístico (…);
c) Fosse a requerida notificada para entregar ao requerente no prazo de 10 dias os bens e documentos que discriminou, tudo com a cominação de que o não cumprimento das obrigações mencionadas e decorrentes das alíneas b) e c) do petitório determinaria a aplicação de sanção pecuniária compulsória no valor de € 200,00 por cada dia de atraso no cumprimento de tais injunções.
Alegou para tanto que a requerida é a entidade exploradora da parte turística do empreendimento denominado Aldeamento Turístico (…), com a classificação de 4 estrelas, sito na EN …, (…), com o registo (…) do Registo Nacional de Turismo.
Não tendo a requerida cumprido com as suas obrigações legais e regulamentares enquanto entidade exploradora, designadamente com a obrigação essencial de prestar contas, nem tendo dado execução às determinações constantes das deliberações tomadas na AGP que teve lugar no dia 28/11/2022, abstendo-se de convocar os proprietários para nova assembleia, foi a mesma marcada por iniciativa de proprietários representativos de mais de 25% do valor total do empreendimento.
Na AGP que teve então lugar em 24/9/2024, foi deliberada a destituição da requerida das funções de administração do aldeamento, deliberação fundamentada conforme consta da acta respectiva, tendo sido tomada por unanimidade dos proprietários presentes, representativos de 38,46% do valor total do empreendimento, vindo posteriormente diversos proprietários a apresentar declarações de adesão à deliberação tomada, representando agora os votos dos presentes e dos aderentes uma percentagem de 53%.
Na mesma AGP foi deliberada a nomeação do requerente para assumir as funções de administrador do aldeamento, continuando a requerida a exercer as funções de exploração turística, se reunidas as condições para o respectivo exercício.
Sustenta que devido à justa causa de destituição da requerida a exigência legal de prestação de caução a seu favor constitui um verdadeiro “benefício do infractor”, um abuso de direito nos termos do artigo 334.º do CC, disposição legal que expressamente invocou, pelo que deve ser dispensado de a prestar.
Uma vez que a requerida, tendo embora tomado pleno conhecimento das deliberações tomadas na referida AGP de 24/9/2024, se recusa a executá-las, antes ameaçando os proprietários com “uma suspensão de serviços”, estão reunidos, diz, os pressupostos da providência requerida.
Mais alegou que menos de metade das fracções está afecta a exploração turística, daqui resultando violação do disposto no art.º 27.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 34/97, pelo que nenhum sentido faz a prestação de caução, por tal não decorrer das normas relativas à propriedade horizontal e à função do administrador do que deve ser entendido como um mero condomínio.
Quando assim se não entenda, alegou, sempre a caução deverá ser fixada em valor não superior ao mencionado na acta da AP de 24/9, atendendo a que a exploração turística se encontra confinada ao período de 15 de Maio a 15 de Setembro, decretando-se em qualquer caso a providência requerida.
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O requerimento inicial foi objeto de despacho de indeferimento liminar.
Inconformado, o requerente apresentou o presente recurso, cuja alegação terminou com as seguintes conclusões:
1.ª A douta sentença está ferida de nulidade ao não apreciar a questão colocada pelo ora recorrente da inexistência da obrigação de caução a prestar a favor da entidade exploradora do alegado empreendimento turístico por invocado abuso de direito.
2.ª A prestação de caução, no caso concreto e perante a factualidade invocada na PI, a favor de quem não presta contas da sua administração, nem no prazo legal, nem muito depois de decorrido tal prazo, e que incumpre ostensivamente as deliberações dos proprietários, constitui manifesto abuso de direito, por clara violação dos limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico desse direito – artigo 334.º do Código Civil.
3.ª Por outro lado, é igualmente nula a douta sentença, ao não apreciar a factualidade invocada pelo ora recorrente nos artigos 114º a 120º da PI, aqui dados por reproduzidos, decorrendo da prova de tais factos, a efectuar em audiência de julgamento, caso sejam impugnados, a descaracterização do empreendimento como de natureza turística e, em consequência, a desnecessidade de caução.
4.ª Ora, inexistindo elementos reais em relação a tal exploração, mas sendo seguro que não se atingem os mínimos de frações dadas à exploração hoteleira e impostos por lei, inexiste a obrigação de prestar caução, algo e matéria sobre a qual tribunal se devia ter pronunciado, o que não fez na sentença, daqui correndo a segunda nulidade que a vicia.
5. Ao não ser atingido o número mínimo de frações do empreendimento afetas à exploração turística, que seria a metade das frações, cf. previsto no n.º 1 do artigo 27.º do Decreto Regulamentar 34/97, de 17.09, deixa de ser aplicável a legislação específica (DL 55/2002) e passam a ser aplicáveis as normas ínsitas no Código Civil relativas à propriedade horizontal.
6. E daqui decorre a inexistência de obrigação de pagamento de caução, o que a requerida não reconhece, antes se mantendo no incumprimento reiterado das deliberações dos proprietários e não facultando o acesso aos documentos e outros elementos elencados no pedido da PI.
7. A obstrução à entrada em funções da atual administração, na pessoa do requerente e ora recorrente, por parte da requerida (…), num quadro de falta de prestação de contas, de apresentação de orçamentos e de reiterado incumprimento de deliberações dos proprietários, causa um perigo grave e atual para os valores administrados, os quais são, anualmente, na ordem dos 300.000 EUR e cujo paradeiro ou aplicação é desconhecido.
8. Ocorre assim, no caso concreto, uma factualidade que integra uma ameaça de lesão grave dos interesses dos proprietários, consubstanciando o conceito de periculum in mora, fundamento essencial de decretamento da providência.
9. A douta sentença fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 9.º, nº 2 e 334.º, ambos do Código Civil, bem como do Decreto-Lei 55/2002 – artigos 47.º, n.º 2, 49.º, nºs 3 e 5 e n.º 1 do artigo 27.º do Decreto Regulamentar n.º 34/97, de 17.09”.
Concluiu pela procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença proferida, devendo os autos ser devolvidos à 1.ª instância para prosseguir os seus regulares termos.

Citada a requerida para os termos do recurso e da causa, veio defender o bem fundado da decisão apelada, concluindo como segue:
A) O Recorrente pretende impugnar a douta sentença proferida pela Exma. Sra. Dra. Juiz a quo que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar inominado por o considerar manifestamente improcedente em virtude do pedido e da causa de pedir não serem compatíveis com o escopo e finalidades da tutela cautelar, por não se encontrarem reunidos os pressupostos exigidos para o seu decretamento pelo artigo 362.º do CPC e por as pretensões do Requerente estarem dependentes do cumprimento das condições previstas no artigo 49.º do Decreto-Lei n.º 167/97, de 4 de Julho, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 55/2002, de 11 de Março.
B) E, para tanto, o Recorrente alega que a sentença é nula por entender que a Exma. Sra. Dra. Juiz a quo não se pronunciou sobre a existência de uma situação de abuso de direito relativamente à obrigatoriedade da prestação de uma caução a favor da Recorrida enquanto entidade exploradora do Aldeamento Turístico das (…) e/ou sobre a possibilidade de redução do valor da mesma – cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
C) Sucede, porém, que a sentença recorrida não enferma de qualquer nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que, conforme resulta evidente da leitura da fundamentação, a Exma. Sra. Dra. Juiz a quo abordou todas as questões suscitadas pelo Requerente, pois, para além de concluir pela inadequação e insusceptibilidade de utilização do procedimento cautelar para a finalidade pretendida, considerou inaplicável ao caso concreto o instituto do abuso de direito previsto no Código Civil, bem como a possibilidade de redução do valor da caução, nos termos requeridos;
D) A Exma. Sra. Dra. Juiz a quo afirmou, claramente, na sentença recorrida, que resulta do Decreto-lei n.º 167/97, de 4 de Julho, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 55/2002, de 11 de Março, que o Administrador nomeado em assembleia deve prestar caução de boa administração, a favor da entidade exploradora do empreendimento, destinada a assegurar o cumprimento do disposto no número anterior do citado preceito legal, no montante correspondente ao valor anual das despesas referidas na parte final do n.º 2 do artigo 47.º do diploma, sem o que não pode entrar em funções.
E) A Exma. Sra. Dra. Juiz a quo afirmou expressamente na sentença recorrida que “(…) a tutela cautelar não pode ser instrumentalizada, de modo a ultrapassar a letra da lei e aquilo que esta determina, recorrendo ao Tribunal, para que este possa aplicar institutos consagrados no Código Civil, de modo a ultrapassar obrigações legais impostas. (…)” Ou seja, verifica-se que se pronunciou claramente sobre a inaplicabilidade e/ou inexistência do instituto civilista do abuso de direito ao caso concreto!
F) A Exma. Sra. Dra. Juiz a quo também se pronunciou sobre a insusceptibilidade de redução do valor da caução, nos termos pretendidos pelo Requerente, porquanto, afirmou na fundamentação da sentença que o valor da mesma corresponderá ao que se encontra definido no n.º 2 do artigo 47.º do citado diploma legal.
G) Resulta do disposto no n.º 4 do artigo 47.º do referido diploma legal que “O administrador nomeado nos termos do n.º 2 deve prestar caução de boa administração, a favor da entidade exploradora do empreendimento, destinada a assegurar o cumprimento do disposto no número anterior, no montante correspondente ao valor anual das despesas referidas na parte final do n.º 2 do artigo 47.º, sem o que não pode entrar em funções.”
H) Por sua vez, resulta do disposto no n.º 2 do citado artigo 47.º que: “Os proprietários das unidades de alojamento dos empreendimentos turísticos que as retirarem da exploração turística destes mantêm a responsabilidade das despesas a elas relativas bem como, na proporção correspondente ao seu valor ,pelas despesas de conservação, fruição e funcionamento das instalações, dos equipamentos de uso comum e dos serviços de utilização turística de uso comum.”
I) Ou seja, da análise dos citados preceitos legais, verifica-se que o valor da caução que deve ser prestada pelo novo Administrador corresponderá ao valor total anual das despesas orçamentadas para fazer face às despesas de conservação, fruição e funcionamento das instalações, dos equipamentos, dos serviços de uso comum e dos serviços de utilização turística de uso comum.
J) Contrariamente ao que o Requerente alega, a Exma. Sra. Dra. Juiz a quo considerou que a Assembleia não pode, validamente, deliberar quais as despesas que em seu entender deve reportar-se a caução, assim como também não pode validamente deliberar que a caução se reporte apenas ao período da exploração porque, para além das necessidade de manutenção e de funcionamento das instalações equipamentos e serviços do Aldeamento Turístico perdurarem para além do época efectiva da exploração em cada ano, existem normas legais imperativas que definem os procedimentos e o valor da citada caução de boa administração – cfr. artigos 47.º e 49.º do Decreto-lei n.º 167/97, de 4 de Julho, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 55/2002, de 11 de Março.
K) Do que antecede, infere-se que não existiu qualquer omissão de pronúncia da Exma. Sra. Dra. Juiz a quo, mas sim um diferente entendimento do Tribunal, sobre os fundamentos exigidos para o decretamento de uma providência cautelar, as regras e o direito aplicáveis ao caso concreto.
L) Analisada a sentença recorrida, dir-se-á ainda que a Exma. Sra. Dra. Juiz a quo considerou ainda que não se encontravam previstos os requisitos legalmente previstos para decretação de um procedimento cautelar, nomeadamente o periculum in mora, porquanto, afirma claramente que sendo cumprida a condição legal, isto é, depositada a caução, nos termos legalmente exigidos, o Requerente poderia assumir as funções de administrador do condomínio do Aldeamento Turístico das (…).
M) Nestes termos, bem andou a Exma. Sra. Dra. Juiz a quo ao afirmar, na sentença recorrida, pela insusceptibilidade de aplicação de um alegado abuso de direito que não tem qualquer nexo de causalidade para aplicar (ou afastar da aplicação) uma norma imperativa que impõe, por um lado, a existência de uma deliberação de destituição e de nomeação, aprovada por mais de 50,01‰ do valor total do empreendimento, e, por outro lado, exige ao novo administrador o dever de prestar caução de boa administração, a favor da Entidade Exploradora, nos termos e pelo valor legalmente definido, como condição para iniciar funções.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se a sentença proferida padece de nulidade por omissão de pronúncia, impondo-se o prosseguimento dos autos em ordem a apurar a factualidade apurada.
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Fundamentação
O direito à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e acolhido no artigo 2.º do Código de Processo Civil determina que a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, pelo que a todo o direito, em regra, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir, a reparar a sua violação ou a realizá-lo coercivamente, “bem como os procedimentos necessários a acautelar o efeito útil da ação” (assim, C.º Abrantes Geraldes, “Temas da reforma do processo civil”, III, 2004, pág. 42).
Os procedimentos cautelares visam, pois, garantir um direito quando a sua tutela não pode esperar pela decisão judicial final. Constituem meios de tutela provisória da aparência de direitos “quando se comprove o periculum in mora, permitindo que sejam decretadas medidas provisórias com o objetivo de acautelar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação” quando o decurso do tempo possa fazer perigar o efeito útil da ação principal. Daí a sua natureza de processo urgente.
Estando em causa um procedimento cautelar comum, importa o disposto no artigo 362.º, n.º 1, disposição legal nos termos da qual “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
Preceitua ainda o artigo 368.º, n.º 1, que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”, acrescentado o n.º 2 que “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.
Resulta das transcritas disposições legais que, podendo ter uma função preventiva ou conservatória do direito que visa acautelar, o decretamento da providência exige a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
a) a probabilidade da existência do direito ameaçado, o fumus bonis iuris;
b) o fundado receio da lesão grave e irreparável do direito antes de ser proferida decisão de mérito, o periculum in mora;
c) a adequação da providência requerida a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado;
d) a proporcionalidade da providência, pressupondo que o prejuízo resultante para o Requerido não exceda consideravelmente o dano que se pretende evitar;
e) a inexistência de procedimento cautelar especificado que tutele o risco de lesão que se pretende evitar.
No caso em apreço, considerou-se na decisão apelada que, face ao alegado na petição inicial, o resultado pretendido não se compatibilizava “com o escopo e finalidades da tutela cautelar”, não se verificando desde logo o pressuposto elencado sob a al. c), sendo os pedidos formulados “corolário de uma realidade pré-definida”, uma vez que a produção dos efeitos da deliberação de substituição da requerida como administradora está dependente do cumprimento de requisitos legais que o requerente ainda não cumpriu, não cabendo ao tribunal determinar a sua dispensa.
A apelante dissente da decisão que, como vimos, diz ser nula por omissão de pronúncia, uma vez que o tribunal não apreciou, como devia, a excepção do abuso de direito nem a requerida dispensa/redução da caução atendendo ao alegado nos artigos 114º e seguintes da petição, o que sempre dependeria da prova a produzir.
Apreciemos, pois, os fundamentos invocados.
O vício da omissão de pronúncia que pode afectar a sentença (ou despacho, por força da equiparação que resulta do n.º 3 do artigo 613.º do CPC) e que é causa de nulidade nos termos da primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do mesmo diploma legal, relaciona-se, conforme é sabido, com o disposto na 1.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, que impõe ao juiz que resolva “todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Estão assim em causa as questões que o juiz devesse apreciar, o que exclui as argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos pelas partes, aos quais o tribunal não tem de dar resposta especificada ou individualizada (cfr. acórdão dos STJ de 1/3/2012, proc. 353/2000.E1.S1, e de 4/6/2019, proc. 65/15.0T8BJA.E1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt). E as questões sobre as quais o Tribunal não pode, sob pena de nulidade, deixar de se pronunciar, são apenas a causa de pedir (ou causas de pedir, quando subsidiariamente invocadas) alegada pelo autor e o pedido ou pedidos formulados, e as excepções invocadas pelo réu, sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso, que aqui não relevam.
No caso em apreço o recorrente, como resulta do relatório, pretende, ao fim e ao cabo, que o tribunal o invista na administração do empreendimento, impondo coactivamente à requerida a entrega dos bens e documentos que elencou e se abstenha de movimentar a conta bancária titulada pelo Aldeamento, com prévia dispensa da caução legalmente exigida, seja por via do instituto do abuso de direito, seja porque o Aldeamento Turístico (…), por não obedecer aos requisitos legais, não deve ser considerado empreendimento turístico, mas apenas um condomínio, requerendo subsidiariamente que seja admitido a prestar caução no montante que indicou.
Ao assim peticionado respondeu a 1.ª instância que mediante o uso do presente procedimento cautelar o que o requerente na verdade pretendia era contornar a exigência legal de prestação de caução, a qual não poderia ser ultrapassada por força de aplicação de institutos do código civil – assim se reportando inequivocamente ao convocado abuso de direito –, mais tendo concluído inexistir “periculum in mora”, dado que, uma vez cumprida a exigência legal, a administração passará para o requerente.
Resulta do exposto que o Tribunal bem percebeu qual era o objectivo último pretendido com a instauração do presente procedimento cautelar comum: conferir eficácia à deliberação de destituição da requerida como administradora e à nomeação do requerente em sua substituição sem prestar a exigida caução. E tendo rejeitado que o instituto do abuso de direito pudesse dar cobertura a tal pretensão, a par da constatação de que o requerente podia obter o efeito pretendido dando cumprimento à exigência legal, concluiu-se na decisão recorrida não se verificar o periculum in mora, sendo portanto meramente consequente a decisão de indeferimento liminar do requerimento.
Assim tendo dado resposta – ainda que negativa – à invocação do abuso de direito reconhece-se, no entanto, que a decisão recorrida omitiu pronúncia sobre a pelo requerente também alegada inexigibilidade da prestação de caução, por não reunir o empreendimento os requisitos necessários à sua qualificação como empreendimento turístico. Estando em causa um dos fundamentos da pretendida dispensa, caberá agora a este Tribunal suprir a omissão (artigo 635.º, n.º 1, do CPCiv), sem embargo de, caso se revele necessário o apuramento de factualidade pertinente alegada pelo requerente, determinar a devolução dos autos à 1.ª instância. Não é, porém, o caso.
Resulta do alegado pelo requerente que o Aldeamento Turístico (…) se rege pelo DL n.º 167/97, de 4 de Julho (com início de vigência em 1 de Julho de 1997), alterado pelo DL n.º 55/2002, interessando ainda o Decreto Regulamentar n.º 34/97, de 17 de Setembro, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 14/99, de 14 de Agosto, estando portanto abrangido pela excepção prevista no n.º 7 do artigo 75.º do DL n.º 39/2008[2].
Sobre a administração dos empreendimentos turísticos compreendidos no diploma rege o artigo 49.º do citado DL n.º 167/97 nos seguintes termos:
“1. Nos empreendimentos turísticos em que a propriedade das várias fracções imobiliárias que o compõem pertencer a mais de uma pessoa, as funções que cabem ao administrador do condomínio, nos termos do regime da propriedade horizontal, são exercidas, sem limite de tempo, pela respectiva entidade exploradora, salvo o disposto no número seguinte.
2. A assembleia de proprietários pode destituir a entidade exploradora do empreendimento das suas funções de administradora do mesmo, desde que a deliberação seja tomada por um número de votos correspondente à maioria do valor total do empreendimento e que no mesmo acto seja nomeado um novo administrador para substituir aquela no exercício dessas funções de administração.
3. No caso previsto no número anterior, o novo administrador do empreendimento turístico deve, para além das funções que lhe cabem nos termos da lei geral, assegurar a conservação e a fruição das instalações e dos equipamentos comuns, bem como o funcionamento dos serviços de utilização turística de uso comum, de modo a permitir que a entidade exploradora continue a exercer a sua actividade turística de exploração do empreendimento de acordo com a respectiva categoria.
4. O administrador nomeado nos termos do n.º 2 deve prestar caução de boa administração, a favor da entidade exploradora do empreendimento, destinada a assegurar o cumprimento do disposto no número anterior, no montante correspondente ao valor anual das despesas referidas na parte final do n.º 2 do artigo 47.º, sem o que não pode entrar em funções.
5. A caução referida no número anterior pode ser prestada por seguro, garantia bancária, depósito bancário ou títulos de dívida pública, devendo o respectivo título ser depositado na Direcção-Geral do Turismo.
6. Quando se verificar a situação prevista no n.º 2, os proprietários de fracções imobiliárias do empreendimento que tiverem votado favoravelmente a destituição da entidade exploradora das suas funções de administração passam a ser responsáveis pelas despesas de conservação e de fruição da sua fracção, ainda que, no caso de se tratar de uma unidade de alojamento, esta se mantenha integrada na exploração do empreendimento.”.
Sem entrar aqui em considerações sobre eventual (in)validade da deliberação tomada na Assembleia de Proprietários que teve lugar em 24/9/2024 (por não ter sido obtida a maioria requerida pela lei), resulta do preceito transcrito que, podendo os proprietários reunidos em Assembleia Geral destituir livremente a entidade exploradora das suas funções de administradora, a eficácia[3] da deliberação está dependente de caução a prestar pela administração nomeada, sendo o montante a caucionar “correspondente ao valor anual das despesas referidas na parte final do n.º 2 do artigo 47.º”. Trata-se de uma caução destinada a garantir a boa governação e conservação do empreendimento, cabendo ao administrador nomeado prestá-la em favor da entidade exploradora, sem que se encontre prevista a possibilidade de ser dispensada ou reduzida, tal como se fez notar na sentença recorrida. Estando em causa o cumprimento de uma exigência legal, não cabe invocar o abuso de direito em ordem a contornar a observância da norma indicada, a qual se afigura dotada de imperatividade, como bem se considerou na decisão apelada.
Sustenta no entanto a apelante que estando afectas à exploração turística fracções correspondentes a menos de 50% das unidades de alojamento, tal facto descaracteriza o condomínio como empreendimento turístico, não havendo por isso lugar à prestação de caução. Mas também aqui não lhe assiste razão. Vejamos:
O artigo 27.º do Decreto Regulamentar n.º 34/97, de 17 de Setembro, na redacção dada pelo Decreto Regulamentar n.º 14/99, de 14 de Agosto, preceitua no seu artigo 27.º que “Nos aldeamentos turísticos, pelo menos 50% das unidades de alojamento devem ser afectas à exploração turística do empreendimento” (vide n.º 1), dispondo o n.º 2 do preceito que “Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se integradas na exploração turística as unidades de alojamento do aldeamento turístico disponíveis para ser locadas dia a dia a turistas pela entidade exploradora do mesmo, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.
A inobservância de requisitos legais poderá conduzir a que seja retirada a qualificação de conjunto turístico ao aldeamento, mas a competência para tal pertence ao Turismo de Portugal, IP, como decorre da alínea f) do n.º 1 do artigo 7.º do DL n.º 167/97, com a consequente caducidade do alvará de licença ou de autorização de utilização turística, decisão que sempre poderá ser objecto de impugnação junto dos tribunais administrativos. Daqui decorre que, mantendo-se, por ora, a classificação do aldeamento turístico (…) como empreendimento turístico, está subordinado às regras enunciadas.
Em face a todo o exposto, considerando que a eficácia da deliberação tomada pela Assembleia de Proprietários em 24/9/2024 está dependente do cumprimento, pelo requerente, da legalmente exigida prestação de caução – não sendo impedida por qualquer conduta obstativa por banda da requerida –, na ausência de fundamento legal para que seja concedida a pretendida dispensa ou redução impõe-se concluir que, ainda a provar-se todo o alegado, sempre seria de recusar o decretamento das medidas requeridas. Manifesta improcedência que, nos termos conjugados dos artigos 590.º, n.º 1 e 226.º, n.º 4, alínea b), do CPCiv., fundamenta a decisão de indeferimento liminar proferida pela 1.ª instância, que aqui se confirma.
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Sumário: (…)
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo do requerente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv).
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Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Cristina Dá Mesquita

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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.ª Adjunto: Sr. Juiz Desembargador Vítor Sequinho dos Santos;
2.ª Adjunta: Sr.ª juíza Desembargadora Cristina Dá Mesquita.
[2] Nos termos do qual “7 - Os empreendimentos turísticos em propriedade plural existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei mantêm o regime de exploração turística previsto na legislação vigente aquando do respectivo licenciamento, salvo se, por decisão unânime de todos os seus proprietários, se optar pelo regime de exploração turística previsto no presente decreto-lei”.
[3] Que se trata de uma condição de eficácia da deliberação resulta hoje claramente da lei (cfr. o disposto no artigo 62.º do DL 39/2008 que, epigrafado de “Destituição da entidade administradora”, preceitua que:
“1 - Se a entidade administradora do empreendimento não cumprir as obrigações previstas no presente decreto-lei, a assembleia geral de proprietários pode destituí-la das suas funções de administração.
2 - A destituição só é eficaz se, no mesmo acto, for nomeada uma nova entidade administradora e se a mesma vier a prestar a caução prevista no artigo 59.º no prazo de 15 dias”.