A situação dos autos não preenche a previsão do n.º 1 do artigo 1349.º do CC. A passagem pelo interior da fracção das recorrentes não é indispensável, sendo possível a execução das obras através do acesso ao terraço onde as mesmas deverão ter lugar por meios alternativos. Daí que aquela norma legal não seja aplicável, seja directamente, seja por analogia.
Autoras/recorrentes: (…); (…).
Réu/recorrido: Condomínio do Edifício (…).
Pedidos das autoras:
Declaração de que cabe ao réu a responsabilidade de conservar o terraço de uso exclusivo da fracção BC, devendo os respectivos encargos ser repartidos pelos condóminos, nos termos do artigo 1424.º, n.º 1, do Código Civil;
Condenação do réu a proceder à reposição do pavimento cerâmico no terraço de uso exclusivo da fracção BC, uma vez concluídas as demais manobras de reparação, restituindo o espaço ao seu aspecto original.
Pedidos reconvencionais:
Declaração de que as autoras actuaram com abuso de direito;
Declaração de que a deliberação tomada no ponto 5 da assembleia de condóminos realizada em 20.01.2014, constante da acta n.º 48, é válida, permitida por lei e de pleno direito aplicável às fracções do condomínio do Edifício (…);
Declaração de que as autoras são responsáveis pelo incumprimento legal da sua obrigação de manter e conservar o terraço, de uso exclusivo, de que a sua fracção beneficia, limpo, fazendo dele um uso normal e obstando a que os ralos e as caleiras se entupam, provocando inundações e subsequentes infiltrações;
Condenação das autoras a restituírem, ao réu, o valor de € 17.379,76, despendido com as obras de reparação no referido terraço;
Condenação das autoras a reembolsarem o réu de outras reparações, que este venha a ter que realizar futuramente, advenientes da falta de cuidado na conservação do terraço da sua fracção;
Condenação das autoras a cederem o acesso ao terraço através da fracção autónoma BC, de modo a facilitar a realização das obras.
Sentença recorrida:
Julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
Condenou o réu a proceder à reposição do pavimento cerâmico no terraço de uso exclusivo da fracção BC, restituindo o espaço ao seu aspecto original;
Absolveu o réu do demais peticionado;
Julgou a reconvenção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
Condenou as autoras, enquanto herdeiras, a cederem o acesso pelo interior da fracção autónoma BC, pertencente às heranças deixadas pelos seus pais, para a realização da obra em que o réu foi condenado;
Absolveu as autoras do demais peticionado.
Conclusões do recurso:
I. A sentença proferida condenou as autoras/reconvindas, enquanto herdeiras, a cederem o acesso pelo interior da fracção autónoma BC, pertencente às heranças deixadas pelos seus pais, para realização da obra referida em A), alínea i), do dispositivo.
II. Baseou-se o tribunal a quo, para o efeito, no disposto no artigo 1349.º do Código Civil.
III. A colocação de pavimento cerâmico, em que o tribunal condenou o recorrido, faz parte de obra de reparação mais vasta, conforme resulta dos próprios autos.
IV. No projecto da obra, devidamente aprovado em assembleia, consta prevista e orçamentada alternativa de acesso ao terraço para efectivação das reparações a realizar (anexo 5 da acta 62, que corresponde ao doc. 6 da petição).
V. O acesso pelo exterior, de acordo com o orçamento aprovado, implica o pagamento de uma verba adicional de € 1.400,00.
VI. Foram emitidas quotas extraordinárias para as reparações, que contemplam a referida verba, tendo os condóminos ficado adstritos ao pagamento das mesmas na proporção da permilagem da respectiva fracção.
VII. No edifício existem 75 fracções autónomas, pelo que o valor que cada condómino teve que suportar para efeitos de acesso ao terraço, pelo exterior, reduz-se a uma quantia irrisória.
VIII. Uma das autoras reside no Brasil e a outra na área de Mafra.
IX. O acesso dos trabalhadores e de material pelo interior da propriedade das recorrentes teria, portanto, que ser deixada sem qualquer supervisão, com a exposição da fracção e respectivo recheio a terceiros.
X. Em alternativa, as recorrentes teriam que deslocar-se propositadamente à fracção, onde teriam que permanecer enquanto as obras fossem executadas, ou expor a fracção e respectivo recheio a terceiros.
XI. Tudo quando a obra em causa é realizada no interesse e em benefício do recorrido, isto é, de dezenas de outros proprietários.
XII. Pelo exposto, por não se mostrar justificado e indispensável o acesso pelo interior da fracção BC, já que onera as autoras de forma desproporcional e desnecessária, considera-se que não estão verificados os requisitos de que o artigo 1349.º do Código Civil faz depender a obrigação de o proprietário ceder a passagem.
XIII. O facto de os trabalhos orçamentados terem sido concluídos à excepção das obras em cuja realização se condenou o recorrido nos autos (ponto 3.1 do orçamento) não deve alterar ou subverter a lógica daquilo que se disse até aqui.
XIV. Uma vez que o recorrido tinha a obrigação de reparar e não reparou, caso seja necessário fazer nova despesa para acesso ao local pelo exterior, essa mesma despesa deverá onerar o recorrido, o qual, podendo e estando obrigado a realizar todas as operações de uma penada, assim não fez, por culpa sua.
XV. Assim, em suma, por violar o disposto no artigo 1349.º do Código Civil, deve ser revogado a alínea B) i) do dispositivo da sentença recorrida.
Questão a decidir:
Se as recorrentes estão obrigadas a cederem o acesso, pelo interior da fracção autónoma BC, pertencente às heranças deixadas pelos seus pais, para a realização da obra em que o recorrido foi condenado.
Factos julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – Encontra-se registado a favor das autoras, através da Ap. (…), de 2019/11/13, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão hereditária e permuta de quinhão, o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pelas letras BC, destinada a habitação, correspondente ao 1.º andar, letra F, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, denominado «Edifício (…)», sito na Av. (…), n.ºs 135, 137, 139, 141, 143, 145 e 147 e Travessa (…), em (…), concelho de Loulé, inscrito na matriz predial da freguesia de (…) sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º (…).
2 – A fracção autónoma identificada em 1 pertence às heranças abertas por óbito dos pais das autoras.
3 – O título de constituição de propriedade horizontal do prédio referido em 1 afectou à fracção autónoma BC o uso exclusivo de um terraço de 100,65m2, cujo acesso apenas é feito pelo interior da dita fracção.
4 – As autoras não residem na fracção autónoma referida em 1.
5 – O terraço referido em 3 serve de cobertura à fracção autónoma designada pela letra T.
6 – Em data não concretamente determinada, começaram a surgir infiltrações nas paredes mestras da estrutura do edifício e da laje situadas no nível inferior, provenientes do terraço referido em 3, provocando a corrosão das armaduras.
7 – Em data não concretamente determinada, mas anterior ao ano de 2013, na sequência de chuva, o terraço referido em 3 acumulou água e provocou a inundação da fracção autónoma referida em 1.
8 – Até há cerca de 10 anos, desaguavam para o terraço referido em 3, directa e verticalmente, três condutas de escoamento de água pluviais do telhado.
9 – Há cerca de 10 anos, o réu realizou intervenção no sistema de escoamento referido em 8.
10 – Em sede de assembleia de condóminos de 20.01.2014, foi deliberado, entre outros pontos, «Ponto 5 – Em relação ao ponto 5 – Terraços de cobertura com uso exclusivo – toda e qualquer tipo de manutenção ou reparações nestes espaços, bem como os respectivos custos, são unicamente da responsabilidade de quem usufrui dos mesmos, o que após submissão de tal proposta a votação, a mesma foi aprovada por 474,665‰, e com voto contra da proprietária sra. … (fração BF) que representa 17,272‰.
Ponto 6 (…).».
11 – A solicitação do réu, foi realizada, pelo Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ), em 11.04.2023, uma inspecção técnica à viga e laje de tecto da fracção T e ao terraço de cobertura referido em 3, para levantamento das anomalias e detecção da origem das infiltrações.
12 – No relatório elaborado pelo ISQ, na sequência da inspecção realizada ao terraço de cobertura, concluiu-se que:
«Este apresenta áreas de empoçamento (presença continuada de água após precipitação) revelando irregularidades nas pendentes e, por conseguinte, dúvidas relativamente ao bom escoamento da água.
(…) O pavimento cerâmico apresenta-se com aplicação irregular, alguma fissuração entre peças, entre rodapés e peças de pavimento, pontualmente com desenvolvimento de plantas e pendentes irregulares. Foi detetada, também, fissuração nos muretes exteriores da varanda.».
13 – Na assembleia de condóminos que teve lugar no dia 10.08.2023, foi apresentado um orçamento, elaborado por (…) e (…), datado de 17.07.2023, para reparação e impermeabilização do terraço referido em 3, do qual resulta, nomeadamente, que o «sobrecusto de mão de obra e equipamento devido às dificuldades acrescidas, dadas as condicionantes para acesso ao terraço (não é possível aceder pelo interior do apartamento)», se cifra em € 1.400,00, sendo de € 23.320,00 o «valor total dos trabalhos».
14 – Na Assembleia de condóminos referida em 13, entre outros assuntos, foi deliberado:
«Ponto 2
Referente a reparação urgente e indispensável da viga estrutural do interior da fracção “T”, após a discussão de quatro orçamentos, foi aprovado o orçamento da empresa (…) pelo valor total de € 5.664,22 (c/iva), valor a liquidar por todos os condóminos, por meio de uma quota extraordinária fixa calculada pelas permilagens (anexo 4), a liquidação deverá ser efectuada por transferência bancária para as contas (…) até ao dia 30/09/2023, sob pena de penalização de pagamento de juros à taxa legal ao ano e cláusula penal de 5% por cada mês em atraso em caso de incumprimento, aprovado por unanimidade.
Ponto 3
Após discussão de três orçamentos, referente à reparação do terraço de uso exclusivo da fracção BC (cobertura da fracção T) foi aprovado o orçamento (itens 1.1., 21., 2.2., 2.3., 2.4 e 4.1) da empresa … e … (anexo 5) pelo valor total de € 17.379,76 (c/iva), valor a liquidar por todos os condóminos, por meio de uma quota extraordinária fixa, calculada pelas permilagens (anexo 6) a liquidação deverá ser efectuada por meio de transferência bancária (…) até ao dia 30/09/2023, sob pena de penalização de pagamento de juros à taxa legal ao ano e cláusula penal de 5% por cada mês em atraso em caso de incumprimento, aprovado por unanimidade.
Ponto 4 (…)».
15 – Na presente data encontram-se realizados e concluídos os trabalhos descritos nos itens 1.1., 2.1., 2.2., 2.3., 2.4 e 4.1. no orçamento mencionado em 13, conforme deliberado no ponto 3 da acta da assembleia de condóminos que decorreu no dia 10.08.2023.
16 – Os trabalhos referidos supra em 15) foram realizados em data anterior a 18.01.2024.
17 – O sistema de escoamento da água do terraço referido em 3 era constituído, até à realização dos trabalhos referidos em 15, por três ralos dispostos ao longo do seu comprimento e alinhados ao centro, cuja instalação havia sido efectuada pelo réu.
18 – As autoras, em data não concretamente apurada, colocaram uma «pinha» em um dos ralos referidos em 11.
19 – O terraço, antes da realização dos trabalhos referidos em 15), não dispunha de pendentes com inclinação adequada ao escoamento para os ralos, provocando empoçamento de águas pluviais em algumas zonas, designadamente na zona central.
20 – Antes dos trabalhos referidos em 15, o pavimento e os rodapés do terraço de cobertura referido em 3 eram revestidos a cerâmico.
Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:
a) Sempre que chovia, a água acumulava-se no terraço referido em 3, por os ralos estarem obstruídos e impedirem o escoamento da mesma.
b) As infiltrações na estrutura do edifício referidas em 6 ocorreram por falta de limpeza do terraço referido em 3.
As recorrentes insurgem-se contra esta decisão, com argumentação que assim se sintetiza:
- No projecto da obra, aprovado em assembleia de condóminos, está prevista e orçamentada uma alternativa de acesso ao terraço;
- Essa alternativa, que prescinde do acesso pelo interior da fracção BC, implica o pagamento de um acréscimo de € 1.400,00;
- Foram emitidas quotas extraordinárias para as reparações, que contemplam a referida verba destinada a compensar o acesso ao terraço por via alternativa à passagem pelo interior da fracção BC;
- Tendo o edifício em causa 75 fracções, o valor que cada condómino suporta pelo referido acréscimo é irrisório;
- A obra é do interesse de todos os condóminos, sendo desproporcional onerar as recorrentes, que nem sequer residem na fracção, com o grave incómodo que a livre circulação de pessoas e materiais afectos à obra pelo interior daquela implicaria;
- Pelo que não se verificam os requisitos de que o artigo 1349.º do Código Civil faz depender a obrigação de o proprietário ceder a passagem.
Analisemos a questão.
Os artigos 1305.º e 1420.º, n.º 1, do CC, estabelecem, respectivamente, que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, e que cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. Trata-se, pois, de meras normas de enquadramento da questão em análise e foi como tal que o tribunal a quo as referenciou. Não foi delas que o tribunal a quo extraiu a solução que deu àquela questão.
Decisivo, foi o disposto no artigo 1349.º do CC. Com efeito, afirma-se, na sentença recorrida, «ser aqui aplicável analogicamente (artigo 10.º do Código Civil), o disposto no artigo 1349.º do Código Civil, segundo o qual, se, para reparar algum edifício, for indispensável fazer passar por prédio alheio os materiais para a obra ou praticar outros actos análogos, o dono do prédio (in casu, fracção autónoma) é obrigado a consentir nesses actos.»
Porém, o tribunal a quo aplicou esta norma legal com base num pressuposto que não se verifica: o de que a única forma de aceder ao terraço onde a obra deverá ser executada é através do interior da fracção das recorrentes. Com efeito, afirma-se, em sede de fundamentação da sentença recorrida, que «o uso exclusivo do terraço em causa nos autos está afecto ao uso exclusivo da fracção autónoma BC e o acesso ao mesmo apenas pode ser feito através do interior desta.»
Não é assim. Não pode confundir-se o acesso ao terraço no contexto da sua normal utilização com o acesso ao mesmo terraço no contexto da execução de uma obra de construção civil. O acesso normal faz-se, obviamente, através da fracção a cujo uso exclusivo ele se encontra afecto. O acesso no contexto da execução de obras de construção civil pode fazer-se através de meios excepcionais, justificados por essa finalidade e possíveis graças a meios técnicos apropriados, como, por exemplo, a utilização de andaimes, de guindastes e/ou de plataformas elevatórias. É, até, normal que isso aconteça, pois o trânsito de pessoas e materiais pelo interior de uma casa é susceptível de causar danos muito significativos.
No caso dos autos, o acesso ao terraço onde as obras serão executadas faz-se, no contexto de uma normal utilização, exclusivamente através da fracção das recorrentes. Porém, por aquilo que anteriormente afirmámos, daí não decorre que, em contexto de execução de obras de construção civil, estejam excluídas outras possibilidades de acesso.
A matéria de facto provada confirma a existência da possibilidade de acesso ao terraço sem ser através da fracção a cujo uso exclusivo se encontra afecta. Do ponto 13 do enunciado dos factos provados, que reproduzimos apenas na medida do necessário para a decisão do recurso, resulta que a empresa cujo orçamento foi aprovado previu um «sobrecusto de mão de obra e equipamento devido às dificuldades acrescidas, dadas as condicionantes para acesso ao terraço (não é possível aceder pelo interior do apartamento)». Prova evidente de que é possível aceder ao terraço e aí executar as obras sem necessidade de devassa da fracção das recorrentes para o trânsito de pessoas e materiais. Acesso esse que, acrescente-se, nem sequer é particularmente oneroso, tendo em conta a dimensão e o custo total das obras.
Saliente-se, por último, que o próprio recorrido reconhece, nos artigos 79º a 81º da contestação/reconvenção, que o acesso ao terraço através da fracção das recorrentes apenas facilita e torna menos onerosa a realização das obras, sendo, todavia, possível a partir do exterior do edifício.
Sendo assim, a situação dos autos não preenche a previsão do n.º 1 do artigo 1349.º do CC. A passagem pelo interior da fracção das recorrentes não é indispensável, sendo possível a execução das obras através do acesso ao terraço onde as mesmas deverão ter lugar por meios alternativos. Daí que aquela norma legal não seja aplicável, seja directamente, seja por analogia.
Consequentemente, podemos concluir que carece de fundamento a condenação das recorrentes a cederem o acesso pelo interior da sua fracção autónoma para a realização da obra em que o recorrido foi condenado. Deverá, pois, o recurso ser julgado procedente, revogando-se o segmento da sentença recorrida que dele foi objecto e absolvendo-se as recorrentes da totalidade da reconvenção.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente:
Revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou as recorrentes a cederem o acesso pelo interior da fracção autónoma BC, pertencente às heranças deixadas pelos seus pais, para a realização da obra em que o recorrido foi condenado;
Julgando-se, consequentemente, a reconvenção totalmente improcedente, dela se absolvendo as recorrentes.
Custas a cargo do recorrido.
Notifique.
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Mário João Canelas Brás (1º adjunto)
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2º adjunto)
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[1] Expressamo-nos assim visando facilitar a exposição. Temos presente que o direito de propriedade sobre a fracção integra as heranças dos pais das recorrentes.