ACÓRDÃO
REFORMA DA DECISÃO
DOCUMENTOS
SIGILO BANCÁRIO
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário

A argumentação expendida pelo recorrente como fundamento do pedido de reforma do acórdão é semelhante àquela com que fundamentou o recurso de revista por si interposto, não admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se de uma argumentação idónea para um recurso, mas não para um pedido de reforma de um acórdão.

Texto Integral

Processo n.º 2524/21.7T8PTM-F.E1


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Banco (…), S.A., requereu a reforma do acórdão, proferido por esta Relação em 20.02.2024, que julgou improcedente o recurso, por si interposto, do despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Portimão, que, considerando ser lícito o tratamento dos dados pessoais no âmbito desta acção, ordenou, além do mais, que o recorrente juntasse aos autos, em 10 dias, uma versão não truncada de determinados documentos.

Os fundamentos do pedido de reforma são os seguintes:

1. Contrariamente ao que resulta do acórdão a quo, o recorrente não suscitou ao tribunal qualquer objecção à junção da aludida documentação em acréscimo ao sigilo bancário invocado, decorrendo o assim decidido de uma manifesta falta de compreensão por parte do tribunal a quo, com todo o devido respeito, da tramitação ocorrida.

Na verdade,

2. E como resulta claramente dos autos, uma vez levantado o sigilo bancário, e sem prejuízo de discordar de tal decisão, pelas razões oportunamente expostas, o recorrente procedeu à junção da documentação em análise.

3. Simplesmente, fê-lo com respeito das normas do RGPD, cuja regra, nos termos do seu artigo 6.º, é a da ilicitude do tratamento, salvo se abrangida por alguma das suas excepções.

4. Isto é, fê-lo truncando o que considerou serem dados pessoais de terceiros, sem qualquer interesse para a prova pretendida fazer com tais documentos (e independentemente do entendimento do recorrente quanto à total irrelevância dos documentos para a boa decisão da causa).

5. Foi antes o douto tribunal a quo que, tendo recebido tal documentação truncada, veio a determinar, casuisticamente, que o tratamento nos autos dos aludidos dados pessoais seria lícito neste processo.

6. Nesse momento (e apenas nesse momento) deixando de existir – na tese do tribunal – o obstáculo legal à revelação no processo dos dados pessoais.

Note-se que,

7. No despacho proferido pelo Tribunal da 1ª Instância na sequência da junção operada, em momento algum se conclui que a junção efectuada pelo recorrente não cumpre com o determinado na decisão de levantamento do sigilo bancário.

8. Afirmando-se, tão só, que, sendo o tratamento dos dados pessoais lícito (no entender do tribunal, e sempre sem conceder), nada obstaria à junção não truncada dos documentos.

9. Desse despacho recorreu o autor, por entender, inversamente, que não se encontram verificados os pressupostos legais para o que o tratamento de dados pessoais de terceiros seja permitido.

Donde, e primeiramente,

10. Ao entender diversamente, julgando que o recorrente havia levantado qualquer novo obstáculo (mormente um que já devesse ter enunciado) à junção, fez tribunal a quo interpretação manifestamente errada dos factos em presença.

11. Redundando numa também, e sempre com todo o devido respeito, incorrecta qualificação jurídica dos mesmos, que é fundamento de reforma nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 616.º, n.º 2, alínea a), do CPC, ex vi do disposto no artigo 666.º do mesmo diploma.

Mas mais.

12. O tribunal a quo errou igualmente ao entender que a circunstância de o aqui recorrente não ter invocado a sujeição da junção pretendida ao disposto no RGPD no momento previsto no artigo 417.º, n.º 3, do CPC, teria determinado a preclusão da possibilidade dessa invocação.

13. Incorrendo em errónea qualificação jurídica do caso sub judice no âmbito do enunciado normativo.

Assim é, no entender do recorrente, por duas razões principais.

14. Em primeiro lugar, como se crê ser a todos os títulos evidente, pela própria natureza do bem – para mais, no caso, de terceiros estranhos à acção – que tal regime visa proteger, a ponderação e decisão, no sentido da sua aplicação, é de conhecimento oficioso.

Donde,

15. Sempre estaria o tribunal vinculado a (sendo o tema suscitado, ou não, pelo recorrente, mais cedo ou mais tarde) dele conhecer.

Veja-se que,

16. Essa mesma legislação está na base da inserção no CPC, em 2019, do n.º 3 do artigo 164.º do CPC, que prevê que «o acesso a informação do processo também pode ser limitado, em respeito pelo regime legal de protecção e tratamento de dados pessoais, quando, estando em causa dados pessoais constantes do processo, os mesmos não sejam pertinentes para a justa composição do litígio.»

17. E que é necessariamente norma de aplicação oficiosa, não estando sujeita a qualquer invocação das partes para que o tribunal conclua no sentido da sua aplicação.

18. Tendo, antes, o dever de assim o ordenar sempre que constate que existem dados pessoais nos autos que em nada interessam à boa decisão da causa, e cuja revelação possa ser violadora do RGPD (constatação que pode advir de muitas fontes, designadamente de advertência/informação veiculada nos autos pelas partes, como sucedeu in casu).

Em segundo lugar, e ligado a este primeiro argumento.

19. Entende-se igualmente que a aplicação do RGPD não é uma questão sistematicamente inserida (ou não necessariamente aí inserida) no escopo da recusa prevista no artigo 417.º, n.º 2, do CPC.

20. Tendo um âmbito de aplicação mais lato, que perpassa todo o processo (vide, designadamente, o já referido artigo 164.º, n.º 3).

21. E que encontra ainda uma outra manifestação no disposto no artigo 418.º do CPC, que prevê a possibilidade de o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, dispensar de confidencialidade algumas categorias de dados pessoais.

22. O que significará, a contrario, e em linha com o regime-regra restritivo da publicidade previsto no RGPD, que (i) o juiz deve assegurar a confidencialidade dos dados pessoais, sujeitando a sua (excepcional) revelação a decisão e apreciação casuística específica e que (ii) cabe nos poderes oficiosos do tribunal zelar pelos termos dessa confidencialidade.

23. O que, no caso vertente, implica que, quando o thema decidendum seja a dispensa de confidencialidade, não possa convocar-se o regime da recusa de cooperação da parte com o tribunal, com os efeitos preclusivos que decorreriam da sujeição da mesma ao princípio da autorresponsabilidade.

24. Cabendo antes do ramo dos poderes-deveres conferidos ao tribunal, que não carecem de alegação pela parte.

25. Não é demais, neste contexto, salientar que são os direitos de partes terceiras, sem voz no litígio, que são colocados em causa pelo tratamento dos seus dados no processo.

26. E nem se percebe, com todo o respeito, qual seria verdadeiramente o interesse que, no contraponto da exposição pública dos dados dessas partes, o tribunal a quo quereria proteger com a condenação do recorrente a um regime da preclusão – celeridade? Em detrimento, pelo menos em tese, de valores constitucionais, como, v.g., dignidade da pessoa humana, reserva da intimidade da vida privada, protecção do bom nome e segurança jurídica?

Para mais quando,

27. Como no caso vertente, a documentação foi junta, apenas com excertos muito limitados truncados, e que do próprio contexto em que se encontram resultam em nada interessar à prova que a contraparte com os mesmos alega querer fazer…

Nesta senda,

28. Interpretar o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPC e no RGPD (em particular, os seus artigos 5.º, n.º 1, alínea c) e 6.º) no sentido de que a aplicação do regime deste último diploma por parte do tribunal não pode ter lugar a todo o tempo, independentemente de invocação das partes, estando sujeito ver-se desaplicado pela mera circunstância de não ser «invocado» por uma das partes processuais.

29. Ou que, no limite, não pode justificar a junção com truncagem dos elementos relativos a dados pessoais de terceiros.

30. Redunda numa interpretação manifestamente desconforme à Constituição da República Portuguesa, mormente do direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º, n.ºs 1 e 2, da nossa Lei Fundamental, e com clara violação do princípio da proporcionalidade exigido pelo artigo 18.º, n.º 2, desse mesmo diploma.

31. Inconstitucionalidade que aqui se suscita para todos os legais efeitos.

Em face de todo o exposto,

32. Haveria o tribunal de ter revertido a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância.

33. Ao decidir diversamente, fez errada qualificação jurídica dos factos em presença no âmbito do artigo 417.º, n.º 2, do CPC, impondo-se antes ter integrado os mesmos no âmbito dos poderes-deveres de cognição oficiosa do tribunal, independentes de alegação das partes, e, subsequentemente, interpretando e aplicando correctamente o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, alínea c) e 6.º, n.º 1, alíneas c) e f), do RGPD, nos artigos 411.º e 417.º do CPC e nos artigos 18.º, n.º 2 e 26.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

34. Concluindo-se, em consequência, pela necessária a reforma do acórdão proferido, nos termos do disposto no artigo 616.º, n.º 2, alínea a), do CPC, ex vi do preceituado no artigo 666.º do mesmo diploma e a sua substituição por outro que admita a junção dos documentos em apreço, tal como truncados.

Ainda em sede de pedido de reforma do acórdão, o recorrente requereu a formulação de um pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, à luz do artigo 267.º, alínea b), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, sugerindo que lhe sejam dirigidas as seguintes questões:

Considerando os propósitos visados pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de Abril de 2016 (“Regulamento”) e, bem assim, os direitos que o mesmo visa proteger,

1. Pode a lei processual civil portuguesa, mormente o disposto no artigo 417.º do Código de Processo Civil, ser interpretada no sentido de a aplicação das disposições do Regulamento em matéria de licitude do tratamento de dados pessoais no processo estar dependente de invocação por uma das partes?

2. Em particular, pode ser interpretada no sentido de a aplicação das disposições do RGPD em matéria de licitude do tratamento de dados pessoais no processo estar dependente de invocação por uma das partes, apenas e só, até ao momento previsto no artigo 417.º, n.º 2, do CPC?

3. Ou antes, são as normas do RGPD que determinam a licitude ou ilicitude do tratamento de dados pessoais no âmbito de um processo judicial de aplicação oficiosa, a todo o tempo, por qualquer tribunal judicial, não carecendo de invocação por qualquer das partes?

4. Impõe o princípio da minimização, consagrado no artigo 5.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento, que o tribunal judicial que ordene a junção de documentos ao abrigo do disposto nos artigos 429.º ou 432.º do CPC, que contenham dados pessoais, aceite que os documentos sejam juntos com truncagem na parte que inclua esses dados pessoais?

5. As respostas às questões supra são diferentes se se tratar de dados pessoais de terceiros, i.e., de entidades que não sejam parte no processo judicial em causa?


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O artigo 616.º do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas legais doravante referenciadas) estabelece o regime da reforma da sentença. Nos termos do n.º 1 do artigo 666.º, este regime é aplicável à 2.ª instância.

Interessa-nos o disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 616.º, pois é ao abrigo desta norma que o recorrente requer a reforma do acórdão. Nela se estabelece que, não cabendo recurso da decisão, é lícito, a qualquer das partes, requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro da determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.

O recorrente considera que, por manifesto lapso dos juízes desembargadores que subscreveram o acórdão, ocorreram dois erros na qualificação jurídica dos factos:

- O primeiro, teria consistido numa errada interpretação do despacho recorrido e da tramitação que o antecedeu (pontos 1 a 11 do pedido de reforma);

- O segundo, teria consistido numa errada aplicação do princípio da preclusão, porquanto, por um lado, o regime jurídico da protecção e tratamento de dados pessoais é de conhecimento oficioso, e, por outro, a aplicação desse regime não é uma questão sistematicamente inserida (ou não necessariamente inserida) no escopo da recusa prevista no n.º 2 do artigo 417.º, antes tendo um âmbito de aplicação mais lato, que perpassa todo o processo (pontos 12 a 34 do pedido de reforma).

Constituirão estas questões objecto idóneo de um pedido de reforma de um acórdão ao abrigo do disposto nos artigos 616.º, n.º 2, al. a), e 666.º, n.º 1?

Sobre o que seja o erro, decorrente de manifesto lapso do juiz, na qualificação jurídica dos factos, escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: «É o caso quando o juiz (…) qualifique os factos com ofensa de conceitos ou princípios elementares de direito (…), incorrendo assim em erro grosseiro que determine a decisão por ele tomada.»[1] Tem de se tratar de «uma deficiência notória, resultante de lapso manifesto.»[2]

Sendo dentro destes apertadíssimos limites que a alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º permite a reforma do acórdão, parece-nos evidente que o recorrente faz um uso indevido deste mecanismo processual.

À argumentação expendida no acórdão cuja reforma pretende, o recorrente opõe uma contra-argumentação mediante a qual pretende demonstrar que aquela está errada e que é a tese jurídica que defende que está correcta. Por outras palavras, o recorrente pretende demonstrar que, naquele acórdão, foi cometido um erro de julgamento, decorrente de uma errada interpretação do despacho recorrido e de uma errada aplicação do princípio da preclusão. De forma alguma o recorrente aponta algo que possa ser qualificado como uma «ofensa de conceitos ou princípios elementares de direito», decorrente de um «manifesto lapso» do colectivo que proferiu o acórdão. Em vez disso, encontramo-nos perante uma pura discordância relativamente à decisão proferida e à respectiva fundamentação, que apenas poderia ser feita valer mediante a interposição de um recurso, nunca mediante um pedido de reforma do acórdão. «Tendo a reforma da sentença como desiderato suprir os lapsos ou erros manifestos assinalados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, não se destina a corrigir eventuais erros de julgamento ou a servir de veículo para o reclamante exprimir a sua discordância com a decisão ou defender a sua posição técnico-jurídica em relação às questões de direito resolvidas pelo acórdão objecto do pedido de reforma.»[3]

Sintomaticamente, a argumentação expendida pelo recorrente como fundamento do pedido de reforma do acórdão é semelhante àquela com que fundamentou o recurso de revista por si interposto, não admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se de uma argumentação idónea para um recurso, mas não para um pedido de reforma de um acórdão.

Também sintomaticamente, em sede de pedido de reforma do acórdão e à semelhança do que fizera em sede de recurso de revista, o recorrente requereu a formulação de um pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia. A formulação de tal requerimento, muito provavelmente inaudito em sede de reforma de uma sentença ou de um acórdão, evidencia que não está em causa qualquer «manifesto lapso», por parte do tribunal, que tenha determinado um erro na qualificação jurídica dos factos, mas sim uma pretensão de reapreciação jurídica da globalidade das questões que o recurso suscitava.

Flui do exposto que não é admissível a reforma do acórdão proferido por esta Relação em 20.02.2024 e que, em consequência disso, o pedido de reforma deverá ser indeferido.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, indeferir o pedido de reforma do acórdão proferido por esta Relação em 20.02.2024.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.


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27.02.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Maria Rosa Barroso (1.ª adjunta)

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2.º adjunto)


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[1] Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 4.ª edição, pág. 742, anotação 5 ao artigo 616.º.

[2] Acórdão da Relação do Porto de 28.10.2010 (Madeira Pinto).

[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2022 (Maria Clara Sottomayor).