A situação de impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas por parte dos recorrentes nunca deixou de existir, sendo, por isso, a mesma. A actual situação de insolvência constitui um mero prolongamento daquela que se verificava à data da prolação da sentença declarativa da insolvência que foi proferida no processo n.º 3491/12.3TBPTM.
O requerente (…) desenvolve a sua actividade profissional em regime de contrato de trabalho a termo certo, auferindo mensalmente o rendimento base de € 860,00;
A requerente (…) desenvolve a sua actividade profissional em regime de contrato de trabalho sem termo, auferindo mensalmente o rendimento base de € 830,00;
Os requerentes não têm outros rendimentos;
Os requerentes pagam uma renda de casa de € 550,00/mês;
As despesas fixas dos requerentes cifram-se em cerca de € 1.000,00/mês;
Os requerentes viram-se forçados a recorrer ao crédito e deixaram de conseguir cumprir as obrigações assumidas;
Daí apresentarem-se à insolvência;
Os requerentes são devedores, a diversas instituições bancárias, de uma quantia global não inferior a € 15.465,22.
Os requerentes formularam um pedido de exoneração do passivo restante.
Após dar, aos requerentes, oportunidade para se pronunciarem sobre a verificação da excepção de caso julgado, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Exceção de caso julgado:
(…)
Os requerentes indicaram os seguintes credores:
- Banco (…), SA, com um crédito de € 15.465,22, vencido em 09/02/2012;
- (…) Portugal, Unipessoal, Lda, com um crédito de € 45.032,54, vencido em 29/10/2009;
- MEO – Serviços de Telecomunicações e Multimédia, SA, com um crédito no valor de € 242,16, vencido em 17/04/2012;
Os requerentes foram declarados insolventes por sentença proferida a 13 de Setembro de 2012, no processo n.º 3491/12.3TBPTM, que correu termos no Tribunal da Comarca de Portimão.
Os requerentes foram notificados para se pronunciarem quanto à exceção de caso julgado, o que fizeram por requerimento que apresentaram em 8 de Dezembro de 2024, onde alegaram que apesar de terem sido declarados insolventes no referido processo, nunca beneficiaram da exoneração do passivo e que não se verifica caso julgado porque os credores agora indicados não são os mesmos do referido processo.
Cumpre decidir:
Os requerentes apresentam-se à insolvência alegando encontrarem-se impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas. Sucede que os mesmos devedores já se haviam apresentado à insolvência e foram declarados insolventes em 13 de Setembro de 2012, no processo n.º 3491/12.3TBPTM.
Impõe-se averiguar se esta ação importa uma repetição daquela outra que foi decidida no referido processo n.º 3491/12.3TBPTM.
Estabelece o artigo 580.º do Código de Processo Civil que:
1. As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
2. Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. (…)
E o artigo 581.º do mesmo Código que:
1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
A exceção de caso julgado tem por efeito a inadmissibilidade da segunda ação, por constituir uma repetição da primeira, e pressupõe sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
O requerente pretende ser declarado insolvente, pretensão igual à que deduziu no processo n.º 3491/12.3TBPTM.
No que respeita aos sujeitos processuais, há que atentar em que o processo de insolvência é um processo de natureza complexa, que comporta essencialmente duas fases: uma primeira fase, de natureza declarativa, onde se afere o estado de insolvência do devedor, ou a requerimento de um credor ou do próprio devedor; e uma fase executiva, de liquidação do património do devedor para pagamento aos credores.
Os sujeitos processuais no processo de insolvência são, pois, o devedor e os credores.
Quando o processo é desencadeado pelo devedor, a sentença é proferida sem contraditório dos credores – artigos 24.º, 27.º e 28.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – pelo que até à citação dos credores, que ocorre depois de proferida a sentença, não existe parte contrária, propriamente dita. De todo o modo, o devedor está obrigado a indicar todos seus credores – artigo 24.º, n.º 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - pelo que a identidade dos sujeitos, para efeitos de apreciação da exceção de caso julgado, afere-se face aos credores indicados pelo devedor.
Se atentarmos na lista de credores indicada pelos devedores e às datas de vencimento dos créditos, verificamos que os credores são substancialmente os mesmos do processo n.º 3491/12.3TBPTM, pois, embora a lista de créditos reconhecidos naquele processo não constem dois dos credores agora indicados, a data de vencimento das dividas é anterior à sentença de insolvência proferida no processo n.º 3491/12.3TBPTM, o que significa que, já nessa altura, estes credores eram credores dos aqui requerentes.
A causa de pedir, que constitui o facto jurídico do qual emerge a pretensão do autor, é, no processo de insolvência, a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações – artigo 3.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações resulta da sua situação patrimonial e do seu passivo. Se o devedor mantém o passivo que já tinha aquando da declaração de insolvência anterior e persistindo a impossibilidade de o pagar, nada de novo consta da causa de pedir que justifique uma nova ação.
Pois é o que sucede nestes autos: os aqui requerentes, em 2012, requereram e viram declarada a sua situação de insolvência perante o passivo que na altura apresentavam. Passivo que se mantém, pelo menos parcialmente, mantendo-se, segundo alegam, a sua incapacidade de pagamento.
Estão, assim, reunidos os pressupostos legais da exceção de caso julgado.
Não procede a alegação dos requerentes de que pretendem beneficiar da exoneração do passivo, e, com esse fundamento, obviar à exceção de caso julgado.
A exoneração do passivo constitui um incidente do processo de insolvência, e só é admissível caso haja processo de insolvência validamente instaurado e insolvência declarada. Não havendo fundamento legal para a abertura do próprio processo de insolvência, antes um impedimento legal à sua instauração, a intenção de deduzir o incidente não lhe atribui tal fundamento.
Em face do exposto, de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 580.º, 581.º, 577.º, alínea i), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e artigo 27.º, n.º 1, alínea a), deste Código, indefiro liminarmente o pedido de insolvência formulado pelos requerentes.
(…)»
Os requerentes interpuseram recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – O presente recurso visa a sindicar o despacho proferido em 11/12/2024, que decidiu indeferir liminarmente o pedido de apresentação à insolvência formulado em 29/09/2024.
2 – Decorrente das disposições conjugadas dos artigos 580.º, 581.º, 577.º, alínea i), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC, ex vi dos artigos 17.º CIRE e 27.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma.
3 – Em razão dos recorrentes terem sido declarados insolventes em 13 de Setembro de 2012, no processo 3491/12.3TBPTM, cujos termos correram na então Comarca de Portimão e posteriormente tramitado para Olhão.
4 – E aí liminarmente admitida o benefício da exoneração do passivo restante, em 5 de Dezembro desse mesmo ano.
5 – O qual veio a ser antecipadamente cessado, por desistência do pedido, a 1 de Julho de 2021, com consequente extinção da instância.
6 – Motivados pela situação de desemprego que enfrentavam, decorrente da epidemia COVID 19, então vigente.
7 – Esta nova apresentação à insolvência, levou o tribunal a quo a proferir despacho de indeferimento liminar, ao considerar estar-se perante a excepção dilatória de caso julgado.
8 – Os requerentes entendem que tal não ocorre, posto as situações assentam em causas distintas.
9 – É factual estarmos perante as mesmas partes, pretendendo novamente os devedores que, face aos credores, poder beneficiar do beneficio de exoneração do passivo restante.
10 – De relevo maior é o momento de constituição da dívida face a cada credor, tal como as condutas dos requerentes em ambas situações, as quais não são similares.
11 – Posto que a primária deriva de um inglório mas de certo modo normal, acumular de episódios economicamente desfavoráveis , enquanto que a segunda deriva de uma situação pandémica, por demais recordada e que colocou os requerentes em situação de desemprego.
12 – Pelo que não se entende verificável a aludida excepção dilatória que impede o conhecimento do mérito da causa.
13 – Derivado dos efeitos do caso julgado coexistem duas realidades, excepção dilatória de caso julgado e autoridade de caso julgado.
14 – A Relação de Coimbra, Proc. 392/09.6T8CVL.S1, de 28/09/2010, separou ambas figuras como:
- Excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (…), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido;
- Autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material, definida por uma sentença, possa ser validamente definida de modo diverso, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 518.º do CPC.
15 – Ou seja, o processo anterior foi apreciado, sob a capa do circunstancialismo a que a tal levou, pelo que é o presente processo merecedor de tal oportunidade, visto que o objecto do mesmo não é idêntico.
16 – Segurança jurídica é permitir que os destinatários das normas sintam que os normativos, ainda que definidos, possam ser aplicados de modo de modo sensível a cada situação concreta.
17 – In casu, os recorrentes não se apresentam novamente à insolvência por qualquer irresponsabilidade ou decisão irreflectida mas antes derivado ainda a uma situação pandémica que extrapolou o controlo de qualquer um.
18 – Pelo que se requer, a esse Venerando Tribunal, corrigir a decisão tomada pelo tribunal a quo.
19 – O qual entendem ter violado o disposto nas normas constantes nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 577.º, n.º 1, alínea i), 580.º e 581.º, todos do Código de Processo Civil.
Está em causa saber se se verifica a excepção de caso julgado.
Os recorrentes admitem que a identidade de sujeitos e pedido se verifica, mas consideram que outro tanto não acontece relativamente à causa de pedir, porquanto «as acções e condutas dos insolventes não é idêntica» (ponto 19 das alegações).
Segundo os recorrentes, a situação de insolvência que foi declarada no processo n.º 3491/12.3TBPTM «decorre de um infeliz mas normal acumular de situações e decisões que acabam por redundar no campo insolvencial», ao passo que aquela que pretende ver declarada na presente acção «decorre de inexoráveis e imponderáveis aspectos derivados de uma pandemia global, que a todos e aos insolventes, causou situações gravosas» (ponto 20 das alegações), pelo que «o objecto do processo não é idêntico» (ponto 23 das alegações).
Afirmam ainda os recorrentes que, «ao apresentar-se novamente à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante, não o fazem por ter criado maiores encargos, mas antes por uma dualidade de situações, uma nova realidade de desemprego decorrente da pandemia COVID 19 e a vergonha de se verem impossibilitados de rigorosamente nada poderem entregar à MI» (pontos 26 e 27 das alegações.
Salientam os recorrentes, por fim, que, no processo n.º 3491/12.3TBPTM, «em 1 de Julho de 2021, vieram a desistir do pedido de exoneração do passivo restante, uma vez que não têm possibilidade de cumprir, o que acarretou a extinção da instância relativa ao incidente de exoneração do passivo restante» (pontos 6 e 7 das alegações). Tal situação teria ocorrido «apenas face à total impossibilidade dos insolventes assumirem qualquer pagamento à fidúcia, como até então, face à sua situação de inactividade laboral, decorrente da situação epidemiológica, vulgo COVID 19, que o mundo enfrentava» (ponto 8 das alegações). «Ultrapassada tal situação e até demonstrativo da boa fé dos insolventes, entenderam estes, três anos volvidos, tornarem-se a apresentar à insolvência, na perspectiva de poder prosseguir e satisfazer, não apenas as suas expectativas mas também as dos próprios credores» (ponto 9 das alegações). «Noutras palavras, pelo facto de se encontrarem empregados, poder tornar a beneficiar da exoneração do passivo restante, entregando aos credores tudo o que viesse a ultrapassar o rendimento disponível» (ponto 10 das alegações).
Analisemos a questão.
O n.º 4 do artigo 581.º do CPC dispõe que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
O que deve entender-se por «mesmo facto jurídico» para o efeito de ajuizar sobre a identidade ou diversidade das causas de pedir de duas acções de insolvência?
A resposta a esta questão decorre do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIRE. Esta norma estabelece que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. É esta a causa de pedir no processo de insolvência: uma determinada situação de insolvência em que o devedor se encontra. Tal situação de insolvência consubstancia-se num complexo de factos: vinculação do devedor a um determinado conjunto de dívidas vencidas que, atenta a composição e o valor do seu activo (quando exista), se encontra impossibilitado de cumprir.
Quando a acção for proposta por um credor com fundamento na alegação de algum dos factos indiciários de uma situação de insolvência do devedor enumerados no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, «a causa de pedir não deixará de corresponder à concreta impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que é evidenciada/presumida pelo facto em questão (…). A causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponderá, portanto, à concreta impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas que se configure em determinado momento, seja ela invocada mediante alegação expressa dos factos que a evidenciam ou mediante alegação de um facto que, nos termos do artigo 20.º, a faz presumir.»[1]
Sendo esta a causa de pedir no processo de insolvência, verificar-se-á uma situação de identidade de causas de pedir se, em processos distintos, a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor for a mesma, ainda que o valor e a composição do passivo e do activo (quando haja) apresente, como é quase inevitável, alguma diferença.
Já estaremos perante causas de pedir distintas se as situações de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor forem diversas. Isso acontecerá se a primeira situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas tiver sido sanada, nomeadamente com recurso ao mecanismo da exoneração do passivo restante, e, posteriormente, o devedor, mercê da assunção de novo passivo que não consegue cumprir na época do seu vencimento, cair numa nova situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas.
Resulta da descrição que os próprios recorrentes fazem da evolução da sua situação pessoal, que eles nunca superaram a situação de insolvência que foi declarada no processo n.º 3491/12.3TBPTM.
Atente-se nessa descrição:
- Os recorrentes foram declarados insolventes no processo n.º 3491/12.3TBPTM, aí tendo sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante;
- Em 01.07.2021, os recorrentes desistiram do pedido de exoneração do passivo restante, por não conseguirem efectuar as entregas a que se encontravam obrigados devido à sua situação de inactividade laboral, decorrente da pandemia de Covid-19;
- Quando voltaram a ter rendimentos do trabalho, os recorrentes apresentaram-se novamente à insolvência, cuja declaração lhes permitiria beneficiar da exoneração do passivo restante.
Ou seja, a situação de insolvência que os recorrentes pretendem ver declarada neste processo é a mesma que o foi no processo n.º 3491/12.3TBPTM. Se a situação declarada no processo n.º 3491/12.3TBPTM nunca foi ultrapassada, logicamente mantém-se a mesma. Por outras palavras, a situação de impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas por parte dos recorrentes nunca deixou de existir, sendo, por isso, a mesma. A actual situação de insolvência constitui um mero prolongamento daquela que se verificava à data da prolação da sentença declarativa da insolvência que foi proferida no processo n.º 3491/12.3TBPTM.
Sendo assim, não pode deixar de se concluir que a causa de pedir desta acção coincide com a do processo n.º 3491/12.3TBPTM. Num e noutro processos, estamos perante a mesma situação de insolvência.
Sendo os sujeitos, o pedido e a causa de pedir deste processo de insolvência idênticos aos do n.º 3491/12.3TBPTM, concluímos, como o tribunal a quo, que se verifica a excepção de caso julgado. Consequentemente, o recurso terá de improceder.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes.
Notifique.
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Mário Branco Coelho (1.º adjunto)
Ana Margarida Leite (2.ª adjunta)
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[1] Acórdão da Relação de Coimbra de 24.01.2023 (Maria Catarina Gonçalves).