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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
CÁLCULO
Sumário
- tendo o rendimento indisponível sido fixado por referência a cada 1 dos 12 meses do ano, o apuramento do montante a ceder há de fazer-se mensalmente, por referência a cada 1 dos 12 meses do ano; - inexiste o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como rendimento indisponível; - se o Devedor não alcança, em determinado mês, quantia monetária que corresponda ao montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno, não cabe à massa insolvente prover o rendimento em falta; não cabe à massa insolvente ficar privada daquilo que no mês seguinte, por ex., exceda o rendimento indisponível para cessão em ordem a garantir, à custa dos credores, o sustento do Devedor. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I – As Partes e o Litígio
Recorrente / Devedor: (…)
Recorridos / Credores: (…), SA e outros
Decretada que foi a insolvência do Devedor, este requereu a exoneração do passivo restante, o que foi liminarmente deferido por despacho proferido em 03/10/2023, consignando-se que “o rendimento disponível do devedor/insolvente, objeto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que àquele advenham, a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 1 salário mínimo nacional, em cada um dos doze meses do ano.”
O Fiduciário apresentou o relatório anual sobre o estado da cessão de rendimentos elaborado nos termos do n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, relativamente ao primeiro ano do período de cessão, fazendo menção de que o Insolvente entregou apenas o montante de € 410,68 euros, estando por regularizar a quantia de € 6.932,53. Concluindo que não ter o Devedor cedido a totalidade do rendimento disponível, tendo, porém, cumprido na generalidade com os restantes deveres a que está adstrita para a concessão da exoneração do passivo restante.
II – O Objeto do Recurso
Notificado de tal relatório, o Devedor apresentou requerimento com vista a ver declarado que, em relação ao 1.º ano de cessão, nada terá a devolver, antes ficando com crédito para o ano seguinte no montante de € 789,39. Para tanto, alegou o seguinte:
- as quantias que o insolvente recebe a título de ajudas de custo não se traduzem em salário efetivo;
- presta serviços para a empresa (…), como pintor de segunda, em situação de deslocado;
- nessas circunstâncias, tem direito a auferir um valor de ajuda de custo para fazer face ás despesas de deslocação e alimentação;
- valor que é abonado semanalmente;
- no recibo, a empresa (…) faz o acerto de contas, ou seja, ao colaborador são abonadas as ajudas de custo a que teve direito nesse mês e descontado o valor que recebeu já semanalmente;
- o que não constitui retribuição, conforme jurisprudência que cita;
- os valores corretos a considerar, de outubro de 2023 a setembro de 2024, são diversos dos indicados pelo AI, sendo que o total do valor indisponível, nesse período, ascende a € 9.660,00;
- já o efetivamente auferido como salário totaliza a quantia de € 8.870,61.
Tal requerimento foi objeto do seguinte despacho:
«Com efeito, se os rendimentos são recebidos mensalmente, também a entrega tem de ser mensal, o que afasta qualquer cálculo anual para apuramento dos rendimentos objeto da cessão, considerando que todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, independentemente da sua proveniência ou designação, que excedam o judicialmente fixado como rendimento indisponível, devem ser objeto de cessão, e, quando recebidos pelos insolventes, por si imediatamente entregues ao fiduciário (artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE – vide, neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 28/03/2017, Proc. n.º 178/10.5TBNZR.C1, Acórdão da Relação de Évora de 13/04/2021, Proc. n.º 301/18.1T8STB.E1, e ainda Acórdão da Relação de Évora de 29/09/2022, Proc. nº 380/13.8TBABT.E1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim sendo, nunca o insolvente poderá ficar com qualquer crédito para o ano seguinte como defendido pelo mesmo.
Quanto às ajudas de custo, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, por rendimento disponível entende-se o conjunto de todos os rendimentos que provenham, a qualquer título, ao devedor, com exclusão:
“a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e dos seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Assim, as ajudas de custo, desde que ultrapassem o valor das despesas tidas pelo trabalhador, constituem “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”, pelo que as mesmas estão incluídas ou excluídas do rendimento disponível em razão da quantidade e não da qualidade. Dito de outro modo, o valor do rendimento mensal mínimo garantido já terá sido tido em consideração enquanto mero “valor de referência”, a partir do qual é fixado o montante mensal que o insolvente tem direito a reservar para si e que se encontrará excluído da obrigação de entrega ao fiduciário, ficando de fora quaisquer considerações sobre a natureza da retribuição (sendo indiferente o título a que lhe advenha, subsídios, salários, ajudas de custo, horas extraordinárias, ou outros rendimentos sem qualquer conexão com a relação laboral).
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 13/07/2020, Proc. n.º 1466/19.0T8VIS-D.C1, disponível em www.dgsi.pt, “(…) 2. As concretas despesas que o insolvente venha a documentar relativamente às necessidades comuns a qualquer pessoa – em vestuário, alimentação, saúde, alojamento, transportes – serão, em princípio, irrelevantes para o cálculo do montante indisponível. 3. O que vier a ser recebido a título de ajudas de custo não deve ser contabilizado para efeitos de cálculo do montante indisponível, apenas se e na medida em que, de facto e comprovadamente, corresponda à compensação de despesas efetuadas por ocasião do trabalho e com ele conexionadas.”
Tanto mais que, como se refere no citado Acórdão “temos de reconhecer a prática de se atribuírem montantes a título de “ajudas de custo” como forma de os subtrair aos impostos, compensando um salário baixo.” No mesmo sentido entendeu o Acórdão da Relação de Coimbra, de 04/05/2020, Proc. n.º 494/18.8CBR-B.C1, que “I – O rendimento disponível para efeitos de cessão ao fiduciário no âmbito da exoneração do passivo restante integra todo e qualquer rendimento auferido pelo devedor, independentemente da sua natureza, incluindo, portanto, remunerações do trabalho ou de outra natureza, subsídios e suplementos de qualquer natureza ou ajudas de custo, sendo apenas excluídos os rendimentos que se enquadrem nas alíneas e subalíneas do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
II – Ainda que as ajudas de custo ou suplemento de residência se destinem, em abstrato e por definição, a compensar determinadas despesas, esse rendimento não se considera, só por isso e independentemente da efetiva realização dessas despesas, excluído do rendimento disponível; o que é excluído do rendimento disponível não é o valor das ajudas de custo e do referido suplemento (que, para efeitos de apuramento do rendimento disponível, são rendimentos como qualquer outro), mas sim a parcela do conjunto de todos os rendimentos auferidos pelo devedor que seja necessária para assegurar as despesas referidas nas subalíneas da alínea b) do n.º 3 do citado art. 239.º e, designadamente, as despesas que comprovadamente foram efetuadas e que aquelas ajudas de custo ou suplemento visavam compensar.” É entendimento uniforme na jurisprudência que «a característica essencial das ajudas de custo é o seu carácter compensatório, visando reembolsar o trabalhador pelas despesas que foi obrigado a suportar em favor da sua entidade patronal, por motivo de deslocações ou novas instalações ao serviço desta, e a inexistência de qualquer correspectividade entre a sua perceção e a prestação de trabalho» (cfr. o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 10.11.2016, processo n.º 00764/13.1BEPNF). Assim, cabe ao insolvente comprovar que despendeu as respetivas quantias recebidas a título de ajudas de custo e que as ajudas de custo pagas pela entidade patronal se destinaram a compensá-lo, o que deverá comprovar doravante diretamente junto do Sr. Fiduciário aquando da remessa dos demais elementos para elaboração dos subsequentes relatórios anuais.
Relativamente ao primeiro ano do período de cessão e uma vez que já foi apresentado o relatório anual, notifique o insolvente para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos documentos comprovativos das despesas por si suportadas por ocasião do seu trabalho e com este conexionadas relativamente às ajudas de custos que recebeu uma vez que apenas essas podem ser excluídas do rendimento disponível.»
Inconformado, o Devedor apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação do despacho recorrido, a substituir por outro que que determine que, nos casos em que o rendimento do Recorrente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1 – A interpretação operada na sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu o requerimento do Recorrente no sentido do valor a entregar à massa insolvente ser feito através do cálculo da média com base no valor anual, é inconstitucional e viola os princípios da igualdade, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e direito a uma retribuição mínima.
2 – Segundo a tese do Tribunal a quo, estando perante duas situações materialmente idênticas, em que em termos anuais ambos os insolventes recebem o mesmo valor global, mas em que um por ter um regime de obter rendimento distinto é sujeito a um tratamento desigualitário, sem que se verifique qualquer motivo razoável que o justifique.
3 – É certo que não pode configurar um instrumento de desresponsabilização dos devedores, empregue unicamente com o objetivo de se libertarem de avultadas dívidas, contudo, no confronte entre o direito dos credores a serem ressarcidos e o direito à vivência com um mínimo de dignidade, este último deve prevalecer.
4 – Perante a irregularidade dos montantes mensais dos rendimentos auferidos pelo insolvente, só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ou de valor o mais aproximado possível, ao rendimento mensal indisponível fixado.
5 – Preservando-se assim o tratamento igual entre insolventes que tenham rendimentos estáveis e insolventes que não os tenham.
6 – Apesar do salário mínimo nacional, corresponder à expressão numérica do que o legislador ordinário entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal.
7 – Antes, tudo indica para sustentação do critério anual, pois que foi com essa periodicidade que o legislador determinou a apresentação de relatório do período de cessão/da fidúcia pelo Fiduciário (cfr. artigo 240.º, n.º 2, do CIRE)
8 – Motivo pelo qual, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada devendo ser substituída por outra que determine que nos casos em que o rendimento do Recorrente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida.
9 – Mostrando-se violados os artigos 239.º, n.º 3, do CIRE, 1.º, 13.º, 18.º, n.º 2 e 59.º, n.º 2, da CRP.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar se valor a entregar ao Fiduciário, em sede do incidente de exoneração do passivo restante, deve ser feito através do cálculo da média com base no valor anual.
III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os mencionados no que acima se deixa exposto.
B – A questão do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 235.º do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Entre essas disposições consta o artigo 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
Segue o n.º 3 determinando que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Trata-se de uma medida inovadora de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida[1]. Destina-se, pois, a promover a reabilitação económica do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março.
Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afectará, no final de cada ano, os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores. A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.[2]
Como é evidenciado no Preâmbulo do DL que aprova o CIRE[3], “A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
Nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, durante o período da cessão, o devedor fica (…) obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; (…).
O rendimento que constitui objeto de cessão tem que ser apurado mensalmente, tendo por referência o rendimento líquido efetivamente recebido, descontados encargos com a Autoridade Tributária ou com a Segurança Social[4] ou ainda verbas eventualmente auferidas a título de reembolso de despesas, etc.. O aporte de rendimentos ao património do Devedor, que pode ser reiterado, ocasional ou esporádico, por única prestação mensal ou por várias prestações fracionadas, ou ainda por cadência dispersa, tem que ser imediatamente, logo que recebido, encaminhado para o Fiduciário, na parte que exceda o rendimento indisponível. Como tal rendimento indisponível foi fixado por referência a cada um dos doze meses do ano, o apuramento do montante a ceder há de fazer-se mensalmente, por referência a cada um dos 12 meses do ano, levando-se em linha de conta todas as importâncias que, nesse período, foram creditadas no seu património.
Então, nos meses em que o aporte de rendimentos ficar aquém do rendimento indisponível, inexiste a obrigação de entrega de rendimentos.
Contudo, inexiste também o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como rendimento indisponível. O regime inserto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE não consubstancia uma garantia de rendimento a favor do devedor ao longo do período da cessão. Na verdade, por se tratar de incidente deduzido pelo Devedor com vista à sua reabilitação, ainda que à custa dos credores, o que se garante é que, havendo rendimentos superiores ao fixado como indisponível, eles reverterão em favor da massa insolvente.[5]
Se o Devedor não alcança, em determinado mês, quantia monetária que corresponda ao montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno, certo é que não cabe à massa insolvente prover o rendimento em falta; não cabe à massa insolvente ficar privada daquilo que no mês seguinte, por ex., exceda o rendimento indisponível para cessão em ordem a garantir, à custa dos credores, o sustento do Devedor.
Como se mostra exarado em acórdão proferido pelo TRE de 12/05/2022[6],
1 – Existe a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objeto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção diretora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restante.
2 – A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor; implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
3 – No apuramento do rendimento disponível o período de referência a ter em conta em tal afetação é o mensal, até porque, por norma estamos no domínio de relações laborais, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, ainda que se admita que, por razões de equidade, no plano concreto, de forma excecional, a correção do método de cálculo e de transferência possa acontecer quando ocorra uma grande oscilação de rendimentos de forma a garantir que o patamar mínimo de dignidade previsto constitucionalmente não é afetado pela cessão de rendimentos.
4 – A introdução de um mecanismo corretivo em que se decida que, nos meses em que os rendimentos sejam inferiores ao valor do ordenado mínimo nacional, a entrega do montante não é realizada é suficiente para garantir a equidade concreta normativamente exigida.
Cfr. ainda Ac. TRE de 29/09/2022[7]:
1. O instituto da exoneração do passivo restante não tem por função assegurar ao devedor um sustento mínimo durante todo o período de cessão, pois essa é função das ações alimentares – e se assim fosse, a massa insolvente teria o encargo adicional de garantir uma prestação alimentar ao devedor.
2. O devedor continua responsável pela obtenção dos seus rendimentos, tendo, até, a obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto”– artigo 239.º, n.º 4, alínea b), do CIRE.
3. Se a decisão inicial que admitiu o pedido de exoneração do passivo restante e fixou o valor a excluir do rendimento disponível assentou numa estrutura mensal de rendimentos e de despesas, e não está demonstrada a alteração de tais premissas, não ocorre fundamento para aplicar um mecanismo de ajustamento anual.
Ac. TRE de 20/02/2024[8]:
O cálculo do rendimento disponível para efeitos de objeto de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante deve ser feito por referência aos rendimentos auferidos pelo insolvente em cada mês e não por referência ao rendimento global anual.
Não se desconhecendo a existência de jurisprudência em sentido contrário, designadamente aquela em que o Recorrente alicerça a sua pretensão, certo é que, atentos os argumentos aqui aduzidos, não podemos deixar de sustentar a aferição mensal, sem direito a compensação, dos rendimentos auferidos pelo Devedor.
O que, manifestamente, não contraria os princípios constitucionalmente consagrados em sede de salvaguarda da dignidade da pessoa humana.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.
As custas recaem sobre o Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
Sumário: (…)
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 27 de fevereiro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
José Manuel Tomé de Carvalho
Mário João Canelas Brás
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[1] V. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, pág. 167.
[2] Cfr. Ac. TRC de 07/03/2017 (Jorge Manuel Loureiro).
[3] Cfr. ponto 45 da versão atualizada.
[4] Cfr. AC. TRC de 04/02/2020, Proc. n.º 695/13.
[5] Cfr. Ac. TRC de 28/03/2017, Proc. n.º 178/10.5TBNZR.C1.
[6] Proc. n.º 2955/20.0TBSTB.E1, relatado por Tomé de Carvalho, aqui 1.º Adjunto, e subscrito pela aqui relatora.
[7] Proc. n.º 380/13.8TBABT.E1, relatado por Mário Branco Coelho, subscrito pela aqui relatora.
[8] Proc. n.º 111/22.1T8VVC-B.E1, relatado por Cristina Dá Mesquita, subscrito pela aqui relatora.