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HABITAÇÃO
CONTRATO DE CRÉDITO BANCÁRIO
CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
NULIDADE
Sumário
- tratando-se de crédito à habitação abrangido pelo regime inserto no Decreto-Lei n.º 74-A/2017, enquanto assistir ao devedor o direito à retoma do contrato de crédito, enferma de nulidade a respetiva cessão em favor de entidade que não seja instituição de crédito; - sendo nula a cessão do crédito, não resta outra sorte à habilitação do cessionário que não seja a improcedência. (Sumário da Relatora)
Os autos consistem no Incidente de Habilitação de Cessionário, reportando-se ao crédito exequendo PT (…) que foi objeto do contrato de cessão de créditos assinado em 28 de dezembro de 2023, através do qual a Caixa Geral de Depósitos, S.A. declarou cedê-lo à Requerente.
A Requerente peticiona a sua habilitação no lugar da Exequente CGD para prosseguir a execução.
Os Requeridos foram notificados e não apresentaram contestação.
A Requerente foi notificada para individualizar a operação que se refere ao crédito exequendo, juntando documento em que a mesma seja assinalada.
A Requerente apresentou-se a declarar que o crédito cedido é o PT (…), juntando documento relativo a tal crédito.
Os Requeridos pronunciaram-se quanto ao documento fazendo menção de que o mesmo se refere a (…), requerendo a notificação da Requerente para explicar o motivo da respetiva junção, sob pena do mesmo ser impugnado na sua totalidade. Mais requereram a junção do comprovativo da comunicação a si efetuada da cessão do crédito da Caixa Geral de Depósitos, S.A.
Em resposta, a Requerente declarou que, por lapso, foram juntos os documentos errados, pelo que requer a admissão da junção aos autos dos documentos relativos ao crédito cedido PT (…), o qual está na lista de créditos junta com o contrato de cessão, nas pág. 14 e 184, correspondentemente.
Os Requeridos foram notificados para esclarecerem se desistem da oposição à habilitação.
Na sequência dessa notificação, os Requeridos afirmaram que mantêm a oposição, à habilitação, já que desconhecem a quem pertence o crédito cedido (o crédito PT …), um dos documentos juntos pela exequente não é legível.
Mais declararam desconhecer se a Requerente é uma instituição de crédito que tenha exclusividade da atividade profissional de concessão de crédito a consumidores, e que tenha legitimidade e capacidade para poder prosseguir com os contratos de mútuo nos termos contratualizados, uma vez que requereram, nos termos do disposto do artigo 28.º do DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho, o pagamento de uma só vez de todas as prestações vencidas e não pagas para o efeito de retoma dos contratos.
Pronunciou-se a Requerente, dando conta de que os documentos são legíveis e o crédito está neles identificado: afinal, é o crédito PT (…), tinha incorrido em novo lapso no requerimento anterior.
Mais sustenta que o crédito dos Executados se encontra resolvido, com execução pendente desde 05/04/2022, não existindo da parte do Exequente qualquer obrigação da retoma do crédito, nos termos pretendidos.
II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando procedente o incidente de habilitação de cessionário e, em consequência, decidindo declarar habilitada a Requerente para com ela prosseguirem, na medida do crédito cedido, os termos do processo de execução comum na qualidade de Exequente.
Inconformados, os Requeridos apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que que, declarando a ilicitude da cessão a favor da Habilitanda, rejeite o incidente de habilitação. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«a) Por apenso à ação executiva, veio a requerente requerer incidente de habilitação contra os executados, pedindo a sua habilitação como cessionária do exequente, a fim de, com ela, prosseguirem os termos da demanda, na medida do crédito cedido, invocando que o Banco exequente lhe cedeu o crédito que tem sobre os executados identificado como PT (…), aceitando tal cessão.
b) Os ora Recorrentes, opuseram-se à cessão, alegando que: «requereram nos termos do disposto do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho, o interesse em procederem ao pagamento de uma só vez de todas as prestações vencidas e não pagas para o efeito de retoma dos contratos – cfr. ref.ª citius 10965637 nos Autos Principais» e que «Ora, caso venha a ser deferida a retoma dos contratos, os executados desconhecem se a requerente (…), S.A., é uma instituição de crédito que tenha exclusividade da atividade profissional de concessão de crédito a consumidores, e que tenha legitimidade e capacidade para poder prosseguir com os contratos de mútuo nos termos contratualizados.»
c) Ora, desde logo, a Sentença recorrida nada refere a propósito da questão suscitada pelos Executados, sendo, pois, duplamente nula, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
d) E sem prejuízo dessa nulidade, cfr. resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2024, tirado no Processo: 5920/22.9T8MAI-A.P1.S1: «Numa execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do D.-L. n.º 74-A/2017, é nula a cessão de crédito que fundamenta o direito do exequente por este não estar em condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o artigo 28.º do D.-L. n.º 74-A/2017, quando ainda é possível o exercício deste direito, e o mesmo pressupõe a qualidade de instituição de crédito, que o exequente não tem.».
e) Porém, o mesmo não ocorre com a habilitanda, que, aliás, nem sequer alegou – pelo que não está nem podia estar provado – ser entidade habilitada nos termos legais à concessão de créditos reservados a instituições de crédito.
f) Os créditos em execução, constituindo créditos para aquisição de habitação, integram-se no âmbito de aplicação deste D.-L. n.º 74-A/2017, de 23 de junho, o que de resto se impõe desde logo que seja aditado à matéria de facto provada.
g) No caso concreto admitir a validade e eficácia da cessão dos créditos que a Exequente celebrou com os Executados, para a Cessionária aqui Requerente, que por não ser uma instituição de crédito alega não estar sujeita ao regime do D.-L. n.º 74-A/2017, consubstancia uma verdadeira “fraude à lei”, na medida em que frustra por completo os objetivos que presidiriam, expressamente repudiada pelo disposto no artigo 27.º do D.-L. n.º 74-A/2017.
h) Consequentemente, a sentença recorrida violou o disposto no DL nº 74-A/2017, artigos 2.º, 27.º e 28.º, bem como a Diretiva 2014/17/EU, do PE e do Conselho, de 4 de Fev., e consequentemente, o artigo 577.º do CC.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que a tutela do interesse dos consumidores está acautelada porquanto tem legitimidade para se substituir ao credor originário, em tudo o que demais direito contratados e lei aplicável às entidades bancárias no âmbito do contrato de mútuo cedido, não tendo sido violada qualquer disposição do DL 74-A/2017, de 23/06. Sustenta que deve suceder na posição do mutuante originário, incluindo para efeitos da aplicação do artigo 28.º do DL 74-A/2017, de 23/06, pois, mesmo não sendo uma instituição bancária (ou a mutuante), continua vinculada à retoma do contrato tal como sucederia com a mutuante originária, caso se verifiquem os pressupostos daquele normativo, visto que a cessão de créditos é posterior ao incumprimento por parte dos executados/mutuários que origina a retoma do contrato ao abrigo daquele normativo, mesmo que requerida em data posterior à cessão.
Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da nulidade da sentença;
ii) da nulidade da cessão de créditos por fraude à lei.
III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
O Exequente declarou ceder o crédito que tem sobre os Executados identificado como PT (…) à Requerente, que declarou aceitar.
Atento o regime inserto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, mais cumpre consignar os seguintes factos:
a) a Requerente não é uma instituição de crédito – cfr. n.º 15 das contra-alegações;
b) um dos dois créditos dados à execução decorre de Contrato Mútuo com Hipoteca, ao qual foi atribuído o número PT (…), através do qual foi disponibilizada aos Executados, a título de empréstimo, a quantia de € 173.000,00, que se destinou à construção de um imóvel para habitação própria permanente daqueles – cfr. requerimento executivo e documentação anexa;
c) no processo executivo foi deduzida reclamação de créditos pela Exequente CGD, S.A. – cfr. apenso A;
d) por requerimento de 16/09/2024, os Executados requereram sejam admitidos a proceder ao pagamento das prestações vencidas e não pagas para efeito de retoma dos contratos, nos termos do disposto do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho;
e) o imóvel hipotecado no âmbito do Contrato de Mútuo o n.º PT (…) não foi ainda objeto de venda executiva.
B – As questões do Recurso
i) Da nulidade da sentença
Os Recorrentes consideram que a sentença é nula porquanto não se pronunciou sobre a questão da invalidade do contrato de cessão de créditos em decorrência da impossibilidade que dele resulta de retoma do contrato de crédito nos termos previstos no artigo 28.º do DL n.º 74-A/2017, de 23/06.
Ora vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
É que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo réu. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.[1] Ou seja, a sentença não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.[2]
Constata-se que os Requeridos, embora não tenham contestado o incidente, invocaram, em sede de contraditório aos documentos juntos pela Requerente, desconhecer se esta é uma instituição de crédito que se dedique à concessão de crédito a consumidores, e que tenha legitimidade e capacidade para poder prosseguir com os contratos de mútuo nos termos contratualizados, uma vez que foi requerida a retoma dos contratos, nos termos do disposto do artigo 28.º do DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho.
Está em causa a seguinte disposição legal, relativa à retoma do contrato de crédito: 1 - O consumidor tem direito à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação abrangidos pelo presente decreto-lei ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas. 2 - Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento. 3 - O mutuante apenas está obrigado a aceitar a retoma do contrato duas vezes durante a respetiva vigência.
Já o artigo 37.º dispõe sobre a fraude à lei nos seguintes termos: 1 - São nulas as situações criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicação do disposto no presente decreto-lei. 2 - Configuram, nomeadamente, casos de fraude à lei: a) A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo;
(…)
Por se tratar de nulidade da cessão de créditos que sustenta a pretensão de habilitação da Requerente à qualidade de Exequente no processo de execução, por força do regime inserto no artigo 286.º do Código Civil, impunha-se a respetiva apreciação, apesar de não ter sido deduzida contestação com tal fundamento.
Verifica-se, assim, a nulidade da sentença, que nenhuma referência contempla quanto a tal questão.
Questão que se passa a conhecer, conforme impõe o artigo 665.º, n.º 1, do CPC.
ii) Da nulidade da cessão de créditos por fraude à lei
O crédito objeto de cessão é apenas um dos créditos exequendos.
Trata-se do crédito n.º PT (…), que decorre do contrato de mútuo com hipoteca destinado a financiar a construção de imóvel para habitação própria e permanente dos mutuários.
O imóvel hipotecado não foi ainda objeto da venda executiva.
Não houve reclamação de créditos por outros credores.
Então, conforme decorre do regime inserto no artigo 28.º do DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho, até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, assiste aos Executados o direito à retoma do contrato, desde que se verifique o pagamento das quantias devidas. A retoma do contrato implica a reversão da resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.
A retoma do contrato de crédito pode operar por via incidental no próprio processo executivo, mediante requerimento formulado nesse sentido, ou extrajudicialmente, mediante acordo entre credor e devedor.
A Cessionária, porém, não é uma instituição de crédito. Não está sujeita a escrutínio e controlo do Banco de Portugal, nem se lhe aplicam as regras que regulam a concessão de crédito. Não tendo tal qualidade, não está em condições de assegurar ao consumidor mutuário a retoma do contrato.
Nestes termos, tratando-se de crédito à habitação abrangido pelo regime inserto no DL n.º 74-A/2017, enquanto assistir ao devedor o direito à retoma do contrato de crédito não pode ter lugar a respetiva cessão em favor de entidade que não seja instituição de crédito.
A cessão de créditos nessas circunstâncias enferma de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 577.º/1, do CC e 37.º/1, do DL n.º 74-A/2017.
Assim vem sendo entendido.
Cfr. Ac. STJ de 29/10/2024, 5920/22.9T8MAI-A.P1.S1, Fátima Gomes:
«Numa execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do DL 74-A/2017, é nula a cessão de crédito que fundamenta o direito do exequente por este não estar em condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o artigo 28.º do DL 74-A/2017, quando ainda é possível o exercício deste direito, e o mesmo pressupõe a qualidade de instituição de crédito, que o exequente não tem.”[3]
Uma vez que é nula a cessão do crédito n.º PT (…), não resta outra sorte à habilitação que não seja a improcedência.
O que implica na procedência do presente recurso.
As custas recaem sobre a Recorrida – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
Sumário: (…)
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que revoga a decisão recorrida, julgando-se improcedente o incidente de habilitação de cessionário.
Custas pela Recorrida.
Évora, 27 de fevereiro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Eduarda Branquinho
Mário Branco Coelho
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[1] Acs. STJ de 07/04/2005 (Salvador da Costa) e de 14/04/2005 (Ferreira de Sousa).
[2] Ac. TRL de 9/07/2014.
[3] Cfr., ainda, Acs. TRG de 04/11/2021, Lígia Venade, TRC de 28/03/2023, Pires Robalo, TRC de 28/01/2025, Alberto Ruço.