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TRANSMISSÃO DE DIREITOS
HERANÇA
REGISTO PREDIAL
USURA HABITUAL
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I. Na transmissão, a favor de terceiros, de imóvel pelos herdeiros habilitados do titular inscrito no registo, encontra-se dispensada a inscrição no registo a favor dos herdeiros (cfr. alínea a) do artigo 55.º do Código do Notariado). II. A falta de registo a favor das herdeiras habilitadas, promitentes - vendedoras de prédio inscrito no registo a favor do falecido autor da herança, não constitui entrave à declaração judicial de transmissão do bem prometido a favor da promitente-compradora, em execução específica do contrato-promessa pelas mesmas outorgado. III. Para efeito de usura negocial, não constitui “inexperiência”, entendida como a ausência de um perfeito conhecimento das circunstâncias necessárias a uma completa valoração dos interesses em causa no negócio, a circunstância da interveniente nas negociações de um contrato-promessa de compra e venda não ser detentora de conhecimentos na área imobiliária e de ter aceitado um preço 40% inferior ao valor real do bem quando não resultou provado qualquer obstáculo a que tivesse consultado opiniões independentes antes de fixar o preço da venda. IV. Para haver abuso do direito, não basta que o respectivo titular exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do mesmo, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores, em termos clamorosamente ofensivos da justiça. V. Não constitui abuso do direito, a execução específica do contrato - promessa em que as promitentes-vendedoras prometeram vender bem imóvel por preço 40% inferior ao seu valor real. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Apelação 54/21.6T8SSB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Sesimbra - Juiz 1
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Manuel Bargado;
2º Adjunto: António Fernando Marques da Silva.
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I. RELATÓRIO
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A.
Na presente acção declarativa sob a forma de processo comum proposta contra (…) e (…), veio (…) pedir que seja proferida sentença que, produzindo os efeitos da declaração de venda omitida pelas RR., declare transferido para a A., por compra, do prédio rústico composto por pastagem, cultura arvense e oliveiras, sito em (…), com área de 2480 m2, sito na freguesia de Sesimbra (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção Z.
Para tanto, alegou ter celebrado com as Rés contrato-promessa pelo qual estas com sujeição a cláusula de execução específica, prometeram vender-lhe o bem imóvel em apreço mas, decorrido que está o prazo previsto para celebrar o contrato definitivo, recusam-se a fazê-lo.
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B.
As Rés contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Excepcionaram: a nulidade do contrato promessa por usura negocial; a anulabilidade do contrato por dolo da Autora; a anulabilidade do contrato por erro quanto ao objecto do negócio; e a ineficácia do contrato-promessa por falta de poderes do procurador que interveio em nome da A..
Pediram a condenação da A. a pagar-lhes indemnização, por litigância de má fé.
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C.
Respondeu a Autora, impugnando os fundamentos da defesa por excepção das Rés.
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D.
Fixado o valor em 15.000,00 euros, foi proferido despacho de saneamento do processo, admitidos os meios de prova e designada data para realização da audiência de discussão e julgamento.
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E.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que conheceu da matéria de facto e de direito, concluindo com o seguinte dispositivo:
“(…) julgo a presente ação procedente por provada e declaro transferido para a A., (…), por compra o prédio rústico composto por pastagem, cultura arvense e oliveiras, sito em (…), com área de 2.480 m2, sito na freguesia de Sesimbra (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção Z, condenando-se, assim, as RR., (…) e (…), produzindo a presente sentença os efeitos da declaração de venda omitida pelas Rés, devendo a A. liquidar às RR. o remanescente do preço ainda não pago de € 10.000,00 (dez mil euros), no prazo de 30 (trinta) dias em depósito efetuado em benefício das Rés, sob pena da ineficácia da presente decisão final.
Mais decido, julgar improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má fé e no pagamento às RR. na respetiva indemnização.
Custas a cargo das Rés.
O valor da ação: € 15.000,00.”
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F.
Inconformadas com o decidido, as Rés interpuseram o presente recurso de apelação.
Concluíram as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem itálico e negrito da origem,):
“(…)
UM: O douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não fez um julgamento correcto, quer no que se refere à matéria de facto, quer no que se refere à matéria de direito, tendo praticado um manifesto e grave erro judiciário, que permite o resultado chocante de um terreno em Sesimbra, com a área de 2.480 m2, que foi adquirido em 30 de Maio de 2003 pelo pai das Rés pelo valor de € 75.000,00 e foi avaliado nestes autos pelo menos em € 42.000,00 em 13 de Outubro de 2022, seja agora objecto de execução específica pelo valor de apenas € 15.000,00.
DOIS: Em primeiro lugar, apesar de ter sido decidido pelo Tribunal na audiência de julgamento a junção do documento em 21/12/2023, referência 98604816, a verdade é que não foi incluída na matéria de facto qualquer referência a este facto, ainda que o mesmo seja abordado na sentença, devendo por isso ser aditado à matéria de facto o n.º 5-A com o seguinte teor: "O imóvel em questão foi adquirido em 30 de Maio de 2003 por (…) a (…), e a sua mulher (…), pelo valor de € 75.000,00".
TRÊS: Para além disso, não foi incluída na sentença qualquer referência ao valor do imóvel na data de 21 de Fevereiro de 2020, quando a mesma facilmente se infere, quer de presunção judicial devido aos valores do terreno em 2003 e em 2022, quer das declarações da testemunha (…), devendo por isso ser aditada à matéria de facto o n.º 5-B com o seguinte teor: "O imóvel em questão tinha à data de 21 de Fevereiro de 2020 um valor nunca inferior a € 30.000,00".
QUATRO: Para além disso, verifica-se que o nº 23 se encontra incompleto em relação aos motivos declarados pelo Advogado das Rés para a falta de interesse na concretização do negócio, e que se encontram expressos na carta junta pela Autora como doc. n.º 10, devendo por isso ser aditado à matéria de facto um n.º 23-A, com o seguinte teor: "Acrescentando ainda que, em face desse elemento, o valor de venda do presente imóvel é substancialmente inferior ao seu valor de mercado, sendo que tal situação acarreta um elevado prejuízo para as nossas constituintes, sendo que tal responsabilidade apenas pode ser imputada à agência imobiliária".
CINCO: Para além disso, o douto Tribunal a quo considerou provados os factos n.ºs 5 e 6 com base nos documentos 1 a 4 juntos com a petição, quando esses documentos não fornecem qualquer prova desses factos, devendo por isso os mesmos ser considerados como não provados.
SEIS: O douto Tribunal a quo considerou ainda provados os factos n.ºs 11 e 12, sem qualquer prova, apenas com base nas declaração da Autora, sendo que os mesmos são infirmados pela comparação dos docs. N.ºs 2 e 6 juntos com a petição, tendo sido ainda desmentidos pelas testemunhas da Autora (…), (…) e das Rés (…), pelo que esses factos devem ser julgados não provados.
SETE: O douto Tribunal a quo considerou igualmente provados os factos n.ºs 13 e 14 com base em trechos da certidão permanente da conservatória do registo predial, quando não só essa prova não resulta das certidões juntos como docs. n.ºs 5 e 6 à petição inicial, como é contraditada pelas declarações da testemunha (…).
OITO: Da mesma forma, a sentença julgou provado o facto n.º 16, com o fundamento que seria notório, não dependendo de alegação, embora tenha sido alegado pela A., nem de prova, quando não se trata de qualquer facto notório pelo que não poderia ter sido julgado provado.
NOVE: A sentença considerou ainda provados os factos n.ºs 15, 17, 18, 19 e 52, apenas com base no documento n.º 7 junto com a petição inicial, quando o mesmo não foi assinado pela Autora, pelo que não se podem considerar provadas declarações suas nesse documento, e muito menos o acordo das partes, que não resulta do mesmo, devendo por isso os factos n.ºs 15, 17, 18 e 19 ser considerados como não provados, até porque das declarações das testemunhas (…), (…), e das Rés (…) e (…) resulta que não houve concordância das mesmas com o documento, devendo ser reformulado a redacção do facto n.º 52 para o seguinte: "O aditamento ao contrato-promessa foi elaborado a pedido de (…), tendo as Rés se limitado a assiná-lo, não tendo o mesmo sido assinado pela Autora".
DEZ: O douto Tribunal a quo considerou ainda provados os factos n.ºs 28 e 29, com base nos docs. 13 e 14 juntos com a petição, quando essa prova não resulta desses documentos, devendo por isso o facto n.º 28 ser considerado como não provado.
ONZE: Em face do relatório pericial, a redacção do facto provado n.º 31, encontra-se incompleta, devendo a mesma ser alterada para o seguinte: "E não tem licença para construção, tendo, porém, viabilidade construtiva".
DOZE: O douto Tribunal a quo considerou ainda provados os factos n.ºs 32 a 37 e 51, apenas com base nas declarações da testemunha (…) quando a mesma não poderia ser ouvida como testemunha, face ao seu manifesto interesse na causa, pelo que os factos sob os n.ºs 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 51 devem ser considerados como não provados.
TREZE: O douto Tribunal a quo considerou ainda como não provados os factos n.ºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, quando a prova dos mesmos resulta claramente da prova pericial e documental existente nestes autos, bem como dos depoimentos e declarações de parte das Rés (…) e (…), bem como dos depoimentos das testemunhas (…), (…), (…), (…), (…), (…), devendo por isso todos os factos considerados como não provados sob os n.ºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 passarem a ser considerados como provados.
CATORZE: Resultando do facto provado n.º 3 que as Rés não estão inscritas como proprietárias no registo predial, tal impedia só por si a procedência da acção da execução específica, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal a quo, uma vez que o artigo 9.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, estabelece que os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo, o que implica que a acção de execução específica tenha que ser julgada improcedente, uma vez que nunca a mesma pode ser utilizada para efectuar a transmissão de um imóvel nos casos em que a lei não admite a celebração do negócio transmissivo.
QUINZE: Verificando-se no caso presente uma situação de anulabilidade do contrato-promessa por usura negocial, nos termos e para os efeitos do artigo 282.º do Código Civil, dado que a Autora, (…) e a agência imobiliária obtiveram benefícios e injustificados, aproveitando-se da inexperiência das Rés e da sua mãe, deveria o Tribunal a quo ter julgado a acção improcedente, pelo que, não o tendo feito, a sentença violou os artigos 282.º e 287.º do Código Civil.
DEZASSEIS: Tendo a declaração de vontade das Rés no contrato-promessa e seu aditamento sido obtida por dolo por parte de (…), em nome da Autora, e a agência imobiliária, actuando em conluio, deveria ter sido julgada procedente a excepção de anulabilidade do contrato-promessa por dolo pelo que, não o tendo feito, a sentença violou os artigos 253.º, 254.º e 287.º do Código Civil.
DEZASSETE: Mesmo que se entendesse não ter havido qualquer sugestão e artifício por parte do Dr. (…), em nome da Autora, mas apenas por parte da agência imobiliária, continuaria a ter que ser julgada procedente a excepção de anulabilidade do contrato-promessa por dolo, nos termos do artigo 254.º, n.º 2, do Código Civil, uma vez que, quer a Autora, quer o Dr. (…) tinham (ou, pelo menos, deviam ter) conhecimento da actuação dolosa da agência imobiliária mediadora, pelo que, não o tendo feito, a sentença violou os artigos 253.º, 254.º e 287.º do Código Civil.
DEZOITO: Mesmo que se considerassem improcedentes as excepções de anulabilidade do contrato por usura e por dolo, ainda assim teria sempre que ser julgada procedente a anulabilidade do contrato com base em erro sobre o objecto do negócio, nos termos dos artigos 251.º e 247.º do Código Civil, uma vez que resulta claramente da prova produzida nestes autos que as Rés celebraram o contrato-promessa na convicção de que o terreno não teria viabilidade construtiva, e que não teria praticamente qualquer valor para efeitos de venda, nunca tendo vendido o imóvel se se apercebessem do erro e a Autora e (…) conheciam ou deviam conhecer a essencialidade para as Rés desse elemento, pelo que, não o tendo feito, a sentença violou os artigos 251.º, 247.º e 287.º do Código Civil.
DEZANOVE: Mesmo que não se considerasse procedente nenhuma das excepções apresentadas pelas Rés, não deixaria de ter que se julgar improcedente a acção de execução específica com fundamento no abuso de direito, por exercício inadmissível de posições jurídicas, ao se efectuar uma transmissão por € 15.000,00 de um terreno adquirido em 2003 por € 75.000,00 e que foi avaliado nestes autos em € 42.000,00, sabendo-se da especial fragilidade e dependência das Rés e do enorme benefício obtido pela Autora e por (…). (…)”
Finalizaram, pedindo a improcedência da acção e a absolvição das Rés do pedido.
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G.
A Recorrida contra-alegou, concluindo as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem negrito e itálico da origem):
“1.ª Ao contrário do que alegam as Recorrentes, nos presentes autos não deveria ter-se dado como provado que o imóvel em questão foi adquirido em 30 de Maio de 2003 por (…) a (…), e a sua mulher (…), pelo valor de € 75.000,00;
2.ª Não apenas porque tal facto não foi alegado por nenhuma das partes e nem sequer é essencial para a questão que se discute;
3.ª Mas também, e sobretudo, porque isso seria a consagração, como facto provado, de uma manifesta falsidade;
4.ª Na verdade, foi junta com o requerimento de 8.06.2024 – ref.ª 7720850 – a verdadeira escritura de compra e venda que é datada de 22.06.2004 e não, como dizem as recorrentes, de 30.05.2003, sendo o preço da venda de € 25.000,00 e não, como dizem as RR, € 75.000,00;
5.ª Não deve ser aditado o facto a que as Recorrentes aludem na sua terceira conclusão pela simples mas poderosa razão de que realmente nenhuma prova se produziu nesse sentido;
6.ª A avaliação de imóveis não se faz por presunções, muito menos por opiniões de testemunhas, mas mesmo que se fizesse isso seria reservado para os casos em que outra prova não fosse possível;
7.ª As RR quiseram pedir uma perícia ao valor atual do imóvel e, dessa forma, ter o efeito de conseguir um valor elevado na perícia beneficiando da evolução do mercado, mas com isso perderam a oportunidade de provar que preço realmente tinha na altura do negócio. Sendo evidente que a falta dessa prova, que à RR, apenas às RR e a mais ninguém competia, não pode agora ser suprida por uma presunção do Tribunal que, em última análise, sempre se fundaria em opinião de quem não é perito em avaliação de imóveis;
8.ª Quanto ao que as Recorrentes alegam na sua quarta conclusão, é meridianamente evidente que já se extrai do facto provado 23 que as RR consideravam que o imóvel tinha valor mais elevado, pelo que nada acrescenta o ponto 23-A que as Recorrentes pretendem ver aditado;
9.ª Nos seus depoimentos de parte ambas as RR confessam que são as únicas e universais herdeiras de (…) e que o referido senhor já faleceu. Sendo evidente, pela análise da documentação, que a atualização no registo ainda não tinha sido feita no momento da entrada da presente ação. Face ao exposto, nem se entende, salvo o devido respeito, o inconformismo das Recorrentes em relação aos factos provados 5 e 6, que devem ser mantidos sem qualquer alteração;
10.ª Contrariamente ao que as Recorrentes alegam na 6ª conclusão das suas alegações, os documentos 2 e 3 juntos com a PI provam realmente uma disparidade na área do terreno que aparece no processo como a única causa – nem as RR alguma vez falaram de outra – para não estarem inscritas como proprietárias no Registo Predial no momento em que celebraram o contrato de promessa de compra e venda;
11.ª Os factos provados 13 e 14 devem manter-se inalterados uma vez que é evidente que o documento 5 junto com a PI demonstra que existe um terreno de 220 m2 que foi desanexado dos autos e posteriormente vendido em 1983;
12.ª A existência de uma pandemia, dos confinamentos e das suas consequências, será dos poucos acontecimentos, talvez mesmo o único, que se pode afirmar com segurança que foi do conhecimento de todos os cidadãos, mesmo que muito mal informados e com capacidade de atenção ao mundo que os rodeia muito abaixo da média. Pelo que não são apenas factos públicos e notórios, são os factos mais públicos e mais notórios que se possa imaginar. Pelo que não deve deixar de se considerar provado o facto n.º 16, improcedendo a reclamação que contra ele fazem as Recorrentes;
13.ª É evidente portanto que o facto de a A. não ter aposto a sua assinatura no documento 7, que ela própria juntou com a Petição Inicial, não implica que os factos provados 15, 17, 18, 19 e 52 não se mantenham como tal, quer porque as RR o assinaram e disso é que se extraem a maior parte das conclusões que levam a tais factos provados, quer porque a A. esclareceu que conhecia e concordava com o teor do mesmo;
14.ª Basta cotejar os factos 28 e 29 da matéria de facto provada com o doc. 5 junto pelas próprias RR na sua contestação para se concluir que o decidido é rigorosamente verdade, pelo que nenhuma alteração a tais factos deve ser decretada;
15.ª Igualmente deve improceder a reclamação contra o facto 31, que as Recorrentes baseiam num relatório que em lado nenhum refere que o terreno tenha viabilidade construtiva e, sobretudo, é elaborado às características que o terreno tinha em Outubro de 2022 e não em relação às características que tinha quando as RR o prometeram vender;
16.ª E também deve improceder a reclamação constante da 12ª conclusão das alegações das Recorrentes. o pai da A. é realmente uma testemunha mas mesmo que as Recorrentes tivessem razão no que alegam – o que de modo algum se admite – tal questão deveria ter sido levantada no próprio julgamento e antes de serem colocadas as perguntas, e não após a sentença e de terem verificado que não gostaram das respostas;
17.ª Não devem ser considerados provados os factos que constam da matéria de facto não provada
18.ª A Recorrentes fazem cirúrgicas extrações do que as testemunhas disseram. Mas fazem-nas em tanta quantidade que esse Tribunal, até para contexto e facilidade, está colocado na posição de praticamente ter de ouvir toda a prova gravada, de onde com certeza chegará às mesmas conclusões que o Tribunal a quo;
19.ª Mais se baseiam, aliás, baseiam-se em primeira linha, no relatório pericial que, como já dissemos, por escolha livre e exclusiva das RR refere-se a um período temporal diferente do que aquele em que o negócio foi celebrado, pelo que nada prova em relação às características e valor do terreno ao tempo em que o negócio foi celebrado;
20.ª É manifesto o abuso de direito de que as RR se pretendem fazer valer no que a este propósito alegam, e que vem condensado da décima quarta conclusão das alegações de recurso a que respondemos;
21.ª É pacífico que elas são as únicas e universais herdeiras de seu pai e que, por conseguinte, o imóvel dos autos lhes pertence;
22.ª Nunca as mesmas puseram estes factos em causa, tendo antes os expressamente alegado – artigo 94º da contestação;
23.ª Nessa condição prometeram vender o imóvel;
24.ª Vêm agora dizer que o Tribunal não pode julgar a execução específica do contrato pelo motivo de que continuam a não estar registadas como proprietárias;
25.ª Ou seja, o motivo que alegam para a impossibilidade de cumprir o que foi decretado é algo que elas próprias podem contornar, bastando para tanto que registem, como aliás já deviam ter feito há muito, o imóvel em seu nome. Isto, claro, se o não fizeram já;
26.ª Pelo que é evidente a má-fé com que pretendem que não se cumpra o que é decretado pelo Tribunal;
27.ª Mesmo que assim não fosse, uma vez que as RR são únicas e universais herdeiras da pessoa que – supostamente – ainda está registada como proprietária, nada impede, em termos registrais, que a execução específica se cumpra, registando-se o imóvel em nome da Autora por venda dos herdeiros do proprietário registado;
28.ª Tratar-se-á, no momento em que a sentença transite em julgado, apenas de a concretizar em termos de registo, sendo que a levantarem-se problemas nessa fase e sendo problemas, como se vê que são, que as Rés podem facilmente solucionar, terão as mesmas de colaborar, sob pena de obstaculizarem a aplicação da justiça, com as consequências que daí advirão;
29.ª A Execução específica não é inválida e bem andou o Tribunal a quo ao tê-la julgado procedente;
30.ª Não têm razão as Recorrentes quando insistem que o negócio deveria ter sido anulado por usura. A idade das RR é uma idade de maioridade. A lei estabelece que aos dezoito anos o cidadão adquire plena capacidade e está habilitado a dispor da sua pessoa e a reger os seus bens. É o que dispõe o artigo 130.º do Código Civil;
31.ª Pelo que não se pode, atingida aquela idade legal, continuar a pretender a anulação de negócios que hajam sido celebrados, com argumento de inexperiência e imaturidade;
32.ª Acresce que não estiveram sozinhas nunca ao longo de toda a negociação, tendo tido o auxílio de uma agência imobiliária e até da sua mãe que sempre foi omnipresente em todas as etapas da negociação, seja nas informais, de meras conversas acerca do assunto, seja nas formais, como se pode ver pela aposição da sua assinatura em quase todos os documentos;
33.ª Acresce ainda que até é falso que as RR não têm qualquer experiência no assunto, sendo que a verdade é que pelo menos já haviam vendido um imóvel no dia 14 de janeiro de 2020 (doc. n.º 1, junto com as respostas às exceções – requerimento de 23.06.2021, ref.ª 5834280)) e celebrado outro contrato de arrendamento em 21 de Abril de 2020 (cfr. doc. n.º 2, idem);
34.ª Sempre se diga que o imóvel efetivamente não vale mais do que o valor que a A. ofereceu por ele, sendo que as Recorrentes escolheram não pedir qualquer perícia acerca do valor que o imóvel tinha, mas antes do que tem atualmente o que, atentas as bem conhecidas flutuações do valor dos imóveis, foi considerado – e bem – irrelevante;
35.ª Também não há qualquer fundamento para que o negócio seja anulado por dolo;
36.ª Nunca em momento algum, fosse por que forma fosse, a A. se dirigiu às RR. e lhes disse que o imóvel que elas prometeram vender-lhe não tinha viabilidade construtiva, nem, aliás, tal ficou provado em julgamento;
37.ª Pelo contrário, ficou absolutamente claro, porque isso é o que resulta de todos os depoimentos, desde logo das próprias que a A. e as RR. nem sequer se conheceram antes do começo do julgamento dos presentes autos;
38.ª Pelo que a circunstância em que as RR dizem ter sido dolosamente enganadas, mesmo na sua versão, que de modo algum conseguiram fazer prova, quem as teria enganado não teria sido a A.. Tanto assim que a queixa crime que dizem ter feito não foi contra ela – cfr. artigo 34º da contestação;
39.ª Quanto à alegação de que a A. tinha a obrigação de conhecer as verdadeiras características do imóvel, é evidente que essa obrigação até recai mais sobre quem pretende vender, como as RR, do que quem se oferece a comprar, como a A.;
40.ª Igualmente, também não deve o negócio ser anulado por erro;
41.ª O que a A. prometeu comprar e as RR. prometeram vender é um terreno rústico que, por definição, não tem licença de construção;
42.ª O facto de ser possível obter uma tal licença para o imóvel em causa é um facto que nem sequer alguma vez foi ponderado pela A., que ali não pretende construir o que quer que seja;
43.ª Sempre se diga que a possibilidade de obtenção de tal licença nem sequer resultou provado, quer porque isso não consta da matéria de facto dada como provada quer porque a persistente alegação das Recorrentes nesse sentido está sempre ancorada no relatório pericial junto aos autos que, como já se disse, não se debruça sobre as características que o imóvel tinha na altura do negócio mas sim as que tinha anos mais tarde, porque as RR escolheram, livre, voluntária e conscientemente que fosse isto que a perícia abordasse;
44.ª Nem nunca as Recorrentes demonstraram, fosse por que forma fosse, que estivessem em erro acerca dessa característica do terreno nem muito menos que ela fosse essencial para a formação da sua vontade de contratar;
45.ª De qualquer modo, sempre se diga que sendo as RR proprietárias de terrenos vizinhos onde estão construídas casas, mal se compreende que pretendam agora convencer de que ignoravam que naquela zona se pudessem construir casas;
46.ª Igualmente deve improceder a alegação de que a A. atuou com abuso de direito;
47.ª Quer pela forma altissonante como iniciam as suas alegações, quer pelo que dizem na sua décima nona alegação, parece que as Recorrentes abordaram esta ação como sendo uma espécie de arbitragem ao valor do terreno e ao equilíbrio do negócio que elas quiseram celebrar;
48.ª Mas nem sequer lograram as Recorrentes fazer prova de que o valor do terreno fosse superior àquele que elas próprias pediram por ele quando o prometeram vender à A.;
49.ª Se realmente se tivesse apurado que o imóvel valia mais do que o valor pelo qual as RR prometeram vender, o que nem sequer se provou, a validade desse negócio não resultaria nem de um grave erro judiciário nem de abuso de direito da A., mas apenas e só da negligência e leviandade das próprias RR.;
50.ª Pelo que o recurso interposto pelas RR deve ser julgado totalmente improcedente.”
Pugnou pela manutenção do decidido em 1ª instância.
*
H.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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I.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso:
1. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
2. Se a falta de averbamento da aquisição da titularidade do bem prometido, no registo, a favor das herdeiras do titular, promitentes - vendedoras, é impeditiva da declaração judicial, em execução específica do contrato-promessa, da transmissão da propriedade a favor da promitente-compradora;
3. Se o contrato-promessa é anulável por usura negocial;
4. Se o contrato-promessa é anulável por dolo da promitente - compradora.
5. Se o contrato-promessa é anulável por erro-vício;
6. Se a Autora age em abuso do direito.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão da matéria de facto como constam da sentença sob recurso (sem negrito e itálico da origem):
“(…)
III. Factos provados(…)
1. No dia 21 de Fevereiro de 2020 A. e RR celebraram um contrato promessa de compra e venda, através do qual a A. prometeu comprar e as RR. prometeram vender o prédio rústico composto por pastagem, cultura arvense e oliveiras, sito em (…), com área de 2480 m2, sito na freguesia de Sesimbra (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção Z;
2. Por tal contrato as RR identificaram-se como únicas proprietárias e legítimas possuidoras do prédio em questão;
3. As RR. não estão inscritas como proprietárias no Registo Predial;
4. Estão apenas inscritas como titulares do prédio na matriz;
5. Logo explicaram as RR. que não procederam ainda à atualização no registo predial, mas que são as únicas e universais herdeiras de seu pai (…) que, apesar de já falecido, é quem ainda consta ali como proprietário;
6. A própria agência imobiliária que mediou o contrato – «Century21 – Pole (…), Lda.», informou a A. que era do seu conhecimento que as RR eram de facto as únicas herdeiras do referido senhor, tanto assim que já se tinha vendido e arrendado, através daquela agência, diverso património do respetivo acervo hereditário;
7. Além do mais, ficou acordado que o preço da venda seria de € 15.000,00;
8. Estipularam as partes a existência de um sinal, no valor de € 5.000,00, que a A. já entregou às RR.;
9. Mas consagraram também que, não obstante, o contrato ficaria sujeito a execução específica;
10. O período previsto para a celebração do contrato definitivo era de 60 dias, pelo que deveria ter sido celebrado até ao dia 21 de abril de 2020;
11. Nesse período, porém, as RR. alegaram que estavam a ter dificuldades em inscrever-se como proprietárias no registo predial;
12. Isto porque a Conservatória competente exigia que antes de tal registo se corrigisse a desconformidade entre a área do terreno no registo predial – 2.480 m2 – e a área do mesmo terreno na matriz – 2.700 m2;
13. Segundo o que a própria A. apurou, tal disparidade é facilmente explicável em função do destaque de 220 m2 que veio a dar origem ao imóvel descrito com o n.º (…) da freguesia de Sesimbra (…);
14. Que originou a que no registo predial a área do terreno rústico fosse retificada;
15. Como se atravessou uma pandemia, com confinamento geral e encerramento da maioria dos serviços públicos, a A. compreendeu e aceitou que as RR. estivessem a ter dificuldade em regularizar a situação;
16. Essas dificuldades foram comunicadas à A. pela agência imobiliária;
17. Tendo em conta o que se acabou de relatar, em finais de abril de 2020 as RR. assinaram um aditamento ao contrato promessa;
18. Por tal aditamento, declararam as RR. que a única dificuldade para a celebração do contrato definitivo é a já referida necessidade de retificação de áreas do imóvel, donde derivava a impossibilidade de se inscreverem como titulares no Registo Predial;
19. Acordaram por isso as partes em que o contrato definitivo apenas se celebrasse passados 60 dias sobre a data da assinatura do aditamento, prazo que seria prorrogável até que as entidades e órgãos públicos se disponibilizassem para a realização da escritura;
20. Quem ficou de diligenciar pela marcação da escritura de compra e venda foi a agência imobiliária;
21. Em 14 de julho de 2020 a agência dirigiu às RR. uma carta onde manifesta a necessidade e importância da colaboração das RR., na questão da resolução da harmonização das referidas áreas do prédio rústico em causa;
22. Na resposta, a 23 de julho de 2020, apresentou-se o Advogado das RR., Soares Oliveira, que informou a referida agência imobiliária de que as suas constituintes “…não têm mais interesse na concretização do negócio em apreço;
23. Mas escrevendo, também, que essa sua falta de interesse resultou do facto de o negócio, constante do contrato de promessa, se ter baseado em erro na avaliação do imóvel objeto do contrato por parte da agência imobiliária, no que concerne à sua viabilidade de construção;
24. Nessa mesma carta as RR. disponibilizaram-se para devolver o sinal à A., no valor de 5.000,00 euros;
25. E ainda fixaram à agência imobiliária um prazo, de 8 dias, para devolução do montante pago pelas RR. a título de comissão no âmbito do mencionado contrato de promessa celebrado;
26. Em 17 de setembro de 2020 o mesmo Advogado enviou uma carta à A., igualmente manifestando que as suas constituintes dão “sem efeito o contrato promessa de compra e venda que foi celebrado”;
27. Na resposta, a A. afirma não aceitar a posição das RR. e exige a celebração do contrato de compra e venda;
28. As Rés remeteram à agência imobiliária um parecer técnico realizado pela Câmara Municipal de Sesimbra, mas que se refere ao artigo (…) da matriz e não ao artigo (…), que é o terreno que as RR. prometeram vender à A.;
29. Tal artigo (…) é composto por Edifício para habitação de r/c com 2 assoalhadas, casa de banho, 2 vestíbulos e 2 garagens, 1º andar com 2 assoalhadas, cozinha, casa de banho e terraço;
30. O prédio da presente ação judicial corresponde ao artigo matricial (…) é atravessado por uma linha de água;
31. E não tem licença para construção;
32. A A. tomou conhecimento de que as RR. estavam a anunciar vender, com um cartaz da agência lá colocado, um imóvel que está implantado no artigo (…);
33. Sabendo que o terreno rústico com o artigo (…) também pertencia ao mesmo proprietário (eram ambos do falecido pai das RR), a A. telefonou, através de seu pai, (…), para a agência anunciada no cartaz e questionou se o terreno rústico não iria também ser vendido, porque este era ao pé da casa da sua casa em Sesimbra;
34. Nesse sentido fez uma proposta de o adquirir por € 12.000,00;
35. A agência imobiliária, colocou a proposta à consideração das RR. que a rejeitaram;
36. O valor inicial, constante do contrato de mediação imobiliária, de € 15.000,00, acabou por ser aceite pela A.;
37. A Ré pretende adquirir o terreno rústico em causa para fins agrícolas, sendo-lhe indiferente que seja possível a obtenção de uma licença de construção que não pretende pedir nem obter;
38. O pai da A., (…), Advogado, tinha poderes para representar a sua aqui filha na celebração do contrato de promessa de compra e venda;
39. A Ré, (…), nasceu em 01.03.2000;
40. A Ré, (…), nasceu em 20.04.2021.;
41. (…) é mãe das Rés;
42. E nasceu em 21.05.1964;
43. As RR. encontram-se a estudar e não exercendo atividade profissional, não tendo quaisquer conhecimentos ou experiência de vida e relativamente a transações imobiliárias ou aos valores dos imóveis no mercado, tendo ponderado a venda do imóvel referido, que adquiriram por sucessão após o falecimento do seu pai (…), as Rés requereram o auxílio da sua mãe, (…);
44. Uma vez que a sua mãe também não tinha conhecimentos da área, resolveu, para saber das condições de venda do imóvel, deslocar-se à agência imobiliária Century 21 Pole (…), Lda., sita na Praceta (…), n.º 1-A, (…), 2720-306, Amadora;
45. No plano Diretor Municipal de Sesimbra (PDMS), o prédio insere-se na Unidade Operativa de Planeamento e Gestão 2 (UOPG-2), designada Concha de Sesimbra, na classe de espaço designada Espaço de Transição cujos condicionalismos estão definidos na lei, como sejam o índice de construção máximo de 0,04, e um índice máximo de fogos de dois com o máximo de dois pisos, estando inserido ainda na Rede Natura 2000 e está abrangido pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira inserindo-se na classe de espaço Solo Rural, categoria Áreas de Transição;
46. Em 13 de outubro de 2022, o imóvel foi avaliado para venda no mercado em 42.000,00 euros;
47. As Rés sempre estiveram disponíveis para a devolução do sinal em singelo;
48. As Rés contactaram a referida agência imobiliária através de carta, enviada e subscrita pelo seu Mandatário, exigindo a devolução do montante pago a título de comissão, no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado;
49. Sendo que a agência imobiliária mediadora se recusou tendo exigido o valor de € 1.383,75, a título de comissão;
50. (…) litigou judicialmente com o pai das Rés, sobre uma situação relacionada com uma servidão de passagem nessa zona, o que deu origem ao processo n.º 199/91, que correu termos no Tribunal Judicial de Sesimbra;
51. O contrato-promessa de compra e venda foi assinado por (…), em representação de (…);
52. O aditamento ao contrato-promessa de compra e venda apenas foi assinado pelas Rés.
(…)
IV. Factos Não Provados. (…)
1. A celebração do contrato-promessa em causa só ocorreu porque as Rés foram convencidas pelo diretor de vendas (…) e pela funcionária (…) de que o imóvel não tinha praticamente qualquer valor, e que não existiria qualquer viabilidade construtiva, devido à zona em que o imóvel se encontra, sendo que foi comunicado às Rés que, se não aceitassem vender o imóvel, nunca o iriam conseguir vender mais tarde;
2. Invocando estes argumentos, foi comunicada às Rés e à sua mãe, pela agência imobiliária, que o alegado procurador da Autora teria feito uma proposta, pelo valor ainda mais reduzido de € 5.000,00 e, em seguida, uma segunda proposta, pelo valor de € 10.000,00, o que constitui um manifesto artifício para convencer as Rés de que iriam vender o imóvel por preço superior ao que era oferecido;
3. A funcionária da agência imobiliária (…) insistiu com a mãe das Rés, e com as Rés, que não existia qualquer viabilidade de construção na zona onde se encontrava o terreno, que o terreno “só valia € 9,20” (valor patrimonial tributário do mesmo) e que, se não aceitasse essa proposta, nunca iria conseguir vender o terreno;
4. Durante este processo, a funcionária (…) telefonava constantemente à mãe das Rés, tendo tentado aproximar-se desta e das Rés, e saber informações da sua vida pessoal, e pressionou-as, de forma contínua e reiterada, relativamente às propostas de venda do imóvel;
5. Tal levou a que as Rés celebrassem o contrato-promessa, tendo a referida agência imobiliária convencido as Rés de que nunca obteriam valor superior a este;
6. Contudo, posteriormente, as Rés descobriram a atuação fraudulenta da agência imobiliária que, em conluio com a Autora e o seu alegado procurador, apenas as pretendia persuadir a vender o terreno rapidamente, para obter a respetiva comissão, permitindo à Autora a aquisição de um imóvel muito abaixo do seu efetivo valor real;
7. As Rés nunca venderiam o imóvel se soubessem que existia viabilidade de construção na zona;
8. O procurador da A. desde já há vários anos que pretendia adquirir o referido terreno, o que já tinha tentado fazer junto do pai das Rés;
9. A A. aproveitou-se da inexperiência e dependência das Rés para convencer estas a celebrar o contrato de promessa de compra e venda do imóvel por 15.000,00 euros;”.
*
***
Do recurso da decisão da matéria de facto
*
Vem o presente recurso interposto também da matéria de facto da decisão de primeira instância, considerando as Recorrentes que foram incorretamente julgados e apreciados factos dados como provados e não provados, assim como omitidos no elenco dos provados factos relevantes.
Concretamente, entendem que devem:
I. Serem aditados os factos provados números:
5-A: "O imóvel em questão foi adquirido em 30 de Maio de 2003 por (…) a (…), e a sua mulher (…), pelo valor de € 75.000,00".
5-B: "O imóvel em questão tinha à data de 21 de Fevereiro de 2020 um valor nunca inferior a € 30.000,00".
23-A: "Acrescentando ainda que, em face desse elemento, o valor de venda do presente imóvel é substancialmente inferior ao seu valor de mercado, sendo que tal situação acarreta um elevado prejuízo para as nossas constituintes, sendo que tal responsabilidade apenas pode ser imputada à agência imobiliária".
II. Serem julgados não provados, os factos declarados provados números 5, 6, 11 a 15, 17 a 19, 28, 32 a 37 e 52.
III. Completada / alterada a redacção do facto provado n.º 31, no seguinte sentido:
"E não tem licença para construção, tendo, porém, viabilidade construtiva.".
IV. Serem julgados provados os factos declarados não provados números 1 a 9.
*
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
*
As Recorrentes incidiram o seu recurso da matéria de facto, concretizando os factos provados que desejam ver modificados, indicando, para cada um deles, a redacção que deve, ou não, ser consagrada. Também indicam os meios de prova que, relativamente a cada um dos factos impugnados, justificam, em sua opinião, a alteração da decisão de 1ª instância, fazendo-o, por transcrição e indicação dos momentos da gravação quanto aos meios de prova pessoal registados em audiência de julgamento.
Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do número 1 do artigo 640.º do CPC.
*
Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, ambos do C.P.C. ([1]), tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1 ([2]), para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1, ([3])
“…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico – com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376,º, n,º 1, ambos do CPC), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do CC, e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do CPC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”
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Tendo presentes estes considerandos, vejamos quais os concretos pontos da matéria de facto que as Recorrentes pretendem ver alterados.
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I. Aditamento de factos.
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Facto provado n.º 5-A:
"O imóvel em questão foi adquirido em 30 de Maio de 2003 por (…) a (…), e a sua mulher (…), pelo valor de € 75.000,00".
Alegam as Recorrentes que o facto em apreço está provado pela junção de documento aos autos, com o requerimento de 21.12.2023 (referência Citius 98604816).
Nas suas contra-alegações as Recorridas discordam, mantendo que não apenas o facto não foi alegado por qualquer das partes do processo, como não se relaciona com a matéria que se discute nos autos e, mais do que isso, é totalmente falso.
Compulsados os autos, constata-se que foram juntos aos autos dois documentos referentes a negócio de compra e venda do imóvel descrito no facto provado número 1, por (…) a (…) e mulher:
- um, junto com o requerimento de 21.12.2023 (referência Citius 98604816), é composto pelo contrato-promessa celebrado entre as mesmas partes, datado de 30.05.2003, no qual se declara que o preço acordado para a compra e venda prometida é de € 75.000,00,00;
- outro, junto com o requerimento de 08.01.2024 (referência Citius 7720850), é constituído pela escritura pública de compra e venda que os mesmos celebraram a 22.06.2004, da qual resulta o preço declaradamente recebido pelos vendedores de € 25.000,00.
O documento constituído pelo contrato-promessa – não faz prova plena do facto invocado pelas Recorrentes, respeitante ao negócio definitivo, mas apenas do preço declaradamente previsto pelas partes no momento da celebração do contrato-promessa.
A escritura pública, por seu turno, faz prova plena do preço declarado pelas partes no momento da celebração do contrato definitivo, contendo declaração confessória de recebimento do valor do preço emitida pelos vendedores que só pode ser afastada mediante a alegação e demonstração de que:
- o documento é falso (artigos 347.º e 372.º, n.º 1, do CC), o que, no caso vertente, pressuporia que os vendedores não declararam, na ocasião, que já tinham recebido o preço, perante o oficial público que atesta a declaração; ou
- de que os declarantes emitiram a declaração em circunstancialismo integrador de falta ou de vício da vontade (v.g. acordo simulatório, reserva mental, falta de consciência da declaração, coacção, erro, dolo ou incapacidade – cfr. artigos 240.º e ss. do Código Civil).
Neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2014, relatado pelo Conselheiro Paulo Sá no proc. n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1, de cuja fundamentação consta “...a escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o artigo 352.º do CC qualifica de confissão. Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço) – cfr. artigos 355.º, n.º s 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC. Se o vendedor alega que não recebeu o preço, impunha-se-lhe alegar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento” (sublinhado nossos). [4]
Não tendo sido impugnada a validade da declaração confessória do montante do preço do negócio constante da escritura pública – por falsidade ou vício da vontade – este tem-se por provado.
Assim, é de € 25.000,00 e não € 75.000,00, o preço documentalmente demonstrado do negócio de compra do prédio que as Recorrentes, por via do facto 5-A, pretendem ver aditado à matéria de facto provada.
Acresce que a celebração do negócio de compra e venda por escritura de 22.06.2004, não constitui facto essencial ou sequer instrumental ao objecto da presente acção que, como sabemos, é de execução específica de um contrato-promessa celebrado a 21.02.2020, entre outras pessoas jurídicas, nem da matéria de excepção alegada pelas Rés, já que os vícios de nulidade / anulabilidade / ineficácia por si invocados se reportam, naturalmente, ao contrato-promessa objecto da presente acção.
A relevância que os documentos juntos aos autos nos dias 21.12.2023 e 08.01.2024 têm para os presentes autos, é probatória e indirecta, relativa ao valor do prédio objecto do contrato-promessa de 21.02.2020.
Deste modo, não deve ser atendida a impugnação das Recorrentes no que ao aditamento do facto 5-A respeita.
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Facto provado n.º 5-B
"O imóvel em questão tinha à data de 21 de Fevereiro de 2020 um valor nunca inferior a € 30.000".
Entende a Recorrente que o valor do imóvel, na data de 21 de Fevereiro de 2020, se infere, de presunção judicial devido aos valores do terreno em 2003 e em 2022, tomando por base a avaliação efectuada no autos, de € 42.000,00 à data de 13 de Outubro de 2022 (cfr. relatório pericial de 14/10/2022, referência Citius 6788457), bem como as declarações da testemunha (…).
As Rés alegam, no artigo 20º da contestação, que o imóvel dispõe de um valor de mercado € 30.000,00 e que, tendo-o prometido vender por € 15.000,00, o fizeram por metade de seu valor real.
A sentença contém, no facto provado número 46, referência ao valor do imóvel a 13 de Outubro de 2022 (€ 42.000,00) mas não à data da celebração do contrato promessa de compra e venda.
Mostrando-se alegado pelas Rés o valor de pelo menos € 30.000,00 por referência à data da celebração do contrato que serve de fundamento à presente demanda, matéria que se afigura relevante para aferir a verificação das excepções fundadas em usura, dolo ou erro invocadas na contestação, deverá tal matéria ser apreciada na decisão da matéria de facto.
Demonstrada que está a compra e venda do prédio por € 25.000,00 em 2004 (cfr. supra aludida escritura pública) bem como o valor de € 42.000,00 à data de 13.10.2022 (cfr. relatório pericial junto aos autos), afigura-se suficientemente provado que à data de 21.02.2020 o imóvel valia pelo menos € 25.000,00. Este foi o valor que, segundo as testemunhas (…), (…), (…) (as duas últimas interagiram pessoalmente com a mãe das Rés durante as negociações) e (…), de forma convincente, terá sido contraproposto por (…) antes de ter aceitado a proposta final da Autora, no valor de € 15.000,00. Foi também o valor que a testemunha (…) considerou ser próximo do real do imóvel nessa altura. Note-se que as negociações foram mantidas antes da pandemia Covid 19, sendo que os preços do imobiliário em Portugal sofreram uma inflação acentuada desde então até ao momento actual.
Termos em que se acolhe o aditamento do facto provado 5-B com a seguinte redacção:
"O imóvel referido no facto provado número tinha, à data de 21 de Fevereiro de 2020, valor não inferior a € 25.000,00".
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Facto provado n.º 23-A
"Acrescentando ainda que, em face desse elemento, o valor de venda do presente imóvel é substancialmente inferior ao seu valor de mercado, sendo que tal situação acarreta um elevado prejuízo para as nossas constituintes, sendo que tal responsabilidade apenas pode ser imputada à agência imobiliária".
Consideram as Recorrentes dever ser aditada parte do conteúdo da carta a que se reporta o facto provado número 23, neste não contemplada.
Uma vez que estamos perante factos que fazem referência ao conteúdo de carta junta pela própria Autora como documento 10 da p.i., aceite pelas Rés, entende-se proceder à reprodução parcial do respectivo teor, abrangendo a parte da redacção proposta pelas Recorrentes, no facto provado que se adita com o n.º 23-A e com a seguinte redacção:
“23-A. Da mesma carta, cujo teor se reproduz no documento 10 junto com a p.i., consta ainda, entre o mais: “Como certamente compreenderão, em face deste elemento, o valor de venda do presente imóvel é substancialmente inferior ao seu valor de mercado. Tal situação acarreta um avultado prejuízo para as N/ Constituintes, sendo que tal responsabilidade apenas poderá ser imputada a V. Exas. (…)”.
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II. Factos erradamente provados
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Factos provados n.ºs 5 e 6.
"5. Logo explicaram as RR. que não procederam ainda à atualização no registo predial, mas que são as únicas e universais herdeiras de seu pai (…) que, apesar de já falecido, é quem ainda consta ali como proprietário;
6. A própria agência imobiliária que mediou o contrato – «Century21 – Pole (…), Lda.», informou a A. que era do seu conhecimento que as RR eram de facto as únicas herdeiras do referido senhor, tanto assim que já se tinha vendido e arrendado, através daquela agência, diverso património do respetivo acervo hereditário."
Alegam as Recorrentes que os factos em apreço devem ser considerados não provados porque, contrariamente ao que resulta da motivação da decisão da matéria de facto da sentença recorrida, os documentos 1 a 4 juntos com a petição não fornecem qualquer prova dos mesmos.
A Recorrida, por seu turno, manteve que nos seus depoimentos de parte, ambas as Rés confessaram ser as únicas e universais herdeiras do falecido (…) e que, pela análise da documentação, a atualização no registo ainda não havia sido feita no momento em que a presente acção deu entrada.
Sobre a prova dos factos em discussão, a sentença recorrida justifica que "…para dar como provado os factos 1 a 10 e 31 teve-se em consideração o contrato de promessa de compra e venda, a certidão permanente do registo predial e a caderneta predial do prédio rústico objeto daquele contrato, e o cheque comprovativo do pagamento do sinal no valor de 5.000,00 euros (documentos 1. a 4 juntos com a petição inicial ou p.i.), acrescendo o acordo das Partes quanto aos factos provados 1 a 4 e 7 a 9".
Os documentos 1 a 4 juntos com a p.i. consistem, respectivamente: no contrato-promessa celebrado entre as partes; na certidão do registo predial do prédio objecto do contrato, descrito sob o n.º 2138/19861211 da freguesia de Sesimbra (…); na caderneta predial do mesmo; e no cheque de € 5.000,00 correspondente ao sinal pago na ocasião da celebração do contrato-promessa.
O teor do registo predial – ainda vigente em nome do falecido pai das Rés –, a caderneta predial – onde figuram já as Rés como titulares inscritas do respectivo rendimento predial – e o contrato-promessa subscrito pelas partes – no qual as Rés outorgam na qualidade de proprietárias –, conjugados com as declarações de parte das Rés e os testemunhos da sua mãe (…) e das testemunhas que trabalhavam na agência imobiliária (…, … e …), permitem concluir que as Rés, através da sua mãe, se arrogaram sucessoras no direito de propriedade titulado pelo seu falecido pai sobre o prédio em apreço. Aliás, no artigo 94º da sua contestação, as Rés confessam a sua qualidade de únicas e universais herdeiras de seu pai.
Todavia, os factos provados números 5 e 6 não se limitam a espelhar esta realidade, fazendo referência a explicações que as Rés e, por sua vez, agência imobiliária terão dado entre si e à Autora na ocasião da celebração do contrato.
Sobre tais explicações os documentos nada adiantam, sendo a prova pessoal que elucida a questão, nomeadamente, as declarações de parte das Rés e os testemunhos da sua mãe e das aludidas pessoas da agência imobiliária. Ouvidos os registos da respectiva prova, todos deram conta de que as negociações tendentes à celebração do negócio foram realizadas pela mãe das Rés, tendo sido esta quem entregou à imobiliária o documento de habilitação no qual estas figuram como herdeiras e deu instruções à agência no sentido da venda. A partir daí, a agência imobiliária procurou a documentação nas finanças e no registo predial, constatando que neste as RR. ainda não estavam inscritas como proprietárias / titulares do prédio, facto que transmitiu a (…), pai e procurador da Autora (por este confirmado no seu testemunho). Foi também mencionado pelas testemunhas da agência e pela mãe das Autoras que esta já tinha procedido à venda de outro imóvel através da imobiliária.
Assim, deverá a matéria dos factos provados em apreço manter-se parcialmente, com alterações, de modo a reflectir com fidelidade a descrita prova, assumindo os factos provados 5 e 6 a seguinte redacção:
"5. A mãe das RR. informou a agência que mediou o contrato - «Century21 – Pole (…), Lda.» - que as AA. eram, como herdeiras de seu falecido pai (…), as donas do prédio, tendo esta agência verificado que as AA. não tinham procedido à atualização do registo predial, no qual ainda constava o seu pai como proprietário;
6. A referida agência imobiliária informou o pai da A. que as RR eram as únicas herdeiras de (…) e que já tinha mediado a venda de outro património do respetivo acervo hereditário."
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Factos provados n.ºs 11 e 12.
“11. Nesse período, porém, as RR. alegaram que estavam a ter dificuldades em inscrever-se como proprietárias no registo predial;
12. Isto porque a Conservatória competente exigia que antes de tal registo se corrigisse a desconformidade entre a área do terreno no registo predial – 2.480 m2 – e a área do mesmo terreno na matriz – 2.700 m2;”
Sustentam as Recorrentes que tais factos, julgados provados apenas com base nas declarações da Autora, são infirmados pela comparação dos docs. nºs 2 e 6 juntos com a p.i., tendo sido ainda desmentidos pelas testemunhas da Autora (…), (…) e das Rés (…).
Sobre a matéria em apreço, a sentença recorrida fundamenta a convicção do julgador, dando conta de que os factos “…decorreram da desconformidade de áreas do terreno no registo predial e na matriz, ou seja, na conservatória do registo predial e nas finanças, sendo por isto possível e aceitável a prova de que as RR. tivessem alegado que estavam a ter dificuldades em inscrever-se como proprietárias no registo predial.”
A questão que a matéria de facto em apreço suscita, porém, não é apenas a desconformidade de áreas entre o registo e a matriz, mas saber se Conservatória do Registo Predial exigiu a correcção dessa desconformidade e, em caso afirmativo, se as Rés alegaram essa dificuldade de registo nos 60 dias previstos no contrato-promessa para a celebração a escritura, algo que não decorre do conteúdo dos documento mencionados pela Sr.ª Juíza de 1ª instância.
A este respeito, as Rés limitaram-se a remeter o tratamento de todas as questões relacionadas com a venda para a sua mãe.
Como se disse, dos testemunhos de (…) e das pessoas que trabalhavam na imobiliária resultou, em termos consensuais, que foi esta agência quem fez a angariação e verificação dos documentos referentes ao prédio e constatou a divergência de áreas entre a matriz e o registo, compreendendo que se trataria de um entrave à realização da escritura, facto que comunicou ao pai da Autora e determinou que esta se não realizasse nos sessenta dias subsequentes previstos no contrato - promessa.
Assim, deverá a matéria dos factos provados em apreço manter-se parcialmente, com alterações, de modo a reflectir com fidelidade a descrita prova, assumindo os factos provados 11 e 12 a seguinte redacção:
“11. e 12. Nesse período, porém, constatou-se que as RR. não estavam inscritas como proprietárias no registo predial e que a Conservatória competente exigia que antes de tal registo se corrigisse a desconformidade entre a área do terreno no registo predial – 2.480 m2 – e a área do mesmo terreno na matriz – 2.700 m2;”.
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Factos provados os factos nºs 13 e 14.
“13. Segundo o que a própria A. apurou, tal disparidade é facilmente explicável em função do destaque de 220 m2 que veio a dar origem ao imóvel descrito com o n.º (…) da freguesia de Sesimbra (…).
14. Que originou a que no registo predial a área do terreno rústico fosse retificada.”
Quanto aos factos provados 13 e 14, a sentença de 1ª instância considerou que “…decorreram dos documentos 5 e 6 junto com a p.i. equivalentes a trechos da certidão permanente da conservatória do registo predial.”
As Recorrentes, por seu turno, defendem que não só essa prova não resulta das certidões juntas como docs. nºs 5 e 6 à petição inicial, como é contraditada pelas declarações da testemunha (…).
Relativamente à causa da disparidade de áreas, a prova documental indicada na sentença não é totalmente esclarecedora porque, apesar das inscrições manuscritas por alguém no documento oficial induzirem o leitor a crer numa correspondência entre os 220 m2 de área do prédio descrito sob o n.º (…) da freguesia de (…) da CRP de Sesimbra (a que se reporta a informação do registo predial junta como documento 5 da p.i.) e a rectificação de área para 2.480 m2, realizada a 31.05.2004, no prédio descrito sob o n.º (…) da freguesia de (…) da CRP de Sesimbra (a que se reporta a informação do registo predial junta como documento 6 da p.i.), a verdade é que neste documento 6 a descrição mais antiga do prédio, datada de 11.12.1986, confere-lhe uma área de 2.580 m2, ou seja, de apenas mais 100 m2 do que a área de 2.480 m2 introduzida pela rectificação. A ter havido uma descrição no registo do prédio (…) com área de 2.700 m2, será, necessariamente, anterior a 11.12.1986. Por outro lado, é certo que o prédio descrito sob o n.º (…) da freguesia de (…) da CRP de Sesimbra (a que se reporta a informação do registo predial junta como documento 5 da p.i.) tem a sua primeira inscrição (que consiste numa aquisição por compra, Ap. (…), de 1983/08/12) no ano de 1983 e a rectificação de área do prédio n.º (…) da mesma freguesia só é levada ao registo no ano de 2004, havendo uma diferença temporal de mais de 20 anos entre ambas. Deste modo, os documentos em apreço não demonstram suficientemente a relação de causa e efeito entre a área de 220 m2 do prédio do documento 5 e a rectificação para 2.480 m2 da área do prédio em disputa na presente acção.
É certo que a testemunha (…) disse, sobre a questão, nas sessões dos dias 21.06.2023 (minutos 8:56 a 10:22) e 12.10.2023 (minutos 18:00 a 19:00), que fez uma averiguação na Conservatória e apurou que em 1983 foi feito um destaque da área de 220 m2 de área do prédio colada à casa, facto que também a agência imobiliária apurou pela mesma via. Mas sem o respectivo suporte documental, afigura-se prova insuficiente para um facto que se demonstra através dos necessários documentos prediais.
Deste modo, a matéria dos factos provados números 13 e 14 deve ser considerada não provada.
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Facto provado n.º 16.
“16. Essas dificuldades foram comunicadas à A. pela agência imobiliária.”
Sustentam as recorrentes que, contrariamente ao que consta da motivação da matéria de facto da sentença, o facto em apreço não é notório.
Efectivamente, versando sobre uma comunicação realizada pela agência imobiliária à Autora, não se vê como é que estamos perante um facto notório de molde dispensar a indicação de outros fundamentos para a prova da transmissão da informação referente à dificuldade de regularizar a apontada disparidade de áreas no decurso da pandemia. Se a ocorrência da pandemia constitui um facto notório, já aquilo que as partes e a agência imobiliária conversaram entre si é algo que se não confunde com a pandemia ou alguns dos respectivos efeitos notórios.
Deste modo, a prova da comunicação deverá advir de documento ou de prova pessoal produzida em julgamento.
Neste particular, a testemunha (…) disse (minutos 10:35 a 11:01 da sessão de 21.06.2023), sem ser contrariada por outros elementos de prova, que foi por falta de deslocação das Rés e da imobiliária a Sesimbra, sendo que depois se meteu a pandemia, o que atrasou a celebração a escritura, evidenciando o seu conhecimento das dificuldades em rectificar a área do prédio em apreço.
Deste modo, deverá a matéria do facto provado em apreço manter-se parcialmente, com alterações, de modo a reflectir com fidelidade a descrita prova, assumindo a seguinte redacção:
“16. Essas dificuldades foram do conhecimento da A..”
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- Factos provados n.ºs 15, 17, 18, 19 e 52.
“15. Como se atravessou uma pandemia, com confinamento geral e encerramento da maioria dos serviços públicos, a A. compreendeu e aceitou que as RR. estivessem a ter dificuldade em regularizar a situação. (…)
17. Tendo em conta o que se acabou de relatar, em finais de abril de 2020 as RR. assinaram um aditamento ao contrato promessa.
18. Por tal aditamento, declararam as RR. que a única dificuldade para a celebração do contrato definitivo é a já referida necessidade de retificação de áreas do imóvel, donde derivava a impossibilidade de se inscreverem como titulares no Registo Predial.
19. Acordaram por isso as partes em que o contrato definitivo apenas se celebrasse passados 60 dias sobre a data da assinatura do aditamento, prazo que seria prorrogável até que as entidades e órgãos públicos se disponibilizassem para a realização da escritura. (…)
52. O aditamento ao contrato-promessa de compra e venda apenas foi assinado pelas Rés.”
Insurgem-se as Recorrentes contra a inclusão dos factos 15, 17, 18 e 19 no rol dos provados e contra a redacção do número 52, mantendo que o tribunal a quo se fundou apenas no documento n.º 7 junto com a petição inicial, quando o mesmo não foi assinado pela Autora, pelo que não se podem considerar provadas declarações suas nesse documento, e muito menos o acordo das partes, que não resulta do mesmo, para além de que das declarações das testemunhas (…), (…) e das Rés (…) e (…) resulta que não houve concordância das mesmas com o documento.
E quanto ao facto provado n.º 52, entendem as Recorrentes que a sua redacção deve ser reformulada para: "O aditamento ao contrato-promessa foi elaborado a pedido de (…), tendo as Rés se limitado a assiná-lo, não tendo o mesmo sido assinado pela Autora".
Na motivação da convicção, a sentença de 1ª instância refere que “a prova dos factos provados 15, 17, 18, 19 e 51 adveio do aditamento do contrato de promessa de compra e venda correspondente ao documento 7 anexo à p.i.” (a referência a facto provado n.º “51” deve-se a manifesto lapso de escrita pois o conteúdo do documento reporta-se manifestamente ao n.º “52”).
Começando por mencionar o facto provado número 15, referente à postura da Autora perante a necessidade de regularização da divergência de área dos imóveis, o seu pai e procurador, a testemunha (…), confirmou em juízo, sem ser contrariado por outros elementos de prova, a sua compreensão de que fosse necessário mais tempo para regularizar a situação da divergência de áreas verificada e, consequentemente, por sua iniciativa junto da imobiliária, elaborado e assinado o aditamento ao contrato promessa versado no documento 7 da p.i..
Assim, deve manter-se o facto provado em apreço.
Os factos provados números 17 a 19 e 52 traduzem o conteúdo documento 7 da p.i., composto pelo aditamento escrito ao contrato - promessa assinado pelas Rés, como desde logo estas aceitaram no artigo 103º da contestação e, tal como a sua mãe, admitiram em julgamento.
Foi confirmada pelo próprio (…) que partiu deste a vontade de elaboração do aditamento, pelo que é incontroverso que a Autora tinha, através da pessoa do seu procurador, conhecimento e estava de acordo com o seu conteúdo.
Tudo o mais que transcende o acordo da Autora e o teor do documento em apreço é matéria que, ou não se mostra coberta por este meio de prova e, nesse caso, deveria fundar-se noutros que não vêm mencionados na sentença, ou constitui matéria de excepção que competirá às Rés demonstrar.
Deste modo, a redacção dos factos provados 17 a 19 e 52 condensar-se-á num único que remete para o conteúdo do documento que lhes serve de suporte, com a seguinte redacção:
“17. a 19 e 52. Com o assentimento da Autora, foi assinado apenas pelas Rés, na qualidade aí declarada de “promitentes vendedoras” e “primeiras outorgantes”, o escrito, reproduzido pelo documento 7 junto com a p.i., intitulado “aditamento ao contrato promessa de compra e venda” do qual, entre outras coisas, consta: 1 - Considerando a assinatura do Contrato Promessa de Compra e Venda de 21 de Fevereiro de 2020 assinado entre as Promitentes Vendedoras e Promitente Comprador foi convencionado entre as partes que Escritura Pública de Compra e Venda deveria ser celebrada até sessenta dias após a outorga do contrato promessa de compra e venda. 2 - Tendo em consideração que a transmissão do imóvel objecto do Contrato Promessa Compra e Venda já identificado, só poderá ser efectuada após a rectificação de áreas existente, entre o que consta da Conservatória do Registo Predial e o Serviço de Finanças e posterior registo de aquisição do imóvel a favor das Promitentes Vendedoras, e; 3 - Face à actual situação de saúde pública que o país atravessa e tendo sido decretado o estado de emergência, devido à pandemia do vírus COVID 19, desconhecendo-se assim quais serão as entidades e órgãos públicos que permanecerão em funcionamento e que poderão provocar atrasos no presente processo de compra e venda, tal como Conservatórias, Cartório, Finanças e/ou outras entidades; 4 - A Escritura Pública de Compra e Venda só será celebrada até sessenta dias após a outorga do presente aditamento, renováveis automaticamente até que as entidades e órgãos públicos se disponibilizem para a realização da mesma. 5 - Através do presente aditamento, as Promitentes Vendedoras dão plena quitação do valor de € 5.000.00 (cinco mil euros) pago pelo Promitente Comprador, por elas já recebido, a título de sinal e princípio de pagamento, através do cheque n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos, S.A., emitido a seu pedido, em nome de sua mãe, Sra. D. (…). 6 - Acordam ainda os outorgantes que o remanescente do preço de 10.000,00 € (dez mil euros) poderá ser liquidado, a todo o momento e previamente à outorga da escritura pública de compra e venda, através de cheque ou transferência bancária. Feito em duas vias, ficando uma delas em poder dos Promitentes Vendedoras e a outra em poder do Promitente Comprador. (…)”.
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- Factos provados n.ºs 28 e 29.
“28. As Rés remeteram à agência imobiliária um parecer técnico realizado pela Câmara Municipal de Sesimbra, mas que se refere ao artigo (…) da matriz e não ao artigo (…), que é o terreno que as RR. prometeram vender à A.;
29. Tal artigo (…) é composto por Edifício para habitação de r/c com 2 assoalhadas, casa de banho, 2 vestíbulos e 2 garagens, 1º andar com 2 assoalhadas, cozinha, casa de banho e terraço;”
Sobre a convicção do tribunal de 1ª instância na prova dos factos em apreço, reza a sentença que “o parecer técnico realizado pela Câmara Municipal de Sesimbra refere-se ao artigo (…) da matriz e não ao artigo (…), que é o terreno que as RR prometeram vender à A., pelo que as RR. não lograram provar que o terreno objeto do contrato de promessa de compra e venda do caso concreto tenha capacidade construtiva. O que deve ser conjugado com os documentos registais respeitantes ao prédio urbano onde se insere a moradia cujo logradouro é contíguo ao terreno identificado no facto provado 1 (documentos 13 e 14 juntos com a p.i.) – factos provados 28 e 29”.
Entendem as Recorrentes que não deveria ter resultado provado o facto n.º 28, pois não resulta dos documentos 13 e 14 da p.i. e contraria expressamente o relatório pericial de 14 de Outubro de 2022 (ref. 6788457, pág. 3), onde se afirma expressamente que: "Face aos instrumentos de gestão territorial, PDM e POOC, o prédio tem capacidade construtiva, prevalecendo os condicionalismos do POOC, ou seja, de acordo com o n.º 2 do artigo 30.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 86/2003, de 25 de junho".
Compulsados os documentos 13 e 14 da p.i., constituídos por certidão do registo predial do n.º (…) da freguesia de (…), da CRP de Sesimbra (o prédio urbano com casa de habitação e 3050 m2 de terreno, inscrito no artigo … da matriz, pertencente às Rés e contíguo ao terreno em disputa nos autos) e pela respectiva caderneta predial, dos mesmos não resulta qualquer elemento relevante para a prova da comunicação a que respeita o facto provado n.º 28.
A sentença recorrida tampouco faz menção a documento que suporte essa comunicação, sendo que as missivas juntas como documentos 10 e 11 da p.i. (cartas enviadas pelo advogado das Rés à imobiliária e à Autora) também não.
A prova relevante que sobre a questão poderia ter sido produzida consistia nos testemunhos das pessoas ligadas à agência imobiliária, nomeadamente (…), (…) e (…).
Todavia, nada disseram sobre o envio, pelas Rés à imobiliária, de parecer técnico referente a qualquer dos prédios.
Assim, por falta de prova, considera-se não provada a matéria do facto constante do n.º 28 da sentença.
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- Factos provados n.ºs 32 a 37 e 51.
“32. A A. tomou conhecimento de que as RR. estavam a anunciar vender, com um cartaz da agência lá colocado, um imóvel que está implantado no artigo (…);
33. Sabendo que o terreno rústico com o artigo (…) também pertencia ao mesmo proprietário (eram ambos do falecido pai das RR), a A. telefonou, através de seu pai, (…), para a agência anunciada no cartaz e questionou se o terreno rústico não iria também ser vendido, porque este era ao pé da casa da sua casa em Sesimbra;
34. Nesse sentido fez uma proposta de o adquirir por € 12.000,00;
35. A agência imobiliária, colocou a proposta à consideração das RR. que a rejeitaram;
36. O valor inicial, constante do contrato de mediação imobiliária, de € 15.000,00, acabou por ser aceite pela A.;
37. A Ré pretende adquirir o terreno rústico em causa para fins agrícolas, sendo-lhe indiferente que seja possível a obtenção de uma licença de construção que não pretende pedir nem obter; (…)
51. O contrato-promessa de compra e venda foi assinado por (…), em representação de (…);”
Sobre a matéria em apreço, mantêm as Recorrentes que a prova se fundou exclusivamente nas declarações da testemunha (…) quando não poderia ser ouvida nesta qualidade, face ao seu manifesto interesse na causa.
Relativamente a esta alegação das Recorrentes, dir-se-á que:
- a prova do facto 51 não se funda apenas no testemunho de Ilídio Marques, já que, como sentença refere, se teve também em consideração a “…procuração junta com a resposta às exceções…”. Acrescenta-se aqui que o seu conteúdo resulta ainda do contrato promessa junto como documento 1 da p.i.;
- apesar de não mencionada na motivação da matéria de facto da decisão recorrida, ouvida a prova resultante dos testemunhos de (…), (…) e (…), também estes confirmaram em juízo os factos provados n.º 32 a 36, sendo que quanto a tais matérias apenas a mãe das menores apresentou em julgamento uma versão parcialmente distinta, restrita aos valores das propostas negociais de compra que recebeu através da agência, antes de acordarem nos € 15.000,00 (factos provados n.º 34 e 35), mas que se afigurou credível para formar convicção contrária ao conjunto dos supramencionados testemunhos. E no que concerne ao facto provado n.º 37, o testemunho de (…) sobre a sua intenção com a compra não foi infirmado por qualquer outro meio de prova, sendo evidente que quem é promitente-compradora e, consequentemente, pretende adquirir o terreno em causa é a Autora, e não a “Ré” como da redacção do mesmo consta, pelo que deve ser alterada esta parte (devida, estamos em crer, a lapso).
- não nos parece que (…) tenha no desfecho da causa um interesse próprio, impeditivo da valoração do seu testemunho. Desde logo porque, pese embora pai e procurador com poderes especiais de representação da Autora, entre os quais o de celebrar negócio consigo mesmo, a verdade é que no caso vertente celebrou o negócio em nome da Autora que figura como promitente compradora no contrato promessa, condição que assumiu no seu depoimento em julgamento. O ingresso da testemunha como titular da posição activa da representada sua filha não se verificou até ao momento, podendo mesmo nunca ocorrer, constituindo exercício especulativo de antecipação de uma ocorrência futura e incerta. Note-se que a existência da procuração com os referidos poderes especiais não acrescenta argumento decisivo quanto à possibilidade de tal ocorrência futura, pela simples razão de que nada refere a tal propósito e, em qualquer caso, sempre poderia a filha transmitir a sua posição para o pai através de uma cessão da posição contratual, sem necessidade da procuração.
Em face do exposto, com excepção do lapso de redacção no sujeito do facto provado n.º 37, deve manter-se, por suficientemente suportada na prova produzida em julgamento, a matéria de facto em análise como da sentença recorrida consta.
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III. Factos incompletos
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Facto provado n.º 31.
“31. E não tem licença para construção;”
Sustentam as Recorrentes que a redacção do facto em apreço deve ser completada / alterada seguinte sentido: "E não tem licença para construção, tendo, porém, viabilidade construtiva.".
Alegam para o efeito que o terreno tem viabilidade construtiva, conforme haviam sustentado já na contestação (artigo 19º).
Vimos já que de acordo com o relatório da perícia elaborada nos presentes autos, junto a 14 de Outubro de 2022 (ref. 6788457, pág. 3), consta que: "Face aos instrumentos de gestão territorial, PDM e POOC, o prédio tem capacidade construtiva, prevalecendo os condicionalismos do POOC, ou seja, de acordo com o nº 2 do artigo 30.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 86/2003, de 25 de junho.".
A testemunha … (minutos 31:38 e seguintes) disse que na agência imobiliária só averiguaram a capacidade construtiva do terreno situado ao lado do objecto da presente acção e que constataram que já excedia a sua capacidade. Confrontado com o relatório da perícia ordenada nos presentes autos, de acordo com o qual o PDM confere ao terreno em litígio na presente acção capacidade construtiva, explicou que devido à linha de água que o atravessa tem que deixar 3 metros de distância para cada lado sem edificar, pelo que é muito difícil aproveitá-lo para construir um edifício devido à limitada área disponível.
Não obstante, o facto provado 31 deverá reflectir a real situação do imóvel, plasmada no relatório pericial, do qual resulta que tem capacidade construtiva de acordo com o PDM, apesar das limitações de ordem prática decorrentes da presença da linha de água que restringem fortemente a possibilidade de edificar com uma implantação razoável.
Deverá, por isso, assumir a seguinte redacção:
"31. E não tem licença para construção, dispondo, no PDM, de capacidade construtiva.”
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IV. Factos indevidamente não provados
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Factos não provados números 1 a 9.
“1. A celebração do contrato-promessa em causa só ocorreu porque as Rés foram convencidas pelo diretor de vendas (…) e pela funcionária (…) de que o imóvel não tinha praticamente qualquer valor, e que não existiria qualquer viabilidade construtiva, devido à zona em que o imóvel se encontra, sendo que foi comunicado às Rés que, se não aceitassem vender o imóvel, nunca o iriam conseguir vender mais tarde;
2. Invocando estes argumentos, foi comunicada às Rés e à sua mãe, pela agência imobiliária, que o alegado procurador da Autora teria feito uma proposta, pelo valor ainda mais reduzido de € 5.000,00 e, em seguida, uma segunda proposta, pelo valor de € 10.000,00, o que constitui um manifesto artifício para convencer as Rés de que iriam vender o imóvel por preço superior ao que era oferecido;
3. A funcionária da agência imobiliária (…) insistiu com a mãe das Rés, e com as Rés, que não existia qualquer viabilidade de construção na zona onde se encontrava o terreno, que o terreno “só valia € 9,20” (valor patrimonial tributário do mesmo) e que, se não aceitasse essa proposta, nunca iria conseguir vender o terreno;
4. Durante este processo, a funcionária (…) telefonava constantemente à mãe das Rés, tendo tentado aproximar-se desta e das Rés, e saber informações da sua vida pessoal, e pressionou-as, de forma contínua e reiterada, relativamente às propostas de venda do imóvel;
5. Tal levou a que as Rés celebrassem o contrato-promessa, tendo a referida agência imobiliária convencido as Rés de que nunca obteriam valor superior a este; 6. Contudo, posteriormente, as Rés descobriram a atuação fraudulenta da agência imobiliária que, em conluio com a Autora e o seu alegado procurador, apenas as pretendia persuadir a vender o terreno rapidamente, para obter a respetiva comissão, permitindo à Autora a aquisição de um imóvel muito abaixo do seu efetivo valor real;
7. As Rés nunca venderiam o imóvel se soubessem que existia viabilidade de construção na zona;
8. O procurador da A. desde já há vários anos que pretendia adquirir o referido terreno, o que já tinha tentado fazer junto do pai das Rés;
9. A A. aproveitou-se da inexperiência e dependência das Rés para convencer estas a celebrar o contrato de promessa de compra e venda do imóvel por 15.000,00 euros;”
Consideram as Recorrentes que a prova dos factos em apreço foi lograda com a perícia, os documentos existentes nos autos, os depoimentos e declarações de parte das Rés (…) e (…), bem como dos depoimentos das testemunhas (…), (…), (…), (…), (…).
Sem razão, porém.
Como disseram as Rés e a testemunha (…), as primeiras nenhuma intervenção tiveram nas negociações, mostrando-se quase totalmente desconhecedoras do assunto que foi tratado pela sua mãe. A testemunha (…), irmã da testemunha (…), limitou-se, no que às negociações do contrato respeita, a reportar aquilo que a irmã lhe disse, sem conhecimento pessoal desses factos.
Dos demais meios de prova indicados na corrente alegação da Recorrente, só a testemunha (…) sustentou, em juízo, a tese aventada na presente acção pelas suas filhas, aqui Rés, no sentido de que de que os consultores imobiliários as induziram em erro (o que inclui e respeita sobretudo à mãe (…) que admitiu ter assumido todas as negociações e contactos junto da agência, em nome das filhas) incutindo na testemunha a convicção de que o terreno valia muito menos do seu valor real e que não tinha viabilidade construtiva (factos não provados n.º 1 a 5 e 9). Ainda assim, não chegou a confirmar a versão do alegado conluio fraudulento entre a agência imobiliária e a Autora ou o seu procurador, de modo a lograr a aquisição pela Autora do imóvel muito abaixo do seu efetivo valor real, dizendo que o erro de avaliação subjacente era apenas imputável à agência (factos não provados n.º 6 e 9). Note-se, a este propósito, que (…) e as testemunhas da imobiliária, de forma coerente, deram conta de que nem sequer se conheciam antes do primeiro contacto feito pelo primeiro, movido pelo anúncio de venda do prédio urbano com a casa de habitação, o que é convincente considerando que foi a mãe das Rés quem escolheu a imobiliária onde anunciou a venda daquele imóvel e que esta agência tem a sua sede no concelho da Amadora, próximo da casa da mãe das Rés. (…), ou a Autora, também não tiveram, previamente ao negócio, qualquer contacto pessoal com as Rés ou a mãe destas.
Para além de confusa quanto à justificação dada para a formação da sua vontade em vender o terreno em litígio, acabando por dizer que andava um bocado cansada devido ao excesso de trabalho, que não lhe ocorreu pedir a mais ninguém opinião sobre o valor do terreno e que a pressão da testemunha (…) era telefonar dia sim, dia não, mas não apenas relativamente ao terreno em apreço já que também o fazia para a venda da casa, a testemunha (…) foi frontalmente contrariada na parte em que imputou aos funcionários da agência uma conduta indutora da formação do seu convencimento quanto ao valor do prédio em litígio.
(…) e (…) fizeram uma descrição bem mais segura dos factos, coerente com o testemunho sereno de (…), todos convergentes e contrastantes com a tese de (…), sendo de realçar a parte referente às propostas e contrapropostas trocadas entre as partes até se chegar ao valor final de € 15.000,00. (…) e (…) negaram qualquer pressão exercida sobre a mãe das Rés ou sobre estas, atribuindo ao imóvel valores, ou instando-as a aceitar as propostas da Autora, tendo referido ainda que o seu interesse, como consultores imobiliários que ganham à percentagem em função do valor da venda, é alcançar o mais alto preço de venda possível.
Também quanto às alegadas tentativas do pai da Autora comprar o terreno ao pai das Rés (facto não provado n.º 8), a versão de (…) – que, em termos vagos, se limitou a dizer que o (…) havia contactado o marido, antes de morrer, para lhe falar do negócio – foi contrariada por esta testemunha que disse nunca ter tido qualquer iniciativa nesse sentido e que as únicas vezes que viu o pai da Rés foi no tribunal, devido a um litígio que os opôs motivado por este ter feito um caminho em propriedade da testemunha.
No que respeita ao facto provado n.º 7, o que resultou do testemunho da mãe das Rés foi que o seu arrependimento resultou de ter sabido que o terreno valeria mais do que o valor acordado, não de que não tivesse interesse em vendê-lo. As testemunhas ligadas à imobiliária disseram que depois de ser informada que havia uma pessoa interessada na compra, esta lhes transmitiu o seu interesse no negócio, realizando contraproposta no valor de € 25.000,00.
Ainda com interesse para o facto não provado n.º 9, regista-se que a mãe das Rés deu conta, durante o seu testemunho, que já tinha celebrado outros negócios imobiliários anteriores, nomeadamente um contrato de venda de outro imóvel pertencente à herança do falecido marido e contratos de arrendamento de outros imóveis de que são proprietárias.
Termos em que não são de acolher os argumentos aventados pelas Recorrentes relativamente à matéria de facto não provada da sentença.
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Matéria de facto provada:
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Em consequência das supra determinadas alterações, a matéria de facto provada a considerar é a seguinte: [5]
1. No dia 21 de Fevereiro de 2020 A. e RR celebraram um contrato promessa de compra e venda, através do qual a A. prometeu comprar e as RR. prometeram vender o prédio rústico composto por pastagem, cultura arvense e oliveiras, sito em (…), com área de 2480 m2, sito na freguesia de Sesimbra (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção Z;
2. Por tal contrato as RR identificaram-se como únicas proprietárias e legítimas possuidoras do prédio em questão;
3. As RR. não estão inscritas como proprietárias no Registo Predial;
4. Estão apenas inscritas como titulares do prédio na matriz;
5. A mãe das RR. informou a agência que mediou o contrato – «Century21 – Pole (…), Lda.» – que as AA. eram, como herdeiras de seu falecido pai (…), as donas do prédio, tendo esta agência verificado que as AA. não tinham procedido à atualização do registo predial, no qual ainda constava o seu pai como proprietário;
5-B. O imóvel referido no facto provado número tinha, à data de 21 de Fevereiro de 2020, valor não inferior a € 25.000,00".
6. A referida agência imobiliária informou o pai da A. que as RR eram as únicas herdeiras de (…) e que já tinha mediado a venda de outro património do respetivo acervo hereditário.
7. Além do mais, ficou acordado que o preço da venda seria de € 15.000,00;
8. Estipularam as partes a existência de um sinal, no valor de € 5.000,00, que a A. já entregou às RR.;
9. Mas consagraram também que, não obstante, o contrato ficaria sujeito a execução específica;
10. O período previsto para a celebração do contrato definitivo era de 60 dias, pelo que deveria ter sido celebrado até ao dia 21 de abril de 2020;
11. e 12. Nesse período, porém, constatou-se que as RR. não estavam inscritas como proprietárias no registo predial e que a Conservatória competente exigia que antes de tal registo se corrigisse a desconformidade entre a área do terreno no registo predial – 2.480 m2 – e a área do mesmo terreno na matriz – 2.700 m2;
15. Como se atravessou uma pandemia, com confinamento geral e encerramento da maioria dos serviços públicos, a A. compreendeu e aceitou que as RR. estivessem a ter dificuldade em regularizar a situação;
16. Essas dificuldades foram do conhecimento da A.;
17. a 19. e 52. Com o assentimento da Autora, foi assinado apenas pelas Rés, na qualidade aí declarada de “promitentes vendedoras” e “primeiras outorgantes”, o escrito, reproduzido pelo documento 7 junto com a p.i., intitulado “aditamento ao contrato promessa de compra e venda” do qual, entre outras coisas, consta: 1 - Considerando a assinatura do Contrato Promessa de Compra e Venda de 21 de Fevereiro de 2020 assinado entre as Promitentes Vendedoras e Promitente Comprador foi convencionado entre as partes que Escritura Pública de Compra e Venda deveria ser celebrada até sessenta dias após a outorga do contrato promessa de compra e venda. 2 - Tendo em consideração que a transmissão do imóvel objecto do Contrato Promessa Compra e Venda já identificado, só poderá ser efectuada após a rectificação de áreas existente, entre o que consta da Conservatória do Registo Predial e o Serviço de Finanças e posterior registo de aquisição do imóvel a favor das Promitentes Vendedoras, e; 3 - Face à actual situação de saúde pública que o país atravessa e tendo sido decretado o estado de emergência, devido à pandemia do vírus COVID 19, desconhecendo-se assim quais serão as entidades e órgãos públicos que permanecerão em funcionamento e que poderão provocar atrasos no presente processo de compra e venda, tal como Conservatórias, Cartório, Finanças e/ou outras entidades; 4 - A Escritura Pública de Compra e Venda só será celebrada até sessenta dias após a outorga do presente aditamento, renováveis automaticamente até que as entidades e órgãos públicos se disponibilizem para a realização da mesma. 5 - Através do presente aditamento, as Promitentes Vendedoras dão plena quitação do valor de € 5.000.00 (cinco mil euros) pago pelo Promitente Comprador, por elas iá recebido, a título de sinal e princípio de pagamento, através do cheque n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos, SA, emitido a seu pedido em nome de sua mãe, Sra. D. (…). 6 - Acordam ainda os outorgantes que o remanescente do preço de € 10.000,00 (dez mil euros) poderá ser liquidado, a todo o momento e previamente à outorga da escritura pública de compra e venda, através de cheque ou transferência bancária. Feito em duas vias, ficando uma delas em poder dos Promitentes Vendedoras e a outra em poder do Promitente Comprador. (…)”.
20. Quem ficou de diligenciar pela marcação da escritura de compra e venda foi a agência imobiliária;
21. Em 14 de Julho de 2020 a agência dirigiu às RR. uma carta onde manifesta a necessidade e importância da colaboração das RR., na questão da resolução da harmonização das referidas áreas do prédio rústico em causa;
22. Na resposta, a 23 de Julho de 2020, apresentou-se o Advogado das RR., (…), que informou a referida agência imobiliária de que as suas constituintes “…não têm mais interesse na concretização do negócio em apreço”;
23. Mas escrevendo, também, que essa sua falta de interesse resultou do facto de o negócio, constante do contrato de promessa, se ter baseado em erro na avaliação do imóvel objeto do contrato por parte da agência imobiliária, no que concerne à sua viabilidade de construção;
23-A. Da mesma carta, cujo teor se reproduz no documento 10 junto com a p.i., consta ainda, entre o mais: “Como certamente compreenderão, em face deste elemento, o valor de venda do presente imóvel é substancialmente inferior ao seu valor de mercado. Tal situação acarreta um avultado prejuízo para as N/ Constituintes, sendo que tal responsabilidade apenas poderá ser imputada a V. Exas. (…)”.
24. Nessa mesma carta as RR. disponibilizaram-se para devolver o sinal à A., no valor de 5.000,00 euros;
25. E ainda fixaram à agência imobiliária um prazo, de 8 dias, para devolução do montante pago pelas RR. a título de comissão no âmbito do mencionado contrato de promessa celebrado;
26. Em 17 de setembro de 2020 o mesmo Advogado enviou uma carta à A., igualmente manifestando que as suas constituintes dão “sem efeito o contrato promessa de compra e venda que foi celebrado”;
27. Na resposta, a A. afirma não aceitar a posição das RR. e exige a celebração do contrato de compra e venda;
29. O artigo (…) é composto por Edifício para habitação de r/c com 2 assoalhadas, casa de banho, 2 vestíbulos e 2 garagens, 1º andar com 2 assoalhadas, cozinha, casa de banho e terraço;
30. O prédio da presente ação judicial corresponde ao artigo matricial 105º é atravessado por uma linha de água;
31. E não tem licença para construção, dispondo, no PDM, de capacidade construtiva;
32. A A. tomou conhecimento de que as RR. estavam a anunciar vender, com um cartaz da agência lá colocado, um imóvel que está implantado no artigo (…);
33. Sabendo que o terreno rústico com o artigo (…) também pertencia ao mesmo proprietário (eram ambos do falecido pai das RR), a A. telefonou, através de seu pai, (…), para a agência anunciada no cartaz e questionou se o terreno rústico não iria também ser vendido, porque este era ao pé da casa da sua casa em Sesimbra;
34. Nesse sentido fez uma proposta de o adquirir por € 12.000,00;
35. A agência imobiliária, colocou a proposta à consideração das RR. que a rejeitaram;
36. O valor inicial, constante do contrato de mediação imobiliária, de € 15.000,00, acabou por ser aceite pela A.;
37. A Autora pretende adquirir o terreno rústico em causa para fins agrícolas, sendo-lhe indiferente que seja possível a obtenção de uma licença de construção que não pretende pedir nem obter;
38. O pai da A., (…), Advogado, tinha poderes para representar a sua aqui filha na celebração do contrato de promessa de compra e venda;
39. A Ré, (…), nasceu em 01.03.2000;
40. A Ré, (…), nasceu em 20.04.2021.;
41. (…) é mãe das Rés;
42. E nasceu em 21.05.1964;
43. As RR. encontram-se a estudar e não exercendo atividade profissional, não tendo quaisquer conhecimentos ou experiência de vida e relativamente a transações imobiliárias ou aos valores dos imóveis no mercado, tendo ponderado a venda do imóvel referido, que adquiriram por sucessão após o falecimento do seu pai (…), as Rés requereram o auxílio da sua mãe, (…);
44. Uma vez que a sua mãe também não tinha conhecimentos da área, resolveu, para saber das condições de venda do imóvel, deslocar-se à agência imobiliária Century 21 Pole (…), Lda., sita na Praceta (…), n.º 1-A, (…), 2720-306, Amadora;
45. No plano Diretor Municipal de Sesimbra (PDMS), o prédio insere-se na Unidade Operativa de Planeamento e Gestão 2 (UOPG-2), designada Concha de Sesimbra, na classe de espaço designada Espaço de Transição cujos condicionalismos estão definidos na lei, como sejam o índice de construção máximo de 0,04, e um índice máximo de fogos de dois com o máximo de dois pisos, estando inserido ainda na Rede Natura 2000 e está abrangido pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira inserindo-se na classe de espaço Solo Rural, categoria Áreas de Transição;
46. Em 13 de outubro de 2022, o imóvel foi avaliado para venda no mercado em 42.000,00 euros;
47. As Rés sempre estiveram disponíveis para a devolução do sinal em singelo;
48. As Rés contactaram a referida agência imobiliária através de carta, enviada e subscrita pelo seu Mandatário, exigindo a devolução do montante pago a título de comissão, no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado;
49. Sendo que a agência imobiliária mediadora se recusou tendo exigido o valor de € 1.383,75, a título de comissão;
50. (…) litigou judicialmente com o pai das Rés, sobre uma situação relacionada com uma servidão de passagem nessa zona, o que deu origem ao processo n.º 199/91, que correu termos no Tribunal Judicial de Sesimbra;
51. O contrato-promessa de compra e venda foi assinado por …, em representação de ….
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B. De direito
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Da não inscrição das Rés como proprietárias, no registo predial
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O primeiro argumento jurídico apresentado pelas Recorrentes contra a sentença de 1ª instância consiste no alegado impedimento da procedência da acção da execução específica, atento o facto provado de as Rés, promitentes vendedoras, se não apresentarem como titulares do direito de propriedade inscritas no registo predial, o que contraria o disposto no artigo 9.º, n.º 1, do Código do Registo Predial (doravante CRP).
Sem razão, porém, pois esquece que, não obstante a redacção do n.º 1 do artigo 9.º do CRP, prever que “os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo”, no caso particular dos bens adquiridos por via sucessória, a alínea a) do artigo 55.º do Código do Notariado, dispensa a sua inscrição no registo por parte da pessoa que os aliena quando se encontre habilitada herdeira de quem nele figure inscrita.
Esta é a situação do caso vertente, na medida em que as Rés são as herdeiras habilitadas da herança do seu falecido pai, inscrito no registo como titular do direito sobre o prédio em litígio.
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Da anulabilidade do contrato-promessa por usura
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Sustentam as Recorrentes que, no caso presente, o contrato-promessa é anulável por usura negocial, nos termos e para os efeitos do artigo 282.º do Código Civil, dado que a Autora, (…) e a agência imobiliária obtiveram benefícios injustificados, aproveitando-se da inexperiência das Rés e da sua mãe.
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Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil:
“É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.
Sobre a usura na nossa ordem jurídica, o Professor António Menezes Cordeiro, refere que o artigo 282.º do C.C. tem elementos reportados aos sujeitos e, dentro destes, relativos ao usurário e à vítima da lesão, e elementos atinentes ao negócio. Em relação ao usurário, a lei exige que ele “explore” determinada situação de vulnerabilidade da vítima. Quanto à vítima, a lei exige uma “situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter”. Os elementos relativos ao negócio cifram-se na promessa ou na concessão de “benefícios excessivos ou injustificados”. [6]
Pedro Camargo de Sousa Eiró descreve o vício da usura como “complexo”.[7]
Na usura encontram-se “…elementos subjetivos (relativos ao lesado ou vítima da usura e ao usurário) e elementos objetivos (relativos ao conteúdo do negócio). Para a sua existência é necessária a verificação simultânea de todos estes elementos. (…) Não é possível separá-los sem mutilar o instituto da usura. Condicionam-se. Existe um nexo de causalidade entre eles: o elemento subjetivo é causa do objetivo. Este é a consequência daquele”.
a)
No plano dos elementos subjetivos, impõe-se distinguir:
i.
Os referentes ao lesado ou vítima da usura, constitutivos da sua situação de inferioridade e que, na formulação legal são os estados de “…necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter”.
Trata-se, em qualquer dos casos, de estados que devem verificar-se à data da celebração do contrato.
Seguindo de perto a lição de Pedro Eiró, densifica-se em seguida cada um dos conceitos utilizados pela lei:[8]
“Necessidade” não é só a económica, devendo ser entendida em termos amplos que abrangem “…não só a situação de necessidade puramente económica, porventura a mais frequente, mas também a de ordem física ou moral…” de que são exemplos a angústia aflição, perigo físico. No caso da necessidade económica, o critério a utilizar deverá ser o das “…necessidades mínimas de sustento ou condições de vida condizentes com a dignidade da pessoa humana.”;
“Inexperiência” resultará “… quer de uma falta de conhecimento das coisas da vida em geral (inexperiência absoluta) quer ser relativa a certo tipo de actividades ou ramo de negócio em especial. (…) Apenas se exige que o declarante, ao emitir a declaração negocial, não possua um perfeito conhecimento das circunstâncias (…) necessárias a uma completa valoração dos interesses em causa no negócio.”;
“Ligeireza” é um conceito muito amplo e vago, de ponderação casuística, que se traduz numa propensão para agir sem a necessária “…ponderação e sem o correcto ajuizamento das circunstâncias do negócio.” É um elemento puramente interior do declarante que, por vezes, pode coincidir com a incapacidade acidental – quando este «não pode» ver as consequências do seu ato -, mas outros casos, diversamente, não coincide, já que o declarante não «quer ver» essas consequências, pois o ato ruinoso parece-lhe vantajoso em virtude da euforia e do entusiasmo que o impelem a agir imponderadamente;
“Dependência” abrange não só as situações de dependência económica, como também afetiva (v.g. relações familiares), psicológica (v.g. o aluno para com o seu mestre) ou profissional (v.g. relações de trabalho entre os superiores e os seus inferiores hierárquicos);
“Estado mental” pretende “…abranger as situações de debilidade mental, acidental ou permanente, resultante de fatores de ordem natural. É a situação em que se encontram, nomeadamente: os interditos ou inabilitados por anomalia psíquica; os indivíduos suscetíveis de serem interditados ou inabilitados por aquela causa; os indivíduos que, embora tendo capacidade de exercício de direitos, se encontrem dela acidentalmente privados no momento de emitirem a declaração - por embriaguez, utilização de estupefacientes, etc.”;
“Fraqueza de carácter” cuja definição se confunde com as situações de estado mental.
ii.
Elemento relativo ao usurário, constituído pela exploração da situação de inferioridade da vítima.
“Exploração” é, neste contexto, o aproveitamento consciente, o que pressupõe o conhecimento, pelo usurário, da situação de inferioridade da vítima. Não é necessário que a exploração seja intencional, bastando-se com a consciência do aproveitamento.
É a exploração da situação de inferioridade que torna reprovável o negócio usurário, justificando o valor negativo que o ordenamento jurídico lhe atribui.
b)
Quanto ao elemento objectivo, consiste, na formulação legal adoptada, no “benefício excessivo ou injustificado” que se traduz na lesão, manifestada pela desproporcionalidade entre as prestações.
Porém, é imperioso ter presente que num sistema jurídico-económico baseado nos princípios da liberdade de concorrência e da livre contratação, “…a concorrência é impossível sem que haja a lesão em desvantagem de algum ou alguns dos seus intervenientes. (…) Em todo o contrato há, em princípio, uma parte que ganha e outra que perde. (…) Nenhum contrato consegue ser absolutamente comutativo, e todos comportam alguma desigualdade. A lesão existe, por conseguinte, em todo o contrato. Se o ordenamento jurídico considerasse relevante toda e qualquer lesão, acabaria por destruir aqueles dois princípios básicos.”[9]
Por isso, nem toda a lesão, traduzida numa desproporcionalidade entre as prestações, pode ser relevante para efeito de verificação do vício da usura.
A definição daquilo que deve ser considerado um benefício “excessivo” ou “injustificado”, é uma tarefa que fica casuisticamente entregue ao prudente critério do julgador que deverá “…determinar se os benefícios prometidos ou concedidos pelo declarante têm uma justificação em face das concepções gerais existentes em cada momento acerca da justiça interna dos negócios, acerca da justiça própria do ordenamento jurídico.”[10]
*
Feita a breve introdução teórica ao instituto da usura no Código Civil Português, é hora de regressar às circunstâncias do caso.
Tanto quanto resulta da matéria de facto provada, a Autora celebrou, através do seu procurador, com as Rés, um contrato-promessa de compra e venda através do qual a primeira prometeu comprar e as segundas prometeram vender o prédio rústico composto por pastagem, cultura arvense e oliveiras, sito em (…), com área de 2480 m2, sito na freguesia de Sesimbra (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção Z.
O preço acordado para a venda foi de € 15.000,00, tendo ficado provado que o imóvel valia, na ocasião, não menos de € 25.000,00.
Há, por isso, um significativo benefício da Autora no confronto entre o preço acordado e o valor do bem à data do negócio, traduzido numa diferença de € 10.000,00, correspondente a 40% do valor real.
Ainda assim, não é líquido que se trate de um benefício cuja desproporção deva ser considerada “excessiva” ou “injustificada” para os fins do instituto jurídico da usura. Várias razões – como a ausência de outros interessados dispostos a pagar o valor de avaliação do bem, ou desejo de vender rapidamente – podem justificar uma dedução no preço de um bem na ordem de 40%.
Se nos parece dúbio o preenchimento do pressuposto objectivo do instituto da usura, vejamos agora se está verificado o elemento subjectivo que, como vimos, consiste na exploração, por parte da Autora (ainda que por intermédio do seu procurador) de situação de inferioridade das Rés, decorrente de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter.
Das situações de inferioridade em apreço, afastam-se liminarmente as de “estado mental” e “fraqueza de carácter” por não se encontrar na matéria de facto provada vislumbre de debilidade mental, acidental ou permanente, das pessoas das Rés, por ocasião da celebração de qualquer um dos contratos.
Tampouco se mostram aflorados pela factualidade provada, os pressupostos das:
- “necessidade”, seja económica, traduzida na ausência de condições mínimas de sustento, seja de ordem física e moral por padecimento de situações de angústia, aflição ou perigo físico;
- “ligeireza”, enquanto propensão das Rés, ou da sua mãe, para agirem sem a necessária ponderação e sem o correcto ajuizamento das circunstâncias dos negócios em que intervêm; ou
- “dependência”, entre as Rés e a Autora, que não tinham qualquer relação entre si à data do negócio.
Resta-nos a “inexperiência”, entendida aqui como a ausência de um perfeito conhecimento das circunstâncias necessárias a uma completa valoração dos interesses em causa no negócio. A este respeito, devemos ter presente que as Rés eram, à data, jovens estudantes sem atividade profissional, conhecimentos ou experiência de vida e relativamente a transações imobiliárias ou aos valores dos imóveis no mercado.
Porém, foram auxiliadas nas negociações e no processo decisório conducente à celebração do contrato, pela sua mãe, (…) que não era detentora de conhecimentos na área imobiliária, encontrando-se em situação similar a grande parte das pessoas que não fazem dos negócios imobiliários, ou do direito, vida profissional (sem prejuízo de, como se deixou expresso supra, este não ter sido o primeiro negócio de venda de um imóvel em que a testemunha interveio depois da morte do marido).
A pouca experiência da mãe das menores não implicava, no entanto, que fosse desconhecedora das circunstâncias que lhe permitiam saber o valor real do prédio objecto do contrato. Mandaria o bom senso de qualquer vendedor não especialista neste ramo de negócios que, independentemente do seu grau de formação, consultasse outras opiniões independentes, antes de pedir, sob a forma de declaração negocial, um preço. A eventual omissão deste cuidado pela mãe das Rés não é demonstrativa de inexperiência, mas de menor zelo.
Parece-nos, portanto, que as Rés se não encontravam inferiorizadas em razão de inexperiência da mãe que as assistiu no negócio.
Por fim, mas ainda mais relevante, o elemento subjectivo da usura não se completa sem a “exploração da situação de inferioridade da vítima” que, como se disse, consiste num aproveitamento consciente que pressupõe o conhecimento, pelo usurário, da situação de inferioridade da vítima.
Ora, não há nos autos qualquer elemento de facto que aponte no sentido de que a Autora, ou o seu procurador, tivessem conhecimento de suposta inferioridade motivada pela eventual inexperiência da mãe das Rés, nem sequer de que as partes do negócio tenham tido qualquer contacto directo entre si até à celebração do contrato-promessa.
Conclui-se, por isso, que a situação vertente não beneficia do enquadramento na exploração, pela Autora, das situações de inferioridade previstas por lei para a verificação do vício negocial da usura.
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Da anulabilidade do contrato-promessa por dolo ou erro
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Sustentam ainda as Recorrentes que o contrato-promessa celebrado entre as partes é passível de anulação por a declaração de vontade das Rés ter sido:
- obtida com dolo por parte de (…), em nome da Autora, e da agência imobiliária, actuando em conluio ou, pelo menos, com dolo da agência e conhecimento, ou obrigação de conhecimento, da parte de … (cfr. artigos 253.º, 254.º e 287.º do Código Civil); e
- com base em erro sobre o objecto do negócio, nos termos dos artigos 251.º e 247.º do Código Civil, já que as Rés celebraram o contrato-promessa na convicção de que o terreno não teria viabilidade construtiva e que não teria praticamente qualquer valor para efeitos de venda, nunca tendo vendido o imóvel se se apercebessem do erro, sendo que a Autora e (…) conheciam, ou deviam conhecer, a essencialidade para as Rés desse elemento (cfr. artigos 251.º, 247.º e 287.º do Código Civil).
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De acordo com o texto dos artigos 253.º e 254.º do Código Civil, a situação de dolo ocorre quando o declaratário usa de prévia “sugestão” ou “artifício” que tem o efeito necessário induzir ou manter em erro o autor da declaração (cfr. n.º 1 do artigo 253.º do Código Civil).
Existe, por isso, uma dupla causalidade no dolo relevante em matéria de direito civil:
- primeiro, o declaratário tem que ter a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o declarante;
- segundo, o erro causado no declarante tem de ser determinante do negócio.
No entanto, ao contrário das situações de erro previstas nos artigos 251.º e 252.º do Código Civil, no dolo basta que o erro produzido no declarante tenha sido determinante da sua vontade de contratar, não se exigindo o reconhecimento, por acordo entre declaratário e declarante, da essencialidade dos motivos que levaram à decisão (neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2000).[11]
Sobre aquilo em que deve consistir a actividade enganatória característica do dolo Manuel de Andrade ensina que “…a sugestão ou artifício há-de traduzir-se em quaisquer expedientes ou maquinações tendentes a desfigurar a verdade (manobras dolosas) – e que realmente a desfigurem (de outro modo não haveria erro) –, quer criando aparências ilusórias (suggestio falsi; obrepção), quer destruindo ou sonegando quaisquer elementos que pudessem instruir o enganado (supressio veri; subrepção). Deve tratar-se, portanto, de qualquer processo enganatório. Podem ser simples palavras contendo afirmações sabidamente inexactas (allegatio falsi; mentira), ou tendentes essas palavras a desviar a atenção do enganado de qualquer pista que poderia elucidá-lo; e podem ser obras (factos), adrede realizadas para provocar ou manter o engano. (…)”[12]
Sintetizando, Jacinto Rodrigues Bastos [13] citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2003, relatado pelo Conselheiro Moreira Camilo no processo n.º 03A2493,[14] identifica os seguintes requisitos do dolo:
a) uma actividade enganatória, isto é, um conjunto de sugestões e artifícios;
b) que ela seja desenvolvida pelo declaratário ou por terceiro;
c) que haja nexo causal entre o engano assim ocasionado e a declaração; d) a intenção de enganar, por parte do causante do dolo, o que pressupõe a consciência que este tenha da falsidade da representação que a sua conduta produzirá na vítima;
e) a convicção de que seja possível determinar, por meio daquela actividade enganatória, a vontade do declarante.
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No caso vertente, é manifesto que a matéria de facto provada não revela a prática de qualquer actividade enganatória, traduzida num conjunto de sugestões e artifícios, seja pela Autora e seu procurador, seja pela agência imobiliária, tendente a induzir ou a manter as Rés, ou a sua mãe, em erro determinante da sua declaração negocial, donde resulta liminarmente afastada a possibilidade de anulação do contrato-promessa por dolo.
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Quanto ao erro, com Pires de Lima e Antunes Varela[15] temos que o erro na formação da vontade, erro-vício ou também chamado erro-motivo, previsto nos artigos 251.º a 254.º do Código Civil, ocorre quando o declarante tem uma representação inexacta das circunstâncias que foram determinantes para a realização do negócio, em termos de se poder afirmar que se o declarante tivesse conhecimento exacto da realidade não teria celebrado o negócio ou tê-lo-ia celebrado em termos diversos. É um erro distinto do erro-obstáculo ou erro na declaração, previsto no artigo 247.º do Código Civil, erro este que não se situa ao nível da formação da vontade, mas antes da sua transmissão.
Como nota Antunes Varela, no “…erro na declaração há divergência entre o que a pessoa quer e o que ela declara, enquanto no erro-vício a pessoa declara o que quer, mas não teria aceite o que realmente quis e declarou querer, se não fosse o erro que sofreu”.[16]
O erro-vício ou sobre os motivos determinantes da vontade só é causa de anulação se as partes tiverem aceite e reconhecido a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual incidiu o erro – artigo 252.º, n.º 1, do Código Civil.
Como refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03.06.2002, relatado pela Desembargadora Ana Luísa Geraldes, é o “…erro que inquina a formação da vontade negocial, que condiciona o declarante, porquanto este criou previamente o convencimento sobre determinada condição ou facto e pautou o seu comportamento em função desse factor, evento ou acontecimento querido, essencialidade que o outro contraente também conhece e que é causa de anulação”.[17]
Na categoria do erro-vício podemos ainda encontrar as seguintes subespécies:
- o erro sobre a identidade do objecto (pessoa do declaratário ou objecto do negócio) (artigo 251.º do Código Civil) que recai sobre a identidade do objecto, sobre a sua substância ou sobre as suas qualidades essenciais, devendo entender-se por qualidades de um objecto todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida.
- erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio (artigo 252.º, n.º 2, do Código Civil). Estamos aqui, nas palavras de Heinrich Ewald Hörster, perante o “fundamento comum do negócio (…). A representação de uma das partes, existente na altura da conclusão do contrato, e reconhecida no seu significado pela outra parte, sem ser contestada por esta, ou a representação comum de ambas as partes, acerca da existência ou futura verificação ou não verificação de certas circunstâncias sobre as quais assentou a vontade negocial.”[18]
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Colhidos estes ensinamentos, impende sobre os Rés, em ordem à procedência da excepção invocada, nos termos previstos pelo artigo 342.º do Código Civil, o ónus de provar que:
1. Incorreram em erro quando emitiram a declaração negocial da escritura pública em apreço;
2. A Autora e/ou seu procurador tinham a intenção ou a consciência de induzir ou de manter em erro as Rés (elemento distintivo do dolo); e
3. O erro causado nas Rés foi determinante do negócio.
Ou, alternativamente ao pressuposto aludido em 2, que Rés e Autora sabiam ser o erro incidente sobre elemento essencial para os declarantes (erro-vício).
Compulsada a matéria de facto provada, as Rés não lograram demonstrar qualquer dos supra aludidos pressupostos legais, a começar pela existência de erro seu na ocasião do negócio, em qualquer das modalidades erro-vício ou erro-obstáculo, mas também na intenção ou consciência de a Autora / procurador induzirem ou manterem as Rés em erro.
Assim, sem necessidade de mais considerandos, conclui-se pela insubsistência de mais este fundamento do recurso.
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Do abuso do direito
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Sustentam ainda as Recorrentes que a improcedência da acção se imporia também com fundamento no abuso do direito da Autora, “…por exercício inadmissível de posições jurídicas, ao se efectuar uma transmissão por € 15.000,00 de um terreno adquirido em 2003 por € 75.000,00 e que foi avaliado nestes autos em € 42.000,00, sabendo-se da especial fragilidade e dependência das Rés e do enorme benefício obtido pela Autora e por (…). (…)”
O abuso do direito – artigo 334.º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Com Antunes Varela, “…não se trata, neste caso, da violação de um direito de outrem, ou da ofensa de uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal do direito próprio. O exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica”. [19]
O abuso do direito pressupõe que, no exercício do direito, a parte aja com excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – limites esses definidos de acordo com os valores éticos predominantes na sociedade.
A boa fé, no instituto jurídico em apreço, está ligada às ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança no cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato.
Já na modalidade de venire contra factum proprium, o abuso do direito caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
Como refere o Baptista Machado, o ponto de partida do venire é “…uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira…”, podendo “…tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.[20] Nesta modalidade do abuso de direito, a conduta do abusante terá de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contra-parte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça. Não se procura o “animus nocendi”, mas apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele.
Retomando os factos do caso em apreciação, não se verifica qualquer comportamento, precedente ou no decurso das negociações, havido entre Autora e Rés, susceptível de criar algum tipo de confiança nas Rés, gorada pela conduta da Autora.
Deste modo, não estamos (nem as Recorrentes invocam) perante o abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium.
A nossa atenção incidirá, por isso, sobre a alegada manifesta desproporção entre a promessa de transmissão do direito de propriedade pelo preço de € 15.000,00 e o valor apurado do bem àquela data, não inferior a € 25.000,00. Há uma diferença relevante – de € 10.000,00 ou 40% do valor real – entre o preço acordado e o valor do bem.
Será esta diferença suficiente para considerarmos que a Autora exerce o seu direito em termos que manifestamente excedem os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito?
Não nos parece.
É que para haver abuso de direito na modalidade em apreço, não basta que o titular do direito exceda os referidos limites da boa-fé, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores. Nas palavras de Manuel de Andrade, “…em termos clamorosamente ofensivos da justiça”. [21]
Sendo certo que as Rés prometeram vender o imóvel por um preço que comporta disparidade relevante por reporte ao valor do bem prometido àquela data, tivemos o ensejo de referir que o princípio da liberdade contratual aplicável aos negócios jurídicos implica, necessariamente, uma margem de decisão e de oportunidade para os contraentes, essencial ao funcionamento das regras do mercado, regido pelo princípio da livre concorrência.
A necessidade de intervenção correctiva através do instituto do abuso do direito deve, por isso, estar reservada aos casos em que a desproporção se mostre gritante, de modo a não perder de vista uma razoável margem de desigualdade e de risco que constitui, numa economia capitalista, o estímulo necessário à celebração dos negócios jurídicos, sobretudo quando estes se desenvolvem entre indivíduos (em que não interferem decisivamente certas condições de poder desigualitárias e prejudiciais ao funcionamento do mercado, detidas por algumas pessoas colectivas na sua relação com as pessoas singulares).
Termos em que também se afigura infundada a alegada excepção do abuso do direito titulado pela Autora.
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Aqui chegados, verificado que a sentença recorrida realizou a correcta aplicação do direito aos factos, no que à verificação dos pressupostos da execução específica do contrato-promessa celebrado entre as partes respeita, em termos que, aliás, não mereceram reparo nas alegações de recurso das Rés, resta concluir pela manutenção do segmento decisório da sentença recorrida.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, as Recorrentes não obtiveram vencimento no recurso, pelo que devem suportar as respectivas custas.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
2. Condenar em custas as Recorrentes.
Notifique.
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Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Ricardo Miranda Peixoto
Manuel Bargado
António Fernando Marques da Silva
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[1] Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pág. 30.
[2] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5c62d7680bfd396180258b8500342396?OpenDocument
[3] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/60b3c297e4f932ed8025820f0051557d?OpenDocument
[4] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8c3f0030ad423e7180257d1200509244?OpenDocument
No mesmo sentido, v. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2012, relatado pelo Conselheiro Tavares de Paiva no processo n.º 2816/08.0TVLSB.L1.S1. Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/587898375645ec0980257a80004f8e20?OpenDocument
[5] Incorpora as seguintes modificações resultantes da precedente exposição: aditamento dos factos provados 5-B e 23-A; alteração da redacção dos factos provados 5, 6, 11, 12, 16, 17 a 19, 31, 37 e 52; a eliminação dos factos provados 13, 14 e 28.
[6] In “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 3.ª edição, 2005, Almedina, págs. 649 e 650.
[7] In “Do Negócio Usurário”, Livraria Almedina, 1990, págs. 19 e 20.
[8] In Op. Cit., págs. 29, 30, 37, 40, 42, 44 e 45.
[9] Pedro Eiró, in Op. Cit., pág. 61.
[10] Pedro Eiró, in Op. Cit., pág. 64.
[11] In “Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”, Tomo I, pág. 45.
[12] In "Teoria Geral da Relação Jurídica", Vol. II, Almedina, Coimbra, 1960, págs. 256 e 257.
[13] In “Notas ao Código Civil”, vol. I, 1987, pág. 342.
[14] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0c6c422ac0a4f8f480256de400578457?OpenDocument
[15] In “Código Civil Anotado”, Volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, pág. 235.
[16] In “Direito da Família”, Livraria Petrony, 1982, pág. 313.
[17] In “Colectânea de Jurisprudência”, Tomo III, pág. 257.
[18] In “A parte Geral do Código Civil”, Almedina, pág. 577.
[19] In “Das Obrigações em geral”, Volume I, 7.ª edição, Almedina, 1991, pág. 535.
[20] In “Obra Dispersa”, Volume I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, págs. 415 e ss..
[21] Citado por Antunes Varela, in Op. Cit., pág. 537.