VENDA JUDICIAL
LEILÃO
REMIÇÃO
COMISSÃO
Sumário

1. Não se enquadra na figura de “venda em leilão electrónico”, regulada no artigo 837.º do Código Processo Civil, a venda de imóvel apreendido em processo de insolvência, organizada por uma leiloeira com uso de uma plataforma electrónica que lhe pertence.
2. As condições gerais de venda nessa plataforma, porque unilateralmente impostas pela leiloeira, sem prévia negociação individual, que destinatários indeterminados se limitam a aceitar, estão sujeitas ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
3. Compete assim à leiloeira o ónus de prova da comunicação adequada e efectiva dessas condições gerais de venda, sob pena destas se considerarem excluídas do contrato.
4. Tais condições gerais de venda não podem ser aplicadas a terceiros que não contrataram com a leiloeira, e muito menos a utilizadores que não licitaram ou que não apresentaram a licitação mais elevada.
5. Exercendo o direito de remição, o remidor deve apenas depositar o preço e cumprir as obrigações fiscais, sujeitando-se a suportar um acréscimo de 5% para indemnização ao proponente apenas se ocorrer a situação prevista na parte final do artigo 843.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
6. O remidor não está obrigado a pagar à leiloeira a comissão de 5% do valor do preço, que esta estipulou nas condições gerais de venda.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Sumário: (…)


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Competência Genérica de Silves, (…) Leiloeira Unipessoal, Lda. demandou (…), pedindo a sua condenação no pagamento de € 23.447,30, acrescida de juros.
Alegou que foi nomeada pelo Administrador Judicial da insolvência dos pais do R. para proceder à venda de um imóvel que integrava a massa insolvente, tendo para o efeito organizado um leilão electrónico, através de plataforma própria. O R. inscreveu-se na respectiva plataforma, mas a melhor proposta no leilão foi apresentada por outra pessoa. Sucede que o R. exerceu o direito de remição, juntamente com outro irmão, vindo o imóvel a ser-lhes vendido. Considera-se credora da comissão pela venda do imóvel, correspondente a 5% acrescido de IVA.
Contestando, o R. alegou a sua ilegitimidade passiva – o direito de remição foi exercido em conjunto com o seu irmão, adquirindo ambos o imóvel, em comum e em partes iguais – e afirmou não ser devedor da comissão pedida na acção.
No saneador, a excepção de ilegitimidade foi julgada improcedente.
Após julgamento, a sentença julgou a acção improcedente.

Em consequência, a A. recorre e conclui:
A. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da douta sentença de fls., que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o Recorrido dos pedidos formulados pela Recorrente.

B. Em síntese, cumpria nos presentes autos aferir se assistia à Recorrente o direito de receber do Recorrido a quantia peticionada de € 23.447,30 (vinte e três mil e quatrocentos e quarenta e sete euros e trinta cêntimos) a título de comissão pelos serviços prestados na adjudicação do imóvel ao Recorrido.

C. Assim, com o presente recurso visa, a Recorrente, questionar a apreciação da prova feita do que resultará ser posta em crise a douta decisão na parte respeitante ao alegado desconhecimento do Recorrido das condições gerais de participação no leilão e de venda.

D. Ora, os factos que integram a relação material controvertida em crise encontram-se parcialmente elucidados na matéria de facto considerada como provada, a qual se dá aqui por reproduzida.

E. Porém, não consta da mesma todos os factos que deveriam ter sido considerados provados, pelo que, se impugna a sentença objecto do presente recurso.

F. Isto porque, o Tribunal a quo considerou, s.m.o., erradamente, como não provado, que o Réu antes de exercer o direito de remição teve conhecimento das condições gerais de participação no leilão e de venda.

G. Sucede que, foi produzida prova em sentido diverso, tanto documental, como testemunhal, a qual nos parece suficiente para o referido facto integrar o acervo factual dado como provado.

H. Salvaguardando o devido respeito e consideração por diverso entendimento, da conjugação dos meios de prova produzidos impunha-se decisão diversa daquela que foi proferida e que ora se impugna, nomeadamente, de que o Recorrido teve conhecimento das condições gerais de participação no leilão e de venda, antes de exercer o seu direito de remição, e que, ainda assim, optou por exercê-lo e celebrar o negócio, devendo pagar a devida comissão à Recorrente.

I. Assim, estamos em crer que o Tribunal a quo não valorou correctamente a prova produzida, incorrendo em verdadeiro e manifesto erro de julgamento.

J. De acordo com o Tribunal a quo “O facto não provado resultou de nenhuma prova convincente e credível do seu conteúdo ter sido produzida, sendo que os depoimentos prestados em audiência e os documentos juntos aos autos mostraram-se insuficientes para formar uma convicção segura a este respeito” – cfr. Sentença ora em crise.

K. Resulta do ponto 6. da matéria de facto dada como provada que “O Réu em 17 de Dezembro de 2020 registou-se na plataforma electrónica lawsoft, onde iria decorrer o leilão” – cfr. Sentença ora em crise.

L. E dos pontos 8 e 9 que “Na plataforma electrónica da Autora constam as condições gerais de participação nos leilões” e que “Das referidas condições gerais consta entre o mais: (...) 4.1.3. A empresa encarregada de venda, a (…) – Leiloeira, receberá, no acto da adjudicação, uma remuneração calculada sobre o valor da venda dos bens, no montante correspondente a 5% (acrescido de IVA à taxa legal em vigor), cujo pagamento é da responsabilidade do comprador (seja ele particular, empresa, credor hipotecário, entidade bancária, entidade com direito de opção, preferência ou de remição)” – cfr. Sentença ora em crise.

M. Ou seja, o ora Recorrido acedeu à plataforma electrónica da Recorrente, onde decorria o leilão, tendo efectuado o devido registo, o qual implicava que assinalasse no formulário para o efeito que concordava com as condições gerais de venda, entre as quais consta que é devida uma comissão à Recorrente, no caso de se tratarem de bens imóveis, no montante de 5%, acrescido do imposto legal em vigor.

N. O Tribunal a quo entende que “o Réu ao inscrever-se na plataforma electrónica da Autora – não está a obrigar-se (contratualmente) a suportar a comissão cobrada pela mesma, não existindo uma vinculação do Réu de natureza contratual, negocial que o obrigue a suportar tal comissão” – cfr. Sentença ora em crise.

O. S.m.o., o ora Recorrido ao entrar na plataforma electrónica e ao ter accionado o campo onde indicava que aceitava as condições do leilão, adquiriu o conhecimento das mesmas, ainda que objectivamente, entre as quais consta o pagamento da comissão da Recorrente, a cargo do comprador, ainda que se trate de uma entidade com direito de remição, como sucede in casu.

P. Para efectuar o registo no sistema é necessário aderir às condições, as quais se encontravam previamente publicitadas, expostas, na plataforma, constituindo uma obrigação de quem se regista inteirar-se do seu conteúdo.

Q. Assim, objectivamente, ao efectuar o registo, está a dar o seu assentimento às respectivas condições, ainda que subjectivamente não tome conhecimento das mesmas.

R. Uma vez que, “A declaração negocial é constituída pelo comportamento exterior do agente, tal como é visto por terceiros, tal como ele «aparece» aos olhos dos outros, considerado exteriormente” [cfr. Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica (1966), Vol. II, 7.ª Reimpressão, Almedina / 1987, pág. 122].

S. No caso concreto, com o registo, o Recorrido confirmou que concordava com as condições, inclusive, com o pagamento da comissão de 5% à Recorrente em caso de aquisição dos imóveis.

T. Registo esse que ocorreu em 17 de Dezembro de 2020 e, logo, antes do exercício do direito de remição por parte do Recorrido.

U. O que exterioriza que, objectivamente, tomou conhecimento das condições de participação no leilão e de venda,

V. sendo, dessa forma, responsável pelo pagamento da já referida comissão, uma vez que adquiriu os bens imóveis.

W. Neste sentido vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.10.2021, relatado por Alberto Ruço e disponível em www.dgsi.pt.

X. Atentemos no depoimento prestado pela testemunha (…), a qual depôs de forma séria e credível, em sede de audiência de discussão e julgamento, na sessão do dia 21 de Março de 2023, e que se dá aqui por integralmente reproduzido, transcrevendo-se as concretas passagens do minuto 00:02:22 ao minuto 00:03:11, onde a mesma esclarece que aquando da visita ao imóvel falou com o Recorrido pessoalmente informando-o das condições gerais de venda e, nomeadamente, da comissão da Recorrente.

Y. Procedimento este que é, aliás, habitual da Recorrente sempre que efectua visitas a imóveis para registo fotográfico e apreensão.

Z. Posto que, ainda que se entenda que com a inscrição na plataforma o Recorrido não teve conhecimento das condições gerais de venda – o que não se concebe, nem se concede – pode, com tal depoimento, concluir-se que aquando da visita ao imóvel ficou a conhecê-las.

AA. A qual ocorreu no dia 02 de Dezembro de 2020 (vide documento n.º 4 junto com a douta petição inicial) e, como tal, também antes do exercício do direito de remição.

BB. Não obstante, o Tribunal a quo entendeu que “Com efeito e não obstante a testemunha (…) ter referido que aquando da visita ao imóvel, para fazer a sua apreensão e registo fotográfico, falou com o Réu das condições de venda do imóvel (nomeadamente que o comprador além do preço tinha que pagar 5% mais IVA), tal não se afigura credível, uma vez que na data em que a testemunha efectuou a visita ao imóvel o leilão de tal imóvel ainda não se tinha iniciado e não existia sequer valor base para a venda do imóvel” – cfr. Sentença ora em crise.

CC. S.m.o., não conseguimos alcançar qual a relação que o Tribunal a quo faz entre a comunicação das condições de venda e, bem assim, da comissão, e o facto de aquando da visita ainda não existir um valor base para a venda do imóvel.

DD. Dado que, a comissão de 5% é aplicável sobre os imóveis, seja qualquer for o valor base estipulado, sendo por isso uma condição geral, aplicável sempre e independentemente do valor de venda do imóvel.

EE. Afigura-se-nos, assim, bastante credível que, aquando da visita, a testemunha suprarreferida tenha informado que, no caso de o Recorrido querer exercer o direito de remição e, como tal, adquirir o imóvel, teria que pagar, além do preço, uma comissão de 5% à Recorrente.

FF. Pelo que, deve o depoimento supratranscrito ser tido em consideração e valorado devidamente.

GG. Ademais, consta da sentença ora em crise que “Ademais, dos autos não consta qualquer documento que nos permita concluir que o Réu teve efectivo conhecimento das condições do leilão – em data anterior ao exercício do direito de remição – e que concordou com as mesmas, sendo que o email em que são comunicadas as condições de venda ao Réu data de 22 de Março de 2021”.

HH. Primeiramente, cumpre dizer que tal não corresponde à verdade, uma vez que, o Recorrido efectuou o registo na plataforma da Recorrente no dia 17 de Dezembro de 2020 e, como tal, antes de exercer o direito de remição, concordando com as condições gerais de participação no leilão e de venda, as quais se encontravam devidamente publicitadas, disponíveis para o mesmo as ler com a necessária atenção.

II. Igualmente, a visita ao imóvel foi realizada no dia 02 de Dezembro de 2020, também antes do exercício do direito de remição - o qual foi comunicado à detentora da proposta vencedora em 17 de Março de 2021 (vide documento n.º 10 junto com a douta petição inicial, tendo aí sido comunicadas as condições gerais de venda, como de resto se referiu.

JJ. Por fim, consta do ponto 13 da matéria de facto dada como provada que “No dia 15 de Abril de 2021, através de escritura pública, (…), na qualidade de administrador de insolvência nomeado no processo de insolvência de pessoa singular n.º 108/19.9T8LGA, declarou proceder à venda, em comum, por negociação particular, no exercício do direito de remição a (…) e (…) do prédio identificado em 5” – cfr. Sentença ora em crise,

KK. E do ponto 15 que “Sendo que até à presente data ainda nada foi pago pelo Réu à Autora, permanecendo em dívida o montante aposto na referida factura, pese embora a Autora ter enviado email ao Réu a solicitar o pagamento” [em 22 de Março de 2021, conforme documento n.º 11 junto com a petição inicial] – cfr. Sentença ora em crise.

LL. Ora, ainda que se entenda, o que desde já não se concebe, nem se concede, que o Recorrido tenha exercido o direito de remição antes de ter conhecimento das condições gerais de venda e, em particular, da comissão da Recorrente, é inegável que o mesmo teve conhecimento antes da celebração da escritura pública.

MM. Pelo que, podia muito bem ter desistido da celebração do negócio, caso não concordasse com a comissão a pagar à Recorrida, o que não fez!

NN. Manifestando assim, ainda que tacitamente, a sua concordância para com a comissão em causa.

OO. Posto que, deverá ser alterada a matéria de facto, adicionando-se aos factos provados o seguinte facto: “O Réu acedeu à plataforma electrónica onde decorria o leilão, registou-se na mesma e assinalou no formulário que tinha de preencher que concordava com as condições do leilão, entre as quais consta a comissão devida à Autora”,

PP. E, ainda, o seguinte facto: “Aquando da visita ao imóvel, no dia 02 de Dezembro de 2020, um funcionário da Autora explicou ao Réu o procedimento a adoptar, em caso de querer licitar o imóvel, nomeadamente que deveria proceder à sua inscrição na plataforma, alertando-o ainda que em caso de venda do imóvel, o adquirente teria que pagar à Autora uma comissão de 5% acrescida de IVA sobre o valor da venda”,

QQ. Sendo, nessa sequência, eliminado o facto a) da matéria de facto considerada como não provada.

RR. Por tudo o exposto se impõe a revogação in totum da sentença objecto do presente recurso, devendo o Recorrido ser condenado a pagar à Recorrente a quantia peticionada na douta petição inicial, acrescida de juros de mora devidos desde a citação e até efectivo e integral pagamento.


Nas suas contra-alegações, o R. sustenta a manutenção do decidido.
Cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto:
Começando pela impugnação fáctica, e reconhecendo, preliminarmente, que cumpriu os requisitos do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pretende a Recorrente que se elimine a alínea a) do elenco de factos não provados – a sentença deu aqui como não provado “que o Réu antes de exercer o direito de remissão teve conhecimento das condições gerais de participação no leilão e de venda” – e, pelo contrário, se dê como provado que “o R. acedeu à plataforma electrónica onde decorria o leilão, registou-se na mesma e assinalou no formulário que tinha de preencher que concordava com as condições do leilão, entre as quais consta a comissão devida à Autora”, e que “aquando da visita ao imóvel, no dia 02 de Dezembro de 2020, um funcionário da Autora explicou ao Réu o procedimento a adoptar, em caso de querer licitar o imóvel, nomeadamente que deveria proceder à sua inscrição na plataforma, alertando-o ainda que em caso de venda do imóvel, o adquirente teria que pagar à Autora uma comissão de 5% acrescida de IVA sobre o valor da venda”.
A sentença justificou a sua convicção nesta parte, nos seguintes termos:
O facto não provado resultou de nenhuma prova convincente e credível do seu conteúdo ter sido produzida, sendo que os depoimentos prestados em audiência e os documentos juntos aos autos mostraram-se insuficientes para formar uma convicção segura a este respeito.
Com efeito, e não obstante a testemunha (…) ter referido que aquando a visita ao imóvel, para fazer a sua apreensão e registo fotográfico, falou com o Réu das condições de venda do imóvel (nomeadamente que o comprador além do preço tinha que pagar 5% mais IVA), tal não se afigura credível, uma vez que na data em que a testemunha efectuou a visita ao imóvel o leilão de tal imóvel ainda não se tinha iniciado e não existia sequer valor base para a venda do imóvel.
Acresce que a testemunha (…), irmão do Réu e remidor, referiu que, em momento algum, o administrador de insolvência referiu que tinham de pagar mais alguma despesa do que aquelas que foram apresentadas e pagas.
Ademais, dos autos não consta qualquer documento que nos permita concluir que o Réu teve efectivo conhecimento das condições do leilão – em data anterior ao exercício do direito de remição – e que concordou com as mesmas, sendo que o email em que são comunicadas as condições de venda ao Réu data de 22 de Março de 2021 (folhas 37).”
De acordo com o artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Nesta Relação de Évora tem sido afirmado que a referida norma não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória, antes exige que o juízo efectuado pela primeira instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.[1]
Na apreciação da impugnação fáctica, a Relação não deve atender, apenas, aos meios de prova indicados pelo recorrente ou pelo recorrido, pois detém poderes de investigação oficiosa – artigo 640.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil –, devendo apreciar a globalidade da prova produzida, analisando criticamente as provas e retirando as ilações que se mostrarem necessárias, como o determina o artigo 607.º, n.º 4, do mesmo diploma.
Adianta-se, desde já, que não se detecta na sentença recorrida qualquer lapso relevante na apreciação da prova que imponha decisão diversa a esta Relação, devendo afirmar-se que, ao contrário do que alega a Recorrente, a prova produzida sustenta a decisão de facto proferida pela primeira instância.
Com efeito, para além dos factos essenciais relativos à inscrição do R. na plataforma electrónica onde decorria o leilão e às informações ali prestadas já constarem dos pontos 6, 7, 8 e 9 do elenco de factos provados, certo é que o R. não admitiu, no seu depoimento de parte, que lhe tenha sido dado conhecimento directo que teria que pagar à A. uma comissão de 5% acrescida de IVA sobre o valor da venda – a inscrição foi realizada, com os seus dados, pelo advogado dos seus pais para este acompanhar as incidências do leilão, e aquando da visita ao imóvel realizada em 02.12.2020 não lhe foi dito, nem aos seus pais, qual a modalidade de venda que seria utilizada.
Aliás, como é bem patente na inquirição realizada à testemunha (…), funcionário da Recorrente, este deslocou-se ao imóvel naquela data para proceder à apreensão do mesmo e tirar fotografias para publicitar a venda – mas naquela data não levou ao imóvel quaisquer interessados na venda, e é justificada a dúvida manifestada na inquirição, acerca do propósito que teria para explicar aos insolventes qual seria a modalidade e condições de venda, porquanto estes não teriam a oportunidade de licitar.
Enfim, porque nada na prova produzida impõe decisão diversa quanto à matéria de facto objecto da impugnação, vai esta julgada improcedente.

Em consequência, o elenco fáctico provado fica assim estabelecido:
1. A Autora é uma sociedade unipessoal, legalmente constituída e tem por objecto social a prestação de serviços de organização e gestão de processos de venda de direitos e bens, móveis ou imóveis, no âmbito judicial e extrajudicial, de acordo com qualquer modalidade de venda permitida por lei, nomeadamente através da organização e realização de leilões ou negociação particular, praticando para o efeito todos os actos de identificação, inventariação, manuseamento, transporte, armazenagem, guarda, manutenção, avaliação, peritagem e promoção dos bens em processo de venda e bem assim de todas as relações com as entidades interessadas na respectiva aquisição.
2. No âmbito do desenvolvimento da sua actividade comercial, o Administrador Judicial (…), por documento datado de 26 de Novembro de 2019, incumbiu a Autora de proceder a diligências de averiguação, referente ao processo de insolvência n.º 108/19.9T8LGA, de (…) e (…), que correu os seus termos no Juiz 2 do Juízo de Comércio de Lagoa do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.
3. No referido processo em que eram Insolventes (…) e esposa (…), pais do ora Réu, e cuja sentença foi proferida em 30 de Outubro de 2019, foi nomeado o Administrador de Insolvência o Dr. (…), com domicílio profissional na Alameda (…), 79, S/1, Sala E, 4400-115 Vila Nova de Gaia.
4. No dia 02 de Dezembro de 2020, um colaborador do Administrador de Insolvência nomeado, juntamente com um colaborador da Autora, deslocaram-se à morada dos insolventes para efectuar o registo fotográfico do exterior e interior do imóvel identificado em 5, apreensão, inventário e registo fotográfico dos bens existentes no interior e exterior do imóvel e redução a escrito do competente relatório.
5. Uma vez que os referidos insolventes, pais do ora Réu, eram proprietários do prédio misto, constituído por (parte urbana) prédio urbano destinado a habitação, composto de r/c e 1º andar, com logradouro e (parte rústica) constituída por amendoeiras, cultura arvense, figueiras, oliveiras e alfarrobeiras, sito no Lugar de (…) ou (…), da união de freguesias de (…), do concelho de Silves, a confrontar do Norte e Nascente com (…); do sul com Caminho e do Poente com Estrada Camarária, encontrando-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob a descrição n.º (…), da freguesia de (…) e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção 11, ambos da referida freguesia de união de freguesias de (…), do concelho de Silves, o mesmo foi apreendido e colocado à venda pela Autora através de Leilão Electrónico na sua plataforma.
6. O Réu em 17 de Dezembro de 2020 registou-se na plataforma electrónica lawsoft, onde iria decorrer o leilão.
7. Nessa sequência recebeu email da Autora com o seguinte teor “Caro cliente, A sua informação foi registada com sucesso, bem como o consentimento para uso da mesma. Em qualquer momento pode alterar o consentimento e as informações prestadas (…)”.
8. Na plataforma electrónica da Autora constam as condições gerais de participação nos leilões.
9. Das referidas condições gerais consta entre o mais:
4 – Pagamento dos Montantes/Comissão pela prestação de Serviço
4.1. Bens Imóveis
4.1.1- Com a aceitação de qualquer proposta, o proponente (seja ele particular, empresa, credor hipotecário, entidade bancária, entidade com direito de opção. preferência ou de remição), terá que pagar 20% do preço proposto, a titulo de sinal, e principio de pagamento, através de cheque bancário ou transferência bancária à ordem da Massa Insolvente;
4.1.2 O remanescente do preço será pago no acto da escritura, por meio de cheque bancário ou visado à ordem da Massa Insolvente;
4.1.3 A empresa encarregada de venda, a (…) – Leiloeira, receberá, no acto da adjudicação, uma remuneração calculada sobre o valor da venda dos bens, no montante correspondente a 5% (acrescido de IVA à taxa legal em vigor), cujo pagamento é da responsabilidade do comprador (seja ele particular, empresa, credor hipotecário, entidade bancária, entidade com direito de opção, preferência ou de remição);
4.1.4-A escritura de compra e venda do bem imóvel será efectuada logo que se encontre reunida toda a documentação necessária para o efeito, em data, hora e local a notificar ao proponente comprador.
10. O Leilão Electrónico do imóvel referido em 5.º decorreu entre as 18:00:00 horas de 19 de Dezembro de 2020 e as 18:35:07 horas de 01 de Fevereiro de 2021, tendo os colaboradores da Autora, a solicitação dos interessados, efectuado inúmeras visitas ao local para mostrar o bem.
11. A melhor proposta foi a proposta 310, apresentada às 18:30:07 horas do dia 01-02-2021 pela Sra. (…), tendo sido emitida a competente declaração pela A. à detentora da proposta vencedora para visitar o imóvel e proceder aos trâmites legais da compra.
12. Uma vez que o Réu, em conjunto com o seu irmão, (…) pretenderam exercer o direito de remição, o Administrador de Insolvência disso deu informação à pessoa que tinha feito a melhor proposta no referido leilão electrónico.
13. No dia 15 de Abril de 2021, através de escritura pública, (…), na qualidade de administrador de insolvência nomeado no processo de insolvência de pessoa singular nº 108/19.9T8LGA, declarou proceder à venda, em comum, por negociação particular, no exercício do direito de remição a (…) e (…) do prédio identificado em 5.
14. Foi solicitada via email ao Réu a comissão devida, tendo sido facultado o IBAN para o qual deveria ser efectuada a transferência, assim como a factura FAC (…) no montante de € 23.062,50 (vinte e três mil e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos).
15. Sendo que até à presente data ainda nada foi pago pelo Réu à Autora, permanecendo em dívida o montante aposto na referida factura, pese embora a Autora ter enviado email ao Réu a solicitar o pagamento, tendo este último respondido através de email, datado de 25 de Março de 2021, dizendo “Sobre o assunto temos reunião em breve com a advogada.”

Aplicando o Direito.
Da constituição do remidor na obrigação de pagamento da comissão reclamada pela leiloeira
De acordo com o artigo 164.º, n.º 1, do CIRE, o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão electrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
No entanto, a modalidade utilizada na venda do imóvel apreendido na insolvência dos pais do R. não se enquadra na figura de “venda em leilão electrónico” regulada no artigo 837.º do Código de Processo Civil, e na respectiva legislação regulamentar, nomeadamente nos artigos 20.º a 26.º da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, e Despacho n.º 12624/2015, de 9 de Novembro, que definiu as regras de funcionamento da plataforma de leilão electrónico, desenvolvida e administrada pela Câmara dos Solicitadores.
Note-se que na plataforma de leilão electrónico regulada por aqueles diplomas, que tem o seu endereço em www.(...).pt, os licitantes não suportam qualquer custo pela sua utilização, estando apenas prevista, no artigo 12.º do Despacho n.º 12624/2015, uma taxa de colocação do bem em leilão electrónico, que sairá precípua do produto dos bens penhorados.
Apenas o licitante que apresentou a licitação mais elevada fica obrigado a depositar o preço e demonstrar o cumprimento das obrigações fiscais, sob pena de aplicação das sanções previstas no artigo 825.º do Código de Processo Civil e, quanto ao exercício de direitos por terceiros, o artigo 13.º, n.º 1, do Despacho n.º 12624/2015 dispõe o seguinte: “Os preferentes ou remidores exercem os seus direitos directamente no processo de execução, não cabendo à Câmara dos Solicitadores, enquanto entidade gestora da plataforma, receber, tratar ou mesmo encaminhar, quaisquer pedidos que possam ser formulados por estes.”
Sucede que a plataforma de leilões utilizada pela A. é sua propriedade – é o que está declarado no ponto 1.6 das respectivas condições gerais, anexas à petição inicial – e não obedece às regras estabelecidas naqueles diplomas legais, mas a regras unilateralmente impostas por esta, sem prévia negociação individual, que destinatários indeterminados se limitam a aceitar, pelo que as condições identificadas no ponto 9 estão sujeitas ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, previsto no DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Deste modo, à A. competia o ónus de prova da comunicação adequada e efectiva das cláusulas contratuais gerais por si definidas, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, daquele diploma, sob pena destas se considerarem excluídas do contrato – artigo 8.º, alínea a).
Para além da Autora não ter logrado satisfazer esse ónus de prova, de todo o modo as condições gerais referidas no ponto 9, nomeadamente as que regem a comissão, não podem ser aplicadas a terceiros que com ela não contrataram (em princípio, o contrato não tem eficácia externa – artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil), e muito menos a utilizadores que não licitaram ou que não apresentaram a licitação mais elevada.
Como assisadamente se escreve na sentença recorrida, “o Réu ao inscrever-se na plataforma electrónica da Autora – não está a obrigar-se (contratualmente) a suportar a comissão cobrada pela mesma, não existindo uma vinculação do Réu de natureza contratual, negocial que o obrigue a suportar tal comissão. Na verdade, o aqui Réu, não efectuou qualquer proposta concreta para aquisição do imóvel, limitando-se a inscrever-se no site da leiloeira em data anterior à abertura do leilão.”
Note-se que não está alegado, sequer, que o R. licitou no leilão em causa – e não foi através do leilão organizado pela A. que o R. veio a adquirir, em conjunto com o seu irmão, o imóvel, mas pelo posterior exercício de um direito próprio, concedido a certos familiares dos insolventes pelo artigo 842.º do Código de Processo Civil, a quem a lei concede “um direito de preferência especial, que se constitui no contexto da liquidação judicial de bens, visando proteger a integridade do património familiar, permitindo impedir que os bens da família passem para as mãos de estranhos. A protecção do património familiar é potenciada pela atribuição de um direito de preferência qualificado às pessoas enunciadas no preceito, a quem é atribuída a faculdade de se substituírem ao adjudicatário ou ao comprador na aquisição dos bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido.”[2]
Exercendo o direito de remição, o remidor deve apenas cumprir as obrigações previstas no artigo 843.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, depositando o preço e cumprindo as obrigações fiscais, sujeitando-se a suportar um acréscimo de 5% para indemnização ao proponente apenas se ocorrer a situação prevista na parte final dessa norma (quando este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 824.º).
Acompanhamos, pois, a jurisprudência que não reconhece à leiloeira o direito de reclamar ao remidor a comissão de venda acordada com o administrador da insolvência – maxime, na Decisão Sumária da Relação de Coimbra de 02.12.2014 (Proc. 3884/12.6TJCBR-D.C1), e nos Acórdãos da Relação do Porto de 11.03.2021 (Proc. 3448/10.9TBVCD-E.P1), da Relação de Guimarães de 30.06.2022 (Proc. 1601/19.9T8GMR-B.G1) e da Relação do Porto de 11.12.2024 (Proc. 3077/23.7T8STS-B.P1), todos publicados em www.dgsi.pt.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação da sentença recorrida.
Custas pela Autora.
Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Mário João Canelas Brás
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Vide, por todos, o Acórdão de Relação de Évora de 30.06.2021 (Proc. 2287/15.3T8STR-E.E1), publicado em www.dgsi.pt.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, págs. 262-263.