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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REVOGAÇÃO
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
Estando em causa a prolação da decisão final da exoneração após o termo do período da cessão, prevê o n.º 1 do artigo 244.º do CIRE que sejam previamente ouvidos os devedores, o fiduciário e os credores da insolvência, estabelecendo o n.º 2 do preceito que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
Texto Integral
Processo n.º 1536/13.9TBVNO.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Comércio de Santarém
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
Por sentença de 10-04-2014, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de (…) e cônjuge, (…), melhor identificados nos autos.
Por despacho de 23-11-2015, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pelos mesmos formulado, tendo-se determinado a entrega ao fiduciário nomeado do rendimento disponível que os devedores venham a auferir nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, com exclusão, quanto ao insolvente (…), da quantia mensal equivalente à remuneração mínima mensal garantida e, quanto à insolvente (…), da quantia mensal equivalente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida.
Após vicissitudes várias, por decisão de 25-02-2022, da qual foi interposto recurso de apelação, foi determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, com recusa da concessão de tal exoneração, com fundamento na previsão dos artigos 239.º, n.º 4, alíneas a) e b), e 243.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do CIRE.
Esta decisão foi revogada pelo Tribunal da Relação de Évora, por decisão singular proferida no apenso E em 12-08-2022, na qual se considerou não verificado o fundamento que baseou a decisão recorrida.
Por despacho de 16-09-2022, foi determinado, com fundamento no estatuído no artigo 10.º, n.º 3, da Lei 9/2022, de 11-01, se proceda à notificação do fiduciário nomeado para se pronunciar nos termos previstos no artigo 244.º, nº 1, do CIRE e juntar comprovativo da notificação do respetivo parecer aos devedores e aos credores da insolvência.
O fiduciário nomeado apresentou, em 10-10-2022, relatório no qual:
i) prestou a informação seguinte: Data de início da cessão de rendimentos: julho de 2017. Data de fim da cessão de rendimentos: abril de 2022 (atendendo às alterações introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de janeiro de 2022). Valor a ceder no âmbito da Exoneração do Passivo Restante: Toda a quantia que exceder o montante de um salário mínimo nacional no caso do insolvente (…), e de dois salários mínimos nacionais no caso da insolvente (…). Valor cedido até à data: 0 Valor em incumprimento: (com base na informação disponível pela mandatária dos insolventes Doc. 2). Situação Atual dos devedores: Situação laboral Sr. (…): Segundo as informações obtidas (Doc. 2), desde 07/2017 que se encontra desempregado, sem auferir qualquer rendimento/subsidio. Conforme informação prestada, o Sr. (…) foi operado e desde então que trabalha mas apenas em biscates, pois não tem capacidade de trabalhar 8 horas diárias, devido aos problemas de saúde. Nesses biscates aufere cerca de +- 350,00 euros depende dos meses e do estado de saúde em que se encontra. Contudo, não foi disponibilizado qualquer comprovativo da sua situação laboral. Situação laboral Sra. (…): Segundo as informações obtidas (Doc. 2), desde 07/2017 que se encontra desempregada. Conforme informação prestada, a insolvente D. (…), encontra-se a tomar conta dos pais, ( ), tendo um deles problemas oncológicos, onde seus pais lhe dão pelo auxílio que lhes presta o montante de 650,00 euros. Contudo, desde 01/2018 que não foi disponibilizado qualquer comprovativo da situação laboral. Morada conhecida dos Insolventes: Sr. (…): Tv. da (…), S/n, (…), (…). Sra. (…): Rua da (…), n.º 6, (…).
ii) consignou que a informação prestada pelos devedores se mostra insuficiente, face ao que lhes foi solicitado – Informação sobre os seus rendimentos e o envio de cópia dos recibos de vencimento e/ou comprovativo de subsídio de desemprego e/ou apoios sociais, ou ausência destes, referente ao período de julho de 2017 a abril 2022 –, acrescentando que os mesmos não estão a cumprir as obrigações a que estão vinculados, designadamente por força do artigo 239.º, n.º 4, alínea a), do CIRE.
O credor Banco de (…), SA, em 17-10-2022, requereu se ordene a notificação dos insolventes para, no prazo máximo de 5 dias, juntarem aos autos a documentação em falta e solicitada pelo fiduciário referente ao período de julho de 2017 a abril 2022, com a cominação de que a sua inatividade será equacionada à luz da cessação antecipada do instituto de exoneração do passivo restante nos termos e ao abrigo do artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
Por despacho de 06-01-2023, foi determinado o seguinte: Tomei conhecimento do relatório apresentado pelo Sr. Fiduciário, nos termos do artigo 240.º, n.º 2, do CIRE (10-10-2022 [9069825]). Notifique os insolventes, pessoalmente e na pessoa do Ilustre mandatário, nos termos requeridos pelo credor Banco de (…), SA em 17-10-2022 [9091804], isto é, para, no prazo de 10 dias juntarem a documentação em falta e solicitada pelo Sr. Fiduciário referente ao período de julho de 2017 a abril 2022.
Notificados, os insolventes vieram aos autos, em 07-02-2023, requerer a junção aos autos de «declaração que possuem em relação ao ano de 2021», apresentando dois documentos redigidos em língua francesa.
Por despacho de 03-07-2023, foi determinado, além do mais, o seguinte: Notifique o Sr. Fiduciário do teor das informações prestadas pelos insolventes para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos relatório complementar nos termos do artigo 240.º, n.º 2, do CIRE e bem assim parecer nos termos do artigo 244.º do CIRE e comprovativo de notificação do mesmo aos credores.
O fiduciário nomeado apresentou, em 11-07-2023, relatório no qual fez constar o seguinte: Os documentos agora juntos, referem-se ao ano de 2020 (referente ao insolvente …) e 2021 (supondo o signatário ser referente à insolvente …, porquanto o documento identifica o nome de …). Os mesmos encontram-se em língua francesa, não vislumbrando o fiduciário que os mesmos comprovem eficazmente os rendimentos em falta, nomeadamente de 07/2017 a 04/2022. Nestes termos o signatário mantém a posição manifestada no requerimento apresentado aos autos com a Ref.ª 9069825 de 10.10.2022. Pelo exposto, considera o fiduciário não estarem reunidas as condições no sentido da concessão da Exoneração do Passivo Restante, nos termos do artigo 244.º do CIRE.
Por despacho de 04-09-2023, foi determinado, além do mais, o seguinte: Requerimento de 11-07-2023 […]: Notifique os insolventes para, no prazo de 10 dias, juntarem documentação em língua portuguesa e bem assim, para dizerem o que tiverem por conveniente quanto à posição assumida pelo Sr. Fiduciário.
Notificados, os devedores vieram aos autos, em 19-09-2023, requerer uma prorrogação do prazo para dar cumprimento ao despacho anterior, o que foi deferido por despacho de 21-09-2023.
Por despacho de 27-11-2023, foi determinado, além do mais, o seguinte: Atento o lapso de tempo decorrido, renovo o despacho de 04-09-2023 [94143821], no que diz respeito à notificação dos insolventes para, no prazo de 10 dias, juntarem documentação em língua portuguesa e bem assim, para dizerem o que tiverem por conveniente quanto à posição assumida pelo Sr. Fiduciário. Consigna-se que após se terá em conta o requerimento de 20-11-2023 [10175797].
Os devedores vieram aos autos, em 05-12-2023, juntar a tradução para língua portuguesa de dois documentos.
O fiduciário nomeado apresentou, em 18-12-2023, relatório no qual consignou o seguinte: Os documentos agora juntos, referem-se ao ano de 2021 (referente ao insolvente …) e 2019 (supondo o signatário ser referente à insolvente …, porquanto o documento identifica o nome de …). Referente ao insolvente (…): • A liquidação de impostos sobre os rendimentos do ano 2021 não se encontra completa (refere a existência de “mais detalhes na(s) página(s) seguinte(s).”, contudo apenas foi junto 1 (uma) página). • A declaração informa da existência de “rendimento fiscal de referência: 23959” • Em 07-02-2023, o documento apresentado pela Dra. (…), refere-se à liquidação de impostos sobre os rendimentos do ano 2020 (encontrando-se o mesmo em língua francesa). Referente à insolvente (…): • A documentação junta identifica um nome diverso ao nome da insolvente: “Sra. (…)”; • A liquidação de impostos sobre os rendimentos do ano 2019 não se encontra completa (refere a existência de “mais detalhes na(s) página(s) seguinte(s).”, contudo apenas foi junto 1 (uma) página). • A declaração informa da existência de “rendimento fiscal de referência: 16782” • Em 07-02-2023, o documento apresentado pela Dra. (…), refere-se à liquidação de impostos sobre os rendimentos do ano 2021 (encontrando-se o mesmo em língua francesa). Assim, da documentação junta pela mandatária dos insolventes, em 07-02-2023 e a agora junta a 05-12-2023, não vislumbra o fiduciário que os mesmos comprovem eficazmente os rendimentos em falta, nomeadamente de 07/2017 a 04/2022. Por despacho de 04-09-2023, foi requerido aos insolventes para juntarem documentação em língua portuguesa e bem assim, para dizerem o que tiverem por conveniente quanto à posição assumida pelo Sr. Fiduciário. Ora, os insolventes não se pronunciaram quanto à posição do fiduciário, bem como, juntaram documentação em língua portuguesa diversa da junta em 07-02-2023. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 239.º do CIRE, é esclarecedor quanto a: “4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;” De toda a informação/documentação junta pela mandatária dos insolventes, não permite ao fiduciário aferir quais os montantes dos rendimentos auferidos pelos insolventes de 07/2017 a 04/2022. Nestes termos o signatário mantém a posição manifestada no requerimento apresentado aos autos com a Ref.ª 9069825 de 10.10.2022.
Em 15-01-2024, o fiduciário nomeado retificou o relatório anteriormente apresentado, nos termos seguintes: Vem a insolvente (…), a 12-01-2024 e 15-01-2024, dar conhecimento ao fiduciário dos rendimentos auferidos pela mesma, de julho 2017 a abril de 2022 (…) A informação agora rececionada é divergente da informação prestada anteriormente e junta aos Autos. Considerando a informação agora junta, o signatário procedeu à atualização do mapa dos rendimentos auferidos pela insolvente (…), verificando-se que a mesma se encontra em incumprimento (…) Mais se informa que foi dado conhecimento à insolvente (…) do valor em incumprimento (…)
Por despacho de 23-01-2024, foi determinado, além do mais, o seguinte: Tomei conhecimento dos requerimentos que antecedem e bem assim da posição assumida pelo Sr. Fiduciário quanto ao despacho final de exoneração (18-12-2023 e 15-01-2024). Notifique, sendo os credores e os insolventes, pessoalmente e na pessoa do(s) Ilustre(s) mandatário(s), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 244.º do CIRE. Prazo: 10 dias.
Os devedores requereram lhes seja concedida a exoneração do passivo restante.
Os credores (…) – STC, S.A. e (…) Banco, S.A. pronunciaram-se no sentido da recusa da concessão da exoneração do passivo restante.
Por despacho de 10-04-2024, foi ordenada a notificação dos devedores para se pronunciarem, querendo, sobre os requerimentos apresentados pelos dois indicados credores.
Os devedores pronunciarem-se no sentido da concessão da exoneração do passivo restante.
Por despacho de 12-06-2024, foi decidido o seguinte: Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 230.º, n.º 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, declaro encerrado após a realização do rateio final, o presente processo.
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O encerramento do processo tem os efeitos previstos no artigo 233.º, n.º 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com as especificidades decorrentes da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
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Em conformidade com o disposto no artigo 233.º, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, qualifico como fortuita a insolvência.
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Registe e notifique os credores conhecidos – artigo 230.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa. Dê publicidade à presente decisão nos termos previstos nos artigos 37.º, n.º 7 e 38.º, n.º 8, ex vi artigo 230.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa. (…) Notifique os credores (…) – STC, S.A. e (…) Banco, S.A. do teor do requerimento de 29-05-2024 [10706919] dos insolventes para, no prazo de 10 dias, indicarem se mantém o requerido respetivamente em 26-01-2024 [10360029] e de 05-02-2024 [10384768], sendo que caso nada digam em tal prazo se entenderá pela negativa.
Os credores (…) – STC, S.A. e (…) Banco, S.A. vieram aos autos reiterar as posições anteriormente assumidas, no sentido da recusa da concessão da exoneração do passivo restante.
Por decisão de 13-09-2024, foi recusada a exoneração do passivo restante relativamente a ambos os devedores, nos termos seguintes: Pelo exposto, nos termos dos artigos 239.º, n.º 4, alíneas a) e c), 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e 244.º, n.º 2, do CIRE, recuso a exoneração do passivo restante dos devedores (…) e (…). Custas a atender em sede de processo de insolvência – artigo 303.º do CIRE. Registe e notifique, incluindo aos credores, procedendo-se ainda à publicitação e registo, tudo nos termos dos artigos 37.º e 38.º do CIRE – artigo 230.º, n.º 2, ex vi do artigo 247.º do CIRE.
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Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil competente, no prazo de 5 dias, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 38.º n.º 2, alínea b) e n.º 8, do CIRE – artigo 230.º, n.º 2, ex vi do artigo 247.º do CIRE.
Inconformados, os devedores interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por decisão que lhes conceda a exoneração do passivo restante, terminando as alegações com as conclusões que se transcrevem:
«1- Não tendo a situação da insolvência, sido criada ou agravada por nenhuma atuação dolosa dos insolventes.
2- Os requerentes não tiveram culpa na criação da situação de insolvência.
3- Os Requerentes não foram condenados por qualquer um dos crimes previstos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal.
4- Os insolventes sempre se prestaram a cumprir escrupulosamente, com os seus deveres de informação, apresentação e colaboração na presente lide.
5- Os insolventes desde sempre cumpriram (10 anos) com o estabelecido nos artigos 238.º e 239.º do CIRE, contudo e atento o artigo 239.º, n.º 3, alínea i), o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre decidir se é de conceder ou não a exoneração do passivo restante aos devedores.
Corridos os vistos, cumpre decidir
2. Fundamentos
2.1. Fundamentos de facto
Elementos considerados assentes pela 1.ª instância:
1 - Em 09-12-2015 foi afixado na porta da morada fixada na sentença de insolvência edital referente ao despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, de onde consta designadamente: “Não havendo motivo para indeferimento liminar, nos termos do artigo 239.º do CIRE, determina-se que: - O rendimento disponível que os devedores venham a auferir durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência é cedido ao fiduciário, que cargo que será desempenhado pelo Sr. Administrador de Insolvência; - Estão excluídos do rendimento disponível os seguintes montantes: a) Créditos referidos no artigo 115.º do CIRE cedidos a terceiro pelo período da cessão; b) - Quanto ao insolvente, (…), o montante correspondente a um Salário Mínimo Nacional, - Quanto à insolvente, (…), o montante correspondente a dois Salários Mínimos Nacionais, determinados nos termos supra explanados. - Durante o aludido período de 5 anos e nos termos do artigo 239.º, n.º 4, do CIRE fica o Devedor obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o Tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”.
2 – O devedor (…) não entregou ao Sr. Fiduciário após solicitação, toda a informação necessária para que este pudesse aferir da existência de quantias em dívida à fidúcia.
3- Muitos dos documentos juntos pelo insolvente (…) encontram-se incompletos e em língua francesa.
4 - A devedora (…) deve à fidúcia o valor de € 8.526,60.
2.2. Apreciação do objeto do recurso
Declarada a insolvência dos recorrentes (…) e (…), foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pelos mesmos formulado, tendo-se determinado a entrega ao fiduciário nomeado do rendimento disponível que os devedores venham a auferir nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, com exclusão, quanto ao insolvente, da quantia mensal equivalente à remuneração mínima mensal garantida e, quanto à insolvente, da quantia mensal equivalente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida.
Considerado findo o período da cessão do rendimento disponível, foram ouvidos os devedores, o fiduciário e os credores da insolvência, pugnando o fiduciário e os credores (…) – STC, S.A. e (…) Banco, S.A. no sentido da recusa da concessão da exoneração do passivo restante, tendo os devedores defendido a concessão de tal exoneração e não tendo os demais credores emitido pronúncia.
No relatório que apresentou, o fiduciário, com fundamento, por um lado, na falta de entrega de elementos que o habilitassem a aferir da existência de quantias em dívida por parte do insolvente (…) e, por outro, na existência de quantias em dívida à fidúcia, no montante total de € 8.526,60, por parte da insolvente (…), pronunciou-se no sentido de dever ser recusada a concessão a ambos os devedores da exoneração do passivo restante.
Por decisão de 13-09-2024, foi recusada a ambos os devedores a exoneração do passivo restante, com fundamento na previsão dos artigos 244.º, n.º 2, 243.º, n.ºs 1, alínea a), e 3 e 239.º, n.º 4, alíneas a) e c), do CIRE, decisão cuja revogação vem peticionada na presente apelação.
Extrai-se da decisão recorrida, além do mais, o seguinte: Estabelece o artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, aplicável por via do artigo 244.º, n.º 2, do CIRE: (…) Por seu turno prevê o artigo 239.º, n.º 4, do mesmo diploma que (…) Compulsada a factualidade apurada, verifica-se que o insolvente (…), não obstante ter sido solicitado para tanto por diversas vezes, não prestou informação completa que permitisse ao Sr. Fiduciário averiguar se havia quantias a ceder pelo mesmo à fidúcia. Já quanto à devedora (…) resultou provado que deve à fidúcia o valor de € 8.526,60. Acresce que notificados para se pronunciarem sobre os factos acima indicados e quanto à possível recusa da exoneração do passivo restante, o insolvente (…) não prestou as informações em falta, mais alegando este insolvente e a insolvente (…) diversas dificuldades durante o período de cessão que os teriam impossibilitado de cumprir as suas obrigações e bem assim que “não deram informação falsa ou incompleta aos credores com vista à obtenção de qualquer vantagem financeira” e bem assim que não se verifica qualquer outro impedimento a que lhes seja concedida a exoneração do passivo restante, sendo que “O valor que têm auferido tem sido inferior ao valor reservado para o seu sustento e, portanto, não teriam qualquer rendimento a ceder”. Ora, por um lado, o insolvente (…) continua a não prestar a informação em falta, nem a justificar porque razão a não entrega, sendo que, por outro lado, no que diz respeito às dificuldades alegadas por ambos os insolventes e ao facto pelos mesmos indicado de que o valor que têm auferido ser insuficiente para o seu sustento, sempre poderiam os devedores ter oportunamente dar conta ao processo de tais dificuldades e solicitar a alteração do rendimento disponível ou a exclusão de determinado montante, no termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), iii), o que não fizeram. Com efeito, os insolventes optaram por ignorar o tribunal e as obrigações resultantes da admissão liminar da exoneração do passivo restante. Em face do exposto é manifesto que o insolvente (…) incumpriu, com grave negligência senão mesmo de forma dolosa, o dever de informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE e a insolvente (…) incumpriu, com grave negligência senão mesmo de forma dolosa, o dever de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, previsto na alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE. Apurada a violação de uma das obrigações previstas no artigo 239.º, importa aferir se por esse facto ficou prejudicada a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Sucede que, no que diz respeito ao devedor (…), devido à falta de colaboração do mesmo, não foi possível apurar se este teve rendimentos que permitiriam a entrega da quantia em falta, quantia que seria utilizada para o pagamento das dívidas da massa e dos credores. De modo a ultrapassar a dificuldade decorrente da falta de colaboração do insolvente, o legislador previu expressamente que “a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las” (artigo 243.º, n.º 3, 2.ª parte, do CIRE). Ora, apesar de expressamente notificado, o devedor (…) não forneceu a informação solicitada e também não apresentou qualquer justificação para não ter prestado essas informações. Deste modo, mais não resta do que recusar a exoneração do passivo restante quanto ao devedor (…). Já no que concerne à devedora (…), tal prejuízo resultou efetivamente provado e é no montante dos rendimentos não cedidos, isto é, no montante de € 8.526,60, sendo que tem vindo a jurisprudência a entender que tal prejuízo, exigido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE não tem de ser relevante, bastando a mera existência de um qualquer prejuízo (…). Deste modo, mais não resta do que recusar a exoneração do passivo restante.
Discordando deste entendimento, os apelantes sustentam que deve ser-lhes concedida a exoneração do passivo restante.
Vejamos se lhes assiste razão.
No âmbito da insolvência de pessoas singulares, o CIRE estabeleceu a possibilidade de ser concedida aos devedores a exoneração dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos – presentemente três anos, em resultado da alteração introduzida pela Lei 9/2022, de 11-01 – posteriores ao encerramento deste, de forma a permitir a respetiva reabilitação económica.
Com este regime da exoneração do passivo restante, o CIRE acolheu, conforme decorre do preâmbulo do diploma que o aprovou (DL n.º 53/2004, de 18-03), o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência. No entanto, esta possibilidade de os devedores insolventes, verificados determinados requisitos e decorrido o período temporal fixado, se libertarem de algumas das suas dívidas, de forma a reiniciarem a sua vida económica, é conjugada com o princípio fundamental do ressarcimento dos credores, o qual impõe que o devedor permaneça, durante o período da cessão, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.
Encontrando-se, no caso presente, findo o período da cessão, cumpre apreciar se é de recusar a exoneração do passivo restante, como decidido pela 1.ª instância, ou se deverá ser concedida tal exoneração, conforme defendem os apelantes.
Relativamente à decisão final da exoneração, o artigo 244.º do citado Código dispõe o seguinte:
1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores.
Face ao estatuído no n.º 2 do citado preceito, cumpre atender ao artigo 243.º do CIRE, preceito que dispõe, além do mais, o seguinte: 1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência. 2 – (…) 3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. (…).
Baseando-se a recusa da exoneração do passivo restante na previsão das alíneas a) e c) do n.º 4 do artigo 239.º, cumpre atender à redação do invocado preceito: 4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; (…) c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; (…).
Estando em causa a prolação da decisão final da exoneração após o termo do período da cessão, prevê o n.º 1 do artigo 244.º que sejam previamente ouvidos os devedores, o fiduciário e os credores da insolvência, estabelecendo o n.º 2 do preceito que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
O artigo 243.º, por seu turno, prevendo a possibilidade de cessação antecipada do procedimento de exoneração, sem que se mostrem satisfeitos os créditos sobre a insolvência, elenca nas alíneas a) a c) do n.º 1 as causas de recusa antecipada da exoneração e estabelece no n.º 3, segunda parte, que a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações.
No caso presente, por despacho de 23-11-2015, conforme decorre do respetivo segmento decisório transcrito no edital a que alude o ponto 1 de 2.1., os devedores ficaram obrigados, durante o período da cessão, além do mais, a entregarem imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos respetivos rendimentos objeto de cessão, bem como a informarem o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado.
Ora, considerou-se assente que a insolvente (…) deve à fidúcia o valor de € 8.526,60 e que o insolvente (…) não entregou ao fiduciário, não obstante notificado para o efeito, a informação necessária a que o mesmo lograsse aferir da existência de quantias em dívida à fidúcia, sendo que alguns dos documentos que juntou se encontram incompletos.
No que respeita à insolvente (…), pelo aludido despacho de 23-11-2015, tendo em conta a situação pessoal da devedora, foi excluído do rendimento disponível o montante mensal correspondente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida, sendo que esta decisão vincula a devedora, não cabendo reapreciar nesta sede os pressupostos que determinaram a quantificação do rendimento indisponível, tendo a insolvente ficado obrigada, durante o período de cessão, a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Analisando o elenco de factos considerados assentes, verifica-se que foi julgado provado que a devedora (…) deve à fidúcia o valor de € 8.526,60, conforme consta do ponto 4 de 2.1..
Porém, não consta da matéria tida por provada qualquer facto relativo aos valores auferidos pela devedora durante o período da cessão, nem relativo à ausência de entrega, ou à eventual entrega, pela mesma, de quantias à fidúcia, o que torna ininteligível a afirmação consignada no ponto 4.
Não constando da factualidade julgada provada qualquer menção aos concretos valores auferidos pela devedora durante o período da cessão, nem aos valores pela mesma eventualmente entregues ao fiduciário, não poderá deixar de se considerar que o teor do aludido ponto 4 comporta apenas um elemento conclusivo.
Efetivamente, a expressão constante da redação do ponto 4 – deve à fidúcia o valor de € 8.526,60 – traduz-se numa conclusão baseada em factos não inseridos na respetiva redação, pelo que não configura matéria de facto, antes envolvendo uma apreciação sobre factos não elencados, assim assumindo natureza conclusiva.
Considerou a 1.ª instância, na decisão recorrida, que a devedora não cumpriu a obrigação prevista do artigo 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE [Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: (…) c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão], em virtude de se encontrar em dívida o valor de € 8526,60.
No entanto, a factualidade julgada provada não permite aferir se a aludida obrigação foi ou não cumprida, por se desconhecer os montantes auferidos pela devedora durante o período da cessão, bem como os valores pela mesma entregues à fidúcia ou a eventual ausência de entrega de qualquer valor.
Definindo os poderes da Relação em sede de modificabilidade da matéria de facto, o artigo 662.º do CPC dispõe, na alínea c) do seu n.º 2, que este Tribunal deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Mostra-se indispensável, no caso presente, a ampliação da decisão de facto, dela se fazendo constar os montantes auferidos pela devedora durante o período da cessão, bem como os valores pela mesma entregues à fidúcia ou a eventual ausência de entrega de qualquer valor, o que se mostra indispensável à apreciação da atuação da devedora, no que respeita ao incumprimento da obrigação supra indicada.
Nesta conformidade, impõe-se a anulação da decisão recorrida, nos termos previstos na parte final na alínea c) do n.º 2 do indicado artigo 662.º.
Como tal, mostra-se prejudicada a apreciação das questões suscitadas no recurso.
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em anular a decisão proferida pela 1.ª instância, com vista à ampliação da decisão de facto, nos termos supra indicados.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Évora, 27-02-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Cristina Dá Mesquita (1.ª Adjunta)
Maria Domingas Simões (2.ª Adjunta)