I – Embora as circunstâncias elencadas no artigo 238º do CIRE, sejam consideradas causas de indeferimento liminar, obrigam, em regra à produção de prova e a apreciação de mérito.
II – O princípio do inquisitório previsto no artigo 11º CIRE – poder de fundamentar a sua decisão em factos não alegados – contém implícita a faculdade de o juiz os investigar livremente, recolhendo provas e informações que tiver por convenientes.
III – Não é qualquer comportamento ilícito ou até de natureza criminal que os mesmos possam ter assumido na condução dos destinos da empresa de que foram gerentes, que constitui motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, mas apenas aquele possa ter contribuído para a criação ou agravamento da sua própria situação de insolvência, enquanto pessoas singulares, nos termos em que se mostram previstos no artigo 186º do CIRE.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
AA e mulher, BB, apresentaram-se à insolvência, requerendo a concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
Declarada a insolvência dos devedores, no Relatório apresentado ao abrigo do artigo 155.º do CIRE, o Administrador de Insolvência manifestou-se favoravelmente à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Por requerimento de 20.09.2024, o credor Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Beira Centro, C.R.L. requereu o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento na intempestividade a apresentação à insolvência e com fundamento em que, do PER instaurado relativamente à sociedade de que os insolventes foram proprietários e gestores, existirá matéria do foro criminal no contrato de factoring celebrado por estes em nome de tal sociedade.
Os insolventes peticionaram o desentranhamento do requerimento do credor CCAM, relativamente à pronúncia prevista no art. 236º, nº4, do CIRE, por extemporâneo.
Respondeu o credor requerente, sustentando que os credores devem ser notificados para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração formulado, tendo o seu requerimento dado entrada antes de qualquer notificação para o efeito, razão pela qual o seu requerimento é tempestivo.
Para mais, o credor, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Beira Centro, C.R.L., veio requerer, a 27-09-2024, ao abrigo dos artigos 411.º e 436.º, ambos do Código de Processo Civil, a requisição ao Crédit Agricole Leasing & Factoring, S.A., de todos os documentos e/ou elementos, em seu poder, que comprovam a informação por este proferida de que existirá matéria do foro criminal no contrato de factoring que os insolventes celebraram, enquanto únicos sócios e gerentes da sociedade A..., Lda., no âmbito do qual aquela sociedade cedeu a esta financeira um conjunto de créditos titulados por várias faturas emitidas sobre devedores – i.e., produção de prova relativamente ao seu direito de pronúncia quanto ao pedido de exoneração do passivo dos devedores insolventes.
Pelo juiz a quo foi proferido Despacho, contendo as seguintes decisões:
1. A julgar extemporâneos, o requerimento da CCAM, assim como os dos outros credores (pois deduzidos após 16-09-2024 [60 dias após a prolação da sentença, com o acréscimo dos 10 dias subsequentes a tal término]), tendo-se extinto, pelo decurso do prazo, o direito dos requerentes se pronunciarem (e de peticionarem produção de prova) quanto ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores insolvente
2. Na ausência de verificação de qualquer uma das circunstâncias previstas no artigo 238.º, nr.º 1, do CIRE, que impõem o indeferimento liminar, entende-se que se encontram verificadas as condições mínimas para aceitar o requerimento de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente.
(…).
Insurge-se a Apelante contra a decisão recorrida na parte em que, tendo por extemporâneo o requerimento da CCAM e o respetivo pedido de produção e prova, veio a considerar que “nos autos não existem quaisquer elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência [alínea e)], admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
O Apelante faz assentar as suas discordâncias com o decidido, nos seguintes fundamentos:
- o tribunal, ao ser confrontado com o pedido da aqui credora/Apelante de requisição de documentos em poder de terceiros, ao abrigo do disposto no art. 411º e 436º, deveria ter deferido o requerido;
- em face das noticias trazidas aos autos pela recorrente, não podia o tribunal fundar a sua decisão na inexistência de que os autos não continham elementos capazes de colocar em causa a conduta dos insolventes no governo dos seus negócios.
A questão sob recurso consiste em determinar se deveria o tribunal ter sobrestado na decisão respeitante à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, procedendo à prévia produção prova solicitada pelo credor/Apelante.
O procedimento de exoneração do passivo restante prevê a apreciação por parte do tribunal, do pedido de exoneração, em três momentos distintos: i) o despacho liminar ou inicial; e ii) o despacho de cessação antecipada e iii) o despacho (final) sobre a concessão da exoneração.
No despacho inicial incumbe ao juiz ponderar acerca da existência de condições mínimas para a admissão de tal pedido, admitindo-o ou rejeitando-o de imediato, caso se verifique alguma das causas de indeferimento liminar previstas no nº1 do artigo 238º.
Como salienta Adelaide Menezes Leitão[1], trata-se de “uma análise ex-officio a realizar pelo juiz, de todos os requisitos e admissão do pedido de exoneração do passivo restante em nome do princípio do inquisitório (previsto expressamente no art. 11º do CIRE”.
Encontra-se em causa a verificação nos autos, do motivo de indeferimento liminar previsto no artigo 238º, nº1, al. e), do CIRE, segundo o qual:
1. O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
(…);
e) Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”.
Como sustenta, Alexandre Soveral Martins[2], “este é aliás, um dos fundamentos mais perigosos de toda a lista. Como é fácil de ver, o juiz irá decidir sobre o pedido de exoneração do passivo restante sem ter ainda decidido que a insolvência é culposa”.
À primeira vista, a letra da alínea e) parece suportar a tese de que, sendo tal causa de indeferimento liminar apreciada com base nos elementos constantes dos autos, ou que forem fornecidos pelos credores ou pelo administrador da insolvência, até ao momento da decisão, não haveria lugar à produção prévia ou complementar de prova que suporte indiciariamente a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Não é esse, contudo, o entendimento adotado na doutrina e na jurisprudência, relativamente à atitude a tomar pelo juiz na avaliação das pré-condições que indiciem que a conduta do devedor é reveladora de que poderá ser sujeito ao período de cessão do rendimento disponível.
“O indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. (…) Aqui o mérito está em aferir o preenchimento dos requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada[3]”.
Também Luís Menezes Leitão[4] o assume abertamente, afirmando “não julgamos correto falar-se neste caso em indeferimento liminar, dado que normalmente há que produzir prova dos fundamentos de indeferimento”.
Ainda que o ónus de alegação dos factos que configuram causa impeditivas da admissão da exoneração do devedor caiba aos credores e ao administrador de insolvência, o poder de fundamentar a sua decisão em factos não alegados (previsto no art. 11º CIRE), contém implícita a faculdade de o juiz, por sua iniciativa, os investigar livremente, bem como recolher provas e informações que entender convenientes[5].
Assim, se o administrador ou um credor trouxerem aos autos factos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da sua situação de insolvência, nos termos do artigo 186º, caso os mesmos necessitem de confirmação probatória, deverá o juiz, a requerimento ou ex officio, proceder às diligências que se mostrem necessárias ao apuramento de tal factualidade.
No caso dos autos, antes de ser proferida decisão, mas já fora do prazo concedido aos credores para se pronunciarem pelo art. 236ºº CIRE (apreciação que a Apelante não impugna), o credor/recorrente vem alegar que “há noticia de factos de que os aqui insolventes não terão agido com lisura e idoneidade na condução da sociedade por estes detida. Com o efeito, de acordo com o veiculado por Crédit Agricole (…), credor requerente no PER da (...) sociedade de que os ora insolventes foram proprietários e seus gestores, e de onde provem a quase totalidade das dívidas que subjazem ao pedido de insolvência formulado pelos devedores, existirá matéria do foro criminal no contrato de factoring que os insolventes celebraram enquanto únicos sócios e gerentes da referida A... com o Credit Agricole (…), no âmbito do qual esta sociedade (detida e liderada pelos insolventes) cedeu a esta financeira um conjunto de créditos titulados por várias faturas emitidas pelos devedores.”
É com base em tal alegação que, em requerimento posterior, invocando o disposto nos artigos 411º e 436º, do Código de Processo Civil, vem requerer a requisição ao Crédit Agricole Leasing & Factoring, S.A. “de todos os documentos e/ou elementos, em seu poder, que comprovam a informação por este proferida de que existirá matéria do foro criminal no contrato de factoring que os insolventes celebraram enquanto únicos sócios e gerentes da sociedade A..., Lda., com o Crédito Agricole Leasing & Factoring, S.A., no âmbito do qual aquela sociedade cedeu a esta financeira um conjunto de créditos titulados por várias faturas emitidas pelos devedores”.
Antes de mais, cumpre esclarecer que, o que importa dilucidar, não é o comportamento eventualmente culposo dos aqui devedores na situação de insolvência da sociedade de que foram sócios gerentes (comportamento esse que poderá assumir relevância para a qualificação da insolvência de tal sociedade como culposa, se tal declaração se vier a verificar), olhando-se antes para o seu comportamento sob o prisma da sua eventual contribuição dolosa para a criação (ou agravamento) da sua própria insolvência.
A situação que o Apelante pretende ver demonstrada através da requisição de documentos, para além de assentar numa alegação perfeitamente genérica, não é suscetível de integrar qualquer comportamento que tenha criado ou agravado a situação de insolvência dos aqui devedores, nos três anos anteriores ao processo de insolvência, tal como se encontra previsto no artigo 186º do CIRE (como o seria a destruição ou ocultação de património dos devedores; criação artificial de prejuízos, celebração de negócios ruinosos; disposição de bens próprios em proveito de terceiros, etc.).
Não é qualquer comportamento ilícito ou até de natureza criminal que os mesmos possam ter assumido na condução dos destinos da empresa de que foram gerentes, que constitui motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, mas apenas aquele possa ter contribuído para a criação ou agravamento da sua própria situação de insolvência, enquanto pessoas singulares, nos termos em que se mostram previstos no artigo 186º do CIRE.
Sendo a alegação do credor irrelevante para o preenchimento de qualquer das causas de indeferimento liminar previstas no artigo 238º, nº1, CIRE, nomeadamente da sua al. e), não se encontrava o tribunal obrigado a proceder à requisição dos documentos requerida pelo credor Apelante.
A Apelação é de improceder.
Coimbra, 25 de fevereiro de 2025
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7, do CPC.
(…).
[1] “Pré-condições para a exoneração do passivo restante (anotação ao acórdão do TRP de 28/09/2010, Proc.995/09), in Cadernos de Direito Privado, nº 35, Julho/setembro (2011), p. 57.
[2] “Um Curso de Direito da Insolvência”, Vol. I, 4ª ed., Almedina, p. 618.
[3] Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, THEMIS, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, Almedina, pp. 169-170. Subscrevendo tal entendimento – Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p. 564.
[4] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, anotação ao artigo 238, pp. 288. Em igual sentido, Cláudia Oliveira Martins, “O Procedimento de exoneração do passivo restante – controvérsias jurisprudências”, Revista de Direito da Insolvência, nº1, (abril 2016), pp. 210.
[5] João Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., QUID JURIS, p.120.