I – A disponibilização do Livro de Reclamações Eletrónico (LRE) configura um direito dos consumidores que, independentemente do regime sancionatório quanto à sua falta (a ser prosseguido em primeira linha pelas autoridades administrativas), confere, no âmbito de ação popular, o direito tendente a reconhecer o seu incumprimento e a determinar que se torne efetivo.
II – Relativamente a uma sociedade, com sede nos Países Baixos, que conduz a sua atividade online, a partir desse país, sem qualquer presença física ou jurídica em Portugal, que não detém sucursal ou filial, nem qualquer estrutura societária em Portugal, e que não tem Código de Classificação Portuguesa das Atividades Económicas (“CAE”), Número de Identificação de Pessoa Coletiva (“NIPC”)/Número de Identificação Fiscal (“NIF”) português, é-lhe aplicável como lei pessoal a dos Países Baixos (33.º do Cód. Civil e 3.º do Código das Sociedades Comerciais), o que a exclui do dever de disponibilizar LRE nos termos determinados pelo legislador pátrio.
III – A circunstância de os cidadãos poderem, a partir de Portugal, aceder a um site onde a Ré disponibiliza produtos para venda e onde efetivamente são realizadas transações típicas “de consumo”, nada afeta essa conclusão, mostrando-se totalmente irrazoável vincular qualquer empresa que se dedique à venda de bens online, localizada em qualquer ponto do planeta, desde que acessível pelos consumidores portugueses, mesmo sem qualquer ligação com a ordem jurídica nacional, às exigências impostas pelo Estado Português no tocante à disponibilização do LRE.
IV – O acesso ao livro de reclamações não constitui uma obrigação emergente do contrato celebrado, desempenhando uma função autónoma – a de tornar mais acessível o exercício do direito de queixa e de eficácia do livro de reclamações, enquanto instrumento de prevenção de conflitos, contribuindo para a melhoria da qualidade do serviço prestado e dos bens vendidos –, excluindo a situação em análise do âmbito de cobertura do art. 6.º, alínea f) do Decreto-Lei n.º 7/2004 (transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, quanto a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno).
V – Tendo a improcedência sido declarada no despacho saneador (ou seja, numa fase precoce do processo e a dispensar a produção da prova), e assentando o pedido formulado numa ostensiva inexistência de obrigação legal da Ré em disponibilizar LRE, e, consequentemente, ser manifesta a improcedência, não poderão os AA. beneficiar de isenção de custas previsto no art. 4.º, n.º 1, b) do Reg. Custas Processuais.
(Sumário elaborado pelo Relator)
I-Relatório
AA, aposentado, titular do cartão de Cidadão n.º ...44 ..., residente na Rua ..., ..., ... ...,
e
A..., pessoa coletiva n.º ...53, com sede em ..., ..., Av. ..., ... ...,
intentaram contra
B... B.V., sociedade comercial sem representação permanente inscrita no registo comercial português, com sede em ..., ..., Holanda, inscrita no registo comercial ... sob o número ...63,
a presente ação declarativa, de condenação, com processo especial regulado pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (direito de ação popular), pedindo, na procedência da ação,
“a. Ser declarado que, desde 1 de julho de 2018, a Ré violou e continua a violar a sua obrigação de disponibilizar aos consumidores portugueses um Livro de reclamações eletrónico;
b. Ser a ré condenada a disponibilizar aos consumidores portugueses um Livro de reclamações eletrónico no prazo de uma semana após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória de montante a determinar pelo tribunal;
c. Ser a Ré condenada em custas;
d. Ser declarado que, a título de procuradoria, os Autores têm direito a uma quantia a liquidar correspondente a todos os custos com advogados que tiveram e venham a ter com a presente ação (sem limitação pelas regras gerais relativas a custas), nos termos e para os efeitos do artigo 21.º da LAP;
e. Ser a Ré condenada a publicar em 3 (três) jornais generalistas de âmbito nacional um sumário da decisão judicial transitada em julgado no presente processo, redigido pelo Tribunal, a expensas da ré e sob pena de desobediência”.
Alegou, em síntese, que a Ré, apesar de desenvolver a sua atividade em território português com recurso ao website que indica – no qual se permite a vendedores e usuários compartilharem informações e realizarem transações comerciais –, não disponibiliza um livro de reclamações em formato eletrónico, o que dificulta o conhecimento das queixas dos consumidores portugueses pelas autoridades públicas fiscalizadoras da atividade económica da Ré.
*
Efetuada a citação a que se refere o art. 15.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, nenhuma outra pessoa coletiva ou singular se pronunciou.
*
Ré contestou defendendo, ao demais, no que ainda subsiste para apreciação, que:
- os tribunais carecem de jurisdição para apreciar a pretensão dos Autores;
- a classe de consumidores invocada pelos Autores não está adequadamente delimitada;
- a classe de consumidores invocada pelos Autores não é homogénea e é excessivamente ampla,
e
- a Ré não está obrigada a disponibilizar o livro de reclamações eletrónico em www.wish.com.
*
Na resposta apresentada os AA. defenderam, pelas razões que enunciaram, a improcedência das exceções suscitadas.
*
Em 03.10.2024 foi proferido despacho saneador sentença, o qual, com os fundamentos que dele constam, julgou “a ação manifestamente improcedente” e condenou os AA. no pagamento das custas.
*
Os AA. interpuseram recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
(…).
*
A Ré respondeu defendendo o acerto da decisão recorrida, culminando com as seguintes conclusões:
(…).
*
Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*
II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, perante as conclusões apresentadas pelos AA., são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
Saber se:
a) Os tribunais têm jurisdição para apreciar a pretensão dos AA. (conclusões 140 a 154),
b) A Ré está obrigada a disponibilizar “livro de reclamações eletrónico”, nos termos exigidos pelo Decreto-Lei n.º 156/2005, de 5 de setembro (conclusões 155 a 189)
e se
c) Os AA. estão isentos de custas (conclusões 190 a 199).
*
III-Fundamentação
A- Da tutela jurisdicional cível – ou falta dela – do direito peticionado.
Os AA. pretendem ver reconhecida a violação pela Ré da obrigação de disponibilizar aos consumidores portugueses um Livro de Reclamações Eletrónico (LRE) e a sua condenação a assegurar essa disponibilização no prazo de uma semana após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória de montante a determinar pelo tribunal.
A Ré defendeu que não compete aos tribunais (diretamente) a fiscalização do cumprimento das normas relativas ao livro de reclamações, nem a aplicação de sanções em caso de incumprimento, na medida em que a própria lei atribui essa função fiscalizadora a entidades administrativas, tão só assistindo ao consumidor o direito de ação previsto nesse diploma legal (requerer a intervenção de outras entidades se o livro não estiver presente).
Na sentença impugnada entendeu-se que, sendo a finalidade exclusiva da presente ação “a de repressão do comportamento violador da ré de não possuir o citado livro de reclamações”, “a denúncia, permitida pelo artigo 25.º, LAP, com vista à perseguição contraordenacional, é a tutela ao dispor dos consumidores para reagir contra a falta de livro de reclamações eletrónico”, pelo que “assiste razão à ré quando argui a falta de jurisdição ou competência em relação a apreciação do pretendido”, sendo que “a violação de disposição legal impositiva da posse de livro de reclamações electrónicos - em confronto com os pedidos deduzidos - e que se resumem a tomada de medidas coercivas - exclui a causa da jurisdição dos tribunais”.
Os AA., à semelhança do que já haviam defendido na resposta, invocaram, em sede de recurso, no essencial, que:
i) a norma respeitante à exigibilidade do LRE trata-se de uma norma de proteção e como tal, com eficácia jus civil, logo permitindo a sua invocação pelos consumidores no foro cível enquanto direito ou posição jurídica ativa do consumidor, seja para efeitos da obtenção do seu cumprimento, seja para efeitos da obtenção da reparação dos danos causados pela sua violação
ii) a circunstância da não observância do dever de disponibilização de um LRE constituir contraordenação, por si só, não permite concluir pela ausência de um direito do consumidor, já que das normas de proteção resulta a correspetiva existência de um direito ou posição jurídica ativa do consumidor.
E, em jeito antecipativo, importa reconhecer que nesta parte assiste razão aos AA., pelo que não se acompanha o decidido a este propósito.
Quanto aos fundamentos, pela sua clareza, completude e acerto – o que nos dispensa de incursões pessoais meramente repetitivas e certamente com menor brilho e assertividade – limitar-nos-emos a transpor o que ficou dito no acórdão do STJ de 26.11.2024 (proferido no processo 2661/23.3T8GMR. S1), em que se apreciou uma situação praticamente coincidente com a dos autos).
“O artigo 52.º/3 da Constituição da República Portuguesa estabelece:
“É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
Como emerge deste preceito, a ação popular, que integra o direito de ação judicial previsto no artigo 20.º da Lei Fundamental, constitui uma importante via de «(…) defesa de bens constitucionalmente protegidos de âmbito transindividual. (…)». Nessa medida, a previsão constitucional «(…) expressa uma verdadeiro direito fundamental que permite a quem não é titular de um interesse pessoal e directo o acesso visando a defesa de certos interesses de toda a colectividade (…)».
Sendo essencialmente vocacionada para a defesa de determinados interesses difusos, a ação popular assegura também a defesa de interesses individuais homogéneos os quais «(…) representam todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico. (…)».
A tutela dos direitos dos consumidores insere-se precisamente neste último domínio, constituindo um dos direitos fundamentais que integra o «(…) núcleo de proteção reforçada (…)»consagrado no citado preceito constitucional.
Estabelecido este enquadramento geral, importa relembrar que o mesmo dispositivo aponta claramente no sentido de existir uma garantia do direito de ação popular, pelo que os seus limites são apenas aqueles que figuram na lei para cuja regulamentação aquele preceito constitucional remete..
Conhecidos estes contornos gerais, atentemos no particularismo do caso vertente.
A factualidade relevante, recortada na P.I., cinge-se à invocação de que a R., exercendo uma atividade comercial de prestação de serviços (incipientemente enunciada), não disponibiliza aos consumidores livro de reclamações eletrónico.
A argumentação aduzida no primeiro grau estribou-se na consideração de que, prevendo o disposto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, a possibilidade de A. desencadear a instauração, contra a R., de um processo contraordenacional pela prática dos factos descritos na P.I., vedado ficava o acesso à ação popular cível.
No plano normativo, o Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro instituiu a obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações a um conjunto alargado de fornecedores de bens e prestadores de serviços.
No seu preâmbulo colhe-se que a disponibilização do livro de reclamações foi então tida como um dos instrumentos que «(…) tornam mais acessível o exercício do direito de queixa de eficácia do livro de reclamações, enquanto instrumento de prevenção de conflitos, contribuindo para a melhoria da qualidade do serviço prestado e dos bens vendidos (…)».
Por sua vez, com o declarado propósito «(…) de modernizar e simplificar este regime, em particular no que se refere à desmaterialização do livro de reclamações e respetivos procedimentos (…)» e de dar cumprimento a uma medida programática que consistia «(…) na disponibilização de uma plataforma digital que permite aos consumidores apresentar reclamações e submeter pedidos de informação de forma desmaterializada, bem como consultar informação estruturada, promovendo-se o tratamento mais célere e eficaz das solicitações e uma maior satisfação daqueles (…)», o Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho introduziu alterações no Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, as quais, no que aqui releva, criaram a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações em formato eletrónico, disciplinaram os termos em que tal deve ser concretizado (cfr. artigos 2.º, 3.º e 5.º-B deste diploma) e sancionaram, por recurso ao direito de mera ordenação social, o incumprimento dessa determinação legal (cfr. artigos 9.º a 11.º do mesmo diploma).
Afigura-se, assim, que a obrigação cujo incumprimento se imputa à R. se insere no domínio dos direitos legalmente reconhecidos aos consumidores, i.e. num dos campos privilegiados do exercício do direito de ação popular, como acima se deu nota.
Aqui chegados, tenhamos como seguro que um mesmo facto praticado pelo mesmo agente pode desencadear diversas ilicitudes (civil, penal, contraordenacional, etc.), a que corresponderão diferentes reações do ordenamento jurídico nos diferentes planos em que tal ocorrência revista relevância. E esta constatação assume particular relevância no domínio da defesa do consumidor, a qual «(…) pode ser considerada como um princípio jurídico, que corresponde a um pensamento jurídico geral, e, por isso, é mesmo comum a vários ramos do direito (…)».
Neste enquadramento, interessa, em seguida, determinar se o facto de o comportamento imputado à R. ser, em abstrato, reconduzível a um tipo de ilícito contra-ordenacional afasta a possibilidade de, em ação cível, ser aquela compelida ao cumprimento da obrigação legal que alegadamente não cumpriu.
Antes de mais, cumpre assinalar que o direito de ação popular penal previsto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, tem como conteúdo útil a viabilização do direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público quanto a factos - dotados de relevância criminal - que atentem contra os interesses da coletividade a que se refere o artigo 52.º/3 da Constituição da República Portuguesa e a consequente admissão da constituição como assistente (cfr. ainda a parte final do artigo 68.º/1 do Código de Processo Penal).
Apesar deste preceito cingir o seu campo de aplicação ao processo penal, é defensável a sua extensibilidade ao direito de participação (cfr. artigo 53.º/3 do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 9 de janeiro) de infrações às obrigações impostas pelo Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro às autoridades competentes para a instauração do respetivo procedimento contraordenacional.
Cumpre, porém, constatar que as pretensões formuladas pela A. na P.I. não se circunscrevem à declaração da ilicitude contraordenacional.
(…)
Acresce que nem o regime procedimental especialmente aplicável à contraordenação prevista pela alínea artigo 9.º/1/a) do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro nem o regime geral do procedimento contraordenacional (instituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) facultam aos interessados o poder de exigir ao autor do ilícito contraordenacional o cumprimento de qualquer obrigação. É que, como se sabe, o escopo do procedimento contraordenacional é estritamente preventivo/repressivo e não se coaduna com a tutela reintegrativa da ordem jurídica visada por particulares.
Acrescente-se, enfim, que a consideração dos deveres que, para as autoridades administrativas, dimanam dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º-A do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, é desprovida de relevância para a abordagem ao tema. Na verdade, aquela previsão legal apenas acentua o que viemos de expor, pois a eventual reposição da legalidade pelo autor do facto constitui um efeito reflexo da instauração do procedimento (…)
Deve-se, assim, concluir que o direito de participação contraordenacional não esgota o alcance da tutela jurisdicional requerida na presente ação nem permite que a pretensão condenatória que, fulcralmente, é direcionada contra a R. obtenha o acolhimento pretendido pela A..
Assim, pelas adiantadas razões e salvo o devido respeito, não nos revemos no entendimento segundo o qual a participação contraordenacional seria a única «(…) tutela ao dispor dos consumidores para reagir contra a falta de livro de reclamações eletrónico.». De outro modo, negaríamos a transversalidade da defesa do consumidor e uma das vertentes (a civil) que esta pode assumir, assim vedando, injustificadamente, o acesso a um eficaz e direto meio de tutela dos interesses em presença. E, mais relevantemente, erigiríamos uma restrição ao exercício do direito fundamental de ação popular que não encontra apoio na letra da lei nem é justificada pela necessidade de, adequada e proporcionalmente, acautelar a tutela de qualquer outro direito, o que dificilmente se poderia ter como compatível com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa) e com a índole jus fundamental daquele direito de ação”.
Em resumo, a disponibilização do LRE (Livro de Reclamações Eletrónico) configura um direito dos consumidores que, independentemente do regime sancionatório quanto à sua falta (a ser prosseguido em primeira linha pelas autoridades administrativas), confere, no âmbito de ação popular, o direito tendente a reconhecer o seu incumprimento e a determinar que se torne efetivo.
*
B- Da imposição à Ré do dever de disponibilizar LRE
Na decisão recorrida, com os fundamentos que aí se exararam, foi assumido o entendimento “que a ré não está obrigada a observar os preceitos nacionais - na ausência de disposição de direito comunitário que o comine (ou sequer, direito holandês)”.
Já as recorrentes sustentaram que a Ré está obrigada a disponibilizar o LRE aos consumidores portugueses na decorrência do estatuído nos arts. 6.º, alín. f) do Decreto-Lei n.º 7/2004 e 6.º (1) do Regulamento (CE) n.º 593/2008 (Roma I).
De acordo com o alegado, documentos juntos, e posição assumida pela Ré, não sobram dúvidas, nem gerou qualquer controvérsia entre as partes, em como:
- a Ré é uma sociedade, com sede em ..., ..., Países Baixos, constituída a 26 de Fevereiro de 2015, conduzindo a sua atividade online, a partir dos Países Baixos, sem qualquer presença física ou jurídica em Portugal,
- não detém sucursal ou filial, nem qualquer estrutura societária em Portugal,
e
- não tem Código de Classificação Portuguesa das Atividades Económicas (“CAE”), Número de Identificação de Pessoa Coletiva (“NIPC”)/Número de Identificação Fiscal (“NIF”) português.
Face ao estatuído nos arts. 33.º do Cód. Civil e 3.º do Código das Sociedades Comerciais, tem como lei pessoal a dos Países Baixos, e, consequentemente, os correspondentes direitos e deveres são definidos e regulados pelo Reino dos Países Baixos (cfr art. 33.º, n.º 2 do Cód. Civil), o que, neste raciocínio liminar, a exclui do dever de disponibilizar LRE nos termos determinados pelo legislador pátrio.
Veja-se que a circunstância de as pessoas poderem, a partir de Portugal, aceder a um site onde a Ré disponibiliza produtos para venda e onde efetivamente são realizadas transações típicas “de consumo”, nada afeta essa linearidade, continuando a vigorar a este propósito a lei pessoal, sob pena de adotarmos uma exigibilidade totalmente irrazoável (de que o intérprete se deve afastar), no sentido de se vincular qualquer empresa que se dedique à venda de bens online, localizada em qualquer ponto do planeta, desde que acessível pelos consumidores portugueses, mesmo sem qualquer ligação com a ordem jurídica nacional, às exigências impostas pelo Estado Português no tocante à disponibilização do livro de reclamações eletrónico.
Ainda assim, integrando ambos os países a União Europeia, importa aferir se a disciplina que impõe aos fornecedores de bens e prestadores de serviços a disponibilização do formato eletrónico do livro de reclamações (art. 2.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, na sua redação atualizada) é suscetível de incluir a Ré.
Defendem os recorrentes que essa aplicabilidade decorre, desde logo, do disposto no art. 6.º, alínea f) do Decreto-Lei n.º 7/2004.
O normativo invocado do citado diploma legal - que, recorde-se, transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, quanto a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno - estatui estarem fora do âmbito de aplicação dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, entre o demais, “f) Os contratos celebrados com consumidores, no que respeita às obrigações deles emergentes”.
Ora, salvaguardado o devido respeito, a matéria em apreço – a obrigatoriedade de disponibilização do LRE – é completamente alheia às obrigações emergentes dos contratos celebrados com consumidores.
A disponibilização do livro de reclamações nada acrescenta às obrigações decorrentes da celebração do contrato, impondo-se (quando exigível) independentemente de existir ou não contrato.
Dito em termos diretos, o acesso ao livro de reclamações segundo o modelo português não constitui uma obrigação emergente do contrato celebrado, desempenhando uma função autónoma – a de tornar mais acessível o exercício do direito de queixa e de eficácia do livro de reclamações, enquanto instrumento de prevenção de conflitos, contribuindo para a melhoria da qualidade do serviço prestado e dos bens vendidos –.
Acrescentam os recorrentes que o Direito material português atinente ao LRE seria sempre aplicável por via do artigo 6.º (1) do Regulamento (CE) N.º 593/2008 (Roma I), já que “sempre que o litígio tenha por objeto matéria relativa a contratos celebrados com consumidores – e.g. apresentar uma queixa relativa a uma disputa nascida no contexto duma relação contratual – e o profissional, por qualquer meio, incluindo por meios digitais, dirija a sua atividade comercial ou profissional para o país em que o consumidor tenha a sua residência habitual ou para vários, incluindo aquele país, é aplicável a lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual”.
Tal invocação aparenta-se, uma vez mais, destituída de apoio normativo e apoiada numa leitura que a norma não consente.
Com efeito, estatui-se nesse normativo
Contratos celebrados por consumidores
a) Exerça as suas atividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou
b) Por qualquer meio, dirija essas atividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades.
2. Sem prejuízo do n.º 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.º 1, nos termos do artigo 3.º . Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.º 1.
3. Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n. o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é determinada de acordo com os artigos 3.ºe 4.º.
Ou seja, o preceito em análise, limita-se a definir a lei aplicável aos contratos celebrados por/com consumidores, e não já a regular os mecanismos e instrumentos de ordem pública do Estado Português, tendentes a tornar mais acessível o exercício do direito de queixa dos consumidores.
Do exposto se conclui, ante a improcedência do pedido, a confirmação do decidido.
C – Da invocada isenção de custas
Na sentença recorrida decidiu-se, julgada a ação manifestamente improcedente, serem os autores responsáveis pelo pagamento de custas nos termos gerais.
Os AA., no recurso apresentado defendem estarem isentos de custas de acordo com o que decorre do art. 4.º, n.º 1, b) do Regulamento das Custas Processuais, e que o momento processual para identificar e declarar a manifesta improcedência era o despacho liminar, não tendo aplicação o disposto no n.º 5 desse preceito.
Vejamos:
De acordo com o disposto no art. 4.º, n.º 1, b) do RCP estão isentos de custas “Qualquer pessoa, fundação ou associação quando exerça o direito de ação popular nos termos do n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e de legislação ordinária que preveja ou regulamente o exercício da ação popular”.
Acrescenta-se no n.º 5 desse preceito, certamente com o intuito de prevenir abusos o recurso a este tipo de ações, que quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido, a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas.
Na economia do regime, a exclusão da isenção, está, pois, dependente de uma improcedência do pedido evidente, ostensiva, consubstanciando uma pretensão manifestamente infundada, seja de facto, seja de direito.
Por outro lado, não resulta da lei que o momento processual em que é declarada a manifesta improcedência para este efeito deva necessariamente coincidir com o despacho liminar a que se refere o art. 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, o qual, de resto, usa para efeito de justificação uma expressão de teor diverso - quando se entenda “manifestamente improvável a procedência do pedido”.
No caso dos autos, tendo a improcedência sido declarada no despacho saneador (ou seja, numa fase precoce do processo e a dispensar a produção da prova), e assentando o pedido formulado numa ostensiva inexistência de obrigação legal da Ré em disponibilizar LRE, e, consequentemente, ser manifesta a improcedência, não poderão os AA. beneficiar de isenção de custas.
*
Na resposta ao recurso a Ré pediu que este tribunal fixasse, conforme já havia requerido na contestação, a procuradoria a que tem direito, nos termos do art. 21.º da Lei da Ação popular.
Não se pretendendo opinar sobre se tal pedido pode ainda ser apreciado pelo tribunal de 1.ª instância, é inequívoco que, na situação dos autos, não é possível fazer operar a invocada regra da substituição ao tribunal recorrido nos termos do art. 665.º, n.º 2, desde logo porque a Ré não interpôs recurso da decisão de 1.ª instância (onde eventualmente pretendesse suscitar a nulidade da decisão por omissão de pronúncia a este propósito).
Sumário[2]
(…).
*
IV - DECISÃO.
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso, e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.
*
Custas do recurso pelos apelantes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).
*
Coimbra, 25 de fevereiro de 2025
(Paulo Correia)
______________________
(Catarina Gonçalves)
_______________________
(José Avelino Gonçalves)
[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Catarina Gonçalves e José Avelino Gonçalves.
[2] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).