I – O arrolamento desdobra-se em três operações sucessivas, em primeiro lugar, procede-se à descrição dos bens, como em inventário, em segundo lugar cada bem é objeto de avaliação e, por fim, é feito o depósito, pelo qual os bens são entregues a um depositário que, além do mais, os administrará, ficando obrigado à prestação contas.
II – A existência de uma relação de bens comuns subscrita por ambos os cônjuges, no âmbito do processo de separação de pessoas e bens – e ainda que nela se achassem devidamente descritos todos os bens comuns, por verbas e com a indicação do respetivo valor – nunca seria suficiente para preencher os objetivos do arrolamento.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
AA intenta o presente procedimento cautelar de Arrolamento dos bens comuns do casal, como preliminar da ação de divórcio, nos termos do artigo 409º, nº1 CPC, contra BB,
Alega para o efeito, e em síntese:
encontrando-se o casal separado há mais de três anos, por parte do requerente existe o propósito de não mais reestabelecer o relacionamento conjugal, pretendendo divorciar-se;
do património comum do casal faz parte o recheio da residência familiar, bens imóveis, alfaias agrícolas e saldos de contas bancárias, veículos automóveis, discriminando o equipamento e recheio existente na moradia familiar, bem como cada um dos bens agrícolas;
o requerente tem justo receio de que a requerida lhe cause grave prejuízo, extravie ou dissipe os bens comuns do casal.
Determinada a citação da Requerida, a mesma deduziu oposição, alegando, em síntese:
inexiste qualquer risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens comuns do casal, uma vez que foi decretada a separação de bens e o arrolamento destes está feito;
os bens arrolados pelo requerente são, em parte propriedade da requerida e outros, ainda consideráveis, propriedade de outrem;
à lista de bens arrolados, acrescenta duas pipas de vinho, guardadas numa garagem a que só o requerente tem acesso.
Conclui, requerendo a sua nomeação como fiel depositária dos bens arrolados, com a improcedência da listagem apresentada pelo requerente, nos termos que ora vão corrigidos, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Designado dia para inquirição de testemunhas, e notificadas as partes para se pronunciarem sobre a eventual inutilidade da providência de arrolamento, face à existência da Relação de Bens Comuns, apresentada no processo de separação de pessoas e bens, o mandatário do requerente assumiu a seguinte posição:
Da relação junta com o processo e com vista ao procedimento da separação judicial de pessoas e bens não foi exaustiva e não contempla integralmente os bens objeto dos presentes autos, pelo que não tendo sido considerados os bens porque também não era vinculativa a relação de bens apresentada para instruir a separação de bens há bens comuns do casal que constam no presente requerimento que não estão integrados nessa relação de bens, pelo que não concordamos com a proposta do douto despacho.
Seguidamente, pelo juiz a quo foi proferido Saneador/Sentença a julgar improcedente o procedimento de arrolamento.
(…).
Após considerações gerais sobre os requisitos e objetivos do arrolamento, o tribunal a quo veio a julgar improcedente a providência de arrolamento dos bens comuns do casal, com a seguinte fundamentação:
“Ora, após este excurso sobre a providência de arrolamento e vertendo ao caso concreto, foi alegado pela Requerida e constata-se pela prova documental junta aos autos que já existe uma relação de bens comuns, tendo a mesma sido apresentada para efeitos de decretamento da separação judicial de pessoas e bens, que ocorreu em 9/4/2021. Ou seja, já existe uma especificação dos bens comuns pertencentes ao Requerente e Requerida. Nesse sentido, o presente arrolamento mostra-se totalmente desnecessário. Como se explicou acima, o arrolamento consiste numa providência cautelar preventiva e conservatória, sendo que os bens a arrolar são os bens comuns, sendo o sujeito passivo o cônjuge/requerido.
O arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito de bens, lavrando-se um auto em que se descrevem os bens, em verbas numeradas, como em inventário, se declara o valor fixado pelo louvado e se certifica a entrega ao depositário ou o diverso destino que tiveram (artigo 408º, nº 1 do CPC).
Ora, essa descrição já se encontra feita. Por isso, os objetivos do arrolamento já se encontram preenchidos. E, com o decretamento da separação de pessoas e bens já se produziram os efeitos patrimoniais que produziria a dissolução do casamento (artigo 1795º-A do Código Civil). Ou seja, já não existe o perigo de confusão entre bens próprios e comuns, uma vez que, com a separação de pessoas e bens e a apresentação da relação de bens comuns (para esse efeito) já se encontra consolidado o acervo comum a partilhar futuramente em sede de inventário. Com efeito, os objetivos do arrolamento já se encontram preenchidos.
Insurge-se o Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:
o arrolamento pode ser solicitado para conservar os bens comuns para a futura partilha, mantendo-se e subsistindo até ser efetuada partilha, uma vez que, até lá, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens;
o objetivo do arrolamento não se reconduz – ou não se reconduz apenas – à identificação dos bens sobre os quais incide o direito do requerente (no caso os bens futuramente a partilhar) visando essencialmente assegurar a permanência e conservação desses bens até à realização da partilha, e prevenir o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens com vista a assegurar que o requerente possa tomar posse efetiva dos bens que lhe venham a caber nessa partilha.
Desde já, se adianta encontrar-se a razão do lado do Apelante.
O arrolamento é uma medida de carater conservatório, destinada a assegurar a manutenção ou conservação de certos bens, visando eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos (artigo 403º, nº1, do Código de Processo Civil).
Pressupondo a existência de uma pluralidade de bens que se pretenda acautelar, a sua execução é efetuada mediante a descrição, avaliação e depósito dos bens, ficando sujeitos a um regime semelhante ao dos bens penhorados (artigo 406º, ns.1 e 5, CPC):
“É lavrado um auto em que se descrevem os bens, em verbas numeradas, como em inventário, se declara o valor fixado pelo louvado e se certifica a entrega ao depositário ou o diverso destino que tiveram” (artigo 406º, nº2).
Nas palavras de José Lebre de Freitas[1], o arrolamento desdobra-se em três operações sucessivas, que ficam a constar de um auto elaborado pelo funcionário ou agente e assinado por ele, pelo depositário e pelo possuidor e detentor: “Em primeiro lugar, procede-se à descrição dos bens ou documentos, devendo a dos primeiros conter todos os elementos necessários para a efetivação do registo, quando a ele haja lugar (…) e ficando cada bem ou documento a constar de verba separada, sendo todas numeradas e ordenadas pela ordem constante do art. 25º-1 RJPI, sem prejuízo da possibilidade do agrupamento dos móveis de pequeno valor, nos termos do art. 25-4 RJPI. Em segundo lugar, cada bem – não assim os documentos – é objeto de avaliação, a que procede o avaliador, sendo declarado verba por verba, o valor assim fixado. Por fim, é feito o depósito, pelo qual os bens são entregues ao depositário, que, além do mais, os administrará, prestando contas (art. 760º-1); tratando-se de imóveis, deve o depositário deles tomar posse efetiva (art. 757º); (…) sendo arrolados bens ou direitos depositados em conta bancária, a ele se nos termos que forem aplicáveis, dos arts. 773º e ss.”
Identificados os bens e entregues a um depositário, fica, além do mais, afastada a dúvida (que, de outro modo, na ação principal) quanto a saber se faltam bens no acervo a especificar[2].
Pressupondo a pluralidade de bens, a execução do arrolamento começará pela identificação dos bens a arrolar.
No caso em apreço, encontra-se junta aos autos uma Relação de Bens Comuns, subscrita e apresentada pelo requerente e pela requerida, no processo de separação de pessoas e bens que correu entre ambos em 2021.
Em tal Relação de Bens Comuns encontram-se devidamente identificados os saldos de cada uma das contas bancárias, vários veículos automóveis e bens imóveis, respetivo valor, bem como duas verbas do passivo.
Contudo, desde logo, como se pode defender a suficiência da descrição de bens aí contida, quando, quer o requerente, quer a requerida, sustentam a existência de outros bens para além dos por si aí relacionados?
Para além dos bens comuns já relacionados, o Requerente vem afirmar a existência de inúmeros bens móveis, consistentes no recheio da casa de habitação que constituiu a residência familiar (que identifica por reporte a cada um dos compartimentos da casa), bem como bens agrícolas, que igualmente concretiza.
Por sua vez, a requerida, negando que os bens agrícolas e alguns dos móveis que constituem o recheio da casa sejam propriedade do casal, acrescenta à lista de bens comuns duas pipas de vinho, num total de 500 l, que estarão em poder do requerente.
No arrolamento especial do artigo 409º, se a situação de conflito faz presumir o periculum in mora, tal dispensa não é extensível ao fumus boni iuris, havendo que demonstrar que se verificam sérias probabilidade de os bens a arrolar serem comuns[3].
Por outro lado, relativamente a todos estes bens móveis, cuja titularidade é controvertida, não se pode, sequer, afirmar que os mesmos se encontrem descritos nos termos exigidos pelo nº2 do artigo 406º, não lhes tendo sido atribuído qualquer valor.
Por fim, e precisamente a fim de assegurar a sua conservação, o arrolamento não se esgota na descrição de cada um dos bens, ainda que com atribuição do respetivo valor por um louvado – havendo que proceder à sua entrega ao fiel depositário (em regra o próprio possuidor ou detentor dos bens (nos termos do artigo 408º).
Sendo o arrolamento intentado como preliminar ou incidente de uma ação de divórcio, incide sobre os bens do casal a ser partilhados e tem como finalidade garantir que tais bens existam no momento em que se efetue a partilha[4].
De tal modo que, o arrolamento do artigo 409º subsiste e mantém a sua eficácia para além da decisão que julgar a ação de divórcio até ser efetuada a partilha dos bens[5].
Assim como, se entende que o arrolamento não caduca com a apresentação da relação de bens no processo de inventário, podendo mesmo ser instaurado posteriormente à descrição de bens em processo de inventário, desde que se justifique a necessidade ou a utilidade da providência[6].
Como tal, a existência de uma relação de bens comuns subscrita por ambos os cônjuges, no âmbito do processo de separação de pessoas e bens – e ainda que nela se achassem devidamente descritos todos os bens comuns, por verbas e com a indicação do respetivo valor – nunca seria suficiente para preencher os objetivos do arrolamento.
A apelação será, assim, de proceder.
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a Apelação procedente, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos, com a produção de prova indiciária a que houver lugar, nomeadamente, quanto aos bens móveis identificados nos autos e cuja titularidade se mostra controvertida.
Custas a suportar pela parte vencida a final.
Coimbra, 25 de fevereiro de 2025
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, 3ª ed., Almedina, pp.193-194.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código Civil Anotado”, Vol. 2º, p. 183.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, 3ª ed., Almedina, pp.198-199.
[4] Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, 2015, Almedina, p. 259.
[5] Acórdão do TRP de 02-05-2000, relatado por Marques de Castilho, disponível in www.dgsi.pt.
[6] José Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vo. II, 3ª ed. – Reimpressão, Coimbra Editora – 1981, pp. 106-107.