I - O diferimento de desocupação previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC constitui um meio de tutela excepcional, reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5, do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, à massa insolvente ou ao adquirente.
II - Não assiste ao mero detentor do imóvel (não arrendatário) o direito de requerer o diferimento de desocupação, sendo este meio de tutela apenas aplicável no âmbito do arrendamento para habitação e funda-se na existência de razões sociais imperiosas que obstem à restituição imediata do imóvel, após a extinção do arrendamento.
III - O legislador ordinário não deixou de tutelar o direito à habitação do executado, mero detentor do imóvel, quer por via da vinculação do Sr. Agente de Execução à comunicação prévia prevista no n.º 6 do referido art.º 861.º, quer pela via da suspensão da execução nos casos prevenidos nos n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 863.º do CPC.
Acordam os Juízes da 5.ª Secção (3ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo
Relatora: Anabela Mendes Morais
Primeiro Adjunto: António Mendes Coelho
Segundo Adjunto: José Eusébio Almeida
I_ Relatório
AA e BB intentaram a presente acção executiva contra CC para entrega de coisa certa, dando à execução a sentença condenatória proferida no processo nº 1717/22.4T8VNG do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, confirmada por acórdão, proferido em 24/10/2023, pela 2ª Secção do Tribunal da Relação do Porto.
Alegaram, em síntese, que:
_ Na sentença, foi decidido “julgar-se totalmente procedente, por provada, a presente acção declarativa de condenação, e, em consequência:
a) reconhecer os autores como proprietários e legítimos possuidores, do prédio urbano identificado em 1) dos factos provados;
b) condenar o réu [ora executado], a entregar aos autores o prédio acima mencionado livre e desocupado de pessoas bens.”.
_ O executado, devidamente notificado, não entregou o imóvel livre de pessoas e bens, nos termos em que foi condenado.
Requereram os exequentes a efectivação da entrega do imóvel.
I.1_ Notificado, o executado veio requerer o diferimento de desocupação do locado, com fundamento nos artigos 861º, nº6, 863º e 864 do C.P.C., alegando, em síntese, que se mostram preenchidos todos os pressupostos mencionados no nº2 do artigo 864º do CPC:
_ a desocupação imediata do locado causa ao requerente um prejuízo muito superior à vantagem conferida aos exequentes.
_ o requerente é possuidor de uma deficiência motora com um grau comprovado de incapacidade superior a 60% e tem 85 anos, enfermando de diversos problemas de saúde: além de muitas dificuldades de locomoção, tem problemas de coração e respiratórios.
_ vive consigo uma filha portadora de incapacidade mental: incapacidade superior a 80%.
_ Até ao momento não conseguiu arranjar qualquer habitação, não obstante já tenha feito inúmeros esforços nesse sentido, não dispondo de qualquer alternativa.
_a execução imediata da presente entrega colocará inevitavelmente o aqui requerente e filha deficiente em sérias dificuldades, uma vez que não possuem qualquer lugar onde possam acolher-se.
_ o requerente não tem qualquer capacidade financeira que lhe permita alojar-se provisoriamente em qualquer estabelecimento dessa natureza.
_ a suspensão da entrega do prédio não causa prejuízo grave à subsistência dos exequentes, nem um prejuízo irreparável, tendo em conta até a sua natureza, investidor e construtor.
Conclui, pedindo que seja autorizado o diferimento da desocupação do imóvel em causa, pelo prazo mínimo de 180 dias.
I.2_ Recebida a petição de diferimento da desocupação, por despacho de 31/5/2024, e notificados nos termos do artigo 865.º, n.º 2, do C.P.C., os exequentes apresentaram oposição.
Alegaram, na parte que releva e em síntese, que:
_ Os exequentes intentaram, no dia 3 de Março de 2022, acção de reivindicação contra o executado cujos termos correram sob o nº 1717/22.4T8VNG no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, processo nº 1717/22.4T8VNG. Nessa acção pediram o “reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre a casa n.º ..., parte integrante do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., correspondente a um terreno para construção, com uma área total de 253,44m2; subsidiariamente, a declaração da nulidade do contrato de arrendamento existente; e a condenação na imediata desocupação e restituição do referido imóvel.”.
_ Por sentença proferida em 20 de Março de 2023, no processo supra referido, foi decidido “julgar-se totalmente procedente, por provada, a presente acção declarativa de condenação, e, em consequência:
a) Reconhecer os autores como proprietários e legítimos possuidores, do prédio urbano identificado em 1) dos factos provados;
b) Condenar o réu a entregar aos autores o prédio acima mencionado livre e desocupado de pessoas bens.
_ Nessa acção, com relevo para o incidente, resultaram provados os seguintes factos:
1) Por escritura pública, datada de 29/05/2017, AA comprou a DD e mulher EE e estes venderam àquele, pelo preço de 15.000,00€, o prédio urbano, actualmente composto de terreno para construção, com a área total de 253,40m2, sito na Rua ..., ..., lugar do Aguieiro, União de Freguesias ... e ..., Vila Nova de Gaia, descrito na 2.ª C.R.P. de Vila Nova de Gaia, sob o n. º ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo ..., anteriormente artigo 1990;
2) Mais foi declarado na escritura pública referida que sobre o prédio acima mencionado não existem, registados ou por registar, quaisquer ónus ou encargos;
…
4) O prédio urbano mencionado tem entrada pelo n.º ... e ..., da Rua ..., sito na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia;
5) O aludido imóvel é constituído por quatro casas, de rés-do- chão, dispostas em banda e no sentido da profundidade do prédio;
6) A casa n.º ..., tem acesso pelo n.º ... da Rua ...;
7) As restantes casas, n.º ..., n.º ... e n.º ..., têm acesso comum com entrada pelo n.º ..., as quais são parte integrante do imóvel;
8) Os autores compraram o prédio já com as quatro casas e edificações;
9) O réu ocupa a casa e edificação identificada com o n.º ..., existente no referido imóvel;
10) Quando os autores adquiriram o imóvel, o réu já ocupava a referida casa ...;
11) O réu ocupa a referida casa, propriedade dos autores, alegando a existência de um contrato de arrendamento com mais de 40 anos;
12) Aos autores nunca foi transmitida a existência de qualquer contrato de arrendamento;
13) Nem nunca receberam qualquer valor do réu a título de renda;
14) O anterior proprietário, DD, nunca celebrou qualquer contrato de arrendamento com o réu, nem deste recebeu qualquer montante a título de renda;
15) Os autores entraram em contacto com o réu, comunicando-lhe que eram os novos proprietários;
16) Pedindo-lhe que lhes apresentasse cópia do contrato de arrendamento existente e procedesse ao pagamento da renda aos autores, na qualidade de novos proprietários;
17) Interpelação essa que não logrou o seu intento, uma vez que o réu não apresentou qualquer contrato de arrendamento; e
18) Continuou a ocupar a referida casa, sem título, e sem pagar qualquer valor a título de renda;
19) Os autores, em 9 de Abril de 2019, por carta enviada sob registo simples, voltaram a comunicar ao réu serem os actuais proprietários;
20) Interpelando-o à apresentação de comprovativos de pagamento de renda, referentes aos últimos doze meses;
21) Mais uma vez, o réu recusou-se a proceder à demonstração de existência do alegado contrato de arrendamento;
22) Recusando-se ao pagamento de qualquer valor a título de renda;
23) Sabe não possuir qualquer título que legitime essa ocupação;
24) Não pagando qualquer valor a título de renda;
25) Limitando-se a alegar que já possui um contrato de arrendamento;
…”.
_ Não foi dado como provado, reconhecido ou declarado pelo Tribunal que existe, ou existiu qualquer contrato de arrendamento que legitimasse o executado a ocupar o imóvel em questão.
_ O executado recorreu da sentença, tendo sido proferida, em 14 de Julho de 2023, decisão singular que julgou “(…) totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida” e desta decisão reclamou para a conferência, tendo sido proferido Acórdão, em 24/10/2023, de cujo dispositivo consta “julga-se totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida”.
_ O executado interpôs recurso para o Tribunal Constitucional que decidiu, em 10 de Janeiro de 2024, “Não conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos”.
_ O disposto nos artigos 861º, 863º e 864º. do Código de Processo Civil apenas conferiu o direito de requerer o diferimento de entrega do imóvel a quem preenchesse os requisitos legais, ou seja, tratando-se de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
_ Ainda que se decida pelo preenchimento dos requisitos de razões sociais imperiosas, o que não se aceita, o direito não é reconhecido ao executado por este não possuir a qualidade de arrendatário.
_ O executado actua em abuso de direito ao efectuar o pedido de diferimento da desocupação do prédio pois, desde há sete anos que se encontra a prejudicar o direito dos exequentes.
_ Desconhecem a incapacidade do executado, por este alegada, bem como se este reside com a sua filha e se esta também tem elevado grau de incapacidade, sendo o grau de incapacidade de uma pessoa comprovado pelo respectivo atestado médico de incapacidade multiuso, prova que não se mostra junta aos autos, sendo obrigação do requerente, ora executado, oferecer toda a prova disponível.
Pediram a absolvição do pedido e, consequentemente, o indeferimento do requerimento de diferimento da desocupação do imóvel por manifesta ausência de preenchimento dos requisitos legais, elencados no artigo 864º, do Código de Processo Civil.
I.3_ Em 16/7/2024, foi proferida decisão, constando do dipositivo:
“Pelo exposto e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 864º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) e 865º, nºs 1, al. b), do C.P.C, indefiro o incidente suscitado.
I.4_Inconformado, o executado interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:
“I - O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.
II - O art. 15º-N, n.º 1, NRAU permite ao arrendatário, no caso de despejo de imóvel arrendado para habitação, diferir a desocupação por razões sociais imperiosas, devendo, nomeadamente, ponderar-se a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (nº 2 do art. 15º-N NRAU).
III - Ora, vivendo o executado, de 85 anos, praticamente acamado, com a sua filha, portadora de incapacidade mental, atravessando o mesmo dificuldades económicas, a verdade é que a execução imediata da presente entrega, colocará inevitavelmente o aqui recorrente e agregado familiar em sérias dificuldades, uma vez que se verão na «rua» sem qualquer lugar onde possa acolher-se.
IV - Tal como já se referiu oportunamente, não tem o recorrente e filha qualquer capacidade financeira que lhe permita alojar-se provisoriamente em qualquer estabelecimento dessa natureza, ao que acresce o seu próprio estado de saúde débil, visto que o mesmo padece ainda do coração, enfermando de problemas respiratórios.
V - Neste contexto factual nenhumas dúvidas temos em dar por verificados os requisitos a que alude o nº 2 do artigo 864º do CPC, sendo que nada emerge da matéria de facto que permita concluir que o requerente está de algum modo a agir em violação dos princípios que balizam as relações entre um senhorio proprietário do locado objeto de resolução contratual por falta de pagamento de rendas e locatários que usando de artifícios substantivos ou processuais tenha como única finalidade retardar a entrega do locado, violando assim o direito de propriedade dos requeridos que merece acolhimento constitucional –artigo 62º da CRP; artigos 1305º e 1311º do CC.
VI - Neste confronto entre a compressão do direito de propriedade que afeta o proprietário do locado, e o direito dos arrendatários a terem uma habitação digna – artigo 65º da CRP – o legislador optou pela criação já em 2006 – Lei nº 6/2006, de 27.2 – de um quadro jurídico que embora comprima o direito de propriedade, acaba por conferir aos arrendatários carenciados uma moratória máxima de 10 meses, contados a partir do trânsito em julgado do incidente de diferimento da desocupação – nº 5 do artigo 930ºD do CPC – para que encontre uma solução habitacional, assumindo o Estado – que somos todos nós – o pagamento das rendas reportadas ao período do diferimento, solução que não tem outra finalidade que não a de mitigar os prejuízos que o senhorio tem por via do diferimento da desocupação e de não «atirar» para o meio da rua uma pessoa que vive da ajuda do Estado, e que afeta parte desse parco rendimento ao tratamento das suas maleitas.
VII - Que o requerente e filha não pode sem mais ir para a rua é uma realidade, que o senhorio tem direito à devolução do locado é inquestionável, então que mecanismos é que nos habilita a lei na fixação do prazo de desocupação que pode ir até 6 meses?
VIII - Deve também refletir-se enquanto modulador de um prazo de diferimento de desocupação, o facto do requerente estar a viver uma situação nova, na medida em que sempre pagou a renda e continua a pagar, depositando o valor em causa na Banco 1....
IX - Todos e neste particular o requerido deve dar uma resposta humanizada, mas tal resposta não pode desresponsabilizar quer o requerente, quer os familiares mais próximos, se os houvesse, quer o Estado ou a Autarquia Local na procura de uma solução habitacional que satisfaça as necessidades do requerente.
X - Por tal motivo, entendemos que o prazo de 90 dias requerido para resolver a sua questão habitacional é justo e adequado à sua situação.
XI - Com efeito, o requerente tem o dever de procurar uma solução, cabendo ao senhorio, contribuir para a resolução de um problema de cariz social e humanitário e que passa por esperar pelo decurso do prazo de diferimento de 90 dias para que veja a sua propriedade de volta.
XII - Ora, o mercado imobiliário atualmente está impossível, com rendas muito inflacionadas, estando em causa a satisfação do comando constitucional de a todos assegurar o direito a uma habitação (art. 65º da CRP).
XIII - De facto, ponderando os prejuízos com o protelamento da situação até ao prazo requerido para diferimento, o prejuízo do requerente com a entrega imediata, superará em muito o do Proprietário, e assim estar-se-á a dar cumprimento aquele desígnio constitucional.
XIV - O recorrente, cumpriu todas as formalidades: alegou de forma pormenorizada e concisa os fundamentos plasmados no nº 2 do artigo 864º do CPC, que preenche na totalidade e arrolou testemunhas.
XV - Pelas razões alegadas, se a desocupação suceder, o aqui recorrente cairá numa dessas situações, uma vez que, entre outras coisas, carece de rendimentos, não tendo ninguém que a possa auxiliar.
XVI - Perante todo o cenário desolador do ponto de vista económico e social que ficou descrito nas alegações, está de todo justificado o diferimento da entrega do local em causa.
XVII - Tal diferimento deverá ser por um período não inferior a 90 dias, para se dar oportunidade ao requerente de encontrar uma nova habitação e refazer a sua vida, sem o risco máxime de cair na desgraça.
XVIII - Tal diferimento, não afeta o direito fundamental à habitação do proprietário, na medida em que este não carece da habitação para sua residência.
XIX - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto no art.º 864º n.º2 CPC e 65º CRP.
Nestes Termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogado o douto despacho recorrido.
I.5_ Pelos exequentes/recorridos foi apresentada resposta, formulando as seguintes conclusões:
“A) O Recurso ora interposto pelo recorrente tem por objecto a decisão de indeferimento do requerimento de diferimento de desocupação de imóvel arrendado para habitação, incidente deduzido no processo executivo de entrega do prédio urbano propriedade dos Recorridos;
B) O processo executivo tem como fundamento sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 1, que pôs termo ao processo nº 1717/22.4T8VNG, pela qual foi julgado totalmente procedente, por provada, a acção declarativa de condenação, e, em consequência reconhecido os autores, ora Recorridos, como proprietários e legítimos possuidores, do prédio urbano identificado em 1) dos factos provados, condenando o réu a entregar aos autores o prédio acima mencionado livre e desocupado de pessoas bens;
C) A sentença supra referida transitou em julgado em 25 de Janeiro de 2024, não tendo até ao momento o Recorrente entregue a casa que ocupa ilegitimamente aos Recorridos;
D) Apesar de saber, ou dever saber que a casa não constitui um locado, nem o Recorrente assume a qualidade de arrendatário, após citação ao processo executivo, este requereu o diferimento da entrega do locado, sabendo que não cumpre com os requisitos legais plasmados no artigo 864º, do Código de Processo Civil;
F) No entanto, tal não obsta que o Recorrente, reitere a alegação de existência de um locado, procurando legitimar a ocupação do prédio propriedade dos Recorridos, ciente que tal alegação altera a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, procurando, através do recorrente uso de meios processuais, ora por via de requerimento de diferimento de entrega do locado, ora pro via do recurso da decisão tomada, atingir o objectivo ilegal, de manter a ocupação da aludida casa, de forma ilegítima, protelando, injustificadamente a sua entrega, tal como foi condenado em sede de sentença judicial proferida;
G) De forma a obstaculizar a entrega do prédio aos Recorridos, o Recorrente alegou no requerimento de diferimento de entrega do locado, resumidamente que a aludida casa é um locado, e como tal, a sua desocupação imediata causaria um prejuízo superior ao Recorrente que aos Recorridos;
H) Mais alegando que o Recorrente é uma pessoa com 85 anos de idade, com problemas de saúde, nomeadamente dificuldades de locomoção, problemas de coração e respiratórios, possuidor de “(…)deficiência motora com um grau comprovado de incapacidade de superior a 60 %”, habitando na aludida casa com a sua filha portadora de incapacidade mental, “(…) superior a 80%”;
I) Portanto, salvo o devido respeito, no articulado apresentado foi criado um cenário verdadeiramente dantesco da realidade existente, povoado, aqui e acolá, por alegação de factos e conclusões infundados, laboriosamente criados para florear este mesmo cenário;
J) Curiosamente, sem apresentar quaisquer documentos que sustentassem o presente cenário, que demonstre e comprove a existência de um locado, e que comprove o grau de incapacidade do Recorrente ou da sua filha, conforme por aquele alegado;
K) O Recorrente reconhece a sua obrigação em procurar uma solução de habitação, requerendo a prorrogação de prazo para o concretizar. No entanto, lembra-se que desde o trânsito em julgado da sentença judicial, e até à presente data, já decorreram cerca de 7 (sete) meses, sem que o Recorrente tenha procurado, ou obtido qualquer outra solução;
L) O Recorrente deduz uma pretensão, cuja falta de fundamento não podia, nem devia ignorar, pois sabe, ou devia saber, que são os Recorridos proprietários e legítimos possuidores da casa que aquele ilegitimamente ocupa;
M) O Recorrente sabe, ou devia saber, que não possui a qualidade de arrendatário dos Recorridos, nem sobre a casa em apreço inexiste qualquer contrato de arrendamento;
N) O Recorrente sabe, ou devia saber, que não cumpre todos os requisitos e formalidades exigidas constantes do artigo 864º, nº 2, do Código de Processo Civil, não sendo arrendatário, não possuir carência comprovada carência económica, nem possui comprovado grau de incapacidade;
O) O Recorrente deduziu uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, e fá-lo de forma desbragada, temerária, e sem qualquer pejo, denotando uma clara intenção, ou pelo menos uma negligência grosseira, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, a manutenção ilegítima da casa propriedade dos Recorridos, entorpecendo a ação da justiça, protelando, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
P) A actuação do Recorrente constitui, claramente, um comportamento de litigância de má-fé, pelo que, de acordo com o previsto nas alíneas a), b), e d), do artigo 542º, do Código de Processo Civil;
Q) Pelo que, negando-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão em crise, e condenando o Recorrente em multa e em indemnização a pagar aos Recorridos, em montante condigno a determinar por V. Exa., mas nunca inferior a €1.000,00 (mil euros), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 542º, nºs 1 e 2, alíneas a), b) e d), e 543º, todos do Código de Processo Civil será feita justiça.
Nestes termos e nos melhores de Direito deverá ser recusado provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, confirmando-se a decisão proferida pelo tribunal a quo, ser o Recorrente condenado em multa e em indemnização a pagar aos Recorridos, em montante condigno a determinar por V. Exa., mas nunca inferior a €1.000,00 (mil euros), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 542º, nºs 1 e 2, alíneas a), b) e d), e 543º, todos do Código de Processo Civil, fazendo V. Exas., desta forma, a costumada e sã…em procedeu a qualquer organização de alteração da sua residência, apesar de ter sido ordenado a entrega do referido imóvel.”.
I.6_ Por despacho de 4/9/2024, foi admitido o recurso.
I.7_ Cumpridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II_ Objecto do recurso
Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº. 4, e 639º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Assim, são as seguintes as questões a apreciar:
1_ Se se verificam os requisitos previstos no artº 864 do C.P.C., para o diferimento da desocupação do imóvel.
2_ Condenação do requerente/executado como litigante de má-fé.
III_ Fundamentação de facto
A matéria de facto a ter em conta para a questão colocada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá por integralmente por reproduzida.
IV_ Fundamentação de direito
1ª Questão
Insurge-se o recorrente/executado contra a decisão que julgou improcedente o pedido de diferimento de desocupação do locado, por falta de verificação dos pressupostos legais, consagrados no artigo 864º do CPC, sustentando ser titular do direito ao diferimento face às circunstâncias pessoais, designadamente de idade, de saúde e económicas, por si alegadas, indicando como normas violadas o artigo 864º nº1 e 2, do Código de Processo Civil, o artigo 15º-N do NRAU e o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
Advogam os recorridos que o recorrente não cumpre todos os requisitos e formalidades exigidas pelo artigo 864º, nº 2, do Código de Processo Civil, não sendo arrendatário, não possui comprovada carência económica, nem possui comprovado grau de incapacidade.
Previamente à apreciação e decisão da questão, importa referir o seguinte. Nas suas conclusões [conclusão II], o recorrente invoca o artigo 15º-N, n.º 1, do NRAU. O artigo 15º-N mostra-se revogado pelo artigo 53º, alínea c), da Lei n.º 56/2023, de 6 de Outubro. De harmonia com o disposto no seu artigo 55º, a Lei nº 56/2023 entrou em vigor “no dia seguinte ao da sua publicação”, dispondo o nº1 do artigo 54º do NRAU que “Produzem efeitos 120 dias após a entrada em vigor da presente lei: (c) As alíneas c) e e) do artigo 53”. Significa que o artigo 15ºN do NRAU encontrava-se revogado na data em que foi apresentado o requerimento.
Dispõe o nº1 do art. 15º-M do NRAU, “À suspensão e diferimento da desocupação do locado aplicam-se, com as devidas adaptações, o regime previsto nos artigos 863.º a 865.º do Código de Processo Civil”.
Assim, o incidente em apreciação mostra-se regulado pelo disposto no artigo 864º do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 864º, nº 1, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação” que “No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao número de três”.
De harmonia com o disposto no nº2 do citado artigo 864º do Código de Processo Civil, “O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.”
Prevê o artigo 864º do Código de Processo Civil que, no caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior - sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do artigo 865.º do mesmo diploma legal não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder - a desocupação do imóvel, isto é, quando se demonstre que a desocupação imediata irá afectar gravemente a dignidade humana do executado.
A cláusula geral “razões sociais imperiosas” não opera automaticamente, exigindo-se que em concreto ocorra uma das circunstâncias previstas nas alíneas a) ou b) do nº2 que funcionam como presunções legais da verificação de razões sociais imperiosas[1].
Decidiu o Tribunal a quo, “O recurso ao diferimento da desocupação de imóvel, constitui um meio de tutela excepcional concedido ao arrendatário habitacional, conforme decorre do disposto no nº1 do artº 864 do C.P.C. O pressuposto essencial para a aplicação deste incidente é que se trate de arrendamento para habitação.” E conclui “o pedido é manifestamente improcedente uma vez que em causa não está a existência de um contrato de arrendamento”.
Concorda-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo e com a sua fundamentação jurídica.
Em anotação ao artigo 864º do Código de Processo Civil, referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[2], “Não assiste ao mero detentor do imóvel (não arrendatário) o direito de requerer o diferimento de desocupação”, acrescentando e “Não viola o princípio da igualdade a falta de extensão do regime do diferimento da desocupação a outras ações em que se peça a restituição de posse ou a entrega judicial do prédio (Ac. do Trib. Const. Nº 465/2001)”.
No mesmo sentido, refere Luís Menezes Leitão[3], “O pedido de diferimento de desocupação é apenas aplicável no âmbito do arrendamento para habitação e funda-se na existência de razões sociais imperiosas que obstem à restituição imediata do imóvel, após a extinção do arrendamento”.
Em anotação ao artigo 864º do CPC, escrevem José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre [4], “o presente artigo limita a sua previsão aos arrendamentos para habitação e, por força do artigo 150-5 do CIRE, ao insolvente que resida habitualmente na casa”.
Como decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, no processo nº25/16.4 T8PTG-A.E1[5], «o legislador distinguiu deliberadamente as duas situações, confinando o incidente de diferimento às execuções para entrega de coisa imóvel arrendada, regime excepcional que não permite – nem a nosso ver existe identidade de situações que o justificasse – aplicação analógica, inexistindo do mesmo passo lacuna que importe o recurso à interpretação extensiva. Isso mesmo vem sendo decidido sem divergência, solução acolhida nos acórdãos do STJ de 17/3/2016, processo 217/09.2TBMBR-B.P1.S1, e do TRC de 15/11/2011, processo 5316/03.1TJCBR-B.C1, os quais, prolatados embora ao abrigo do CPC cessante, mantêm plena actualidade, uma vez que as soluções consagradas são idênticas no velho e no novo código; e já ao abrigo do novo CPC, os arestos do TRL de Ac. TRL de 12/7/2018, processo 719/17.7T8OER-A.L1-7; do TRP de 18/12/2018, processo 2384/08.3TBMAI-B.P1; e do TRG de 21/3/2019, processo 153/15.3T8CHV-C.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt, para os quais se remete.
E compreende-se que assim seja, dadas as substanciais diferenças de uma e outra situações.
No que respeita à casa arrendada, o legislador impôs ao senhorio uma ultra vigência do contrato no pressuposto de que é esse o destino que pretende ainda dar ao imóvel e garantindo, pelo mecanismo de recurso ao Fundo de Socorro Social, o pagamento das rendas durante o período de deferimento. Trata-se, portanto, de uma compressão do direito de propriedade plenamente justificada pela necessidade de garantir o direito à habitação do inquilino que se encontra numa situação particularmente frágil, quer por razões económicas, quer de saúde (cfr. as als. a) e b) do n.º 2 do art.º 864.º).
Quanto ao insolvente, a quem o legislador entendeu estender tal benefício, visa em nosso entender garantir que dispõe de um prazo razoável para resolver a sua situação de carência habitacional -o que, via de regra, atenta a natureza urgente do processo insolvencial, não ocorrerá-, sendo certo que não basta a invocação de “razões sociais imperiosas” para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. E tais pressupostos condicionantes terão de se verificar, nos termos da lei, na pessoa do insolvente (tal como ocorre com o arrendatário).».
Em suma, o diferimento de desocupação previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC constitui um meio de tutela excepcional, reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada (e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5, do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, à massa insolvente ou ao adquirente).
A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação, quer por via da analogia, quer da interpretação extensiva, a outras situações que não as especificamente previstas.
Revertendo ao caso dos autos, como decidido pelo Tribunal a quo, ao executado não assiste o direito ao diferimento da desocupação pois, não possui a qualidade de insolvente ou arrendatário, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 1 do art.º 864º, ainda que se possam verificar “razões sociais imperiosas” e se mostrem cumpridos alguns critérios previstos nas referidas alíneas [o executado, como referido pelo Tribunal a quo, não concretiza quais as doenças de que padece, nem juntou aos autos prova documental da sua idade e incapacidade, conforme impõe o segmento final do nº1 do artigo 864º do CPC.].
A situação a que alude o recorrente, nas conclusões VII e VIII não tem correspondência com o quadro factual que se encontra demonstrado na acção declarativa no âmbito da qual foi proferida a sentença que constitui título executivo da presente execução. Nessa acção, ficou demonstrado que o anterior proprietário, DD, nunca celebrou qualquer contrato de arrendamento com o réu, nem deste recebeu qualquer montante a título de renda; aos autores nunca foi transmitida a existência de qualquer contrato de arrendamento, nem nunca receberam qualquer valor do réu a título de renda; os autores entraram em contacto com o réu, comunicando-lhe que eram os novos proprietários e pedindo-lhe que lhes apresentasse cópia do contrato de arrendamento existente e procedesse ao pagamento da renda aos autores, na qualidade de novos proprietários, interpelação essa que não logrou o seu intento, uma vez que o réu não apresentou qualquer contrato de arrendamento e continuou a ocupar a referida casa, sem título e sem pagar qualquer valor a título de renda.
Na sua conclusão XIX, o recorrente invoca a violação do direito à habitação previsto no art. 65º da CRP.
No nº1 daquele art. 65º preceitua-se que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Como decidido no Acórdão proferido por esta Relação, em 25/11/2024[6] - e no qual a ora relatora foi adjunta -, «O direito à habitação ali previsto, como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº612/2019 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), configura um direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, como se acentua nos nºs 2 a 4 daquele mesmo art. 65º, o que significa que, “sendo o mesmo configurado como um direito à protecção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários directos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido de criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito” e “[a]ssim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares” (sublinhados e negrito nossos).».
Revertendo ao caso dos autos, a decisão proferida nos autos limita-se a interpretar e aplicar ao caso sub judice a previsão do art. 864º, nºs 1 e 2, do CPC, no âmbito de processo entre particulares, não se afigurando que não esteja conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes.
Contudo, o legislador ordinário não deixou de tutelar o direito à habitação do executado, quer por via da vinculação do Sr. agente de execução à comunicação prévia prevista no n.º 6 do referido art.º 861.º, quer pela via da suspensão da execução nos casos prevenidos nos n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 863.º do CPC., o que foi expressamente salientado pelo Tribunal a quo, “a situação apresentada pelo executado, não se enquadra no procedimento de desocupação de imóvel arrendado para habitação, mas poderá caber na situação a que se refere o artigo 861.º, n.º 6, do C.P.C. que expressamente remete para a aplicação do artigo 863.º, n.º 3 a 5, do mesmo diploma legal. Na verdade, prevê o artigo 861º, nº 6 do CPC que:” Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.”
Pelo exposto, não assiste ao executado o direito que pretende ver-lhe reconhecido ao diferimento da desocupação, improcedendo a sua pretensão recursória.
2ª Questão
Pretendem os recorridos que o recorrente seja condenado como litigante de má-fé, com fundamento nas alíneas a), b), e d) do nº2 do artigo 542º, do Código de Processo Civil, “em multa e em indemnização”, a pagar aos recorridos, em montante nunca inferior a €1.000,00 (mil euros).
A litigância de má-fé não foi invocada na oposição, nem foi apreciada oficiosamente pelo tribunal de primeira instância.
Assim, este tribunal só pode conhecer dela na parte atinente à conduta do recorrente em fase de recurso[7].
Nos termos do nº2 do artigo 542º do Código de Processo Civil, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) …
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
As partes estão vinculadas aos deveres de probidade e cooperação, agir de boa fé e cooperar para se obter, com brevidade e eficácia a justa composição do litígio. Se, com propósito malicioso, a parte pretende convencer o tribunal de um facto ou pretensão que sabe não ser legítima, ou que não pode ignorá-lo, distorcendo ou omitindo a verdade dos factos, fizer do processo um uso reprovável ou deduz oposição cuja falta de fundamento não pode ignorar, actua de má fé e, por essa razão, pode e deve ser sancionada em multa e indemnização à parte contrária, se o pedir.
Algum exagero na pretensão que foi deduzida não é, por si só, litigância de má fé.
Não consubstancia litigância de má fé a dedução de pretensão que vem a decair por não se convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento ou resultar da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou mesmo, convencida que lhe assiste razão, vê os seus argumentos afastados por razões mais ponderosas ou legalmente fundadas.
A condenação só deve ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça, o que, no caso, não se verifica.
Pronunciando-se sobre a litigância de má fé, no Acórdão de 22/1/2024, proferido por este Tribunal da Relação, no processo nº1944/21.1.T8VFX.P1, pode ler-se:
“No Acórdão de 23-4-2008 (proc. 07S2894, Mário Pereira) consigna que a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correta interpretação da lei não implica, por si só, em regra, a qualificação de litigância de má-fé na espécie de lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos.
A litigância de má-fé exige a consciência de que quem pleiteia de certa forma tem a consciência de não ter razão (ac. do S.T.J. de 11-9-2012, proc. 2326/11.09TBLLE.E1.S1, Fonseca Ramos).
A má-fé depende de intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva (ac. do S.T.J. de 12-11-2020, proc. 279/17.9T8MNC-A.G1.S1, Maria do Rosário Morgado).
Na verdade, nem sempre a condenação na lide significa que o réu ou o autor reconvindo agiu sob o signo da má-fé ou formulou pretensão injusta, a reclamar o seu sancionamento como litigante de má-fé. Traduzindo a lide processual um conflito de interesses, poderá compreender-se que as partes, convictas do seu direito, percam algum discernimento e objetividade, congeminando uma versão dos factos que é para elas a verdadeira e que pode não corresponder àquela que venha a ser reconhecida a final.
Trata-se de uma área de elevado melindre. É, pois, compreensível que se observe um grau de prudência razoável, numa apreciação casuística da situação em confronto.
É verdade que a interpretação acurada da norma em apreço permite uma maior exigência quanto ao desempenho das partes, mas até ao momento a análise jurisprudencial não permite concluir que os tribunais venham a usar de um crivo mais apertado, erigindo a boa-fé em verdadeiro esteio do sistema. Conferem às partes o benefício da dúvida e só as confrontam com a litigância de má-fé em casos de manifesto desrespeito ético - Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa in Agendo, Coimbra, Almedina, pp. 30-32) elenca situações em que tribunais superiores procederam a condenações de litigância de má-fé, exemplificativas do grau de exigência praticado”.
No caso dos autos, o recorrente interpôs recurso pretendendo beneficiar do diferimento da desocupação do imóvel com fundamento no artigo 864º do Código de Processo Civil. Tendo presente as questões suscitadas na doutrina e na jurisprudência quanto à aplicação desta tutela aos meros detentores, entende este tribunal que não se mostram ultrapassados os limites da “litigiosidade séria" que "dimana da incerteza [8], não se verificando os pressupostos da condenação do Recorrente, como litigante de má fé.
Improcede, assim, a pretensão de condenação do recorrente como litigante de má-fé.
As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente que considerando a improcedência da sua pretensão (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
A improcedência do pedido de condenação do recorrente como litigante de má-fé não se repercute em custas por a litigância de má-fé não relevar para a determinação do valor da causa[9] .
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente/executado e, consequentemente, decide-se confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente - cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, sem prejuízo do apoio judiciário de que o mesmo beneficia.
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