MOTIVAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
OMISSÃO
NULIDADE
DECLARAÇÃO EXTRAJUDICIAL DE DÍVIDA
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Sumário

I - Como tem sido reiteradamente afirmado pela doutrina e jurisprudência, a força probatória plena dos documentos particulares, nos termos artigo 376.º CC, reporta-se à materialidade (existência) das declarações e não à exactidão das mesmas: fica demonstrado que essas declarações foram proferidas, mas não necessariamente que correspondam a verdade.
II - Por outro lado, a força probatória dos documentos particulares releva apenas entre as partes, não vinculando terceiros, alheios aos mesmos.
III - Impugnada por um terceiro uma confissão de dívida, em que o negócio alegadamente subjacente é um contrato de de mútuo, que a nossa lei (cfr. artigo 1142.º CC) configura como contrato real quoad constituitionem, pois exige a entrega da coisa mutuada para a perfeição do contrato, cabe ao credor reclamante cujo crédito foi impugnado alegar e provar as entregas do dinheiro alegadamente mutuado a que se refere a confissão de dívida, por se tratar de facto constitutivo ao seu direito (artigo 342.º, n.º 1, CC).

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1145/24.7T8STS.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto


Relatora: Marcia Portela
1.º Adjunto: Rodrigues Pires
2.º Adjunto: Artur Dionísio





1. Relatório

Nos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento em que é devedor AA, foi nomeado Administrador Judicial Provisório, e, nos termos do disposto no artigo 222.º-D, n.º 3, CIRE, foi apresentada a lista provisória de todos os créditos por si reconhecidos.
Publicada a lista provisória de credores no portal Citius, foi deduzida impugnação pela sociedade credora Banco 1..., S. A., alegando, em síntese, que os créditos de BB e de CC, nos montantes de € 180.000,00 e de € 150.000,00, respetivamente, são fictícios, de modo a permitir influenciar o sentido da votação do plano de revitalização, apenas com o intuito de enganar e prejudicar os demais credores dos devedores.
Impugnou o teor dos documentos juntos pelos preditos credores na reclamação de crédito enviadas, expondo que os credores BB e CC não demonstraram que entregaram ao devedor qualquer quantia, não tendo junto qualquer comprovativo dos alegados empréstimos.
Concluiu que a procedência da impugnação determinará que o credor BB deixe de o ser, e, uma vez que subscreveu, juntamente com o devedor, a declaração junta como documento n.º 4 com a petição inicial, deixa de se verificar o requisito exigido pelo n.º 1 do artigo 222.º-C CIRE, pelo que os autos terão de ser extintos.
Subsidiariamente arguiu que, dados os rendimentos e as dívidas do Requerente, este encontra-se numa situação de insolvência actual, despoletando que seja decidido o prosseguimento dos autos.
O devedor e os credores impugnados não responderam.
Apenas o Sr. Administrador Judicial Provisório se pronunciou sobre o teor da impugnação apresentada pelo Banco 1..., pugnando pela sua improcedência.
Para tanto, defendeu que a sociedade credora impugnante se limitou a alegar que os credores BB e CC não entregaram ao devedor qualquer quantia e que as reclamações de créditos por estes apresentadas correspondem a uma estratégia de criar créditos fictícios com intuito de influenciar o sentido da votação, sem juntar qualquer meio de prova do alegado, como lhe incumbia.
Mais arguiu que, quanto ao pedido de encerramento do processo, o mesmo deve ser indeferido por falta de fundamento legal.
Foi proferida decisão:
─ julgando procedente a impugnação deduzida pela sociedade credora Banco 1..., S. A., excluindo-se da lista provisória de credores os créditos de BB e de CC, nos montantes de €180.000,00 e de €150.000,00, respectivamente;
─ determinando a notificação do devedor AA para, no prazo de 5 [cinco] dias, juntar nova declaração, subscrita por outro credor e em estrito cumprimento do artigo 222.º-C, n.ºs 1, 2, e 3, alínea a), do CIRE, sob pena de não prosseguimento dos autos.
Inconformado, apelou o requerente, apresentado as seguintes conclusões:

I - Qualquer decisão judicial tem de ser devidamente fundamentada, conforme dispõe o artigo 205.º, n.º 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero
expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

II - Também os artigos 152.º e 154.º do CPC realçam esse dever de fundamentação em termos
tais que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” e “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”

III - O despacho - sentença que ora se recorre carece totalmente de fundamentação na parte em que adere infundadamente à versão da credora impugnante em detrimento de outros legítimos credores.

IV - O Recorrente tem interesse e legitimidade em agir e recorrer pois que com a decisão em apreço vê os seus interesses de aprovação do Plano de Pagamentos apresentado prejudicados.

V - O Recorrente não pode aceitar que uma decisão desta magnitude lhe seja imposta sem que o Tribunal “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

VI - Na presente decisão, o Tribunal revela evidente preconceito contra uns credores em detrimento dos demais pelo facto, inexistindo qualquer ponderação dos meios de prova, pelo que
se furta a decidir do que tem que decidir acerca da matéria que lhe foi demonstrada.

VII - A falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, motivo de nulidade da decisão, é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão.

VIII - Mal andou o Tribunal recorrido quando conclui infundadamente que os créditos seriam não críveis pelo simples facto de os mesmos serem impugnados, não cuidando de fazer a análise das provas existentes que se impunha e assim decidir com pleno conhecimento dos argumentos de parte a parte.

IX - Não reveste de forma alguma a realização de um juízo critico e fundamentado a mera alusão a “ausência de prova crível dos créditos”, não podendo essa conclusão ser suficiente para fundamentar uma decisão que coloca em causa a aprovação do Plano de Pagamento.

X - Com o preconceito dessa “ausência de prova crível dos créditos”, o Tribunal acabou por não
reconhecer os direitos dos demais credores em face dessa “suspeita”, sem que tenha justificado essa decisão, o que sucede de forma discricionária e totalmente alheia à alusão a qualquer disposição legal que indique que o crédito deveria ser rejeitado para a finalidade do PEAP.

XI - O preconceito dos créditos impugnados sem que o Tribunal efectivamente se debruçasse e fundamentação o sentido da sua decisão, implica um tratamento intoleravelmente desigual dos credores com graves repercussões para o Recorrente que vê os credores com os quais tinha maior margem negocial serem totalmente preteridos por meras, infundadas e infundamentadas suspeitas, e, como tal, a violação do principio da igualdade entre credores.

XII - Sendo a sentença proferida totalmente baseada no teor e efeitos de um despacho inquinado de evidente ilegalidade e da apontada nulidade, além de clamoroso erro de julgamento, acaba por afectar a sentença recorrida com tais vícios, impondo-se a declaração da sua nulidade ou, caso assim não se entenda, a sua revogação.

XIII - os vícios intrínsecos ao despacho – nomeadamente as apontadas nulidades - assim como também o erro de julgamento que é patente, acabam por se reflectir decisivamente e inquinar irremediavelmente a sentença que ora se recorre, na justa medida em que a mesma acaba por ser uma consequência lógica e processual do despacho.

XIV - O despacho e sentença recorridos, além dos vícios substanciais de nulidade, incorrem
também em manifesto e inequívoco erro de julgamento.

XV - Assim, tanto o despacho recorrido, como a sentença, violam os artigos 222.º-A e ss. do CIRE, o artigo 604.º n.º1 do CC, o artigo 13.º da CRP, porquanto coloca a Recorrente numa situação de absoluta dificuldade e necessidade, impedindo-a de aceder ao PEAP sem qualquer fundamento.

ASSIM VAS EXAS DECIDINDO, FARÃO BOA E SÃ JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.


2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

a) AA interpôs o Processo Especial para Acordo de
Pagamento, apresentando a declaração prescrita no artigo 222.º-C, n.ºs 1, 2 e 3, alínea a), do CIRE com o seguinte teor:
“DECLARAÇÃO:
AA, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., valido ateì 03/08/2031, contribuinte fiscal n.º ...80, com residência na Rua ..., ... - ..., ... ..., vem, muito respeitosamente, manifestar a sua vontade em iniciar negociações no sentido de estabelecer um acordo de pagamento.
Assim, mesmo o requerente atravessando um período de dificuldades financeiras, pretende fazer face aÌs suas dívidas e honrar os compromissos assumidos. Por conseguinte, considera-se que estão preenchidas todas as condições para que se prossiga com o cumprimento das suas obrigações. Em conformidade, vem através do presente documento manifestar a sua vontade em propor um processo especial para acordo de pagamento, atento o disposto no n°3 do artigo 222°-C do CIRE.
E
BB, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até 26/07/2029, contribuinte fiscal n.º ...33, com residência na Rua ..., ..., ... – ..., ... ..., declara na qualidade de credor o seu interesse em participar nas negociações conducentes aÌ elaboração do acordo de pagamento.
Esta manifestação de vontade resulta do exposto no n°1 do artigo 222°-C do CIRE para efeitos de processo especial de acordo de pagamento
..., 09 de Abril de 2024.” - tudo cfr. petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b) BB fundou a sua reclamação de crédito com base no seguinte escrito:
“DECLARAÇÃO E CONFISSÃO DE DÍVIDA
AA, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., valido ateì 03/08/2031, contribuinte fiscal n.º ...80, e DD, portadora do Cartão de Cidadão n.º ..., valido ateì 04/07/2029, contribuinte fiscal n.º ...52, unidos de facto, ambos com residência na Rua ..., ... - ..., ... ... declaram que nos anos de 2020 a 2022 receberam tranches de dinheiro emprestadas pelo Senhor BB, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até 26/07/2029, contribuinte fiscal n.º ...33, com residência na Rua ..., ..., ... – ..., ... ..., designadamente:
1- Maio de 2017 – 25.000,00 euros em dinheiro;
2- Agosto de 2017 – 20.000,00 euros em dinheiro;
3- Janeiro de 2018 – 50.000,00 euros em dinheiro;
4- Junho de 2018 – 15.000,00 euros em dinheiro;
5- Setembro de 2018 – 35.000,00 euros em dinheiro;
6- Janeiro de 2019 – 15.000,00 euros em dinheiro;
7- Julho de 2019 – 20.000,00 euros em dinheiro;
..., 14 de Agosto de 2019.”- tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b) CC fundou a sua reclamação de crédito com base no seguinte escrito:
“DECLARAÇÃO E CONFISSÃO DE DÍVIDA
AA, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., valido ateì 03/08/2031, contribuinte fiscal n.º ...80, e DD, portadora do Cartão de Cidadão n.º ..., valido ateì 04/07/2029, contribuinte fiscal n.º ...52, unidos de facto, ambos com residência na Rua ..., ... - ..., ... ... declaram que nos anos de 2020 a 2022 receberam tranches de dinheiro emprestadas pelo Senhor CC, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até 03/08/2031, contribuinte fiscal n.º ...57, com residência na Rua ... – ... (...), ... ..., lhes foram emprestadas por diversas vezes o montante de € 150.0000 (cento e cinquenta mil euros).
Mais declaram que o referido valor terá de ser pago no prazo máximo de 24 meses a contar da presente data, sob pena de execução.
..., 20 de Julho de 2020.”- tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.


3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
─ falta de fundamentação da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), CPC;
─ erro de julgamento.

3.1. Da falta de fundamentação da sentença
Esgrime o apelante com a nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), CPC.
Por imperativo constitucional (artigo 205.º, n.º 1, CRP), o artigo 158.º, n.º 1, CPC determina que as sentenças devem ser fundamentadas, constituindo a violação
deste dever nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), CPC.
A fundamentação, factor de legitimação da decisão, constitui uma garantia das partes na medida em que permite sindicar a actividade do tribunal.
Com efeito, é através da fundamentação que as partes e o tribunal de recurso podem controlar o iter decisório, o raciocínio do juiz que esteve na origem de determinada solução.
Conforme entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, a nulidade por falta de fundamentação aplica-se apenas às situações de falta absoluta de fundamentação.
Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. V, 3.ª edição, pg. 140, esclarece:
Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 [actual alínea b) do n.º 1] do art. 668.º.
No mesmo sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 2.ª edição, vol. I, pg. 558; Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. II, 2.ª edição, pg. 703).
Escreveu-se na sentença recorrida:
IV– Da análise dos factos e da aplicação do direito:
O processo especial para acordo de pagamento é um processo com uma natureza híbrida, misto de negociação extrajudicial e aprovação judicialmente homologada. Destina-se a permitir ao devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento. É, pois, um processo negocial, tendente à obtenção de um acordo que decorre, essencialmente, entre o devedor e os seus credores, com intervenção de um administrador judicial provisório nomeado pelo Tribunal.
A intervenção do Tribunal neste processo resume-se, grosso modo, e excluindo os atos de publicidade do processo e depósito dos documentos para consulta, à nomeação inicial do administrador judicial provisório, à decisão sobre as impugnações da lista provisória de créditos – artº 222º-D, nº 3, do CIRE e à homologação (ou recusa) do acordo extrajudicial.
Prevê o artº 222º-D, nº 3, do CIRE - redação dada pela Lei nº 9/222, de 11-01, que “[A] lista provisória de creìditos eì imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, na incorreção do montante ou da qualificação dos creìditos relacionados (…)”.
Da redação do preceito – aliada à especialidade do processo de acordo de pagamento – afigura-se-nos ser resultado pretendido pelo legislador e visado com esta tramitação, que as impugnações sejam decididas pelo Juiz em ato seguido à apresentação das impugnações, sem tentativa de conciliação, sem seleção de temas de prova, sem julgamento, sem produção de prova que não a documental junta com a reclamação e com a impugnação da lista apresentada, afastando, em princípio, a aplicação subsidiária prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para a verificação e graduação de créditos no âmbito de um processo de insolvência.
Como se analisa no acórdão da Relação do Porto de 27-06-2022 - in www.dgsi.pt- “(…) o PEAP se carateriza por ser um procedimento eminentemente negocial, sendo que, dado o seu caráter célere, o aprofundamento sobre as reclamações e impugnações não é previsto pelo legislador, nem tal é sequer desejável, posto que o que importa fundamentalmente estabelecer nesta fase do processo é o quórum deliberativo que irá apreciar o acordo de pagamento submetido pelo devedor aos seus credores.
É certo que, não raro, no âmbito dessas impugnações se suscitam questões, seja de facto, seja de direito, com alguma complexidade. No entanto, a respetiva decisão não pode, ainda assim, deixar de assumir um caráter perfunctório que há-de assentar nos subsídios probatórios de natureza documental constantes dos autos, porquanto este processo – conforme tem sido especialmente enfatizado na doutrina e jurisprudência - não tem como finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude de créditos, referência que os credores deverão ter particularmente em atenção quando apresentam impugnações.”
Isto posto e vertendo ao caso em sujeito, não assiste razão ao(à) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) Judicial Provisório(a).
Com efeito, ainda que o ónus da prova pertença ao impugnante quanto aos factos impeditivos, incumbe ao credor demonstrar os factos constitutivos do seu crédito - cfr. artº 342º, nºs 1 e 2, do C. Civil. Ora, nos presentes autos, não se revelam suficientes para provar os créditos reclamados por BB e de CC as declarações de dívidas juntas por estes nas reclamações de créditos. Com efeito, tratam-se de meros documentos particulares, sem qualquer valor de título executivo, como numa delas faz consignar.
Aliás, o silêncio do devedor/Requerentes e dos credores BB e de CC à impugnação apresentada pelo credor Banco 1..., S. A., se não tem efeito cominatório de confissão – aplicação analógica do artº 131º, nº 3, do CIRE, é demonstrativo da fragilidade dos documentos que fundamentam os créditos reclamados.
Deste modo, por ausência de prova crível dos créditos de BB e de CC, julga-se procedente a impugnação apresentada pela sociedade credora Banco 1..., S. A..
Apreciando:
Compulsada a matéria de facto provada e a motivação e fundamentação de direito, é manifesto que a sentença recorrida não padece de qualquer nulidade por falta de fundamentação.
Admitindo que o apelante se está a referir a falta de motivação da matéria de facto (cfr. artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 666.º, n.º 1, CPC), também não lhe assiste razão.
Em consequência da abolição do despacho autónomo de apreciação da matéria de facto, a que aludia o artigo 653.º, n.º 2, do Código pregresso, deixou também de existir o momento processual da reclamação contra o despacho que decidia a matéria de facto (artigo 653.º, n,.º 4, do mesmo diploma).
A fixação da matéria de facto provada e não provada e sua motivação passaram a estar integradas na sentença, suscitando-se a questão de saber qual a reacção adequada contra a fixação da matéria de facto e sua fundamentação, quando ocorra algum dos vícios que anteriormente constituíam fundamento de reacção contra o despacho que apreciava a matéria de facto — deficiência, obscuridade ou
contradição da decisão ou falta de motivação.
O alcance deste segmento não é uniforme na doutrina e jurisprudência, no que concerne aos vícios da matéria de facto.
Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, sustentam que, não havendo despacho autónomo a decidir a matéria de facto e com o desaparecimento da possibilidade de reclamação contra o despacho que decide a matéria de facto, o regime de impugnação passa a ser o da sentença em que se insere (artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), CPC).
Não se afigura, porém, que o legislador tenha querido alterar o entendimento corrente acerca do conceito de «questões».
Como se lê no ponto III do sumário do acórdão do STJ, de 2015.01.08, João Trindade, www.dgsi.pt.jstj, proc. 129/11.0TCGMR.G1.S1,
«Como as questões em sentido técnico não podem ser confundidas com factos, a falta de consideração de um facto tido pela recorrente como demonstrado ou um suposto erro na apreciação da prova, não integra a nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC (2013), o mesmo se podendo afirmar relativamente a argumentos ou invocações que não integram os fundamentos da causa de pedir (da acção ou da reconvenção) ou de excepções».
O acórdão da Relação de Lisboa, de 2014.12.09, Cristina Coelho, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 8601/12.8TBOER.L1, entendeu igualmente que o disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. c), CPC, não se aplica aos vícios da matéria de facto.
Lê-se no sumário deste acórdão:
1. Não obstante a profunda alteração que foi introduzida pela L. 41/2013 de 26.06 no que respeita à decisão sobre a matéria de facto e respectiva fundamentação, que deixaram de ter lugar em sede de audiência de julgamento para passarem a constar da sentença, a disciplina das nulidades da sentença não sofreu alterações na sua essência, devendo o art. 615º ser interpretado
tal como já vinha acontecendo.
2. Eventual contradição entre a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e a mesma decisão não integra a nulidade da sentença prevista na 1ª parte da al. c) do art. 615º do CPC, podendo, eventualmente, consistir em erro de julgamento na apreciação da matéria de facto provada.
No mesmo sentido, veja-se ainda o acórdão da Relação de Guimarães, de 2014.11.23, Filipe Caroço, www.dgsi.pt.jtrg, proc. 29/13.9TBPCR.G1.
Assim, a sanção para a falta de motivação de pontos da matéria de facto não é a nulidade da decisão, mas a remessa dos autos a 1.ª instância. Com efeito, dispõe o artigo 662.º, n.º 2, alínea d), CPC, que A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados..
Improcede, pelo exposto, este segmento do recurso.

3.2. Do erro de julgamento
Imputa o apelante à sentença erro de julgamento, afirmando que o Tribunal concluiu infundadamente que os créditos impugnados não seriam críveis pelo simples facto de os mesmos terem sido impugnados, não cuidando de fazer a análise das provas existentes, que se impunha, e assim decidir com pleno conhecimento dos argumentos de parte a parte.
Em seu entender, a decisão recorrida revela evidente preconceito contra uns credores em benefício dos demais e, com esse preconceito da “ausência de prova credível”, o Tribunal acabou por não reconhecer os direitos dos demais credores em face dessa “suspeita”, sem que tenha justificado essa decisão, o que implica um tratamento intoleravelmente desigual dos credores com graves repercussões para o apelante que vê os credores com os quais tinha maior margem negocial serem totalmente preteridos por meras, infundadas e infundamentadas suspeitas, e, como
tal, a violação do principio da igualdade entre credores.
Apreciando:
Começamos por manifestar a nossa estranheza quanto à alegada falta de análise das provas existentes e dos argumentos de parte a parte.
Não indica o apelante que provas não foram apreciadas, nem vislumbramos quais sejam; o mesmo valendo para os “argumentos de parte a parte”, porquanto nem apelante nem os dois credores afectados responderam a impugnação ou juntaram qualquer prova documental.
Não se percebe igualmente como sai violado o princípio da igualdade de credores, uma vez que a questão que nos ocupa ─ a (in)existência dos créditos reclamados ─ se coloca a montante: o princípio da igualdade de credores só se aplica a credores cuja qualidade foi reconhecida, naturalmente.
Não faz igualmente sentido a referência a prejuízo dos demais credores, sendo certo que o apelante não tem legitimidade para assumir a defesa dos demais credores, sendo certo que foi um deles que impugnou estes créditos em causa.
Face aos elementos constantes dos autos, não vemos que pudesse ser outra a decisão do Tribunal recorrido.
BB e CC, cujos créditos, nos montantes de € 180.000,00 e 150.000,00, respectivamente, não foram reconhecidos apresentaram como prova dos mesmos duas declarações e confissões de dívida, que foram prontamente impugnadas por outro credor, o Banco 1....
Aduziu este credor, em síntese, que os credores BB e CC não demonstraram que entregaram ao devedor qualquer quantia, não tendo junto qualquer comprovativo dos alegados empréstimos. E que os documentos intitulados “declaração e confissão de dívida” que constam nas referidas reclamações de créditos são meros documentos particulares, que qualquer pessoa, a qualquer hora (do dia e da noite) pode elaborar.
Acrescentou que a referida reclamação corresponde a uma estratégia do devedor de criar créditos fictícios, que lhes permitam influenciar o sentido da votação do plano de pagamentos, apenas com o intuito de enganar e prejudicar os demais credores dos devedores, votando favoravelmente um acordo de pagamentos que estabelecerá condições benéficas para o devedor e prejudiciais para os verdadeiros credores.
Vejamos:
As declarações de dívida configuram uma confissão extrajudicial escrita e constam de um documento particular.
Nos termos do artigo 358.º, n.º 2, CC, A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
Dispõe o artigo 374.º, n.º 1, CC, que a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas, pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.
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O artigo 376.º do mesmo diploma estabelece que «o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento».

O n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.

Como tem sido reiteradamente afirmado pela doutrina e jurisprudência, essa força probatória plena reporta-se à materialidade (existência) das declarações e não à exactidão das mesmas: fica demonstrado que essas declarações foram proferidas, mas não necessariamente que correspondam a verdade
Por outro lado, a força probatória dos documentos particulares releva apenas entre as partes, não vinculando terceiros, alheios aos mesmos.
Nas palavras do acórdão da Relação do Porto, de 22.11.2021, Joaquim Moura, www.dgsi.jtrp.pt, proc. n.º 3434/20.0T8STS-A.P1,
Em todo o caso, a confissão de dívida no montante de € 120.000,00 e o acordo de pagamento que o referido escrito particular incorpora só vale no confronto com o confitente/devedor (requerente neste PEAP) e só em relação a este tem a força probatória que lhe confere o n.º 2 do artigo 358.º do Código Civil; em relação à credora impugnante é res inter alios acta, não a vincula; mesmo que a letra e a assinatura dele constantes devam considerar-se verdadeiras, a força probatória a que alude o artigo 376.º, n.os 1 e 2, do Código Civil cingir-se-á às declarações dos intervenientes no acto, que não a impugnante.
Forçoso é, assim, concluir que tal documento, para o que aqui importa (impugnação da relação de créditos), fica sujeito à livre apreciação do tribunal e, como se refere na decisão recorrida, é de pouca valia probatória.
Uma das fragilidades dos chamados “processos pré-insolvenciais” (PER e PEAP) é a de os respectivos regimes jurídicos permitirem a sua utilização abusiva (ou mesmo fraudulenta), pois não é difícil “arrebanhar” familiares e amigos e conseguir a sua colaboração para alcançar a maioria de votos exigida pelo n.º 3 do artigo 222.º-F ou pelo n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE, erigindo-os em “credores”.
Foi essa a lógica da impugnação do Banco 1....
O negócio alegadamente subjacente às declarações e confissões de dívida são contratos de mútuo, que a nossa lei (cfr. artigo 1142.º CC) configura como contrato real quoad constituitionem, pois exige a entrega da coisa mutuada para a perfeição do contrato (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 17.02.2011, Henrique Antunes, www.dgsi.jtrl.pt., proc. n.º 6930/08.4TBOER.L1-2, com vasta indicação doutrinária).
O credor impugnante alegou que nenhuma prova foi feita da entrega das quantias alegadamente mutuada. E efectivamente assim foi.
Cabia aos credores reclamantes cujos créditos foram impugnados, porque se trata de facto constitutivo do direito de que se arrogam titulares (artigo 342.º, n.º 1, CC), alegar e provar essas entregas. Prova essa que teria de ser necessariamente documental, face a tramitação sumária da reclamação de créditos, já que, findo o prazo das reclamações, o juiz dispõe de cinco dias úteis para decidir (artigo 222.º-D, n.º 3, CIRE). De sublinhar que, no caso vertente, em obediência ao princípio do contraditório, foi concedido ao Sr. Administrador da insolvência, ao devedor e aos credores cujo crédito foi impugnado o prazo de cinco dias úteis para resposta, tendo apenas o primeiro se pronunciado.
Ora, a única prova apresentada pelos credores cujos créditos foram impugnados foi a referida declaração e confissão de dívida, objecto de impugnação pelo credor Banco 1.... Não foi junto qualquer documento comprovativo da entrega da quantia mutuada (v.g., cheque, transferência bancária). O que, aliás, pelo menos no caso do credor BB seria impossível, já que consta da declaração respectiva que as quantias foram entregues em numerário. É natural que a alegação de entrega de quantias mais ou menos significativas em numerário suscite reservas quanto à sua prova.
Nessa medida, afigura-se injustificada a crítica dirigida a sentença recorrida, não se vislumbrando qualquer preconceito do Tribunal relativamente os créditos impugnados.
Daqui nenhum prejuízo resulta para os credores cujos créditos foram impugnados com sucesso, uma vez que esta decisão não faz caso julgado fora do PEAP.
Como se sublinha no acórdão da Relação do Porto, de 27.06.2022, Miguel Baldaia de Moraes, www.dgsi.jtrp.pt, proc. n.º 1472/21.5T8STS.P1,
No entanto, dada a já assinalada finalidade do PEAP, essa reclamação - diferentemente do que sucede no processo insolvencial[- tem um escopo diverso e que, fundamentalmente, se destina: (i) à delimitação do universos de credores que podem participar nas negociações; (ii) à delimitação do universo de credores que têm direito de voto; (iii) à delimitação do universo de credores que se podem opor ao acordo de pagamento; (iv) ao apuramento da base de cálculo das maiorias necessárias para aprovação desse acordo.
Resulta assim que a reclamação de créditos em sede de PEAP tem uma função eminentemente processual, valendo exclusivamente para efeitos desse processo, não gozando o reconhecimento que aí se faça de força de caso julgado material, mas apenas formal, uma vez que a questão pode ser resposta novamente em sede de processo de insolvência ou de outro processo.
E continua:
Já se deu nota, que o PEAP se carateriza por ser um procedimento eminentemente negocial, sendo que, dado o seu caráter célere, o aprofundamento sobre as reclamações e impugnações não é previsto pelo legislador, nem tal é sequer desejável, posto que o que importa fundamentalmente estabelecer nesta fase do processo é o quórum deliberativo que irá apreciar o acordo de pagamento submetido pelo devedor aos seus credores.
É certo que, não raro, no âmbito dessas impugnações se suscitam questões, seja de facto, seja de direito, com alguma complexidade. No entanto, a respetiva decisão não pode, ainda assim, deixar de assumir um caráter perfunctório que há-de assentar nos subsídios probatórios de natureza documental constantes dos autos, porquanto este processo – conforme tem sido especialmente enfatizado na doutrina e jurisprudência - não tem como finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude de créditos, referência que os credores deverão ter particularmente em atenção quando apresentam impugnações.

Improcede, pois, a apelação.





4. Decisão

Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante (artigo 527.º CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.








Porto, 25 de Fevereiro de 2025

Márcia Portela
Rodrigues Pires
Artur Dionísio