NÃO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE DA PRESTAÇÃO
CONTRATO BILATERAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I – Em matéria de não cumprimento das obrigações, tanto o “caso de força maior” (cujo conceito tem subjacente a ideia de inevitabilidade) como o “caso fortuito” (cujo conceito assenta na ideia de imprevisibilidade) produzem as mesmas consequências exoneratórias, nos termos previstos nos artigos 790.º e seguintes do CC.
II – A impossibilidade da prestação não imputável ao devedor gera a extinção da obrigação, pelo que o credor perde o direito de exigir a prestação e, por conseguinte, não tem direito à indemnização dos danos provenientes do não cumprimento.
III – Tratando-se de um contrato bilateral, em consequência da reciprocidade ou interdependência das prestações própria do sinalagma, o credor fica desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa, a não ser que a impossibilidade da prestação lhe seja imputável.
IV – Ao remeter para as regras do enriquecimento sem causa, o artigo 795.º, n.º 1, do CC, tem em vista as normas que definem o objecto da restituição imposta ao enriquecido sem causa, ou seja, as normas consagradas no artigo 479.º.
V – Sem prejuízo (ou para além) desta remissão, o enriquecimento sem causa não constitui uma questão de conhecimento oficioso, estando esse conhecimento dependente de arguição.

Texto Integral

Proc. 3401/23.2T8VFR.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto





I. Relatório


A..., com sede na Rua ..., ..., intentou a presente acção comum contra B..., Lda., com sede em Rua ..., Porto, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 36.273,90 €, acrescida de juros de mora vencidos desde 24.04.2023, no valor de 695,66 €, e vincendos até integral pagamento.
Alegou, em síntese, o seguinte: a autora acordou com a sociedade ré a actuação da artista AA na gala de comemoração do 99.º aniversário do clube, ocorrida no dia 24 de Abril de 2023, pelo valor de 11.500,00 € mais IVA; à hora em que se iniciava a recepção dos convidados, foi informada pela ré de que a artista estava impossibilitada de actuar, tendo-lhe sido proposto o reagendamento do concerto ou o seu cancelamento com a devolução dos montantes liquidados; o adiamento da actuação da artista AA não era opção, uma vez que se tratava de uma gala de comemoração; na sequência do cancelamento da actuação da artista AA, demonstrou o seu descontentamento à ré e exigiu a restituição dos valores que havia prestado, como acto concludente de resolução do contrato, tendo a ré dito que o faria, mas incumpriu; a ré, como forma de mitigar os danos da autora e para que a gala não ficasse sem momento musical, sugeriu a actuação do artista BB Só, sendo o cachet do artista de 4.000,00 € mais IVA, o que veio a acontecer; a actuação do artista BB Só na gala comemorativa por sugestão da sociedade ré não se tratou de uma substituição da artista AA, uma vez que a prestação tinha carácter infungível, mas de uma compensação por parte da sociedade ré, numa tentativa de que os prejuízos da autora não fossem maiores.
Mais alegou que estamos perante um incumprimento contratual por parte da sociedade ré, que lhe causou prejuízos correspondentes aos custos associados à actuação da artista AA, que ascenderam a 41.193,90 €, subtraída do cachet do artista BB Só, no valor de 4.000,00 € mais IVA.
A ré apresentou contestação, alegando, em síntese, o seguinte: na sequência da impossibilidade de a artista AA actuar no dia 24.04.2023, apresentou duas soluções à autora: o reagendamento da actuação ou o seu cancelamento com a devolução de todos os montantes liquidados pela autora; a autora não aceitou qualquer uma das propostas e optou por negociar a substituição da artista AA pelo artista BB Só, sem fazer qualquer exigência, nomeadamente a devolução de quaisquer quantias despendidas, até porque a actuação do artista BB Só exigia as mesmas condições que o concerto da artista AA, nomeadamente no que respeita a sistema de som, tipo de palco, estadias e alimentação; foi acordado entre as partes que a ré devolveria à autora a quantia de 5.750,00 €; não lhe foi comunicado pela autora que iria vender bilhetes para a gala.
Concluiu que não houve qualquer incumprimento contratual da sua parte, uma vez que a impossibilidade de actuação da artista AA implicou, por acordo, uma substituição da artista pelo artista BB Só e, portanto, o contrato foi cumprido; para o caso de assim não se entender, defendeu que a impossibilidade de actuação da artista AA não lhe é imputável, pelo que se extinguiu a sua obrigação.
Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, tudo visto e ponderado, julgo a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada e, em consequência:
1. Condeno a sociedade Ré “B..., Lda.” a devolver à Autora “A...” o montante de 10.388,70 € [dez mil trezentos e oitenta e oito euros e setenta cêntimos], sendo 9.225,00 € correspondente à diferença entre o valor da prestação principal pela actuação da artista AA e o valor pela actuação do artista BB Só, e 1.163,70 € relativos às despesas suportadas pela Autora referentes ao alojamento e alimentação da comitiva que acompanhou a artista AA.
2. Custas na proporção de 72 % para a Autora e 28% para a sociedade Ré. - cfr. artigo 527.º do CPC».

*
Inconformada, a autora apelou desta sentença, concluindo assim a respectiva alegação:
«I. Destina-se o presente Recurso a impugnar a decisão final proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, na parte desfavorável à aqui Recorrente, designadamente em virtude da ausência de condenação da Recorrida no pagamento dos demais danos alegados na petição inicial e não contemplados no dispositivo condenatório (os danos aludidos nos factos provados 10) e 20) da decisão revidenda).
II. A Recorrente está compenetrada de que Vossas Excelências, reapreciando a factualidade descrita nos autos, e subsumindo a mesma às normas legais efetivamente aplicáveis, no mais alto e ponderado critério, não deixarão de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, judiciando pela procedência total da ação movida pela Autora e condenando a Recorrida no valor dos danos não judiciados que se ora se invocam.
Contemplemos,


MATÉRIA DE FACTO
PONTOS DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADOS (640.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CPC)
III. Não concorda a aqui Autora com a redação atribuída ao ponto 12), devendo a mesma ser alterada, mais devendo ser considerado como provado o facto c) constante do leque de factos não provados e, bem assim, aditados outros factos que resultam diretamente da prova produzida e que infra se exporão.
MEIOS PROBATÓRIOS QUE IMPUNHAM DECISÃO DIVERSA (640.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CPC)

a) No que concerne aos factos não contemplados

IV. Ao longo da Audiência de Discussão e Julgamento e também nos articulados juntos aos autos, foi discutido o facto de a impossibilidade de a artista atuar ser ou não de natureza fortuita e, como tal, se poderia a Recorrente ser informada mais cedo de tal impossibilidade.
V. Uma vez que apesar de a Recorrida saber da agenda preenchida da artista AA nos dias que antecediam a gala de aniversário da Recorrente, nomeadamente um grande concerto no Campo ... no dia 22 e um outro concerto no Porto no dia 23, e dos riscos que daí decorreriam, aceitou celebrar o contrato com a Recorrente.
VI. Compulsada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, não existe nenhum facto provado ou não provado que se relacione com tal factualidade, sendo evidente que o mesmo se mostra relevante para a boa decisão da causa.
VII. A este respeito, a testemunha AA não deixou de referir que no dia 22 deu um concerto grande e muito importante na sua carreira, tendo, inclusivamente, afirmado que se encontrava doente no concerto no Campo ..., tendo dado outro concerto no dia seguinte, no qual continuou doente (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 10/05/2024, entre as 15:49 e as 16:08, minutos 00:02:17 a 00:04:20).
VIII. Nesse sentido, tendo em conta a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento e indicada supra, sempre se imporia que fosse aditado aos factos provados o seguinte facto:
Apesar do conhecimento por parte da Recorrente da agenda preenchida da artista AA nos dias que antecediam a gala de aniversário da Recorrente e dos riscos que daí resultam, a Recorrida não se inibiu de contratar com a Recorrente.
b) Ponto 12 dos factos dados como provados
IX. Quanto ao ponto 12) dos factos provados, não assentimos na redação do mesmo, pois que, da prova produzida em sede de Audiência e Discussão de Julgamento não resultou que a artista tenha começado a perder gradualmente a voz no dia 24-04-2023.
X. A este respeito, a testemunha AA, no seu depoimento não deixou de referir que já se encontrava doente há dois dias, tendo piorado gradualmente à medida que realizava mais concertos, e tendo-se apercebido de que encontrava afónica depois do almoço no dia do evento sub judice (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 10/05/2024, entre as 15:49 e as 16:08, (minutos 00:02:17 a 00:04:20).
XI. Nessa medida, deverá a redação do ponto 12 dos factos dados como provados ser alterada, passando a ser a seguinte:
A 22-04-2023, com a atuação no Campo ..., a artista AA começou a sentir-se doente, sendo que no dia seguinte, 23-04-2024, foi piorando, tendo dado outro concerto, o que culminou com a sua afonia no dia 24-09-2023, data do concerto contratado com a Autora, tendo-se apercebido de tal condição após o almoço.
c) Ponto c) dos factos dados como não provados
XII. Quanto ao ponto c) considera a Recorrente que tal facto deveria ter sido dado como provado, sendo que o Tribunal a quo deu tal facto como não provado por ter considerado que a esta parte a testemunha CC não terá merecido qualquer credibilidade.
XIII. Importa, assim, atentar ao depoimento de tal testemunha (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 10/05/2024, entre as 14:48 e as 15:44, minutos 00:26:24 a 00:38:40), no qual esta manteve sempre a sua versão dos factos, mesmo quando confrontada por diversas vezes com a mesma questão.
XIV. A opção do Tribunal recorrido de atribuir ou não credibilidade a determinada testemunha com base na oralidade e na imediação poderá – e deverá – ser censurada pelo Tribunal de recurso, quando se mostre que a opção do Tribunal recorrido carece de razoabilidade e viola as regras da experiência comum, o que sucede in casu.
XV. Ora, crê-se que todo o supra exposto é evidenciador dessa mesma circunstância, não se vislumbrando qualquer motivo para que seja afastada a credibilidade da sobredita testemunha, resultando, ao invés, manifesto de todo o seu depoimento que a mesma procurou esclarecer o Tribunal da melhor forma e de modo coerente.
XVI. Vale por dizer que, mostrando-se que a interpretação que é feita quanto à credibilidade de determinado depoimento ofende as regras da experiência e da lógica, caberá ao Tribunal de recurso corrigir esse erro de análise.
XVII. Em face de todo o exposto, deverá o ponto c) dos factos dados como não provados passar, ao invés, a integrar a factualidade dada como provada.


➢ MATÉRIA DE DIREITO

Da errada interpretação e aplicação das normas jurídicas ínsitas nos artigos 607.º n.º 4 do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.) e artigos 349.ºe 342.º do Código Civil (doravante C.C.)
XVIII. No que concerne à matéria factual supra impugnada, constata-se que o Tribunal a quo não aplicou e interpretou devidamente as máximas atinentes às regras da experiência comum, e, bem assim, as presunções impostas por lei, seja no que concerne à credibilidade da testemunha CC, seja no que respeita às presunções e ilações retiradas da prova produzida.
Ademais,
XIX. A Recorrida invocou a impossibilidade fortuita, sem, no entanto, a ter conseguido demonstrar cabalmente, tendo o Tribunal a quo julgado procedente a invocada impossibilidade, sem que se encontrasse provada a verificação de um evento imprevisível, inesperado e fortuito.
XX. Pelo exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nas normas jurídicas ínsitas nos artigos 607.º n.º 4 do C.P.C. e artigos 349.º e 342.º do C.C., preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que tais factos se encontravam não provados, não devendo ter sido judiciada a impossibilidade fortuita.

Da errada interpretação e aplicação da norma jurídica constante dos artigos 790.º e 795.º do C.C., e transgressão das normas jurídicas constantes dos artigos 801.º n.º 1 e n.º 2, 762.º n.º 2, 798.º, 227.º do C.C.:
XXI. Acontecimento fortuito será aquele que se afigura de caráter imprevisível, súbito e inesperado- vide, a tal propósito, o entendimento propalado pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão de 13-05-2020, pela relatora Maria da Graça dos Santos Silva, nos termos do qual «II - O caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável se se tivesse previsto.»
XXII. In casu, ficar gradualmente doente e afónica, é um acontecimento que poderia ter sido evitado em si mesmo e nas suas consequências, ou pelo menos, mitigado, considerando que a artista e, bem assim, a Ré, sabiam de antemão (pelo menos dois dias antes do evento), que aquela se encontrava doente, tendo, ainda assim, realizado dois concertos antes do evento promovido pela aqui Recorrente,
XXIII. o que, desde logo, e de acordo com as regras da experiência comum, permitiria expectar o agravamento da sua condição física e de saúde.
XXIV. Aliás, e recorrendo a tais máximas, ainda que a artista não tivesse sido acometida de qualquer doença, a agenda preenchida e sobrecarregada da artista fazia já prever a sua afonia.
XXV. Assim, a impossibilidade de que a Ré se arrogou não terá na sua génese uma causa fortuita mas sim culposa, pois que era previsível e evitável tal impossibilidade bem como a extensão das consequências que daí advieram.
XXVI. Nessa medida, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo as normas jurídicas constantes dos artigos 790.º e 795.º do CPC, devendo ter interpretado e aplicado tais normas no sentido de não se verificar, in casu, as características atinentes ao caráter fortuito da impossibilidade, mas sim um caráter culposo, com as necessárias consequências legais.
Para além disso, e ainda que assim não entendesse,
XXVII. Conforme resulta da impugnação factual supra, deveria ter sido judiciado que a Ré não atuou com a diligência devida, pois que tinha necessariamente conhecimento da agenda preenchida da artista AA, bem como do seu estado frágil nos dias anteriores à atuação contratada pela aqui Autora, e nada fez para assegurar o cumprimento do dever de prestar.
XXVIII. Dessarte, a Ré não atuou com os deveres de diligência e de boa-fé que lhe eram exigíveis.
XXIX. Tal incumprimento poderá ser perspetivado numa tríplice vertente: quer porque, sabendo de antemão da agenda preenchida da artista, a Recorrida não informou a Autora, optando por contratar com os necessários riscos que daí poderiam advir; ora porque, bem sabendo do estado de saúde alegado pela artista, assentiu na realização de dois concertos nos dois dias anteriores à data da atuação contratada pela Autora, nada fazendo para o evitar; e ainda porque, bem sabendo do estado de saúde da artista, apenas informou a Autora de tais circunstâncias à hora em que a artista ia atuar.
XXX. Outrossim, e considerando o incumprimento destes deveres acessórios de diligência e de conduta, a ser enquadrados como integrantes do correto e perfeito dever de prestar, sempre haveria de considerar-se tal impossibilidade como culposa.
XXXI. E, com base na natureza jurídica dessa impossibilidade, haveriam de convocar-se as normas da responsabilidade civil atinentes ao incumprimento imputável à Ré, perscrutando-se o direito da Autora em ser indemnizada por todos os danos e prejuízos sofridos, contemplados nos factos provados 10) e 20) (para além dos que foram já reconhecidos pelo Tribunal a quo).
XXXII. Ao decidir como decidiu, transgrediu o Tribunal a quo o disposto nas normas jurídicas constantes dos artigos 801.º n.º 1 e n.º 2, 762.º n.º 2, 798.º, 227.º, 562.º e 564.º do CC, preceitos que deveriam ter sido interpretados no sentido da verificação, in casu, de uma impossibilidade culposa, e do incumprimento dos deveres acessórios e de boa-fé como integrantes do dever de prestar, o que determina o incumprimento imputável à Ré e o direito da Autora em ver-se ressarcida de todos os valores mencionados nos factos provados 10) e 20) da decisão revidenda.
Ainda que se considerasse não se revestir de caráter culposo tal impossibilidade, o que ad cautelam se concebe,
XXXIII. sempre haveria de repensar-se, em todo o caso, o cumprimento dos deveres de diligência e de boa-fé, acessórios da prestação principal e que revestem, in casu, natureza essencial, ganhando verdadeira autonomia da obrigação principal.
XXXIV. A diligência exigível in casu não se trata de uma mera diligência de execução em sentido estrito, mas também de uma diligência preparatória, preventiva e reativa, destinada a evitar ou a superar qualquer impedimento ao dever de prestar, norteada pelo princípio geral da boa-fé.
XXXV. Na situação sub judice, a Ré não atuou com a diligência e a boa-fé que lhe eram exigíveis, pois que se o tivesse feito não teria avisado a Autora de tal impossibilidade apenas aquando da hora do concerto, e teria evitado o agravamento do estado de saúde da artista, nos moldes em que lhe eram possíveis.
XXXVI. De acordo com a mui douta sapiência propalada pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 08-02-2024, processo n.º 189/22.8T8VLC.P1, pela relatora Isabel Peixoto Pereira, «I - A identificação de uma situação de impossibilidade de cumprimento não culposa convoca a compreensão do equilíbrio último ou simetria dos contratos bilaterais. (…) III- Impõe-se considerar a projeção da diligência exigível ao devedor em várias fases do cumprimento do programa obrigacional; donde, ao lado de uma diligência de execução em sentido estrito, intercede uma diligência preparatória e preventiva e ainda uma diligência reativa, destinada a superar ou atenuar um impedimento ao dever de prestar. IV- A medida do esforço do devedor é um problema que coloca qualquer perturbação ou entrave à prestação, imputável ou inimputável ao devedor (o que não quer, naturalmente, dizer que o esforço seja o mesmo em qualquer caso). Se sobrevier um facto não imputável às partes, o devedor obrigar-se-á, dentro dos limites da concreta prestação, a superá-lo. V- No que toca ao cumprimento das obrigações, a boa fé é chamada a precisar e complementar a fonte negocial respectiva, actuando, depois, no conteúdo, seja para precisar a prestação, seja para lhe acrescentar os deveres acessórios.».
XXXVII. Outrossim, e ainda que se mantivesse o entendimento da impossibilidade fortuita a quo, sempre haveria de verificar-se a transgressão das normas jurídicas atinentes ao princípio da boa-fé e aos deveres de diligência, autonomamente tutelados, incorrendo a responsabilização da Ré pelos demais prejuízos causados à Autora e previstos nos factos provados 10) e 20) (para além daqueles em que a Ré foi condenada).
XXXVIII. Ao não ter contemplado o incumprimento de tais deveres e do princípio da boa-fé, e o ressarcimento de todos os prejuízos causados em virtude de tal incumprimento, transgrediu o Tribunal a quo as normas jurídicas constantes dos artigos 762.º n.º 2, 227.º, 562.º e 564.º do CC.
Ainda que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe,

E. Da errada interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes dos artigos 405º, 406.º, 799.º, 562.º e 564.º do CC:
XXXIX. Considerou o Tribunal a quo que a testemunha CC não mereceu credibilidade no excerto em que declara que a Ré havia assumido e se comprometido a restituir todas as despesas e prejuízos em que a Autora havia incorrido em virtude da contratação da artista AA.
XL. Sucede que, conforme resulta supra na matéria impugnada, deveria ter resultado provado que existiu um acordo entre as partes para a restituição de todos os valores despendidos pela Autora e todos os prejuízos que daí advieram.
XLI. Ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo o disposto nos artigos 405.º e 406.º do C.C., sendo que deveria ter interpretado e aplicado tal norma no sentido de que as partes celebraram efetivamente um acordo/contrato, não carecido de forma, em que a Ré se vinculava a pagar à Autora todos os prejuízos resultantes.
XLII. E pelo inadimplemento de tal acordo, deveria o Tribunal a quo ter condenado a Ré ao pagamento de todos os prejuízos, nos termos dos artigos 406.º, 799.º, 562.º e 564.º do CC, tendo, por tal motivo, interpretado e aplicado erradamente tais normas jurídicas.
Concretamente quanto aos prejuízos indicados no facto provado 20)- devolução da bilhética-, e expectavelmente ressarcíveis em virtude da aplicação das regras gerais de responsabilidade civil nos moldes indicados supra,
XLIII. Ainda que se judiciasse pela não ressarcibilidade da totalidade do dano sofrido com a devolução da bilhética (18.580,00 €) e indicado no facto provado 20) da decisão revidenda, o que apenas ad cautelam se concebe, sempre haveria de apurar-se um quantum indemnizatório, a essa parte,
XLIV. contemplando, pelo menos, a diferença entre o valor que foi cobrado pelo bilhete da artista AA, e aquele que seria presumivelmente cobrado pelo bilhete do artista BB Só, tendo como critério base, a título de exemplo, a diferença de cachet entre ambos e recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566.º n.º 3 do C.P.C.
XLV. Pelo que, também aqui se verificaria a convocação da aplicação da norma jurídica do artigo 566.º n.º 3 do C.P.C., nos exatos termos expostos, tendo o Tribunal suprimido a aplicação de tal norma.
Alfim, e caso não se judicie por nenhum dos entendimentos perscrutados, sempre se diz que,

F. Da errada interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes dos artigos 473.º n.º 1 e n.º 2 e 479.º n.º 1 e n.º 2 do CC:
XLVI. Considerou o Tribunal a quo que apenas se poderá verificar a restituição das despesas ao abrigo do enriquecimento sem causa, contemplando apenas o cachet da artista AA e às despesas de alojamento e alimentação.
XLVII. O enriquecimento não tem de traduzir-se num enriquecimento pecuniário do enriquecido, podendo consistir na aquisição de um bem, na possibilidade de dele desfrutar, na liberação de uma dívida ou na poupança de uma despesa.
XLVIII. Ora, para além dos montantes em que foi a Ré condenada, quer as despesas de segurança (836,40 €), quer o aluguer de equipamentos técnicos, como sistema de som e de iluminação à “C... Unipessoal, Lda.” (4.858,50 €), a impressão de 800 bilhetes destinados, exclusivamente, à atuação da artista AA (202,95 €), e a contratação da sociedade “D..., Lda.” (841,32 €), constantes do facto provado 10),
XLIX. consubstanciam um enriquecimento,
L. ou porque a Recorrida dele desfrutou (in casu, a existência da segurança privada considerando a fama e a repercussão pública da artista AA, e os riscos que daí poderiam advir caso não tivesse sido contratado, bem como a impressão de bilhetes destinados ao concerto e a divulgação de cartazes, que fomentaram, ainda mais a promoção da imagem da artista),
LI. ou porque a Recorrida poupou despesas (nomeadamente no que concerne às despesas associadas ao aluguer de equipamentos técnicos, sistema de som e iluminação, também aqui podendo enquadrar-se as demais despesas indicadas, porque relacionadas e potenciadoras da experiência de atuação da artista).
LII. Pelo que, mal andou o Tribunal a quo ao não considerar tais despesas como ressarcíveis ao abrigo das normas do enriquecimento sem causa, tendo interpretado e aplicado erradamente as normas jurídicas constantes dos artigos 473.º n.º 2 e 479.º do CC, devendo ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de, para além dos montantes em que a Ré foi condenada, dever indemnizar a Autora nas demais despesas alegadas supra em virtude de se traduzirem numa modalidade de enriquecimento.
Alfim,
LIII. Revogando a decisão proferida e substituindo-a por uma outra que judicie pela procedência total da ação declarativa, ou, pelo menos, por outra que judicie pela condenação da Ré em montantes indemnizatórios para além dos contemplados no dispositivo da sentença condenatória a quo, farão VV. Exas. inteira e sã Justiça».
A ré respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto.
*

II. Fundamentação

A. Objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
- O erro no julgamento quanto à matéria de facto;
- A impossibilidade de cumprimento da obrigação da recorrente por facto culposo desta;
- Os danos indemnizáveis.
*

B. Os Factos

1. Factos julgados provados pelo tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. A Autora é uma associação desportiva, sem fins lucrativos, que se destina à prática do desporto em geral.
2. A Ré é uma sociedade por quotas que se dedica à produção de eventos musicais, culturais e de todo o tipo de eventos sociais bem como ao agenciamento e representação de vários artistas musicais, em exclusividade.
3. No dia 28.03.2023, a Autora contactou, via WhatsApp, a Ré, na pessoa do Sr. DD, para obter um orçamento para a uma actuação da artista AA na gala comemorativa do 99.º aniversário da Autora a ter lugar no dia 24.04.2023 após o jantar.
4. Nesse mesmo dia, a Autora recebeu, via email, a proposta para a actuação da AA em formato trio pelo valor de 11.500,00 €, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, perfazendo um total de 14.145,00 €.
5. O preço fixado incluía o “Cachet de artista, músicos, equipa técnica e road manager; Transporte de toda a comitiva (Portugal Continental); Apoio à divulgação do espetáculo por parte da B...”.
6. Para a realização do espectáculo, a Ré exigiu que a Autora assegurasse os seguintes elementos:
- Palco mínimo 12x12m com 8 metros de pé direito, torres de PA estruturas e corrente eléctrica e áreas de serviço;
- Camarins e catering, disponíveis desde a hora de chegada da equipa ao local e preparados conforme indicado no rider de acolhimento da banda;
- Alimentação e alojamento consoante rider de acolhimento e o acordado entre as partes;
- Licenças e seguros obrigatórios por lei;
- Sistema de som e luz consoante rider técnico da banda.
7. O pagamento do preço acordado deveria ser efectuado até ao dia do concerto, antes de o mesmo ter início, por transferência bancária ou cheque visado.
8. A Autora aceitou o orçamento em 17.04.2023.
9. A Autora recebeu um e-mail subscrito por EE, funcionário da Ré, com a especificação das condições e exigências, nomeadamente: “(…) alojamento (4 estrelas) (2 dias, 23 a 25 de Abril) 4 Single e 1 Duplo | Hotel E... (O valor do dia anterior somos nós a suportar) + alimentação equipa + camarim e catering equipa + condições técnicas de acordo com os riders da banda (…)”.
10. Para além do custo de 11.500,00 € mais IVA pela actuação da artista AA, a Autora fez contratações com custos associados e pagamentos:
- Alojamento no Hotel indicado pela Ré, “E...” “para 4 quartos Single e 1 Duplo, duas noites, em regime de alojamento e pequeno-almoço de 23 a 25 de abril” tendo pagado o montante de 480,00 € referente a uma noite [a restante noite era a pagar pela Ré].
- Aluguer de equipamentos técnicos, como sistema de som e de iluminação à “C..., Unipessoal, Lda.” tendo pagado 4.858,50 €.
- 6 almoços e 8 jantares no “Restaurante F...” escolhido pela Ré, tendo pagado 253,20 €.
- Contratação de serviços de segurança à empresa “G..., Lda.” tendo pagado 836,40 €.
- Contratação de serviço de catering do camarim à empresa “H...” tendo pagado o valor de 430,50 €.
- Impressão de 800 bilhetes destinados, exclusivamente, à actuação da artista AA tendo pagado 202,95 €.
- Contratação da sociedade “D..., Lda.” para a realização de três outdoors publicitários para a divulgação da gala com a actuação da AA, tendo pagado a quantia de 841,32 €.
- Liquidou à “Sociedade Portuguesa de Autores” o montante de 566,03 €.
11. A Autora efectuou o pagamento à Ré do valor ajustado referente ao cachet no valor de 14.145,00 € no dia 24.04.2023.
12. No dia 24.04.2023, a artista AA começou a perder gradualmente a voz e a ficar afónica mostrando-se à hora do início da gala impossibilitada de cantar.
13. Nessa sequência, por volta das 19h, altura em que se iniciava a recepção dos convidados para a gala de aniversário da Autora em que se daria a actuação musical da artista AA, a Ré informou a Autora de que a cantora se encontrava impossibilitada de cantar por estar afónica.
14. A Ré apresentou à Autora duas soluções: o reagendamento do concerto para outra data ou o cancelamento do concerto com a devolução do montante já liquidado.
15. Uma vez que se tratava de uma gala de aniversário a Autora não aceitou reagendar a actuação da artista AA.
16. Não obstante, a Autora precisava de preencher o espaço vazio na gala deixado pela não actuação da artista AA e, perante o manifestado desespero dos membros da direcção da Autora, o legal representante da Ré propôs-se ajudar e de tentar encontrar um artista que pudesse preencher aquele espaço, tendo, após alguns contactos, sugerido o nome do artista BB Só cujo cachet seria de 4.000,00 € mais IVA [4.920,00 €], o que Autora aceitou.
17. Em consequência, o artista BB Só saiu da sua residência em Lisboa e apresentou-se nas instalações do “A...” à hora do concerto para actuar sozinho.
18. Com o acordo da artista AA, o concerto do BB Só começou com aquela em palco para demonstrar aos presentes que estava impossibilitada de actuar por estar afónica tendo tentado cantar a primeira canção sem sucesso.
19. A Autora tomou a decisão de informar o público à entrada do recinto de que a AA não iria actuar e de que o valor dos bilhetes seria devolvido a quem o solicitasse.
20. A Autora devolveu 782 bilhetes:
- 294 com o custo de 30,00 €, o que perfaz 8.820,00 €;
- 488 bilhetes com o custo de 20,00 €, o que perfaz 9.760,00 €, perfazendo um total de 18.580,00 €.
21. No dia 02.05.2023 a Autora remeteu um email à Ré com o seguinte teor: “No âmbito do cancelamento da atuação da AA, como sabemos depois do evento se iniciar e a pouquíssimas horas da realização da mesma, dando origem ao incumprimento da contratualização entre as partes, entende o A... que, não obstante todos os prejuízos tangíveis e intangíveis com repercussões para a sua boa imagem e reputação, causados pela referida situação, deve a nossa instituição ser ressarcida, no mínimo, dos custos diretos (valores sem IVA) incorridos e que se passa a explicitar:
1) Caché AA: 11.500,00 €;
2) Contratualização do som/iluminação para dar resposta ao ryder técnico exigido pela vossa empresa: 3.950,00 €;
3) Estadia (1 noite) no E... (4 quartos single e 1 duplo): 452,83 €;
4) Alimentação no Restaurante F... (4 almoços e 10 jantares): 253,20 €;
5) Catering de acordo com as exigências (camarim): 350,00 €;
6) Serviços de Segurança da Empresa G...: 680,00 €;
7) Sociedade Portuguesa de Autores: 566,03 €;
8) Bilhética devolvida (294 lugares a 30 € e 488 a 20 €): 17.528,30 €.
Total: 35.280,36 € (valores sem IVA)
Ao valor apurado, deverá ser descontado o caché do BB Só no montante de 4.000 €, igualmente sem IVA.
(…).”
22. No dia 08.05.2023, a Ré enviou um email à Autora com o seguinte teor: “Conforme V.Ex.as bem sabem, a atuação da AA não foi cancelada, nem o vosso evento já tinha começado quando vos avisamos do problema de saúde que, repentinamente, começou a afetar a nossa artista. (…) Face ao exposto, estamos na disposição de chegar a um encontro de contas que tenha como pressuposto, inegociável, aquilo que ficou combinado entre ambas as partes sendo certo que não iremos aceitar que nos seja exigido os custos que teriam de ser sempre suportados por V.E.xas, uma vez que o concerto se realizou.”
23. Após o dia 24.04.2023, a Ré propôs restituir à Autora o montante de 5.750,00 €.
24. A actuação do artista BB Só implica condições técnicas como palco, som e iluminação semelhantes às necessárias para a actuação da artista AA.
25. A gala comemorativa do 99º aniversário da Autora foi apresentada pela apresentadora FF e teve a actuação do humorista GG.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provado que:
a)-Todos os custos referidos em 10. decorreram de exigências da Ré para a actuação da artista AA.
b)-A actuação do artista BB Só na gala comemorativa do 99º aniversário da Autora foi uma substituição/modificação por acordo entre Autora e sociedade Ré da prestação desta [a prestação consistia na actuação da artista AA] com a consequente manutenção de todas as demais condições contratuais excepto o valor do cachet tendo as partes acordado que a sociedade Ré restituiria à Autora o montante de 5.750,00 € acrescido de IVA à taxa legal correspondente a ½ do valor do cachet pago para a actuação da artista AA.
c)-Com a actuação do artista BB Só, a sociedade Ré acordou com a Autora que lhe pagaria todos os custos que suportou para a actuação da artista AA.
d)- A Autora não informou a Ré de que iria vender bilhetes para a actuação da artista AA.
e)- A Autora teria tido as mesmas despesas com alimentação, refeições e catering com a actuação do artista BB Só e com a realização da gala uma vez que os camarins são afectos a vários artistas.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso vertente, afigura-se de linear clareza que a recorrente cumpriu tanto os ónus primários consagrados nas diversas alíneas do n.º 1, do referido artigo 640.º, como o ónus secundário estabelecido na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo. Na verdade, aquela indicou de forma expressa e discriminada, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os pontos de facto que considera incorretamente julgados (o ponto 12 dos factos julgados provados e a al. c) dos factos jugados não provados, mencionando ainda um outro facto que considera relevante para a decisão da causa e que foi omitido na decisão do Tribunal), indicou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada um desses pontos e fundamentou a sua discordância na prova que descreve e analisa na referida alegação. Acresce que a recorrente transcreveu as partes dos depoimentos em que se baseia, mais indicando o minuto e o segundo do início e do fim desses excertos.
Nestes termos, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
b. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
c. No caso vertente, como vimos, a recorrente pretende se altere a redacção do ponto 12 dos factos provados, se adite um novo facto provado e se altere o sentido da decisão relativa à al. c) dos factos não provados.
Consta o seguinte daquele ponto 12: «No dia 24.04.2023, a artista AA começou a perder gradualmente a voz e a ficar afónica mostrando-se à hora do início da gala impossibilitada de cantar».
A recorrente entende que a redacção deste ponto 12 deve passar a ser a seguinte: «A 22.04.2023, com a atuação no Campo ..., a artista AA começou a sentir-se doente, sendo que no dia seguinte, 23-04-2024 foi piorando, tendo dado outro concerto, o que culminou com a sua afonia no dia 24.09.2023, data do concerto contratado com a Autora, tendo-se apercebido de tal condição após o almoç0».
Baseia-se, para tanto, no depoimento da testemunha AA, afirmando que do mesmo não resulta que esta tenha começado a perder gradualmente a voz no dia 24.04.2023, antes resultando que já se encontrava doente há dois dias.
Ao contrário do que parece entender a recorrente, o facto de a testemunha se ter sentido doente nos dois dias que precederam o concerto em causa nestes autos não invalida que apenas neste dia tenha começado a perder gradualmente a voz e a ficar afónica, sendo certo que a própria testemunha confirmou que assim foi, esclarecendo o seguinte: ficou constipada no concerto que deu no Campo ..., em Lisboa; no dia seguinte cantou no ..., no Porto, tendo continuado doente; no dia seguinte, na hora do almoço, começou a ficar rouca, mas achou que ia melhorar; só no sound check é que percebeu que estava afónica por causa da constipação e que não ia conseguir cantar, tendo então avisado a empresa.
Este depoimento, cuja credibilidade ninguém questionou, corrobora integralmente o teor do ponto 12 dos factos provados. Mas vai mais longe, concretizando a doença que esteve na origem da sua afonia e descrevendo a respectiva evolução.
Por estar em causa uma mera resposta explicativa à matéria de facto controvertida, e não um facto novo que a extravase, nada impede que tal explicação seja considerada, procedendo, nessa medida, a impugnação em apreço.
d. Com fundamento na mesma prova, a recorrente pretende se adite o seguinte ponto ao elenco dos factos provados: «Apesar do conhecimento por parte da Recorrente da agenda preenchida da artista AA nos dias que antecediam a gala de aniversário da Recorrente e dos riscos que daí resultam, a Recorrida não se inibiu de contratar com a Recorrente».
A parte final deste enunciad0 é totalmente redundante, visto que a celebração do contrato e os respectivos termos já constam da matéria de facto provada.
Quanto à parte restante – sem prejuízo de já estar parcialmente contemplada na resposta explicativa que demos ao ponto 12 dos factos provados, sem prejuízo igualmente das ilações que seja lícito ao tribunal retirar destes e dos outros factos julgados provados –, é manifesto que extravasa o que foi alegado pelas partes nos seus articulados, maxime o que foi alegado pela autora para sustentar a sua pretensão indemnizatória, pelo que não pode aquela factualidade ser aditada nesta fase, atento o disposto no artigo 5.º do CPC.
Pelo exposto improcede, nesta parte, a impugnação em apreço.
e. Pretende ainda a recorrente se julgue provado o facto constante da al. c) dos factos não provados: «Com a actuação do artista BB Só, a sociedade Ré acordou com a Autora que lhe pagaria todos os custos que suportou para a actuação da artista AA».
Baseia-se, para tanto, no depoimento da testemunha CC, alegando que não se compreende como pôde o tribunal a quo considerar que o mesmo não merece qualquer credibilidade, visto que a referida testemunha manteve sempre a sua versão dos factos, mesmo quando confrontada por diversas vezes com a mesma questão, não depôs de forma evasiva, nem evidenciou quaisquer imprecisões ou sinais que, conjugados com a linguagem não verbal, sejam susceptíveis de retirar credibilidade ao seu depoimento, pelo que a interpretação que o Tribunal a quo fez deste depoimento ofende as regras da experiência e da lógica.
Por sua vez, o Tribunal a quo fundamentou assim a sua decisão relativamente à al. c) dos factos não provados:
Este facto foi dado como não provado por insuficiência de prova sobre o mesmo. A única testemunha que o afirmou foi CC mas, nesta parte, não nos mereceu qualquer credibilidade. De facto, ambas as partes estão de acordo que o legal representante da sociedade Ré começou por dizer à testemunha que com a impossibilidade de actuação da artista AA podiam reagendar a actuação da artista ou cancelar a actuação com a devolução dos valores liquidados. No entanto, a testemunha foi mais longe e afirmou que o legal representante da sociedade Ré lhe transmitiu que a actuação do artista BB Só tinha um custo de 3.500,00/4.000,00 € e que “tudo o resto seria restituído”, ou seja, que todos os custos decorrentes da actuação da artista AA lhes seriam restituídos. Ora, esta versão dos acontecimentos não faz qualquer sentido. De facto, por que razão a sociedade Ré haveria de restituir todos os custos decorrentes da actuação da artista AA se o artista BB Só ia actuar? A verdade é que a actuação do artista BB Só também implica custos associados como disseram as testemunhas HH e EE e o próprio legal representante da sociedade Ré. Aliás, se a sociedade Ré tinha que restituir todos os custos que a sociedade Autora tinha tido com a actuação da artista AA, para que é que se ia dar ao trabalho de diligenciar por trazer o artista BB Só a ... em tão poucas horas? Não faz qualquer sentido. O que faz sentido é que o legal representante da sociedade Ré tenha transmitido à Autora que o cachet do artista BB Só era de apenas 4.000,00 € (mais IVA) pelo que tudo o resto lhe seria restituído, ou seja, a diferença de cachets entre 11.500,00 € e 4.000,00 €.
Aliás, a palavra restituir significa devolver e não pagar. O que a testemunha declarou foi que o legal representante da sociedade Ré se comprometeu não só a devolver a diferença de cachet mas a pagar à Autora os montantes que havia pagado a terceiros pelos serviços prestados com a organização do concerto, ou seja, a sociedade Ré trazia o artista BB Só a ... mediante o preço de 4.000,00 € e restituía à Autora 22.613,90 € se não tivermos em conta o valor dos bilhetes, e mais de 36.000,00 € se consideramos o valor dos bilhetes emitidos.
Ora, seria uma solução absurda e não é conforme as regras da experiência e do normal acontecer.
Do que deixámos exposto decorre que a recorrente faz uma apreciação isolada ou descontextualizada do depoimento em que se baseia, justificando a credibilidade da testemunha exclusivamente na coerência interna e na clareza do seu depoimento, reduzindo as regras da experiência a esta análise formal ou exógena desse depoimento. Porém, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, exige uma análise global e concatenada de todos os meios de prova apresentados ou produzidos, não sendo legítimo ao Tribunal basear a decisão sobre a matéria de facto na análise parcial de apenas algum ou alguns meios de prova, o que é corroborado pelo artigo 413.º do CPC, nos termos do qual o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las.
Lançando mão de uma metodologia distinta, o Tribunal a quo concatenou o conteúdo do depoimento em causa com a demais prova que enuncia, apelando ainda às regras da experiência comum, reportadas à normalidade do acontecer.
Para além de ser esta a metodologia adequada, não vemos qualquer razão para dissentirmos da análise efectuada pelo tribunal a quo. Muito pelo contrário, entendemos que essa análise é corroborada por outros meios de prova, mais concretamente a correspondência trocada entre as partes, aludida nos pontos 21 e 22 dos factos provados, bem como por diversos factos julgados provados e não impugnados pela recorrente, nomeadamente os descritos nos pontos 14 e 24.
Assim, na correspondência electrónica que a recorrente remeteu à recorrida em 02.05.2023 (cfr. ponto 21), aquela afirma ser seu entendimento que deve ser ressarcida, no mínimo, dos custos directos em que incorreu e que aí explicita, sem fazer qualquer alusão a algum acordo de pagamento desses custos, como certamente faria se tal acordo existisse.
A inexistência deste acordo é corroborada pela resposta da recorrida (cfr. ponto 22), onde esta declara estar na disposição «de chegar a um encontro de contas que tenha como pressuposto, inegociável, aquilo que ficou combinado entre ambas as partes», referindo-se ao acordo de prestação de serviços celebrado entre ambas, acrescentando o seguinte: «não iremos aceitar que nos seja exigido os custos que teriam de ser sempre suportados por V.E.xas, uma vez que o concerto se realizou».
Por outro lado, como se escreve no ponto 14 dos factos provados, a ré apresentou à autora duas soluções: o reagendamento do concerto para outra data ou o cancelamento do concerto com a devolução do montante já liquidado. Ora, nenhuma destas soluções corresponde ao pagamento de todos os custos que a autora suportou para a actuação da artista AA. Como se afirma na decisão recorrida, a devolução do montante liquidado refere-se ao valor de 14.145,00 € que a recorrente pagou à recorrida, referido no ponto 11 dos factos provados, e não aos valores que pagou a outras entidades, relativamente aos quais não estaria em causa uma devolução, mas sim o pagamento de uma indemnização.
Por fim, no ponto 24 afirma-se que a actuação do artista BB Só implica condições técnicas como palco, som e iluminação semelhantes às necessárias para a actuação da artista AA (tendo-se julgado não provado que todos os custos referidos no ponto 10 dos factos provados tenham decorrido de exigências da ré para a actuação da artista AA). Mas se assim é, não se mostra minimamente verosímil que a recorrida tivesse assumido esses custos, tanto mais que o cachet do artista BB Só se cifrou num montante significativamente inferior ao cachet que havia sido acordado para a actuação da artista AA.
Pelas razões expostas, improcede também nesta parte a impugnação em apreço.
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Em suma, na procedência parcial da impugnação em apreço, altera-se a redacção do ponto 12 dos factos provados, nos seguintes termos:
No dia 22.04.2023, a artista AA ficou constipada durante o concerto que deu no Campo ..., em Lisboa; no dia seguinte cantou no ..., no Porto, tendo continuado constipada; no dia 24.04.2023 começou a ficar rouca, a perder gradualmente a voz e a ficar afónica, mostrando-se à hora do início da gala impossibilitada de cantar.
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C. O Direito
1. Sem questionar a qualificação do acordo celebrado entre as partes como um contrato de prestação de serviços, a recorrente começa por se insurgir contra a conclusão do tribunal a quo segundo a qual o cumprimento daquele contrato se tornou impossível por causa não imputável à recorrida. Alega que não está provada a verificação de um evento fortuito, isto é, imprevisível, inesperado e fortuito, visto que «o acontecimento de ficar gradualmente doente e afónica, poderia ter sido evitado em si mesmo e nas suas consequências, considerando que a artista e, bem assim, a Ré, sabiam de antemão (pelo menos dois dias antes do evento), que aquela se encontrava doente, tendo, ainda assim, realizado dois concertos antes do evento promovido pela aqui Recorrente, o que, desde logo, e de acordo com as regras da experiência comum, permitiria expectar o agravamento da sua condição física e de saúde. Aliás (…), ainda que não tivesse sido acometida de qualquer doença, a agenda preenchida e sobrecarregada da artista fazia já expectar a sua afonia». Nestes termos, conclui que «não é possível considerar que a impossibilidade de que a Ré se arrogou se trata de uma causa fortuita e não culposa, pois que era previsível e evitável tal impossibilidade bem como as consequências que daí advieram».
A impossibilidade do cumprimento não imputável ao devedor está regulada nos artigos 790.º e seguintes do Código Civil (CC).
De harmonia com o disposto no artigo 790.º, n.º 1, a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor (impossibilidade objectiva da prestação). Acrescenta-se no artigo 791.º que a impossibilidade relativa à pessoa do devedor importa igualmente a extinção da obrigação, se o devedor, no cumprimento desta, não puder fazer-se substituir por terceiro (impossibilidade subjectiva).
Nos termos do disposto no artigo 795.º, n.º 1, quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa. De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação; mas, se o devedor tiver algum benefício com a exoneração, será o valor do benefício descontado na contraprestação.
De acordo com o regime legal assim descrito, exclui-se a responsabilidade do devedor quando a impossibilidade de cumprimento não lhe seja imputável, isto é, quando não se deva a um facto culposo do devedor, o que sucede sempre que aquela impossibilidade derive de um facto do credor ou de um facto não imputável a nenhuma das partes, verificando-se esta segunda hipótese quando ocorra um caso fortuito ou de força maior, mas também quando a impossibilidade seja imputável a terceiro ou à própria lei.
Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 6.º ed., Almedina, 1994, pp. 940-941), depois de referir que, em matéria de não cumprimento das obrigações, o caso fortuito e o caso de força maior produzem as mesmas consequências exoneratórias – o que leva a que, por vezes, alguns autores e a própria lei se refiram apenas ao caso fortuito num sentido lato, abrangendo as duas figuras – dá nota do seguinte:
«Segundo alguns autores, o caso fortuito representa o desenvolvimento de forças naturais a que se mantém estranha a acção do Homem (inundações, incêndios, a morte, etc.). Ao lado dele, o caso de força maior consiste num facto de terceiro, pelo qual o devedor não é responsável (a guerra, a prisão, o roubo, uma ordem de autoridade, etc.).
De harmonia com a orientação talvez mais difundida, o conceito de caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia da imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável se tivesse sido previsto».
Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. II, 6.ª ed., Almedina, 1995, p. 80), lançando mão de um conceito amplo de caso fortuito, escreve o seguinte a este respeito:
«O caso fortuito consiste no facto natural (tempestade, inundação, desabamento de terras, descarrilamento de comboios, doença do devedor, etc.), cujas consequências o devedor não possa evitar e em cuja verificação não tenha culpa. Se, usando da diligência normalmente exigível, o devedor não tinha possibilidade de prevenir a verificação do evento, nem o reflexo que ele teve sobre a prestação debitória, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada».
No caso concreto provou-se que, no dia 22.04.2023, a artista AA ficou constipada durante o concerto que deu no Campo ..., em Lisboa; no dia seguinte cantou no ..., no Porto, tendo continuado constipada; no dia 24.04.2023 começou a ficar rouca, a perder gradualmente a voz e a ficar afónica, mostrando-se à hora do início da gala impossibilitada de cantar (cfr. ponto 12 dos factos provados).
Em qualquer das classificações de escola enunciadas por Almeida Costa, a razão da impossibilidade do cumprimento da obrigação – a afonia da artista AA, originada por uma constipação – configura um caso fortuito. Por um lado, corresponde a uma doença cuja origem não é possível imputar a qualquer das partes ou a terceira pessoa. Por outro lado, apresenta-se como um acontecimento imprevisível. E esta característica de imprevisibilidade aplica-se tanto à constipação surgida durante o concerto realizado no dia 22.04.2023 e que se manteve no dia seguinte, como à afonia manifestada no dia 24. Com efeito, julgamos constituir uma evidência que o surgimento da constipação era uma ocorrência imprevisível, tanto para a recorrida, como para a própria artista. Mas o mesmo sucede com a afonia, ainda que esta se tivesse ficado a dever à constipação. Na verdade, o que as regras da experiência comum nos mostram é que que uma constipação não raramente afecta a dicção, mas só excepcionalmente provoca afonia, sendo certo que, no caso concreto, só próprio dia 24.04.2023 a artista AA começou a ficar rouca e a perder gradualmente a voz, até ficar afónica, não decorrendo dos factos provados que este fosse um desfecho previsível antes da manifestação da rouquidão.
Mas ainda que se admitisse que o surgimento de uma constipação durante uma actuação, a que se seguiriam mais duas actuações em dias consecutivos, tornava previsível o surgimento da rouquidão e da afonia, manter-se-ia a conclusão de que a impossibilidade de cantar se ficou a dever a um facto imprevisível ou, pelo menos, de consequências inevitáveis a partir do momento em que passou a ser previsível.
Por um lado, como já dissemos, o surgimento da constipação que desembocou na afonia não foi previsto nem era previsível antes de a mesma se ter manifestado. Por outro lado, quando esta se manifestou, faltavam apenas dois dias para o evento em que a obrigação tinha de ser cumprida, pelo que as suas consequências já não eram evitáveis. E embora a recorrente alegue o contrário, afirmando que «o acontecimento de ficar gradualmente doente e afónica, poderia ter sido evitado em si mesmo e nas suas consequências», não esclarece o que poderia ter sido feito para evitar o surgimento da constipação ou, mesmo, as suas consequências.
Seja como for, ao contrário do que afirma a recorrente, os factos apurados não permitem afirmar que a recorrida tivesse ou devesse ter tido conhecimento da constipação que afectou a artista AA antes do dia 24, permitindo apenas inferir que esta tomou consciência desse seu estado de saúde durante o concerto que deu no dia 22. Por conseguinte, a recorrida não podia ter previsto a impossibilidade de cumprir a sua obrigação antes do próprio dia do concerto, tal como não podia ter evitado as suas consequências.
Alega, porém, a recorrente que «ainda que não tivesse sido acometida de qualquer doença, a agenda preenchida e sobrecarregada da artista fazia já expectar a sua afonia». Mas tal não resulta dos factos provados, ainda que por via do recurso a presunções judiciais, nem se apresenta como um facto notório de que este Tribunal possa conhecer oficiosamente. Pelo contrário, a própria testemunha AA afirmou ser normal dar concertos em três dias consecutivos, mais referindo que interveio num musical que decorreu durante dois meses de Quarta-feira a Domingo.
Do que ficou exposto também já resulta que a afirmação da impossibilidade culposa de cumprimento da obrigação da recorrida não pode respaldar-se numa suposta violação dos deveres contratuais acessórios inerentes à prossecução do resultado final do contrato, indissociáveis da regra geral da boa-fé contratual prevista no artigo 762.º, n.º 2, do CC, entendida enquanto princípio (normativo e/ou geral de direito) de actuação, nos termos do qual os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, correcção, lealdade e consideração pelos interesses da outra parte.
A este respeito a recorrente veio alegar que a recorrida «não atuou com os deveres de diligência e de boa-fé que lhe eram exigíveis, numa tríplice vertente: quer porque, sabendo de antemão da agenda preenchida da artista, não informou a Autora, optando por contratar com os necessários riscos que daí poderiam advir; ora porque, bem sabendo do estado de saúde alegado pela artista, assentiu na realização de dois concertos nos dois dias anteriores à data da atuação contratada pela Autora, nada fazendo para o evitar; e ainda porque, bem sabendo do estado de saúde da artista, apenas informou a Autora de tais circunstâncias à hora em que a artista ia atuar».
Sem questionar que a recorrida conhecia a agenda da artista AA – visto que aquela se dedica ao agenciamento e representação de vários artistas musicais, em exclusividade (cfr. ponto 2 dos factos provados), inclusivamente da referida AA, como se pode inferir da demais factualidade apurada –, já vimos que tal conhecimento não contradiz a imprevisibilidade do estado de saúde que impediu AA de actuar, tal como não contradiz a inevitabilidade das consequências desse facto. Também já vimos que o mesmo sucede relativamente ao momento em que a recorrida tomou conhecimento do referido estado de saúde da artista, que não podemos situar em data anterior a 24.04.2023. Deste modo, não podemos acompanhar a recorrente quando afirma ter a recorrida violado culposamente deveres acessórios de informação exigidos pela boa-fé contratual, pelo que a responsabilidade da recorrida não pode basear-se em tal violação.
Tal responsabilidade também não se pode basear no acordo de pagamento dos custos suportados pela recorrente descrito na al. c) dos factos não provados, visto ter improcedido a impugnação da decisão do Tribunal a quo relativamente a esse facto. Perante esta decisão sobre a matéria de facto, é totalmente espúria a invocação das normas dos artigos 405.º, 406.º, 799.º, 562.º e 564.º do CC, pois estas nada nos revelam sobre os acordos celebrados entre as partes, apenas sendo chamadas a regular os acordos efectivamente apurados.
Pelo exposto, socorrendo-nos das palavras de Antunes Varela, concluímos que a impossibilidade da recorrida cumprir a prestação a que se obrigou ficou a dever-se a um caso fortuito, ou seja, a um facto natural – uma doença –, cujas consequências aquela não pode evitar e cuja verificação não lhe é imputável, visto que, mesmo usando da diligência normalmente exigível, não tinha possibilidade de prevenir a verificação do evento, nem o reflexo que ele teve sobre a prestação debitória. De resto, este é mesmo um dos exemplos a que a doutrina recorre para ilustrar o conceito de circunstância fortuita ou de força maior (cfr. Antunes Varlela, ob. cit., pp. 61 e 62).
Como vimos, a impossibilidade da prestação não imputável ao devedor gera a extinção da obrigação, «perdendo o credor o direito de exigir a prestação e não tendo, por conseguinte, direito à indemnização dos danos provenientes do não cumprimento» (cfr. Antunes Varela, ob. cit., p. 80), aqui se incluindo, no caso concreto, o valor correspondente à devolução dos 782 bilhetes referida no ponto 20 dos factos provados.
2. Relativamente às despesas referidas no ponto 10 dos factos provados, alega a recorrente que, para além dos valores relativos ao cachet da artista AA e às despesas de alojamento e alimentação, as regras do enriquecimento sem causa impõem igualmente o ressarcimento das despesas que teve com a segurança (836,40 €), o aluguer de equipamentos técnicos, como sistema de som e de iluminação (4.858,50 €), a impressão de 800 bilhetes destinados, exclusivamente à atuação da artista AA (202,95 €) e a contratação da sociedade D..., Lda. (841,32 €).
Recorde-se, antes de mais, que a decisão recorrida não aplicou as regras do enriquecimento sem causa de forma directa – o que poderia contender com a sua natureza subsidiária –, mas sim por via da remissão contida no n.º 1, do artigo 795.º, do CC, já antes citado, que regula a impossibilidade de cumprimento não imputável ao devedor nos contratos bilaterais. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 1987, p. 461), «algumas vezes que a lei remete, a propósito de outros institutos, para as normas reguladoras do enriquecimento sem causa: essa remissão significa, nalguns casos, que a lei manda definir o objecto da restituição pelos princípios que, nesse aspecto, definem o objecto da restituição imposta ao enriquecido sem causa (cfr., por ex., o art. 795.º, n.º 1, e, sobre este preceito, o acórdão do S. T. J., de 17 de Janeiro de 1978, no B. M. J., n.º 273, págs. 239 e segs.); noutros casos, a remissão envolve mesmo o reconhecimento da existência de um verdadeiro enriquecimento sem causa, a que logicamente se manda aplicar o regime deste (cfr., por ex., o art. 1273.º, n.º 2)».
Nos termos daquele artigo 795.º, n.º 1, quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa. Só não será assim se a impossibilidade da prestação for imputável ao credor, caso regulado no n.º 2, do mesmo artigo.
No caso concreto já vimos que a prestação da recorrida se tornou impossível por facto não imputável a qualquer das partes. Por conseguinte, a par da extinção dessa prestação, a recorrente ficou desobrigada da contraprestação e tem o direito de exigir a restituição do que já prestou, embora nos termos mitigados do enriquecimento sem causa, dada a falta de culpa da recorrida.
Partindo deste quadro legal, a sentença recorrida considerou que a contraprestação da recorrida era composta por uma obrigação principal, correspondente ao pagamento do cachet de 11.500,00 € mais IVA, e por obrigações secundárias, que consistiam na disponibilização dos equipamentos técnicos, como sistema de som e de iluminação, e no pagamento do alojamento e alimentação dos membros da equipa da artista AA. Mais considerou que a recorrente tem direito à restituição das despesas inerentes a estas obrigações secundárias, com excepção do valor relativo ao aluguer dos equipamentos técnicos.
Considerou ainda que a contratação de segurança privada, a impressão dos bilhetes e a divulgação da gala não integravam a contraprestação devida pela recorrente, por não corresponderem a exigências da recorrida, pelo que nem sequer equacionou a restituição dessas despesas ao abrigo da norma do artigo 795.º, n.º 1, do CPC.
Perante os factos provados, maxime os descritos nos pontos 4 a 6 e 8 a 11, esta conclusão mostra-se irrepreensível. Na verdade, não se tendo apurado qualquer acordo das partes quanto à publicidade, à impressão de bilhetes e à segurança referentes ao concerto – que, de resto, estava inserido numa gala que não se cingia a esse evento –, impõe-se concluir que a recorrida não solicitou e a recorrente não se obrigou a tais prestações, pelo que as mesmas não integraram o sinalagma que justifica o regime legal do artigo 795.º, n.º 1, do CC.
Como afirma Antunes Varela (cit., p. 83), este regime legal «[é] a consequência normal do mecanismo (sinalagma) próprio do contrato bilateral». No mesmo sentido, Almeida Costa (cit., p. 304), ao analisar o conceito de sinalagma (genético e funcional), escreve que «por força do sinalagma funcional, as vicissitudes de uma das prestações podem afectar a outra. Assim: a impossibilidade superveniente por causa não imputável ao devedor exonera o credor da contraprestação e confere-lhe o direito de repetir o que já tenha satisfeito (art. 795.°, n.º 1)».
Assim, se as despesas com a impressão dos bilhetes, a publicidade do evento e a segurança do mesmo não integravam a contraprestação acordada com a recorrida, não pode a recorrente exigir a sua restituição ao abrigo das normas sobre responsabilidade contratual aqui aplicáveis, designadamente ao abrigo da norma do artigo 795.º, n.º 1, do CC.
Mas, por isso mesmo, esta conclusão não nos impediria, por si só, de equacionar a aplicação das regas do instituto do enriquecimento sem causa às referidas despesas, não por remissão daquele artigo 795.º, n.º 1, mas de forma directa, à luz da natureza subsidiária e dos demais requisitos legais de funcionamento deste instituto jurídico.
Sucede que o enriquecimento sem causa não configura uma questão de conhecimento oficioso, estando esse conhecimento dependente de arguição. Neste sentido vide, a título de exemplo, os acórdãos do TRL, de 22.02.2022 (proc. n.º 23113/19.0T8LSB.L1-7) e de 21.06.2022 (proc. n.º 3840/21.3T8LSB.L1-7), ambos relatados por Diogo Ravara, bem como a demais jurisprudência aí citada. Ora, no presente caso, a recorrente não baseou a sua pretensão nas regras do enriquecimento sem causa, que apenas invocou na alegação deste recurso, mas apenas nas regras do não cumprimento das obrigações. Por conseguinte, estava vedado ao Tribunal a quo o conhecimento daquele enriquecimento sem causa, a não ser na estrita medida em que tal decorresse da remissão operada pelo artigo 795.º, n.º 1, do CPC, como fez a decisão da primeira instância.
Por maioria de razão, os poderes de cognição deste tribunal estão sujeitos aos mesmo limites. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, p. 139-140), «os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando (…) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação, que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame no sentido da repetição da instância no tribunal de recurso».
Pelas razões expostas, importa desde já concluir que o ressarcimento das despesas com publicidade, impressão de bilhetes e segurança carece de base legal, restando apenas aferir se o ressarcimento da despesa relativa ao aluguer dos equipamentos técnicos, no valor de 4.858,50 € pode fundamentar-se no artigo 795.º, n.º 1, do CC, a par da devolução do cachet e do ressarcimento das despesas com o alojamento e a alimentação dos membros da equipa da artista AA, já determinados pelo tribunal a quo.
Este Tribunal respondeu negativamente a tal questão, argumentando que «a Autora teve um custo associado ao aluguer dos equipamentos o que corresponde a um empobrecimento, mas a verdade é que tal empobrecimento não teve qualquer reflexo na sociedade Ré que não viu o seu património enriquecer. Assim sendo, a Autora não tem direito à restituição desta despesa/prestação».
Cremos que, a montante desta, uma outra questão se pode suscitar: a qualificação da despesa com o aluguer dos equipamentos técnicos como uma verdadeira contraprestação, tendo em conta que esta não corresponde à prestação principal devida pela recorrente como contrapartida da prestação da recorrida, antes correspondendo ao cumprimento de um dever secundário, mais concretamente um dever acessório da prestação principal destinado a assegurar a perfeição da execução desta. Ora, como alerta Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª ed., Almedina, 1989, p. 361), «nem todos os deveres de prestação resultantes dos contratos bilaterais para uma das partes estão ligados aos deveres de prestar impostos à outra parte pela relação de reciprocidade própria do sinalagma. (…) O sinalagma liga entre si as prestações essenciais de cada contrato bilateral, mas não todos os deveres de prestação dele nascidos». Mas, como vimos, é precisamente a reciprocidade ou interdependência das prestações própria dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos que justifica a solução legal do artigo 795.º do CC e que, por essa razão, delimita o seu âmbito de aplicação.
Não sendo a disponibilização dos equipamentos técnicos a contrapartida pela actuação da artista AA, admite-se que interdependência entre esta obrigação principal, entretanto extinta, e aquela obrigação secundária se possa considerar suficiente para convocar a aplicação do n.º 1, do referido artigo 795.º do CC.
Ainda assim, concordamos com a decisão recorrida quando conclui pela não verificação dos pressupostos da obrigação de restituição com base nas regras do enriquecimento sem causa, aplicáveis por remissão daquela norma, e, por conseguinte, pela inexistência do direito da recorrente a exigir da recorrida o reembolso da despesa em causa.
Sob a epígrafe Princípio geral, dispõe assim o artigo 473.º do CC:
«1 – Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2 – A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
Para existir enriquecimento sem causa é, assim, necessário que haja um enriquecimento, um empobrecimento, um nexo causal ou correlação entre um e outro e, ainda, a falta de causa justificativa da deslocação patrimonial verificada – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (cit., p. 399 e seguintes) o enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (preço da alienação de coisa alheia; lucro da edição de obra alheia ou da representação de peça alheia; recebimento de prestação não devida, porque a obrigação nunca existiu ou já havia sido cumprida ou fora cedida entretanto; bens adquiridos ou benfeitorias realizadas pelo gestor; etc.); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária (instalação em casa alheia; apascentação do rebanho próprio em prédio de outrem; consumo de alimentos pertencentes a terceiro; utilização da assinatura de outrem no teatro ou no ópera; etc.); outras, ainda, na poupança de despesas (A, por exemplo, alimenta o descendente de B, porque julga erroneamente tratar-se do seu filho).
De acordo com o ac. do STJ de 24.03.2017 (proc. n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1), «[p]ode (…) dizer-se que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa».
Por sua vez, sob a epígrafe Objecto da obrigação de restituir, dispõe assim o artigo 479.º do CC:
1. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
2. A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte.
Novamente nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela (cit., p. 466), «o beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada (ou o valor correspondente, à data da quando a restituição em espécie não seja possível). Deve restituir apenas aquilo com que efectivamente se acha enriquecido, podendo haver diferença – e diferença sensível – entre o enriquecimento do beneficiado à data da deslocação patrimonial e o enriquecimento actual, referido a algum dos momentos a que mandam atender as alíneas a) e b) do artigo seguinte. (…) pode inclusivamente a vantagem alcançada pelo beneficiário não ter enriquecido o seu património por uma de várias circunstâncias: (…) porque se limitou a usar as coisas, mas sem ter poupado com isso qualquer despesa, visto que normalmente as não usaria; porque teria conseguido obter gratuitamente a mesma vantagem por outra via, etc. O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada».
Já vimos que, ao remeter as regras do enriquecimento sem causa, o artigo 795.º, n.º 1, do CC tem em vista as normas que definem o objecto da restituição imposta ao enriquecido sem causa, ou seja, as normas consagradas no artigo 479.º.
No caso concreto, embora se limite a invocar o artigo 473.º do CC, assinalando a falta de verificação dos pressupostos legais do enriquecimento sem causa aí previstos, mais concretamente a inexistência de enriquecimento da recorrida, o Tribunal a quo acaba por aplicar os princípios definidores do objecto da restituição consagrados naquele artigo 479.º – que, naturalmente, assentam naqueles pressupostos legais – em termos que merecem a nossa concordância.
Como bem assinala o Tribunal a quo, ao contrário do que sucedeu relativamente às despesas com o cachet, o alojamento e a alimentação da equipa da artista AA, a recorrida não obteve qualquer vantagem patrimonial à custa da despesa suportada pela recorrida com o aluguer do equipamento em questão.
É certo que dos factos apurados se infere que tal equipamento, que havia sido alugado tendo em vista a actuação da artista AA, acordada entre as partes, foi utilizado para a atuação do artista BB Só, igualmente acordada entre as partes. Mas é igualmente certo que daqueles factos não decorre que a recorrida tenha assumiu a obrigação de suportar as despesas inerentes à disponibilidade daquele equipamento, fosse para a actuação da artista AA ou para a actuação do artista BB Só.
Por conseguinte, ao contrário do que alegou a recorrente na conclusão LI, o pagamento por esta dos custos inerentes ao aluguer daquele equipamento não traduz a poupança de uma despesa pela recorrida nem, de alguma forma, revela que esta última se encontre numa situação patrimonial real e actual mais favorável do que a situação hipotética em que se encontraria se a recorrente não tivesse feito aquela despesa.
Pelas razões expostas, a recorrente não pode exigir da recorrida a restituição do montante assim despendido, ao abrigo do disposto no artigo 795.º, n.º 1, do CC, como bem decidiu o Tribunal a quo.
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Pelo exposto, improcede totalmente a apelação, pelo que importa confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente nas custas da apelação, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão

Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.






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Porto, 25 de Fevereiro de 2025

Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Márcia Portela
Pinto dos Santos