Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
SERVIÇO DE PAGAMENTO ELETRÓNICO
ÓNUS DA PROVA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA DO ORDENANTE
Sumário
I - O Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica aprovado pelo DL n.º 91/2018, de 12.11, de acordo com o disposto no art. 113º, impõe sobre o prestador do serviço um considerável ónus de prova no caso de o utilizador negar ter autorizado determinada operação: i. incumbe ao respetivo prestador do serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada; ii. incumbe-lhe fornecer prova de que essa operação de pagamento não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço por si prestado; iii. a prova da utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços de pagamento não é necessariamente suficiente, por si só, para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta, ou que não cumpriu, com dolo ou negligência grosseira, uma ou mais obrigações previstas no artigo 110.º; iv. nessas situações, o prestador de serviços de pagamento deve apresentar elementos que demonstrem a existência de fraude, de dolo ou de negligência grosseira da parte do utilizador de serviços de pagamento. II - Nesta última hipótese, contemplada expressamente no art. 115º nº 4 do mesmo DL 91/2018, “havendo negligência grosseira do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a (euro) 50”, competindo esse ónus de prova também ao prestador do serviço de pagamento, enquanto fundamento excludente da sua responsabilidade. III - Negligência grosseira equivale a erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável, em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes. IV - Aquando da activação da aplicação MBWAY, o aviso repetido no sentido de não ser introduzido um número de telemóvel que não seja o do utilizador, com expressa advertência de que o número ficaria associado ao seu cartão bancário e permitiria realizar operações na sua conta bancária, seria o bastante para que o comum das pessoas, mesmo das mais descuidadas e desatentas, não prosseguissem com a associação de um número de telemóvel de uma pessoa totalmente desconhecida, pelo que, prosseguindo o utilizador do serviço com a associação de um número de telemóvel de um perfeito desconhecido e com introdução de um código por este indicado, actuou com negligência grosseira, não podendo fazer repercutir sobre o prestador do serviço quaisquer perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas.
Texto Integral
Processo n.º61/21.9T8OBR.P1 - APELAÇÃO Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro- Juiz 2
**
Sumário (elaborado pela Relatora):
………………………………
………………………………
………………………………
**
I. RELATÓRIO:
1.AA e BB intentaram ação declarativa de condenaçãoem processo comum contra Banco 1..., CRL, A... SGPS, S.A., CC e DD, formulando os seguintes pedidos:
- ser a Ré Banco 1..., CRL condenada a proceder ao pagamento da quantia de 10.400,00€, acrescida dos respectivos juros de mora, calculados à taxa legal civil desde a citação até efectivo e integral pagamento.
- ou em caso de improcedência do pedido anterior, ser a ré A... SGPS, SA., condenada a proceder ao pagamento da quantia de 10.400,00€, acrescida dos respectivos juros de mora, calculados à taxa legal civil desde a citação até efectivo e integral pagamento.
- ou em caso de improcedência dos pedidos anteriores, serem os réus a proceder ao pagamento da quantia de 10.400,00€, acrescida dos respectivos juros de mora, calculados à taxa legal civil desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegaram em síntese que a autora mulher é titular de uma conta bancária na 1ª Ré e que no dia 2.12.2019, foram efectuadas movimentações por si não autorizadas na referida conta, de onde foram retiradas as quantias de € 10.000,00 por transferência bancária, e de € 400,00 através de dois levantamentos no valor de € 200,00 cada, tendo a autora dado de imediato conhecimento à referida Ré do sucedido a fim de evitar a saída do valor da transferência, ao que esta terá alegado que nada podia fazer porque o valor já tinha sido levantado, justificação que a autora não aceitou, sustentando que o risco da perda da coisa depositada corre por conta do banqueiro, sendo a 1ª Ré responsável por indemnizá-la pelos valores das transferências não autorizadas.
Mais alegaram que a autora tem conhecimento de que o montante de € 10.000,00 foi transferido para conta pertencente à ré CC, e que os dois levantamentos de € 200,00 cada foram efectuados pelo réu DD, os quais são responsáveis pela devolução daquelas importâncias com base no enriquecimento sem causa.
Subsidiariamente, concluíram pela responsabilidade da ré A..., SGPS, SA, enquanto entidade gestora do sistema MBWay.
2. As Rés apresentaram contestação, separadamente, tendo ambas apresentado defesa por impugnação e tendo a 2ª Ré alegado a sua ilegitimidade passiva, o incumprimento deliberado e/ou grosseiramente negligente pelos AA das normas que regem a utilização de cartões bancários, e a culpa do lesado.
3. Os Autores apresentaram desistência da instância quanto ao Réu, que não fora citado- DD-, a qual foi homologada por sentença proferida em 28.01.2022.
4. Foi requerida a intervenção principal provocada de A..., SA, a qual veio a ser admitida, tendo a interveniente aderido aos articulados da 2ª Ré.
5. Concedido o exercício do princípio do contraditório quanto à matéria de excepção suscitada na contestação, foi apresentada resposta pelos Autores, concluindo como na PI.
6. Dispensada audiência prévia, veio a ser proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade passiva, foi fixado o objecto do litígio e os temas de prova.
7. Em sede de audiência de julgamento, após o depoimento de parte da Autora, foi proferido o seguinte despacho:
“Findo o depoimento de parte, a Mma. Juiz determinou a redução a escrito da declaração confessória da autora, de que a aqui autora entregou o cartão multibanco ao seu marido e que este, juntamente com o filho de ambos, se deslocou ao multibanco, onde o filho a pedido do marido, realizou as operações em questão nos presentes autos.”
8. Findo o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo (transcrição): “Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente, absolvendo-se as rés dos pedidos. Custas a cargo dos autores – art.º 527º do CPC. Notifique. Registe.” 9. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes CONCLUSÕES 1. O presente recurso tem como objeto a decisão do Tribunal a quo que julgou totalmente improcedente a ação instaurada pelos Autores e visa a impugnação da matéria de facto e da matéria de direito. 2. Andou mal, no entender dos recorrentes, a sentença quando considerou não provados factos que deveria ter considerado provados. 3. Consideram, pois os recorrentes que os meios de prova do processo impunham uma decisão diversa, discordando ainda da aplicação do Direito feita pela sentença recorrida. 4. Do documento junto aos autos pela Ré Banco 1... (vide documento n.º 11 junto com a contestação), resulta que, para pagamentos através do serviço de MBWAY estava previsto um limite de 2.500,00€. 5. Assim, deveria a douta sentença ter conhecido do limite estabelecido, no montante de 2.500,00€. 6. Devem, assim, ser aditados à matéria de facto considerada provada os seguintes factos: “Os Autores fixaram como limite máximo diário de transferências o montante de 2.500,00€ (mil euros) na plataforma MBWAY no seu terminal próprio”. 7. Operada a alteração da matéria de facto nos termos acabados de expor, a solução jurídica para o caso concreto terá de ser necessariamente diversa da que foi proferida pelo Mmo. Tribunal recorrido. 8. Do facto assente 1. resulta provado a existência de uma conta bancária dos Autores no Banco Réu, 9. Na esteira do contrato de depósito bancário o depositário (Banco) recebe um montante e fica obrigado a restituir outro tanto do mesmo género (aos depositários), conforme dispõe o artigo 1142.º do Código Civil, sendo que o dinheiro depositado se torna propriedade do depositário pelo ato da entrega, conforme dispõe o artigo 1144.º do Código Civil resultando, assim, uma troca da propriedade do montante depositado por um direito de crédito à restituição de igual montante, pelo que, tal transmissão de propriedade é acompanhada da transferência do risco sobre o montante depositado, conforme dispõe o artigo 796.º número 1 do Código Civil. 10. Ora, nos presentes autos estamos perante um contrato-quadro conforme o previsto na aliena i) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro. (REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS DE PAGAMENTO E DA MOEDA ELETRÓNICA). E, nos termos da alínea a) do número 1 do artigo 111.º do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro o prestador de serviços de pagamento tem o dever de “Assegurar que as credenciais de segurança personalizadas do instrumento de pagamento só sejam acessíveis ao utilizador de serviços de pagamento que tenha direito a utilizar o referido instrumento”. E, ainda, nos termos do artigo 113.º do DL n.º 91/2018, de 12 de novembro, caso o utilizador negue ter autorizado uma operação de pagamento efectuada, como é o caso ora em crise é o prestador de serviços de pagamento que terá de “fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço prestado pelo prestador de serviços de pagamento.” – o que salvo o devido respeito não se verificou nos presentes autos, nem tão pouco ficou provado. 11. Tais disposições legais fundamentam-se no pressuposto que “só o prestador do serviço de pagamentos, também fornecedor deste serviço, pode assegurar a operacionalidade do complexo sistema informático utilizado e a regularidade do seu funcionamento, garantindo também a confidencialidade dos dispositivos de segurança que permitem aceder ao instrumento de pagamento”, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo 8903/15.1T8LSB.L1-2, em 10-05-2018, disponível em www.dgsi.pt. 12. Recaem, assim, sobre a Ré, prestadora do serviço, o risco das falhas e do mau funcionamento do sistema, e é da Ré, assim, o ónus da prova de que a operação do pagamento não foi afetada por avaria ou qualquer outra deficiência. O que não foi afastado nos presentes autos. 13. Neste sentido, o Ilustre Professor Calvão da Silva, refere que como resulta das boas regras de conduta impostas por lei aos bancos (cfr. artigos 73º a 75º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras) a prestação de tais serviços “deve ser, não só de qualidade e eficiente, mas também serviço seguro …”(in Direito Bancário, João Calvão da Silva, Almedina, 2002). 14. Acresce, ainda, que se impõe a possibilidade de o utilizador do serviço de pagamento dispor de um conjunto de dispositivos de segurança para a utilização de tais serviços, conforme dispõe a alínea j) do artigo 2.º do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, com vista a identificar o utilizador e verificar a autenticidade do sujeito que contratou tais serviços. Tal segurança no presente caso falhou em toda a linha. 15. Assim, nos termos do artigo 114º do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, é a aqui Ré a única responsável pelo pagamento dos montantes subtraídos aos aqui Autores. 16. Sem prescindir, sempre se dirá, que caso a presente argumentação não se entenda procedente, o que não se concede, deverá ser chamada à presente demanda a mais correta interpretação do número 4 do artigo 115.º do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que se transcreve: “4 - Havendo negligência grosseira do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a (euro) 50.” 17. A existência de avisos, na utilização dos serviços electrónicos – homebaking e MBWAY - será suficiente para qualificar a negligência de uma vítima de fraude como “grosseira”, colocando-a ao nível do “erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável – vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes”. 18. Nos acórdãos da Relação de Lisboa de 15.03.2016 (Relator – Rijo Ferreira) e Relação de Coimbra de 15.1.2019 (Relator - Moreira do Carmo), defende-se mesmo que, “pela própria natureza das coisas”, não se pode “qualificar a conduta de quem fornece credenciais de segurança sujeito a uma prática fraudulenta (‘phishing’,‘pharming’,‘keylogging’)como gravemente negligente”, porquanto “essas práticas fraudulentas são levadas a cabo porque um grande número de pessoas é ludibriado através delas e não apenas as extremamente descuidadas ou incautas; e para uma conduta poder qualificada como grosseiramente negligente ela não pode ser susceptível de ser levada a cabo por um número significativo dos homens médios”. 19. A situação descrita nos autos pelos Autores não se trata de um caso isolado, pois existem queixas semelhantes em relação ao serviço de MBWAY e homebanking. 20. E para uma conduta poder qualificada como grosseiramente negligente ela não pode ser susceptível de ser levada a cabo por um número significativo dos homens médios(…) como várias pessoas “caíram” na mesma situação não podemos, por comparação com o homem comum, dizer que ele agiu de uma forma particularmente negligente 21. Pelo que, fez o Meritíssimo Juiz a quo errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 111.º, 114.º e 115.º do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, bem como do artigo 796.º, 1142.º e 1144.º todos do Código Civil 22. Bem como uma errada interpretação e aplicação do artigo H das condições gerais de utilização do serviço eletrónico de pagamento “MBWAY” e do artigo 798.º do Código Civil. 23. Face aos limites estabelecidos para utilização do seu cartão através do serviço “MB WAY” ao montante diário de 2.500,00€, o saque do qual os Autores foram alvo, ultrapassou em muito o referido montante, 24. Pelo que, ao realizar as referidas operações, a Ré agiu sem qualquer autorização dos Autores à revelia dos seus interesses, em contravenção com todo o contratado, Em violação aberta, clara e plena do princípio da confiança entre cliente / consumidor e entidade bancária, Em violação aberta, clara e plena do dever de guarda e cuidado dos montantes depositados, atentando contra “o respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados” (art 74º RGICSF) e em violação aberta, ostensiva, clara e plena do princípio da boa-fé que deve fundar os contratos, 25. Fazendo, assim, tábua rasa de todas as declarações de vontade dos recorrentes, a Ré violou, assim, o disposto no artigo 227º, 796º, 1142º e 1144º do Código Civil e ainda dos artigos 73º a 75º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, 26. E, ao não dar como provado tais limites, também a sentença em crise e o Meritíssimo Juiz a quo fizeram errada interpretação e aplicação dos artigos 227º, 796º, 798.º, 1142º e 1144º do Código Civil e ainda dos artigos 73º a 75º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. Concluíram, pedindo que seja julgado procedente por provado e, em consequência seja proferido douto acórdão que declare a nulidade da douta sentença, ou caso tal não se entenda, altere a decisão proferida quanto à matéria de facto provada e não provada e também de direito, dos pontos indicados nas presentes alegações e julgue procedente por provada a presente acção. 10. A Apelada Banco 1..., CRL, apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado. 11. Foram observados os vistos legais.
*
II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
*
As questões a decidir, em função das conclusões de recurso, são as seguintes: 1ª Questão- se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto pode ser conhecida e, em caso afirmativo se deve ser alterada; 2ª Questão- se a Apelada deve ser responsabilizada pelos montantes subtraídos da conta bancária dos Apelantes.
**
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: 1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Os autores são titulares da conta bancária nº ..., na ré “Banco 1...”.
2. A autora é titular do cartão bancário nº ..., que se encontra associada à conta de depósitos à ordem com o IBAN ....
3. No dia 2/12/2019, o filho dos autores, através do site “B...”, colocou uma carroçaria de uma carrinha à venda.
4. Por volta das 18:30 horas do mesmo dia, o autor marido foi contactado por um indivíduo desconhecido daquele, através do nº de telemóvel ..., que mostrou interesse em comprar a carroçaria.
5. Dizendo que pretendia pagar imediatamente o valor pedido no anúncio.
6. Pediu para o autor se deslocar a um multibanco, para fazer logo a transferência, o que o autor marido fez, juntamente com o seu filho.
7. O autor marido passou a chamada telefónica ao seu filho, para que este efectuasse as operações no multibanco.
8. O filho do autor, utilizando o cartão bancário referido em 2), introduzindo o código PIN que lhe foi dado a conhecer pelos autores, e seguindo as instruções que lhe foram sendo dadas pelo seu interlocutor, pelas 18:40 horas, aderiu à aplicação MBWay numa caixa automática da rede multibanco.
9. Após, seguindo as instruções que lhe foram dadas pelo seu interlocutor, o filho da autora introduziu o número de telemóvel referido em 4), e inseriu o código PIN com 6 dígitos que lhe foi indicado por aquele.
10. Ficou, em consequência dos actos descritos, aquele número de telemóvel ... associado à aplicação MBWay e ao cartão bancário da autora.
11. Pelas 18:49 horas, foi efectuada, num telemóvel, através da aplicação MBWay, a consulta do saldo da conta bancária da autora, supra identificada.
12. Pelas 19:35 horas, foi ordenada uma transferência bancária, no valor de € 10.000,00, por débito na conta de depósitos à ordem da autora, num telemóvel, através da aplicação MBWay associada ao cartão bancário da autora.
13. Pelas 19:36 horas, foi realizado um levantamento em numerário, no valor de € 200,00, por débito da conta bancária da autora, através da leitura de código QR no ecrã de telemóvel, pelo visor de uma caixa automática da rede multibanco, por intermédio da aplicação MBWay associada ao cartão bancário da autora.
14. Pelas 19:37 horas, foi realizado outro levantamento em numerário, também no valor de € 200,00, por débito da conta bancária da autora, nos mesmos termos descritos em 13).
15. Pelas 20:33 horas do mesmo dia, o filho dos autores deslocou-se novamente a uma caixa multibanco para obter um extracto da consulta dos movimentos de conta dos autores, verificando, então, que tinha sido efectuada uma transferência de € 10.000,00 da conta e dois levantamentos de € 200,00 cada.
16. Movimentos esses que foram efectuados sem autorização e sem conhecimento dos autores.
17. Pelas 21:00 horas do dia em referência, a autora deslocou-se ao Posto Territorial da GNR ..., para apresentação de queixa-crime – cfr. doc. nº 1 junto com a p.i.
18. Correndo o processo de inquérito criminal sob o nº 137/19.2GAOBR no Departamento de Investigação e Acção Penal da Comarca de Aveiro – Secção de Oliveira do Bairro.
19. Ainda no mesmo dia, a autora ligou para a Linha Directa do Grupo Banco 1..., cujo contacto telefónico constava do verso do cartão bancário, relatando o sucedido.
20. Pelas 21:40 horas, o cartão bancário da autora foi bloqueado para realização de quaisquer operações, na sequência daquele contacto telefónico.
21. No dia seguinte – 3/12/2019 – a hora não concretamente apurada, mas sempre depois das 8:30 horas, e pelo menos até às 9:48 horas, os autores deslocaram-se às instalações da agência da ré “Banco 1...” na ..., relatando que tinham sido burlados e que tinham sido realizadas 3 movimentos a débito na sua conta bancária: 2 levantamentos de € 200,00 cada e uma transferência de € 10.000,00, exibindo o talão da consulta de movimentos da conta ao funcionário da ré.
22. Assim que a ré recebeu essa informação dos autores, contactou a “Direcção da Banca Directa – Segurança e Meios de Pagamento” do Grupo Banco 1..., através do envio de correio electrónico, pelas 10:15 horas, no sentido de obter informação detalhada sobre o destino dos valores em causa – cfr. doc. nº 4 junto com a contestação da ré “Banco 1...”.
23. A ré recebeu a informação de que o montante da transferência tinha sido creditado na conta de depósitos à ordem nº ..., titulada por CC e domiciliada na “Banco 1..., CRL”.
24. Imediatamente a seguir, a ré contactou a “Banco 1..., CRL”, tendo sido informada de que a referida CC já tinha realizado o levantamento, em numerário, da quantia transferida, ao balcão da dita Caixa, pelas 8:34 horas do dia 3/12/2019.
25. A ré informou os autores do resultado das diligências encetadas.
26. O serviço de atendimento a clientes da ré “Banco 1...”, presencial e via telefone, funciona todos os dias úteis, das 8:30 às 15:00 horas.
27. Não era possível, através da Linha Directa do Grupo Banco 1..., evitar a realização da transferência ordenada, nem evitar a entrega da quantia transferida.
28. Conforme “Termos e Condições Gerais App MB Way”, publicadas no sítio https://www.mbway.pt/termos-e-condições/, à data de 5/5/2021:
“Cláusula 1ª
Objecto
Os presentes termos e condições gerais destinam-se a regular o acesso e a utilização da Aplicação MB WAY (adiante designada «APP MB WAY»), que é facultada pela A..., S.A. (adiante designada «A...») ao Utilizador por conta do Banco ou Instituição Financeira com a qual aquele contratou a prestação do Serviço MB WAY (adiante, o «Prestador de Serviço MB WAY»).
Cláusula 2ª
Descrição e funções da APP
1. A APP MB WAY consiste numa aplicação informática, desenvolvida pela A..., de autenticação necessária para a utilização do Serviço MB WAY, destinada a dispositivos móveis com sistema operativo iOS, Android e Windows, a qual permite ao Utilizador realizar as funcionalidades disponíveis naquele serviço.
2. A autenticação do Utilizador na APP MB WAY efectua-se através da introdução de um PIN, definido pelo Utilizador, e/ou dado biométrico, consoante a compatibilidade técnica do respectivo dispositivo móvel.
29. Nos termos da Cláusula 3ª, nºs 4 e 5 dos referidos Termos e Condições:
3. “O utilizador é responsável por manter confidenciais todos os códigos de acesso, palavras-passe ou qualquer outra informação pessoal referente à execução da APP MB WAY, não podendo transmiti-los a terceiros.
4. Quaisquer danos que possam emergir da eventual transmissão a terceiros da informação pessoal abrangida no número anterior são da exclusiva responsabibilidade do Utilizador”.
30. O serviço MBWay permite a realização de compras, transferências imediatas, recepção e levantamento de dinheiro e utilização do multibanco, através de um telemóvel, smartphone ou tablet.
31. Para aderir ao MB Way no multibanco, o referido sítio da internet indica dois passos a seguir:
“1º passo – Seleccionar a opção «MB WAY» no MULTIBANCO, inserir o seu número de telemóvel e definir um PIN MB WAY com seis dígitos.
Atenção! Deve sempre assegurar que insere o seu próprio número de telemóvel e o PIN MB WAY deve ser definido por si, sendo este pessoal e intransmissível.
2º passo – Fazer download da app e inserir o número de telemóvel e o PIN MB WAY definidos no MULTIBANCO.
Receberá um sms com código de activação para inserir na app e o serviço fica pronto a ser utilizado.
Os dados de adesão e registo no MB WAY para o utilizador serão sempre o seu número de telemóvel e o PIN MB WAY”.
32. As transferências realizadas através do MBWay são imediatas.
33. A transferência no valor de € 10.000,00, realizada por débito da conta bancária dos autores, através da aplicação MBWay, pelas 19:35 horas do dia 2/12/2019, foi processada automaticamente, na mesma data.
34. Os 3 movimentos a débito, supra referidos, foram realizados através da activação do serviço MBWay, em associação ao cartão bancário da autora e ao número de telemóvel nº ....
35. Tais débitos não se verificaram devido a qualquer avaria técnica ou falha do sistema informático da ré, nem devido a ataque cibernético ou intromissão no sistema informático disponibilizado pela ré “Banco 1...”, nem devido a qualquer falha do serviço prestado pela SIBS.
36. Aquando da activação da aplicação MB Way pelo filho dos autores, cfr. descrito em 8) e 9), no momento da introdução do seu número de telemóvel para associar ao MB Way, surgiu no ecrã da caixa multibanco a seguinte advertência: “Nunca adicione um número que não possui ou desconhece”.
37. O filho dos autores leu a referida advertência, mas, ainda assim, introduziu um número de telemóvel que lhe foi indicado pelo seu interlocutor desconhecido.
38. Antes da activação final da aplicação MB Way, apareceu no ecrã da caixa multibanco o pedido de confirmação do número de telemóvel indicado, com a seguinte advertência: “Confirme o número de telemóvel. Este número ficará associado ao seu cartão bancário e permitirá realizar operações na sua conta bancária”.
39. Advertência esta que o filho dos autores leu.
40. A aplicação MB Way é gerida e pertence à “A..., S.A.”.
2.O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
a) Aquando das operações referidas em 7) a 10) dos Factos Provados, foi pedido ao filho do autor que introduzisse o código ... ou ....
b) Foi-lhe dito que passados trinta minutos, o montante estaria disponível.
c) No dia 3/12/2019, a autora estava nas instalações da ré “Banco 1...” aquando da sua abertura.
d) Os valores referidos em 15) dos Factos Provados foram levantados por DD.
e) A ré “A... SGPS” é a entidade gestora que controla o sistema MBWay.
f) A ré CC encontra-se na posse da quantia de € 10.400,00 retirada da conta dos autores.
**
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[1] São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que quando há impugnação da decisão sobre a matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente os concretos pontos de facto impugnados, pese embora a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados (AUJ nº 12/2023 de 14.11), bem como a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios possa constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita, tal como as concretas passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorra.
Analisadas as conclusões deste recurso, apesar de na Conclusão 1 os Apelantes terem mencionado que o presente recurso visa a impugnação da matéria de facto, não fizeram menção a quaisquer concretos pontos de facto que considerassem incorrectamente julgados, tendo-se limitado na Conclusão 2 a concluir que “andou mal, no entender dos recorrentes, a sentença quando considerou não provados factos que deveria ter considerado provados”, omitindo qualquer referência a qual ou quais dos factos se estavam a referir, omissão que não cabe a este Tribunal suprir nem convidar a corrigir.
O legislador impôs no referido dispositivo legal que o recorrente de forma cabal, expressa e clara, concretize os pontos de facto de que discorda, necessariamente por referência ao elenco dos pontos de facto elaborado pelo tribunal quanto aos factos provados e quanto aos factos não provados, ou então por referência aos artigos dos articulados onde os factos a aditar foram alegados (deve ser concretizada a fonte da factualidade considerada incorrectamente julgada).[2]
Ora os Apelantes não fizeram constar das conclusões de recurso quais os concretos pontos de facto que alegadamente terão sido dados como não provados e deveriam ter sido considerados provados, isto é, quais desses pontos de facto consideravam incorrectamente julgados, tendo-se limitado a impugnar genericamente os factos dados como não provados, desconhecendo-se totalmente se se referem a todos ou a alguns deles e neste último caso de quais discordam, não estando atribuída a este Tribunal de 2ª Instância tal destrinça.
Foi exigência expressa do legislador que o recorrente concretizasse nas conclusões de recurso os pontos de facto impugnados sob pena de rejeição (ónus primário insuprível), tendo presente que a tarefa do recorrente é incomensuravelmente mais simples, bastando-lhe dizer o número ou a alínea do facto impugnado por referência ao elenco vertido na sentença recorrida ou aos articulados.
Tal como exemplarmente sintetiza o Ac STJ de 19.01.2023, “entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no nº 1 do art. 640ºdo Código de processo Civil, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões de recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados.
(…)Em decisões sobre o modo de exercício dos poderes previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2 [4].
(…) o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:
Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [5]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [6]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” [7]. Se as conclusões de recurso balizam o conhecimento do tribunal ad quem, compreende-se a exigência de nelas constarem os concretos pontos de facto impugnados,sob pena de poder ser apreciado algum ponto de facto com o qual a parte recorrente se conformou, desvirtuando-se o principio da auto-responsabilidade das partes.”[3]
Por conseguinte, a especificação dos concretos pontos de facto cuja impugnação pretende o recorrente, deve constar das conclusões recursórias, sob pena de rejeição imediata do recurso da impugnação da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto no art. 640º do CPC (omissão absoluta).[4] Afigura-se-nos que é precisamente essa omissão que ocorre no presente recurso, não constando das conclusões de recurso os concretos pontos de facto impugnados.
Já Abrantes Geraldes ensina, de forma lapidar, “A rejeiçãototal ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b)Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc); d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação; f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos.
Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”[5]
O que ressalta das conclusões de recurso dos Apelantes é que descuraram totalmente o ónus de impugnação imposto pelo referido art. 640º nº 1 al. a) do CPC.
E, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, contrariamente ao recurso da matéria de direito (art. 639º nº 3 do CPC), não existe a faculdade de ser prolatado despacho de aperfeiçoamento, não podendo o efeito da rejeição previsto no art. 640º do CPC ser precedido de convite ao aperfeiçoamento.[6]
Deste modo, rejeita-se o recurso relativo à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não provada, não se conhecendo da mesma, por total omissão de cumprimento do ónus consagrado no art. 640º al. a) do CPC.
A propósito da decisão sobre a matéria de facto os Apelantes pugnaram ainda pelo aditamento aos factos provados do seguinte facto:
“Os Autores fixaram como limite máximo diário de transferências o montante de €2.500,00 (mil euros) na plataforma MBWAY no seu terminal próprio.”
Defendem que do documento junto aos autos pela Ré Banco 1... (doc. Nº 11 junto com a contestação) resulta que, para pagamentos através do serviço de MBWAY estava previsto um limite de 2.500,00, limite esse de que a sentença recorrida não conheceu.
Ora este facto que os Apelantes agora pretendem introduzir na presente ação jamais foi por eles alegado anteriormente à interposição deste recurso, e como tal o tribunal a quo não podia ter aditado tal matéria de facto sob pena de violação do art. 5º nº 1 do CPC.
Os factos atendíveis na sentença devem ser apenas e só os alegados pelas partes, sem prejuízo da consideração dos factos instrumentais, complementares ou concretizadores verificado que se mostre o condicionalismo exigido pelo nº 2 desse preceito legal, o que não ocorre no presente caso desde logo porque consubstanciava um facto essencial à viabilidade, ainda que parcial, da pretensão dos Autores e que por estes não foi oportunamente alegado.
Também se diga que os documentos se destinam apenas e só à demonstração de factos oportunamente alegados pelas partes nos respectivos articulados, não suprindo a falta dessa necessária alegação factual.
Deste modo, não se admite a pretendida ampliação dos factos provados. Responsabilidade da Apelada pelos montantes subtraídos da conta bancária dos Apelantes
Afigura-se-nos correcto o enquadramento jurídico assumido na sentença recorrida, e não questionado pelos Apelantes, de subsunção do caso sob apreciação ao Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica aprovado pelo DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro.
Como decorre do sumário do referido diploma legal “a segurança dos pagamentos eletrónicos afigura-se como um aspecto fundamental para assegurar a proteção dos utilizadores e a promoção adequada do desenvolvimento do comércio eletrónico em condições concorrenciais”, e o equilíbrio entre estes dois interesses exige a adopção de medidas de segurança suficientes pelos prestadores de serviços de pagamento à distância para “proteger a confidencialidade e integridade das credenciais de segurança personalizadas dos utilizadores desses mesmos serviços, mediante a exigência de uma autenticação forte do cliente nos serviços de pagamento através de canais à distância (internet, Mbway…), de modo que o utilizador esteja sempre informado do que está a autorizar.
Sob o Capítulo III constam os direitos e obrigações relativamente à prestação e utilização de serviços de pagamento, isto é, os direitos e obrigações dos prestadores de serviços dessa natureza, bem como os direitos e obrigações dos respectivos clientes/utilizadores.
As obrigações do prestador de serviços de pagamento associadas aos instrumentos de pagamento estão consagradas no art. 111º, enquanto que as obrigações do utilizador desses mesmos serviços estão consagradas no art. 110º do DL 91/2018.
Resulta do art. 103º nº 1 do referido diploma legal a regra elementar de que uma operação de pagamento ou um conjunto de operações de pagamento só se consideram autorizados se o ordenante consentir na sua execução, sendo que o consentimento pode ser retirado pelo ordenante em qualquer momento, mas nunca depois do momento de irrevogabilidade estabelecido nos termos do art. 121º.
Esse consentimento poderá passar pela entrega a terceiros, pelo utilizador desses serviços, do cartão associado à sua conta bancária com o fornecimento simultâneo das credenciais necessárias à autenticação (vulgo código PIN) ou mesmo pela permissão remota de acesso à sua conta a um terceiro através, designadamente, de aplicações de pagamento instaladas em telemóveis, como é o caso do MBWAY.
A forma de o prestador do serviço de pagamento associado ao instrumento de pagamento se assegurar que a operação de pagamento foi autorizada é através da prova da autenticação da operação pelo ordenante, ou por alguém em seu nome, alguém a quem este tenha porventura concedido o instrumento de pagamento e as credenciais de segurança (apesar de o utilizador estar obrigado a preservar a segurança das suas credenciais de segurança personalizadas- art. 110º nº 2 do DL 91/2018), sendo legítimo que o prestador do serviço assuma ter sido dado pelo utilizador a necessária autorização à operação quando a autenticação introduzida tiver sido a autenticação correcta.
Não obstante, este regime jurídico impõe sobre o prestador do serviço um considerável ónus de prova no caso de o utilizador negar ter autorizado determinada operação, conforme se extrai do art. 113º do DL 91/2018, que consagra as regras de prova de autenticação e execução da operação de pagamento:
i. incumbe ao respetivo prestador do serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada;
ii. incumbe-lhe fornecer prova de que essa operação de pagamento não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço por si prestado;
iii. a prova da utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços de pagamento não é necessariamente suficiente, por si só, para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta, ou que não cumpriu, com dolo ou negligência grosseira, uma ou mais obrigações previstas no artigo 110.º;
iv. nessas situações, o prestador de serviços de pagamentodeve apresentar elementos que demonstrem a existência de fraude, de dolo ou de negligência grosseira da parte do utilizador de serviços de pagamento.
Esta última hipótese, cujo ónus de prova também compete ao prestador do serviço de pagamento, enquanto fundamento excludente da sua responsabilidade, está assim contemplada expressamente no art. 115º nº 4 do mesmo DL 91/2018, segundo o qual, “havendo negligência grosseira do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a (euro) 50.”
Deste modo, tendo os Apelantes alegado não terem autorizado os movimentos a débito na sua conta bancária, movimentos esses identificados nos autos (o que veio a ser dado como provado sob o ponto 16 dos factos provados) apenas deverão suportar as perdas resultantes dessas operações não autorizadas se tiverem agido com negligência grosseira, incumbindo essa prova à Apelada.
Tendo presente o regime acima mencionado, resultante da articulação dos arts. 113º e 115º do DL 91/2018, vejamos o que de útil a esse propósito ficou provado nos presentes autos:
-Os Apelantes/autores são titulares da conta de depósitos à ordem com o IBAN ..., na Apelada/Ré Banco 1..., sendo a Apelante/Autora titular do cartão bancário nº ..., que se encontra associada à referida conta bancária;
-No dia 2.12.2019, o Apelante/Autor marido foi contactado por um indivíduo desconhecido daquele, através do nº de telemóvel ..., que mostrou interesse em comprar um bem que aquele colocara à venda no B..., dizendo que pretendia pagar imediatamente o valor pedido no anúncio;
- Esse individuo desconhecido pediu para o Apelante/Autor deslocar-se a um multibanco, para fazer logo a transferência, o que o autor marido fez, juntamente com o seu filho, ao qual passou a chamada telefónica, para que este efectuasse as operações no multibanco;
-O filho do Apelante/Autor, utilizando o cartão bancário da Apelante/Autora, introduzindo o código PIN que lhe foi dado a conhecer pelos autores, e seguindo as instruções que lhe foram sendo dadas pelo seu interlocutor, pelas 18:40 horas, aderiu à aplicação MBWay numa caixa automática da rede multibanco;
- Após, seguindo as instruções que lhe foram dadas pelo seu interlocutor, o filho da autora introduziu o número de telemóvel por aquele fornecido e inseriu o código PIN com 6 dígitos que lhe foi indicado por aquele;
- Em consequência dos actos descritos, aquele número de telemóvel ... ficou associado à aplicação MBWay e ao cartão bancário da autora.
- Pelas 19:35 horas, foi ordenada uma transferência bancária, no valor de € 10.000,00, por débito na conta de depósitos à ordem da autora, num telemóvel, através da aplicação MBWay associada ao cartão bancário da autora;
- Pelas 19:36 horas, foi realizado um levantamento em numerário, no valor de € 200,00, por débito da conta bancária da autora, através da leitura de código QR no ecrã de telemóvel, pelo visor de uma caixa automática da rede multibanco, por intermédio da aplicação MBWay associada ao cartão bancário da autora.
- Pelas 19:37 horas, foi realizado outro levantamento em numerário, também no valor de € 200,00, por débito da conta bancária da autora, nos mesmos termos;
- Pelas 20:33 horas do mesmo dia, o filho dos autores deslocou-se novamente a uma caixa multibanco para obter um extracto da consulta dos movimentos de conta dos autores, verificando, então, que tinha sido efectuada uma transferência de € 10.000,00 da conta e dois levantamentos de € 200,00 cada, movimentos esses que foram efectuados sem autorização e sem conhecimento dos autores;
- Conforme “Termos e Condições Gerais App MB Way”, publicadas no sítio https://www.mbway.pt/termos-e-condições/, à data de 5/5/2021:
“Cláusula 1ª
Objecto
Os presentes termos e condições gerais destinam-se a regular o acesso e a utilização da Aplicação MB WAY (adiante designada «APP MB WAY»), que é facultada pela A..., S.A. (adiante designada «A...») ao Utilizador por conta do Banco ou Instituição Financeira com a qual aquele contratou a prestação do Serviço MB WAY (adiante, o «Prestador de Serviço MB WAY»).
Cláusula 2ª
Descrição e funções da APP
1. A APP MB WAY consiste numa aplicação informática, desenvolvida pela A..., de autenticação necessária para a utilização do Serviço MB WAY, destinada a dispositivos móveis com sistema operativo iOS, Android e Windows, a qual permite ao Utilizador realizar as funcionalidades disponíveis naquele serviço.
2. A autenticação do Utilizador na APP MB WAY efectua-se através da introdução de um PIN, definido pelo Utilizador, e/ou dado biométrico, consoante a compatibilidade técnica do respectivo dispositivo móvel.
Nos termos da Cláusula 3ª, nºs 4 e 5 dos referidos Termos e Condições:
3. “O utilizador é responsável por manter confidenciais todos os códigos de acesso, palavras-passe ou qualquer outra informação pessoal referente à execução da APP MB WAY, não podendo transmiti-los a terceiros.
4. Quaisquer danos que possam emergir da eventual transmissão a terceiros da informação pessoal abrangida no número anterior são da exclusiva responsabibilidade do Utilizador”.
30. O serviço MBWay permite a realização de compras, transferências imediatas, recepção e levantamento de dinheiro e utilização do multibanco, através de um telemóvel, smartphone ou tablet.
31. Para aderir ao MB Way no multibanco, o referido sítio da internet indica dois passos a seguir: “1º passo – Seleccionar a opção «MB WAY» no MULTIBANCO, inserir o seu número de telemóvel e definir um PIN MB WAY com seis dígitos. Atenção! Deve sempre assegurar que insere o seu próprio número de telemóvel e o PIN MB WAY deve ser definido por si, sendo este pessoal e intransmissível.
2º passo – Fazer download da app e inserir o número de telemóvel e o PIN MB WAY definidos no MULTIBANCO.
Receberá um sms com código de activação para inserir na app e o serviço fica pronto a ser utilizado. Os dados de adesão e registo no MB WAY para o utilizador serão sempre o seu número de telemóvel e o PIN MB WAY”.
-As transferências realizadas através do MBWay são imediatas.
-Os 3 movimentos a débito, supra referidos, foram realizados através da activação do serviço MBWay, em associação ao cartão bancário da autora e ao número de telemóvel nº ....
- Tais débitos não se verificaram devido a qualquer avaria técnica ou falha do sistema informático da ré, nem devido a ataque cibernético ou intromissão no sistema informático disponibilizado pela ré “Banco 1...”, nem devido a qualquer falha do serviço prestado pela SIBS. - Aquando da activação da aplicação MB Way pelo filho dos autores, no momento da introdução do seu número de telemóvel para associar ao MB Way, surgiu no ecrã da caixa multibanco a seguinte advertência: “Nunca adicione um número que não possui ou desconhece”. - O filho dos autores leu a referida advertência, mas, ainda assim, introduziu um número de telemóvel que lhe foi indicado pelo seu interlocutor desconhecido. - Antes da activação final da aplicação MB Way, apareceu no ecrã da caixa multibanco o pedido de confirmação do número de telemóvel indicado, com a seguinte advertência: “Confirme o número de telemóvel. Este número ficará associado ao seu cartão bancário e permitirá realizar operações na sua conta bancária”. - Advertência esta que o filho dos autores leu.
Estamos em crer que da referida factualidade resulta evidente que, embora os três movimentos a débito da conta dos Apelantes não tenham sido por estes autorizados, foi a sua conduta que consentiu que tais operações se realizassem, ao terem entregue o cartão bancário ao filho e fornecido o código PIN, permitindo que este, em seu nome e sob orientação do Apelante tivesse associado o número de telemóvel de um perfeito desconhecido à conta bancária dos Apelantes, através da activação da aplicação MBWAY, ao introduzir o número de telemóvel por aquele fornecido e inserido o código PIN com 6 dígitos que lhe fora indicado por aquele.
Ao assim terem procedido os Apelantes deram permissão a um desconhecido para, mediante o número de telemóvel daquele e o PIN também por aquele indicado, poder movimentar a conta bancária dos Apelantes, ordenando operações de transferência e levantamentos a débito daquela conta, movimentos que naquela aplicação são de execução imediata.
Em termos práticos, foi como se os Apelantes tivessem entregue voluntária e conscientemente a um terceiro- deles totalmente desconhecido- o cartão bancário nº ... que se encontra associado à sua conta bancária e as credenciais pessoais de segurança, expondo-se ao risco de verem, como viram, dissipado o dinheiro disponível nessa conta.
Os Apelantes têm a obrigação de saber que é da sua exclusiva responsabilidade a quem concedem a utilização do seu cartão bancário e a quem fornecem as suas credenciais de segurança, e que todos os sistemas de pagamento electrónico têm riscos, assumindo o prestador desse serviço o risco de a operação de pagamento ser afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço por si prestado, mas devendo, por seu turno, o utilizador desse serviço assumir o risco de perda se não cumpriu, designadamente com negligência grosseira, uma ou mais obrigações previstas no artigo 110.º.
Demonstrando o prestador de serviços de pagamentoque existiu negligência grosseira da parte do utilizador de serviços de pagamento deve este arcar com a perda da operação, ainda que não autorizada.
E foi isso que sucedeu no caso sob apreciação, porquanto não podemos deixar de apelidar de inaceitável o comportamento dos Apelantes- ainda que por intermédio do seu filho que actuou na posse legítima e autorizada do cartão bancário e do PIN por aqueles fornecidos-que seguindo as instruções que lhe foram sendo dadas por telefone por um interlocutor perfeitamente desconhecido, aderiram à aplicação MBWAY numa caixa automática da rede multibanco,introduzindo o número de telemóvel por aquele fornecido e inserido o código PIN com 6 dígitos que lhe fora indicado por aquele, estando dado como provado que em consequência dos actos descritos, aquele número de telemóvel ... ficou associado à aplicação MBWAY e ao cartão bancário da autora.
Aquando da activação da aplicação MBWAY pelo filho dos autores, no momento da introdução do seu número de telemóvel para associar ao MBWAY, surgiram no ecrã da caixa multibanco várias advertências no sentido de nunca dever ser adicionado um número de telemóvel que não possuísse ou desconhecesse e, apesar de o filho dos autores ter lido a referida advertência, introduziu um número de telemóvel que lhe foi indicado pelo seu interlocutor desconhecido, e logo depois, antes da activação final da aplicação MB Way, quando apareceu no ecrã da caixa multibanco o pedido de confirmação do número de telemóvel indicado, com a advertência “confirme o número de telemóvel. Este número ficará associado ao seu cartão bancário e permitirá realizar operações na sua conta bancária”, mesmo assim prosseguiu com a operação.
Como já se decidiu de forma assertiva no Ac RP de 10.01.2023, citado na sentença recorrida, “um acto qualificável como negligência grosseira, no âmbito da utilização de um sistema bancário electrónico de pagamentos, corresponde a um erro imperdoável, a uma desatenção inexplicável, a uma incúria inaceitável, por referência ao comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes”; ou como se escreveu no Ac RL de 24.1.2023, “exigindo-se um nível de falta de cuidado mais elevado, um descuido ou desmazelo inadmissível para qualquer pessoa colocada naquela situação.”[7]
A situação factual subjacente ao citado Acórdão desta Relação do Porto é praticamente em tudo similar ao que aqui nos cumpre decidir, sendo transponível para o caso aqui sob apreciação, e como com ele concordamos inteiramente, acompanhamos de perto o que nele se decidiu ao qualificar como “negligência grosseira a conduta do utilizador de um serviço electrónico de pagamentos que, sob instruções de um desconhecido e a propósito de uma venda que pretendia fazer-lhe, usando o seu cartão multibanco e o respectivo PIN de autenticação, substitui o seu próprio número de telefone associado a tal serviço pelo número de telefone desse desconhecido, em violação das condições de utilização do serviço e ignorando avisos em contrário, com o que permite que esse desconhecido aceda à sua conta bancária, dali levantando dinheiro e fazendo transferência de fundos.”[8]
Deste modo, não há como discordar do entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, que também sufragamos, de que aquela actuação dos Apelantes infringiu as suas obrigações de utilizador do serviço de pagamento, nos termos do art.110º nº 1 al. a) do D.L. 91/2018, violando as condições de utilização da aplicação MBWAY, não preservando a segurança das suas credenciais de segurança personalizadas, pessoais e confidenciais, actuando de forma no mínimo inexplicavelmente descuidada ou incauta, ao desconsiderar inclusivamente advertências expressas e claras do sistema tendo em vista a salvaguardar da segurança dos utilizadores, não podendo os Apelantes alegar desconhecerem as consequências da actuação contrária às condições de utilização do sistema de pagamento em causa porque lhe foram comunicadas de forma clara no próprio sistema ao longo da activação do serviço MBWAY, estando em condições de poder e dever actuar de forma diferente e tendo optado por não o fazer, comportando-se desse modo, no mínimo, com negligência grosseira.
Henrique Sousa Antunes escreve que “uma classificação de origem romana distingue as situações de desleixo ou imprudência (negligência) entre culpa grave ou lata, leve e levíssima.(…) A falta de diligência do bom pai de família constitui a culpa leve. A inobservância do cuidado que apenas uma pessoa com diligência acima da média revelaria constitui uma culpa levíssima. É culpa grave a atuação que configure uma diligência inferior àquela «que até os homens medianamente negligentes adotam»(Vaz Serra)”[9]
Refere ainda I. Galvão Telles que “quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida. A culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira (…). “[10]
Também Ana Prata defende que culpa grave é o mesmo que “negligência grosseira, erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável – vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes”.[11]
Ainda que os Apelantes pudessem não ter grande conhecimento do modus operandi deste tipo de aplicações informáticas (o que nem sequer resulta demonstrado) certo é que o aviso reiterado por parte do sistema aquando da activação da aplicação MBWAY no sentido de não ser introduzido um número de telemóvel que não fosse o seu, com expressa advertência de que o número ficaria associado ao seu cartão bancário e permitiria realizar operações na sua conta bancária, seria o bastante para que o comum das pessoas, mesmo das mais descuidadas e desatentas, não prosseguissem com a operação em causa.
Deste modo, não temos dúvidas que tendo lido aquelas advertências e mesmo assim prosseguido com a associação de um número de telemóvel de uma pessoa totalmente desconhecida, o seu modo de proceder redunda num comportamento intolerável e indesculpável.
Não há dúvida de que os Apelantes incorreram num erro induzido por terceiros, mas foi um erro de “palmatória”, um erro cometido por quem foi advertido dos riscos pelo prestador de serviços de pagamento e mesmo assim decidiu ignorar os avisos, assumindo uma actuação displicente e violadora das mais elementares regras de cuidado e segurança.
Actuando o utilizador do sistema dessa forma grosseiramente negligente, é o próprio regime jurídico que não permite que a perdaresultante de operações de pagamento não autorizadas lhe deva ser reembolsada pelo prestador do serviço, impondo que ela seja suportada pelo próprio utilizador, numa situação equiparável à culpa do lesado estabelecida nos termos gerais em sede de responsabilidade civil.
Não seria adequado nem proporcional, à luz dos princípios gerais do direito, que actuando o utilizador com culpa a título de negligência grosseira, pudesse ainda assim fazer repercutir essa perda sobre o prestador do serviço.
Perante o quadro factual vertido na sentença recorrida também não podemos concluir pela violação por parte da Apelada dos deveres de conduta, diligência e competência determinados nos arts. 73º a 75º do RGICSF, porquanto quem não actuou com a diligência que se lhe impunha e quem quebrou a segurança do sistema foram os próprios Apelantes, que por sua exclusiva incúria e leviandade concederam a um terceiro o livre acesso à sua conta bancária, permitindo-lhe mobilizar o saldo nela existente, não estando demonstrada qualquer conduta da Apelada que tenha causado ou sequer contribuído para as perdas por aqueles sofridas.
Os Apelantes podem e devem actuar, como parece já o terem feito, no sentido de responsabilizaram quem de forma indevida se locupletou à sua custa, não sendo a sua argumentação recursiva bastante para responsabilizarem também a aqui Apelada.
Finalmente, impõem-se umas breves considerações quanto à questão introduzida pelos Apelantes na Conclusão 23 (já aflorada nas Conclusões 4 a 6 a propósito da pretensão de aditamento à matéria de facto, que foi julgada improcedente) acerca de a Apelada ter agido à revelia dos interesses dos Apelantes, em contravenção com o contratado, alegadamente porque face ao limite estabelecido para utilização do seu cartão através do serviço MBWAY ao montante diário de 2.500,00, o saque do qual foram alvo teria ultrapassado em muito o referido montante.
Essa questão está votada ab initio ao insucesso, desde logo porque os Apelantes nunca alegaram, como já referimos anteriormente, a existência de qualquer limite diário acordado com a Apelada para operações realizadas na aplicação MBWAY, até porque tal aplicação não é gerida ou detida pela aqui Apelada (ponto 40 dos factos provados) e como tal aquela afirmação não encontra respaldo na factualidade dada como provada.
Por conseguinte, também sobre ela não poderia o tribunal a quo ter-se pronunciado, não existindo da sua parte qualquer omissão de pronúncia, como parecem sustentar os Apelantes (apesar de não terem arguido em sede de conclusões a nulidade da sentença, que não é de conhecimento oficioso) e não o tendo feito, nem lhe tendo sido colocada tal questão para decisão, a mesma não foi apreciada na sentença recorrida e sempre consubstanciaria nesta sede de recurso uma questão nova, não podendo consequentemente ser conhecida por esta Instância.
Assim sendo, enquanto questão nova, dela não pode tomar conhecimento este Tribunal, que se limita a reapreciar decisões proferidas pelo tribunal recorrido, não podendo conhecer de questões não antes conhecidas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, o que não sucede neste caso (neste sentido, o recente Ac STJ de 2.02.2023, Proc. Nº 314/19.6YHLSB.L2.S1, www.dgsi.pt).
A esse propósito, entre outros, escreve A. Abrantes Geraldes que, “(…) a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação, que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame no sentido da repetição da instância no tribunal de recurso.”[12]
Também F. Amâncio Ferreira refere que, (…) vem a nossa jurisprudência repetidamente afirmando que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.”[13]
Em suma, tendo a Apelada logrado fazer prova de que as operações a débito na conta dos Apelantes foram autenticadas, devidamente registadas e contabilizadas, tendo sido autorizadas pelo ordenante, mediante a utilização do instrumento de pagamento registado pelo prestador de serviços de pagamento (pontos 8 a 10 e 34 dos factos provados), que a operação não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço por si prestado (ponto 35 dos factos provados) e que tais operações tiveram como causa uma actuação com negligência grosseira por parte dos Apelantes, mostram-se preenchidos os pressupostos do art. 115º, nº 4 do D.L. 91/2018 cabendo, consequentemente, aos Apelantes suportar as perdas verificadas e reclamadas nestes autos.
Perante a improcedência dos argumentos recursivos confirma-se a sentença recorrida.
**
V. DECISÃO: Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes,confirmando-se a sentença recorrida. Custas a cargo dos Apelantes, que ficaram vencidos. Notifique.
Porto, 25.02.2025
Maria da Luz Seabra
Alberto Taveira
Anabela Miranda
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
______________ [1] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência [2] Neste sentido Ac STJ Proc nº 28533/15.7T8PRT.P1.S1, www.dgsi.pt [3] Proc. Nº 3160/16.5T8LRS-A.L1.S1, www.dgsi.pt [4]Ac STJ de 6/7/2022, Proc. Nº 28533/15.7T8PRT.P1.S1; Ac STJ de 17/11/2020, Proc. Nº 846/19.6T8PNF.P1.S1; Ac STJ de 11/9/2019, Proc. Nº 42/18.0T8SRQ.L1.S1; Ac STJ de 7/7/2016, Proc. Nº 220/13.8TTBCL.G1.S1; Ac STJ de 8/10/2019, Proc. Nº 3138/10.2TJVNF.G1.S2; Ac STJ de 13/11/2019, Proc. Nº 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1, www.dgsi.pt [5] Recursos no Novo CPC, 2ª edição, pág. 135 [6] Neste sentido Abrantes Geraldes, Ob. Cit, pág. 134; Ac STJ de 19/12/2018, Proc. Nº 2364/11.1TBVCD.P2.S2; Ac STJ de 2/6/2016, Proc. Nº 781/07.0TYLSB.L1.S1, www.dgsi.pt [7] Proc nº 16151/20.2T8LSB.L1.S1, www.dgsi.pt [8] Proc nº 1053/20.0T8MAI.P1, www.dgsi.pt [9] Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, UCP, pág. 302/303 [10] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 349-350 [11] Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, págs. 306 a 308 e 643 [12] A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 139 e 140 [13] Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147