LIVRANÇA EM BRANCO
RASURA
VALIDADE
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

I - Não afecta a validade nem a eficácia de uma livrança, enquanto título cambiário, a circunstância de, aquando do seu preenchimento, se ter rasurado o símbolo escudo [$] para o substituir pelo símbolo euro [€], uma vez que essa livrança foi emitida em branco quando ainda se encontrava em curso o escudo e foi preenchida (de acordo com o pacto celebrado) com a inserção da quantia em dívida quando já se encontrava em vigor o euro;
II – A sentença proferida em acção de impugnação pauliana pode constituir título executivo, na medida em que tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento do crédito do impugnante, desde que contenha os requisitos de exequibilidade necessários à determinação dos limites objectivos e subjetivos da pretensão executiva ou que seja completada, no requerimento executivo, pelos documentos que permitem a execução da dívida, nos termos do art.º 703.º do CPC;
III – Tendo a executada/embargante sido parte na acção de impugnação de onde emerge a sentença exequenda, não pode a mesma discutir, em embargos de executado, a existência e/ou extensão do crédito exequendo que foi reconhecido na referida sentença, em face do disposto no art.º 729.º do CPC.

Texto Integral

Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. A, S.A., veio, mediante embargos de executado, deduzir oposição à execução para pagamento da quantia de € 827.612,62, acrescida de juros vincendos, que lhe moveu o Banco, S.A., e que tem por base a sentença, transitada em julgado, que declarou a ineficácia dos contratos de doação celebrados entre os doadores (C e T) e a donatária (R, filha dos doadores) e das compras e vendas à executada/embargante.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- a livrança em que se alicerçou a procedência da impugnação pauliana padece de vício formal (rasura de escudos para euros), que determina a nulidade da mesma como título de crédito;
- tal facto impede o preenchimento legal da livrança em branco, uma vez que não foi previsto no pacto de preenchimento a adulteração do título;
- a quantia exequenda encontra-se incorrectamente calculada: o capital em dívida à data do incumprimento da obrigação era de € 648.437,26 e a exequente contabilizou juros sobre juros, na medida em que a quantia aposta na livrança já inclui juros.
Concluiu a sua petição de embargos, pedindo que «…a presente oposição ser julgada procedente por provada (ser decretada a nulidade do título de crédito que sustenta o titulo executivo e bem assim do pacto de preenchimento de livrança em branco) e a oponente absolvida do pagamento da quantia exequenda ou caso assim não se entenda, que se julgue procedente o pedido de que a oponente não é responsável pelo pagamento da quantia exequenda peticionada no requerimento executivo por ser excessiva e conter juros calculados sobre juros, reduzindo-se a quantia exequenda nessa parte e em consequência eliminando-se os juros calculados em excesso e por isso não devidos».
1.2. O exequente/embargado contestou, propugnando pela improcedência dos embargos, alegando, em suma, que:
- o título executivo dado à execução não é a livrança, mas a sentença proferida na acção declarativa, pelo que não faz qualquer sentido discutir qualquer tipo de vício formal de um título de crédito, que nem sequer foi invocado pelos obrigados cambiários;
- a sentença exequenda dá como assente a existência do crédito, pelo que a embargante, que foi R. nesse processo, não pode invocar uma pretensa nulidade formal para colocar em causa a existência desse crédito;
- a jurisprudência é unânime em considerar que não constitui qualquer vício de forma do título de crédito a alteração do símbolo de Escudos para Euros;
- o exequente limita-se a calcular juros à taxa de 4% sobre o capital cambiário, sendo que a embargante confunde juros da relação subjacente com os juros cambiários.
1.3. Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que julgou os embargos improcedentes e ordenou o prosseguimento da execução nos precisos termos em que foi instaurada.
1.4. Inconformada, apelou a executada/embargante, pedindo que seja «revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a procedência dos embargos e a consequente extinção da execução», alinhando, para tanto, as seguintes conclusões:
«a) Por não resultar da sentença declarativa que compõe o título executivo dado à execução destes autos (juntamente e concatenado à livrança adulterada), qualquer condenação expressa da ora recorrente (embargante) no cumprimento de qualquer obrigação de conteúdo pecuniário é que teria que existir um especial cuidado na análise da livrança e da sua validade, o que salvo o devido respeito, parece não ter sucedido, na medida em que se limita a decisão recorrida a referir que somente se tratou, in casu, de uma mera alteração do símbolo da moeda de “escudo português” para “euro”, em violação absoluta do próprio pacto de preenchimento e da sua autorização. Não obstante a recorrente não ser interveniente no contrato de crédito e no título cambiário e seu pacto de preenchimento, consegue aventar (por análise a esse pacto junto pelo exequente) que o exequente, aqui recorrido, não tinha autorização para adulterar a livrança nomeadamente alterar a fração monetária ou a moeda nele expressa, não se tratando de ume mera alteração de moeda, mas sim, verdadeiramente, de uma adulteração do título cambiário castigada sob a forma mais grave de nulidade, inutilizando-o. Deveria o embargante previamente à adulteração que impôs ao título cambiário, ter interpelado os titulares do contrato de crédito ou obrigações adjacentes para outorgarem um aditamento ao contrato e ao pacto de preenchimento da livrança, procedendo à sua substituição por uma nova livrança ou em alternativa ter ocorrido consentimento para essa atualização (da livrança), por parte dos titulares devedores dessa obrigação (materializada nesse título de crédito).
b) Foi violada pela decisão recorrida, o n.º 2 do art.º 75.º da LULL na medida em que quando refere uma quantia determinada, tem esta de ser expressa numa moeda, não podendo colher a interpretação da decisão recorrida de que é inócua essa moeda e que não compõe essa previsão, quando na realidade a interpretação a conferir a essa norma é a de que nessa menção “2. A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada;” está incluída a fração monetária / moeda.
c) A recorrente alegou que a quantia exequenda continha cálculo de juros sobre juros e a decisão recorrida nada refere quanto a essa alegação, evitando a decisão sobre essa alegação, escudada na não previsão do art.º 729.º do CPC. Esta omissão decisória íntegra a nulidade de questão que foi colocada ao Tribunal e não foi analisada, não logrando ser de aceitar a justificação / argumentação de que não cabe na previsão legal do art.º 729.º do CPC, até porque não se trata de uma dúvida (como refere a decisão recorrida), mas sim da análise de alegação que contende intrinsecamente com a constituição da obrigação da recorrente e que compõem a quantia exequenda.
d) Está errada a interpretação da decisão quanto a esta norma e o sentido com que deve ser interpretada é o de que por via de embargos, pode a executada questionar a composição da quantia exequenda na medida em que é a base da sua obrigação (materializada em sentença, título executivo, etc.)».
1.5. O exequente/embargado contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão recorrida e formulando as seguintes conclusões:
«1. Não figura nos requisitos a que a livrança deve obedecer a exigência de que o valor nela aposto deva ser expresso em moeda em curso no momento da emissão.
2. Não cabe à Embargante, que não se encontra no âmbito das relações imediatas com o Exequente, suscitar excepções relacionadas com a relação subjacente à livrança ou com o seu eventual abuso de preenchimento.
3. Devendo assim ser confirmada a decisão recorrida».
1.6. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem em saber:
a) se a sentença é nula por omissão de pronúncia quanto à questão relativa ao cálculo de “juros sobre juros”;
b) se a alteração do símbolo da moeda “escudo português” para “euro” constitui uma alteração do título cambiário, geradora de nulidade do mesmo;
c) se a decisão recorrida fez errada interpretação do art.º 729.º do CPC e se a executada/embargante pode questionar a “composição da quantia exequenda”.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. A sentença sob recurso considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1 – Por sentença datada de 20.09.2017, transitada em julgado, na acção declarativa sob a forma de processo comum n.º  …, do Juízo Central Cível de … – Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi declarada a ineficácia dos contratos de doação celebrados entre os doadores (C e T) e a donatária (R, filha dos doadores) e das compras e vendas à sociedade A, S.A., conforme certidão judicial cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. (Doc. 1 junto ao requerimento executivo).
2 – Resultou provado na referida sentença o seguinte:
“A) Factos Provados Petição Inicial
1. Em 19 de Abril de 2013, mediante escritura pública de doação com reserva de uso e habitação vitalício, os 1º e 2ª RR. doaram à 3ª R. R as seguintes fracções autónomas:
a) Fracção autónoma (…);
b) Fracção autónoma (…);
c) Fracção autónoma (…) (Doc. n.º 1 – fls. 16 a 18).
2. A referida escritura foi efectuada no Cartório Notarial da Dra. …, sito na Avenida … (Doc. nº 1 – fls. 16 a 18).
3. Consta da referida escritura o seguinte:
“PELO PRIMEIRO OUTORGANTE FOI DITO: Que, por esta escritura, por conta da sua quota disponível, e reservando simultânea e sucessivamente para si e para o seu referido cônjuge, o direito de uso e habitação vitalício, só terminando por morte do último, faz doação a sua filha, R, a ora segunda outorgante:
UM – Da fracção autónoma (…) com o valor patrimonial de 544.355,50 €, correspondendo ao referido direito o valor de 272.177,50 € a que atribui igual valor.
DOIS – Da fracção autónoma (…), com o valor patrimonial de 10.364,63 €, correspondendo ao referido direito o valor de 5.182,32 €, a que atribui igual valor.
TRÊS – Da fracção autónoma (…), com o valor patrimonial de 10.364,63 €, correspondendo ao referido direito o valor de 5.182,32 €, a que atribui igual valor, todas pertencentes ao prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida (…), afecto ao regime da propriedade horizontal (…) com a aquisição de cada uma das referidas fracções registada na citada Conservatória a favor do primeiro outorgante, pela apresentação (…). Que atribui à doação o valor de duzentos e oitenta e dois mil quinhentos e quarenta e dois euros e catorze cêntimos.
E, PELA SEGUNDA OUTORGANTE, FOI DITO:
Que aceita a doação de seu pai, nos termos exarados.
E, PELA TERCEIRA OUTORGANTE, FOI DITO:
Que, constituindo a identificada fracção autónoma “A”, casa de morada de família, presta ao seu consorte o consentimento necessário à plena validade do presente acto. (…)
O valor do direito de uso e habitação, e da nua propriedade foram calculados nos termos das alíneas a) e b) do Art.º 13º do CIMT.” (Doc. n.º 1 – fls. 16 a 18).
4. A doação foi registada na Conservatória do Registo Predial respectiva, sob a Ap. 694, de 2013/05/10, e o direito de uso e habitação, sob a Ap. 695, de 2013/05/10 (Doc. n.º 2 – fls. 18-v a 23-v).
5. Por sua vez, em 30 de Dezembro de 2013, mediante documento particular autenticado elaborado no escritório sito na Rua …, perante o Ilustre Advogado AR…, detentor da cédula profissional n.º …, os 1º, 2º e 3º RR. venderam a fracção “…” à 4ª R. A, S.A. (Doc. n.º 5 – fls. 35-v a 38).
6. A 3ª R. R assinou o referido documento na qualidade de vendedora e proprietária da fracção (…), e na qualidade de administradora da sociedade adquirente A, S.A. (Doc. n.º 5 – fls. 35-v a 38).
7. Os 1º e 2ª RR. outorgaram o referido documento na qualidade de vendedores e titulares do direito de uso e habitação da fracção (…) (Doc. n.º 5 – fls. 35-v a 38).
8. No referido contrato de compra e venda, pelos 1º, 2ª e 3ª RR. foi dito que “são detentores do direito de uso e habitação e da plena propriedade respectivamente, de uma fracção autónoma identificada pela letra (…).
Pelo presente contrato, vendem à sociedade representada da segunda outorgante a supra identificada fracção autónoma, pelo preço total de euros onze mil euros, do qual euros cinco mil e quinhentos euros relativos à nua propriedade e igual montante relativamente ao direito de uso e habitação, preço esse que a mesma declara ter recebido, dando a respectiva quitação.
Declara a segunda outorgante que, para a sociedade sua representada, aceita a compra e venda nos termos acima referidos e que destina a fracção objecto do presente contrato a fins e revenda.” (Doc. n.º 5 – fls. 35-v a 38)
9. A aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial respectiva, sob a Ap. 866, de 2014/01/13, e o registo ficou provisório por dúvidas (Doc. n.º 2 – fls. 18-v a 23-v).
10. Em 4 de Março de 2015, mediante documento particular autenticado elaborado no escritório sito na Rua …, perante o Ilustre Advogado AR…, detentor da cédula profissional n.º …, a 3º R. vendeu as fracções “…” e “…” à 4ª R. A, S.A. (Doc. n.º 3 – fls. 24 a 30).
11. A R. R assinou o referido documento na qualidade de vendedora e proprietária das fracções em causa e na qualidade de administradora da sociedade compradora A, S.A. (Doc. n.º 3 – fls. 24 a 30).
12. No referido “contrato de compra e venda e renúncia ao direito de uso e habitação” foi consignado o seguinte:
“1. Pelo segundo outorgante foi dito que renuncia ao direito de uso e habitação de que é titular relativamente às fracções autónomas identificadas pelas letras (…).
2. Que pela primeira outorgante foi dito que é dona e legítima proprietária das mencionadas fracções identificadas pelas letras "..." e "...". Que, pelo presente contrato e pelos preços de respectivamente, 558.000,00 (…) para a fracção autónoma identificada pela letra "…" e de 11.000,00 (…) para a fracção autónoma identificada pela letra "…", logo pelo valor total de 569.000,00, vende as fracções supra identificadas à sociedade sua representada A, S.A., valor esse que a sua representada já recebeu a da qual dá a respectiva quitação, aceitando nessa qualidade para a sua representada a compra e venda nos termos supra.” (Doc. n.º 3 – fls. 24 a 30)
13. A aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial respectiva sob a Ap. 4331, de 2015/03/23, convertida em definitiva pela Ap. 4347, de 2015/04/24 (Doc. n.º 2 – fls. 18-v a 23-v).
14. A 4ª R. A, S.A., foi constituída em 21/11/2003 pelos 1º e 2º RR., como sociedade por quotas, com a designação A, Lda., com sede na Rua … e com o seguinte objecto social: “Fabrico, importação, exportação e comércio a retalho e por grosso de produtos alimentares frescos e congelados, gestão imobiliária, incluindo a aquisição de imóveis para revenda, a manutenção e exploração de imóveis e a prestação de serviços conexos.” (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v)
15. A referida sociedade foi constituída inicialmente com o capital social de € 100.000,00, distribuído da seguinte forma:
“SÓCIOS E QUOTAS:
QUOTA: 80.000,00 Euros
TITULAR: C
QUOTA: 20.000,00 Euros
TITULAR: T” (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v)
16. À data da sua constituição a gerência era exercida pelos 1º e 2ª RR. (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v).
17. Em 2008 a sociedade em causa passou a ter o seguinte objecto social: “Como actividade principal na compra, venda e arrendamento de bens imobiliários, actividades imobiliárias por conta de outrem, e, como actividade secundária, no comércio por grosso e a retalho, armazenagem, importação e exportação, transportes rodoviários de produtos alimentares e outros n.e., preparação e conservação de peixes, crustáceos e moluscos, restauração e similares”. (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40- v).
18. Em 2009 a mesma sociedade alterou o seu objecto social para: “Preparação de produtos da pesca e da aquicultura e comércio por grosso e a retalho de produtos alimentares frescos e congelados. Compra e venda de imóveis, bem como o seu arrendamento, gestão ou manutenção e prestação de serviços conexos.” (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v)
19. Em 31/07/2013 o 1º R. dividiu a sua quota em 4 quotas, no valor de € 20.000,00 cada, ficando o capital da referida sociedade dividido da seguinte forma:
- Quota de € 20.000,00 – R;
- Quota de € 20.000,00 – F;
- Quota de € 20.000,00 – C;
- Quota de € 20.000,00 – J;
- Quota de € 20.000,00 – T (Doc. n.º 6 – fls. 38- v a 40-v).
20. Em 31/07/2013 os 1º e 2º RR. decidiram transformar a referida sociedade em Sociedade Anónima, tendo o nome da firma sido alterado para A, S.A. (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v).
21. E passando a mesma a ter como objecto social a compra, venda de imóveis, revenda de imóveis adquiridos para esse fim, arrendamento, gestão e manutenção de imóveis (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v). 22. A 3ª R., filha dos 1º e 2ª RR., foi nomeada nessa mesma altura para exercer o cargo de Administrador Único da mencionada sociedade (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v).
23. O capital social da sociedade A, S.A., à data da transformação ascendia a € 100.000,00, e era composto por 100 000 acções ao portador, com o valor nominal de € 1,00 (Doc. n.º 6 – fls. 38-v a 40-v)
24. Os 1º e 2º RR. são administradores da sociedade TM – Sociedade Distribuidora de Produtos Congelados, S.A., sociedade constituída em 1985 e com sede na Rua …, Contribuinte Fiscal n.º …, declarada insolvente no âmbito do processo de insolvência de pessoa colectiva n.º …, que corre termos no Tribunal da Comarca de …, Instância Central –… Secção de Comércio – J… (Doc. n.º 7 – fls. 47 a 49).
25. A supramencionada sociedade tinha por objecto o comércio por grosso e a retalho, armazenagem, importação e exportação, transporte rodoviário de produtos alimentares e outros, preparação e conservação de peixes, crustáceos e molúsculos, tendo como actividade secundária a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários, actividades imobiliárias por conta de outrem, construção e similares, com excepção da distribuição de produtos congelados (Doc. n.º 7 – fls. 47 a 49).
26. Tinha a sociedade TM como Administradores C, T (1º e 2ª RR.) e J, sendo o seu capital social de euros 1.000.000,00 (Doc. n.º 7 – fls. 47 a 49).
27. Em 30/12/2014 reuniu a Assembleia Geral da sociedade TM – Sociedade Distribuidora de Produtos Congelados, S.A., com a seguinte ordem de trabalhos:
“Ponto Um – deliberar sobre a apresentação da sociedade a insolvência.
Ponto Dois – mandatar o Sr. Dr. AR…, advogado com escritório na Rua …, conferindo-lhe poderes forenses gerais para representar a sociedade no processo de insolvência da mesma.” (Doc. n.º 8 – fls. 49-v).
28. Na Acta número Trinta e Um da referida sociedade ficou a constar o seguinte:
“Iniciada a assembleia, pelo accionista C foi dito que, em face dos empréstimos bancários contraídos pela sociedade junto do Banco e da Caixa Geral de Depósitos, aliada à circunstância de o volume de negócios ter decaído de forma significativa, não existindo perspectivas de a mesma poder retomar uma actividade que lhe permita solver aqueles dois maiores credores, bem como os demais, a sociedade tornou-se insustentável, traduzida na impossibilidade da sociedade ver solvidas as suas obrigações e cumprir os seus compromissos, como as contas da sociedade bem reflectem. Assim, a apresentação da sociedade à insolvência torna-se absolutamente necessária, o que propõe, bem como propõe a constituição de mandatário indicado na ordem de trabalhos. Posta à votação, foram ambos os pontos da ordem de trabalhos aprovados por unanimidade.” (Doc. n.º 8 – fls. 49-v)
29. Estiveram presentes na mencionada Assembleia Geral da sociedade TM, realizada no dia 30 de Dezembro de 2014, os 1º e 2º RR., possuidores das acções representativas da totalidade do capital social (Doc. n.º 8 – fls. 49-v).
30. Em 02/01/2015, na sequência do deliberado no dia 30/12/2014, a sociedade TM apresentou-se à insolvência, tendo sido declarada a sua insolvência no dia 26/01/2015 (Docs. n.ºs 9 e 10 – fls. 50 a 57-v).
31. Conforme resulta do relatório de gestão referente ao exercício de 2013, a TM registou um grave incidente no exercício de 2012, que apenas se reflectiu no exercício seguinte, o qual originou o encerramento da laboração, seguido de imediato da necessidade de mudança de instalações (Doc. n.º 11 – fls. 58 a 59).
32. A TM, no final do exercício de 2012, já havia perdido mais de metade do seu capital social (€ 1.000.000,00), apresentando, no final do exercício de 2013, um valor de capitais próprios negativos de 256.586,13 euros (Doc. nº 12 – fls. 59-v a 61).
33. Em 21 de Julho de 2014, mediante documento particular autenticado, elaborado no escritório sito na Rua …, perante o Ilustre Advogado AR…., detentor da cédula profissional n.º …, o 1º R. C, em representação da sociedade TM, declarou vender à 3ª R. R, em representação da sociedade A, livre de ónus e encargos, a fracção autónoma designada pela letra …, pelo preço de € 15.000,00 (Doc. nº 13 – fls. 61-v a 65-v).
34. Com a concretização desta venda, a sociedade TM ficou sem património imobiliário e os bens móveis existentes não tinham valor venal significativo, de modo a fazer face ao passivo na ordem dos 1.000.000,00 de euros.
35. O A. é portador de uma livrança na qual se mostra inscrita a quantia de € 714.784,66, emitida em 26 de Março de 1999 e vencida em 20 de Julho de 2015 (Doc. nº 14 – fls. 65-v a 66-v).
36. A livrança foi subscrita pela sociedade TM – Sociedade Distribuidora de Produtos
Congelados, S.A., e avalizada pelos 1º e 2º RR. (Doc. n.º 14 – fls. 65-v a 66-v).
37. A referida livrança destinou-se a garantir o bom pagamento das obrigações emergentes de contratos celebrados entre a sociedade TM e o Banco, S. A..
38. A livrança em causa foi apresentada a pagamento e não foi paga ao A. Banco, S.A., na data do respectivo vencimento nem posteriormente.
39. Razão pela qual, em 9 de Setembro de 2015, o A. deu à execução a referida livrança, vindo a caber aos respectivos autos de execução comum para pagamento de quantia certa, instaurada contra os aqui 1º e 2ª RR., o nº … que corre termos no Tribunal da Comarca de … – Inst. Central – … Secção de Execução – J… (Doc. n.º 15 – fls. 67 a 73-v).
40. Nos exercícios de 2012 e 2013, já os 1º e 2ª RR. sabiam que a sociedade subscritora TM não tinha meios para honrar os compromissos financeiros com o Banco A. e, consequentemente, por via do aval, teriam de responder com o seu próprio património.
41. Os 1º e 2ª RR procederam à doação dos já identificados prédios urbanos à 3ª R. para se furtarem ao pagamento aos credores e, nomeadamente, ao credor Banco, S. A..
42. Além dos referidos prédios urbanos, não são conhecidos quaisquer outros bens dos 1º e 2ª RR. que possam constituir a garantia patrimonial do crédito do A., no montante global de € 719.428,21.
43. Os 1º e 2º RR. não pagaram ao Banco A. a quantia peticionada na execução instaurada em 9 de Setembro de 2015.
44. A 3ª R. tinha consciência do prejuízo, não podendo desconhecer que os 1º e 2ª RR. tinham assumido avultadas dívidas, inexistindo qualquer património para além das referidas fracções doadas que pudessem garantir o pagamento dos montantes envolvidos.
45. Os 1º e 2ª RR., para além do grau de parentesco, trabalhavam na mesma área de negócios.
46. Todos os RR. teriam conhecimento que as responsabilidades assumidas seriam exigidas aos avalistas.
47. Na Assembleia de Credores realizada no dia 10 de Março de 2015, foi questionado o AI acerca da ligação existente entre a TM e a A: “Mais requer que o Sr. Administrador da Insolvência identifique a relação da insolvente com a empresa que está agora a ocupar a sede. Vem ainda requerer que esclareça o balanço que foi junto pelo mandatário da insolvente a fls. 127 dos autos, um requerimento datado de 21.01.2015, referindo-se este a elementos contabilísticos da sociedade “A” a qual tem o mesmo objecto social da ora insolvente e a sua sede social na mesma sede social da insolvente e partilha o mesmo apelido do administrador da insolvente.” (Doc. n.º 16 – fls. 74).
48. O valor patrimonial das fracções … é, respectivamente, de € 10.597,83, € 10.597,83 e € 556.603,50 (Doc. n.º 17 – fls. 75 a 77-v).
Contestação
50. Os RR. C e T pretendiam vender a casa (tendo a mesma sido colocada à venda nessa altura).
51. Através da doação à sua filha geravam uma reavaliação patrimonial das fracções (casa e garagens), podendo, logo de seguida, efectuar a sua venda a terceiros com uma incidência de imposto de mais valia muito inferior.
54. A fracção esteve em comercialização e para venda a terceiros, no mercado imobiliário, sem que tivesse surgido algum interessado.
56. Foi sugerido que se constituísse uma sociedade de natureza imobiliária, que actuasse na revenda de imóveis, transitando as fracções para a sociedade, sendo que a venda se poderia concretizar através da venda da própria sociedade, pois que a mesma era detentora apenas das fracções em causa.
57. A venda da fracção “O” viabilizava que a sociedade, no ano subsequente, estivesse isenta do pagamento de IMT.
58. Foi por via da obtenção e verificação das condições de isenção do IMT que, em 2014, a A adquiriu um outro imóvel, sem liquidação imediata de IMT, tendo, em consequência, preenchido os requisitos para que, em 2015, tivesse beneficiado de igual isenção daquele tributo.
60. Os RR. T e C já não habitavam naquele imóvel.
61. A sociedade A foi constituída pelos RR. C e T para que estes adquirissem, através da mesma, bens imóveis para neles instalar a sua actividade de fabrico, compra, venda, importação e exportação de produtos alimentares frescos e congelados.
62. Não tendo, contudo, os mesmos chegados a colocar a sociedade em funcionamento efectivo.
63. Estando a sociedade praticamente inactiva, e em virtude da tomada de decisão, a conselho do técnico de contas, de integrar o património predial numa estrutura societária, foi a mesma transformada em sociedade anónima (até em vista da possibilidade de ser transmitida a sociedade com os imóveis, em vez da venda dos imóveis em si).
64. Tendo, para tal sido efectuada a distribuição do capital social por cinco sócios, no momento da sua transformação.
65. A R. R tem absoluta confiança nos sócios da sociedade - os seus pais, o seu tio e um amigo próximo.
69. A TM, após ter tido um revés de monta em 2012, ainda esteve em laboração durante mais cerca de dois anos, procurando retomar o seu vigor comercial.
*
Mais se provou que:
70. Na certificação legal das contas da sociedade TM, datada de 15.07.2014 e relativa ao exercício de 2013, foi consignado, no ponto 10, que “chamamos a atenção para o facto de que a Empresa apresenta perdido mais de metade do seu capital social desde o final do exercício de 2012, apresentando no final do corrente exercício de 2013 um valor de capitais próprios negativos de 256.586,13. Este facto, divulgado na nota nº 15 do Anexo, revela a existência de uma incerteza material que pode lançar a dúvida substancial acerca da capacidade da Empresa prosseguir a sua actividade numa óptica de continuidade” (Doc. n.º 11 - fls.59-v a 60-v).
71. A sociedade TM foi declarada insolvente no dia 26.01.2015, o que foi registado pela Insc. 5, Ap. 2/20150130 (Doc. n.º 7 – fls. 47 a 49).
72. O R. C foi declarado insolvente, por sentença proferida a 02.12.2015 e transitada em julgado a 29.12.2016 (fls. 164 a 167).
73. Na sentença de verificação e graduação de créditos proferida nesses autos foram verificados os seguintes créditos:
- Banco …: € 726.513,48;
- X…: € 349.930,52;
- Y…: € 16.320,31 (fls. 168-v a 170).
74. Tendo o R. C requerido, nesses autos, a exoneração do passivo restante, veio a ser proferido despacho de indeferimento liminar, onde foi exarado, designadamente: “(…) Para além do preenchimento das diferentes alíneas conducentes ao indeferimento liminar do pedido de exoneração, importará, contudo, atentar, em paralelo, no pressuposto genérico de que a concessão da exoneração depende sempre, como ficou dito acima, de “um comportamento anterior ou actual do devedor pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé” - Ac. RP de 10.9.2013. Ora, tendo em conta os factos apurados e exposto não pode concluir-se pela verificação de tal comportamento, pelo menos na vertente da transparência de actuação e boa fé do insolvente que, apesar de ter avalizado uma livrança com vencimento em Julho de 2015, em Março desse mesmo ano renunciou ao direito de uso e habitação de que era titular relativamente às fracções … que foram vendidas, pelos valores de €558.000,00 e €11.000,00 à sociedade A, S. A., de que era administradora única a filha do insolvente, sendo que na data da doação o insolvente a o cônjuge haviam reservado para si aquele direito relativamente às fracções autónomas designadas pelas letras …., com os valores patrimoniais de €544.355,50, €10.364,63 e €10.364,63, respectivamente, doação a que foi atribuído o valor de €282.542,14, correspondendo à fracção … o valor de €272.177,50, à fracção … o valor de €5.182,32 e à fracção … o valor de €5.182,32. Ou seja, quatro meses antes do vencimento daquela obrigação, o insolvente dispôs dos direitos de que era titular sobre duas fracções, a que tinham sido atribuídos os valores de €272.177,50 e €5.182,32, num total de €277.359,82, do qual cabia ao insolvente metade, ou seja, o correspondente a €138.679,31. Portanto, podemos concluir que, desta forma, o insolvente criou ou agravou a situação de insolvência, que veio a assumir em Outubro de 2015, seis meses após aquela renúncia. A previsão da alínea e) do nº 1 do preceito está preenchida pois, no mínimo com culpa grave (com inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência, sensatez e previsão, aconselhadas pelas primordiais regras do proceder corrente e normal da vida), com aquele acto criou (ao dispor do património de que era titular) ou agravou a sua situação de insolvência – e este comportamento (gravemente culposo) é suficiente para o preenchimento do normativo em causa.” (fls. 156-v a 161-v).
75. O processo de insolvência foi encerrado por despacho proferido a 16.12.2016 (fls. 171 a 174).”
3 – Em função dos factos dados como provados, conclui-se na sentença dada à execução o seguinte:
“IV – DISPOSITIVO Em face do exposto e tudo ponderado, o Tribunal decide julgar a presente acção de impugnação pauliana procedente, por provada, e em conformidade:
1. Declara a ineficácia da doação feita pelos RR. C e T à R. R, das fracções …, através da escritura celebrada a 19.04.2013,
2. Declara a ineficácia das compras e vendas das mesmas fracções autónomas à R. A, S.A., bem como das renúncias por parte dos RR. C e T aos direitos de uso e habitação, relativamente às fracções autónomas …, através dos documentos particulares autenticados datados de 30.12.2013 e 04.03.2015;
3. Declara que o A. Banco, S.A., tem direito a executar directamente os imóveis referidos na esfera jurídica das RR. R e A, S.A., e a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizadas por lei.”
4 – A livrança referida em 2, no montante de € 714.784,66, vencida em 20 de Julho de 2015, subscrita pela sociedade TM - Sociedade Distribuidora de Produtos Congelados,
S.A. e avalizada por C e T, encontra-se accionada na execução n.º …, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, no Juízo de Execução de …. – Juiz ….
5 – O Banco é portador da livrança referida em 2 -, com local e data de emissão no Porto em 26.03.1999, com data de vencimento em 20.07.2015, no valor de € 714.784,66 €, subscrita por TM, S. A., e constando do verso da mesma as expressões manuscritas “Bom por aval ao subscritor”, seguidas das assinaturas de C e T, a qual foi accionada na execução n.º …., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, no Juízo de Execução de …. – Juiz …, conforme certidão junta como Doc. 2 ao Requerimento Executivo, execução essa que foi extinta por decisão do Agente de Execução de 12.07.2017, por insuficiência de bens penhoráveis.
6 – A quantia em dívida por C e T, titulada na livrança supra identificada, não foi paga até à presente data.
7 – O Exequente líquida os juros moratórios vencidos à taxa de 4,00% ao ano, calculada desde a data de vencimento da livrança (20/07/2015) até à data da entrada em juízo da presente execução, totalizam, com referência a 16 de Abril de 2019, a quantia de € 108.488,43.
8 – O Exequente peticiona ainda a quantia devida a título de Imposto de Selo de 4% previsto no n.º 17.2.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo – Lei N.º 150/99 de 11 de Setembro – sobre os juros vencidos e vincendos, totalizam com referência à mesma data a quantia de € 4.339,54.
9 – A sociedade A, que foi Ré no Processo …, cuja sentença agora se executa.
10 – O Banco, S.A. foi incorporado por fusão no Banco.
11 – Na livrança referida no ponto 4 – o símbolo $ foi rasurado e substituído pelo símbolo €.
12 – A livrança foi emitida quando a moeda em curso era o Escudo e foi preenchida quando a moeda em curso já tinha passado a ser o Euro».

3.2. A sentença sob recurso considerou que não existiam quaisquer factos relevantes a elencar como não provados.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. A recorrente considera que a sentença recorrida é nula, por o tribunal a quo não ter analisado e decidido a questão suscitada pela recorrente de que a quantia exequenda contem cálculo de juros sobre juros.
O tribunal a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos arts. 641.º, n.º 1 e 617.º, n.º 1 do CPC.
A omissão de despacho do tribunal a quo sobre as nulidades arguidas não determina, necessariamente, a remessa dos autos à 1.ª instância para tal efeito (cfr. nº 5, do referido art.º 617.º), cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cfr., neste sentido Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo Civil, p. 149.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
De acordo com o disposto no art.º 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, a sentença é nula quando o juiz «deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar».
Tem-se entendido, unanimemente, que só existe omissão de pronúncia quando o tribunal não se pronuncia sobre as questões com relevância para a decisão de mérito e não já quanto a todo e qualquer argumento aduzido.
Neste sentido, decidiu o acórdão do STJ de 10.12.2020, in www.dgsi.pt., que «A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes».
Também o acórdão da RL de 08.05.2019, in www.dgsi.pt., considerou que «O vocábulo legal - “questões” - não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir».
Certo é, também, que as causas de nulidade, taxativamente, enumeradas no art.º 615.º do CPC, não visam o chamado erro de julgamento, nem a injustiça da decisão ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, apesar de muitas vezes, as partes confundirem os vícios que determinam as nulidades da sentença/despacho com o inconformismo quanto ao teor da decisão, como parece ocorrer no caso vertente.
In casu, o tribunal a quo pronunciou-se, expressamente, sobre a questão suscitada pela embargante relativa ao cálculo de juros, ao dizer que: «No que tange à alegada inexigência de juros e às dúvidas sobre o montante aposto na livrança, é que já temos que decidir que sendo o título executivo uma sentença, os fundamentos da oposição à execução serão apenas os constantes do art.º 729º do NCPC, não podendo a Ré que na acção declarativa não deduziu contestação com tais fundamentos discutir, na defesa por embargos, a própria matéria da sentença exequenda ou os factos que na referida acção foram provados, ainda que, aparentemente, sob uma qualquer designação distinta ou pretexto diverso. Ora, as dúvidas suscitadas sobre o montante da quantia exequenda não se inserem em nenhuma das alíneas do artº 729º do NCPC. Logo, não pode a Embargante vir, em sede de oposição, invocar tais “dúvidas” que, aliás, não são sequer factos concretos».
A sentença recorrida apreciou, pois, a questão em causa, considerando que a mesma não constituía, no caso concreto, fundamento de oposição à execução, entendimento que, obviamente, prejudicava e, aliás, impedia que se sindicasse o alegado cálculo de juros e, desta forma, a quantia aposta na livrança.
A recorrente não concorda com este entendimento, mas isso não é motivo de nulidade da decisão, antes constituindo matéria relativa ao mérito da decisão, a analisar infra (questão enunciada sob a c) do ponto II).
E, assim sendo, sem necessidade de maiores considerações, conclui-se que não se verifica a nulidade invocada.
4.2. A recorrente defende, ainda, que a alteração do símbolo da moeda “escudo português” para “euro” constitui uma alteração do título cambiário, geradora de nulidade do mesmo.
Resulta dos factos provados (ponto 3.1.), que:
«11 – Na livrança referida no ponto 4 – o símbolo $ foi rasurado e substituído pelo símbolo €.
12 – A livrança foi emitida quando a moeda em curso era o Escudo e foi preenchida quando a moeda em curso já tinha passado a ser o Euro».
A sentença recorrida considerou que «não assume qualquer relevo a mera alteração no impresso da livrança do símbolo da moeda – de Escudo para Euro -, não constituindo, por isso, essa alteração facto gerador da nulidade do título por vício de forma».
Acompanhamos na íntegra este entendimento, que tem sido, de resto, o seguido pela jurisprudência dos tribunais superiores.
Com efeito, o acórdão do STJ de 22.09.2011, in www.dgsi.pt, considerou que «2. Acrescentando-se à livrança o seu valor em “euros”, deste modo se fazendo a sua conversão de “escudos” para “euros”, o exequente usou um meio - que a lei não arreda de vez da sua força probatória (art.º 376.º, n.º 3, do C. Civil) - destinado a colocar nesse documento a verdade e o rigor dos factos convencionados entre as partes e de modo que aí se reveja a realidade da declaração nele representada. 3. A letra se pode configurar incompleta no momento em que é passada, ou seja, pode ser subscrita em branco, isto é, faltando-lhe algum dos seus requisitos essenciais que não seja uma assinatura (do sacador, aceitante, avalista ou endossante). Neste caso a invalidade da letra só se tornará efectiva se houver violação do pacto de preenchimento (art.º 10.º da LULL), aplicável às livranças por força do art.º 77º e assim definido no Ac. do STJ de 13 de Abril de 2011».
Nele se escreveu que: «Na altura em que a livrança foi preenchida (27/7/2001) vigorava nos Estados-Membros da União Europeia um período transitório que se iniciara em 01/01/1999 e terminara em 31/12/2001, durante o qual coexistiam as moedas nacionais dos vários países e a nova moeda europeia. Nesta ambiência temporal era habitual que se empregasse a unidade monetária nacional (o escudo) sem que se lhe deixasse de se lhe conferir a atinente validade em euros, mentalmente se lhe atribuindo o valor na nova moeda do grupo euro, nem sempre fácil de imediatamente se apreender em virtude de se ter de recorrer à aritmética fornecida por uma rudimentar máquina electrónica. Terá sido neste circunstancialismo factual que a exequente fez acrescentar na livrança o valor em euros correspondente ao equivalente em escudos no título de crédito configurado. Deste modo, o título executivo assim conformado, passando a ter nele expresso o valor em euros correlativo aos escudos nele inicialmente declarado, não sofreu uma transformação nos seus precisos termos, mas antes uma saudável actualização exigida pelo desejado desenvolvimento da sociedade que se nos apresenta. A alteração eventualmente contida num documento escrito não faz com que, só por isso, se lhe tenha de retirar a sua qualidade de genuinidade, representativo da realidade das declarações nele registadas. Esta ocorrência só pode equacionar-se no contexto da figura da falsificação de documento, isto é, apenas se torna legalmente permitida a sua evocação no enquadramento de essa modificação integrar uma alteração, não querida pelos seus autores, posterior à subscrição do título de crédito em análise. Acrescentando-se à livrança o seu valor em “euros”, deste modo se fazendo a sua conversão de “escudos” para “euros”, o exequente usou um meio - que a lei não arreda de vez da sua força probatória (art.º 376.º, n.º 3, do C. Civil) - destinado a colocar nesse documento a verdade e o rigor dos factos convencionados entre as partes e de modo que aí se reveja a realidade da declaração nele representada. A boa fé da exequente/oposta é uma evidência e disso se não deveria lamentar a oponente/recorrente».
Também o acórdão da RP de 25.10.2022, in www.dgsi.pt, que foi, aliás, citado na decisão recorrida, debruçando-se sobre um caso similar, decidiu que: «I - Se após a assinatura da livrança pelos seus subscritores entrou em circulação o euro, a dívida, mesmo que fosse expressa em escudos, sempre teria que ser convertida para a nova moeda – o euro. II - Neste contexto, se o preenchimento de livrança emitida em branco quando ainda se encontrava em curso o escudo foi completado com a inserção da quantia em dívida em euros, tendo-se rasurado o símbolo escudo [$] para o substituir pelo símbolo euro [€], tal não tem qualquer relevância, não constituindo essa alteração facto gerador da nulidade do título cambiário».
Este aresto considerou que dos requisitos essenciais da livrança previstos no art.º 75.º da LULL «(…) não consta a exigência de que o valor aposto na livrança deve ser expresso na moeda em curso no momento e no país da emissão. Aliás, admite-se mesmo que livrança possa ser preenchida em moeda estrangeira e que esta possa ser alterada aquando do pagamento do título. A circunstância de o valor aposto na livrança ter sido expresso em euros, apesar de nesta se fazer alusão a escudos, atendendo a que era esta a moeda em circulação aquando da sua emissão, não pode afetar nem a sua validade nem a sua eficácia. O que importa é que o valor constante da livrança corresponda à dívida de capital, juros e encargos e ainda que esse valor fosse superior ao montante em dívida, resultante da relação subjacente, tal facto não determinaria a inutilização da livrança como título executivo. Apenas determinaria a redução da quantia exequenda ao valor de que, em face da relação subjacente, a exequente era credora no momento do vencimento do título. Acontece que à data em que a livrança em causa nos autos foi emitida, com a assinatura dos seus subscritores [19.10.2000], a moeda em circulação era o escudo e, por isso, o símbolo que consta do impresso da livrança é o desta moeda [$]. Como, entretanto, entrou em vigor o euro, ainda que na livrança tivesse sido aposta como valor da dívida uma quantia em escudos, sempre teria que ser feita a sua conversão para euros, que era a moeda em curso aquando do seu vencimento [3.9.2018]. Ora, tendo sido emitida em branco a livrança em causa nos autos, ficou o Banco credor, que depois cedeu o seu crédito à ora exequente, autorizado a proceder ao seu preenchimento nos termos da cláusula 8ª das Condições Gerais do Contrato de Crédito Casa Própria cujo teor é o seguinte: “Para titulação do capital emprestado, respectivos juros e demais encargos emergentes deste contrato, os[s] mutuário[s] subscreve[m] uma livrança em branco, ficando desde já o Banco autorizado a preenche-la livremente, designadamente quanto à data de emissão, montante em dívida, data de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento o Banco for titular por força deste contrato. (…)”. Deste modo, o Banco credor, com apoio nesta cláusula, completou o preenchimento da livrança nela apondo o valor da dívida expresso em euros que era, nessa data [3.9.2018], a moeda com curso legal. Só que para proceder ao preenchimento da quantia em dívida em euros, como do respetivo impresso constava o símbolo do escudo foi efetuada uma rasura neste símbolo [$] e aposto em letra manuscrita o símbolo do euro [€], moeda em que, como já se referiu, foi expresso o montante em dívida. Pretendem os recorrentes que esta rasura seja encarada como falsificação do título cambiário e que, por essa razão, o mesmo seja declarado nulo, o que determinaria a sua inexequibilidade.
Mas não lhes pode assistir razão. Com efeito, se após a assinatura da livrança pelos seus subscritores entrou em circulação o euro, a dívida, mesmo que fosse expressa em escudos, sempre teria que ser convertida para a nova moeda – o euro -, em harmonia com o princípio comunitário da continuidade dos contratos e instrumentos jurídicos constante do art.º 3º do Regulamento (CE) n.º 1103/97 do Conselho de 17.6.1997, operando-se essa conversão de acordo com a taxa fixada no art.º 14º do Regulamento (CE) n.º 974/98 do Conselho de 3.5.1998. Neste contexto, entendemos que não assume qualquer relevo a mera alteração no impresso da livrança do símbolo da moeda – de escudo para euro -, não constituindo, por isso, essa alteração facto gerador da nulidade do título por vício de forma».
Não vislumbramos, motivos para não aderir a esta argumentação e concluir, como na decisão recorrida, que não afecta a validade nem a eficácia de uma livrança, enquanto título cambiário, a circunstância de, aquando do seu preenchimento posterior, se ter rasurado o símbolo escudo [$] para o substituir pelo símbolo euro [€], uma vez que essa livrança foi emitida em branco quando ainda se encontrava em curso o escudo e foi preenchida (de acordo com o pacto celebrado) com a inserção da quantia em dívida quando já se encontrava em vigor o euro.
Não vemos, também, como possa a decisão recorrida ter violado o disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LULL, como advoga a recorrente, uma vez que a livrança em causa contém «a promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada», expressa na moeda que, à data do vencimento, tinha curso legal.
De resto, contrariamente ao que parece pretender a recorrente, a  substituição do símbolo escudo [$] para o símbolo euro [€] não tinha que ter sido prevista no pacto de preenchimento, bastando que esse pacto autorizasse o tomador/beneficiário a preencher, posteriormente, a livrança no que respeita à importância a apor, impondo-se subentender que essa importância seria expressa na moeda vigente, sendo certo que são indiscutíveis, em face do disposto no art.º 10.º, aplicável ex vi do art.º 77.º, ambos da LULL, a validade da livrança em branco (cfr., v.g., Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, 2000, p. 144 e segs.) e a legitimidade do seu preenchimento por parte da embargada.
Finalmente, e tal como se refere na decisão recorrida, sendo o título executivo a sentença proferida na acção de impugnação pauliana, transitada em julgado, na qual a executada/embargante foi ré, estando, por conseguinte, vinculada ao caso julgado material formado, a invocação da suposta nulidade do título de crédito decorrente da mencionada rasura teria de ter sido feita naquela acção, tendo em vista a demonstração da falta de preenchimento de um dos pressuposto da impugnação pauliana, que era a existência do crédito.
Improcede, pois, a conclusão da recorrente.
4.3. Finalmente, advoga a recorrente que a decisão recorrida fez errada interpretação do art.º 729.º do CPC, uma vez que «…por via de embargos, pode a executada questionar a composição da quantia exequenda na medida em que é a base da sua obrigação (materializada em sentença, título executivo, etc.)».
Mas, também aqui, não lhe assiste razão.
Tal como se referiu supra, o título dado à execução é a sentença proferida na acção de impugnação pauliana, transitada em julgado, na qual a executada/embargante foi ré.
As partes não colocam em causa a exequibilidade dessa sentença, que também foi afirmada na decisão recorrida.
Com efeito, no elenco dos títulos executivos previstos no art.º 703.º do CPC encontram-se, em primeiro lugar, as sentenças condenatórias (cfr. n.º 1 al. a)), sendo entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência que aqui se incluem todas as sentenças que, de forma explícita ou implícita, impõem a alguém determinada responsabilidade ou cumprimento de uma obrigação.
Assim, para que uma sentença seja exequível ela não tem, necessariamente, que condenar, de forma expressa, no cumprimento de uma obrigação, bastando que a obrigação dela resulte de forma inequívoca (cfr. neste sentido, por exemplo, o acórdão do STJ de 08.01.2015, in www.dgsipt, onde se entendeu que «é de admitir a exequibilidade de sentenças proferidas em acções de natureza constitutivas ou de simples apreciação positiva das quais decorra a condenação implícita no cumprimento de determinada obrigação»).
No que concerne à sentença proferida em acção de impugnação pauliana, é nosso entendimento que a mesma pode constituir título executivo (porque tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento do crédito do impugnante, sendo certo que a executada/embargante foi parte na acção de impugnação, fazendo a sentença caso julgado quanto a ela), desde que contenha os requisitos de exequibilidade necessários à determinação dos limites objectivos e subjetivos da pretensão executiva ou que seja completada, no requerimento executivo, pelos documentos que permitem a execução da dívida, nos termos do art.º 703.º do CPC.
No caso dos autos, conforme decorre da factualidade provada (ponto 3.1.), a sentença proferida na acção de impugnação pauliana (Proc. n.º…), na qual - repete-se - a executada/embargante foi parte, reconhece o crédito do impugnante e contém todos os elementos necessários à determinação dos limites objectivos e subjetivos da pretensão executiva, sendo certo que se mostra completada, no requerimento executivo, pela livrança que titula o referido crédito, constituindo, portanto, título executivo contra a executada/embargante.
Ora, fundando-se a execução em sentença, resulta evidente que a oposição teria de basear-se num dos fundamentos previstos no art.º 729.º do CPC.
Sucede que a questão suscitada pela embargante relativa ao suposto “cálculo de juros sobre juros”, que acaba por traduzir-se na alegação do preenchimento abusivo da livrança, não se subsume em nenhum dos referidos fundamentos.
De resto, e tal como bem lembra o recorrido nas suas contra-alegações, não cabe à embargante, que não se encontra no âmbito das relações imediatas com o exequente/embargado, suscitar excepções relacionadas com a relação subjacente à livrança ou com o seu eventual abuso de preenchimento, que, aliás, não arguiu na acção de impugnação pauliana, para demonstração a falta de preenchimento de um dos seus pressupostos (a existência do crédito).
Seja como for, no requerimento executivo a exequente limita-se a pedir juros de mora sobre a quantia titulada pela livrança, desde a data do seu vencimento, à taxa de 4%.
Tal como se decidiu no recente acórdão da RE de 11.07.2024, in www.dgsi.pt, «1 – A taxa dos juros de mora devidos por falta de pagamento de dívida titulada por livrança é a dos juros civis, actualmente de 4% ao ano. 2 – A natureza comercial ou civil da relação subjacente não influi no regime jurídico da taxa dos juros moratórios devidos por falta de pagamento da livrança. 3 – O Assento do STJ n.º 4/92 releva para a resolução da questão de saber se a taxa de juros referida em 1 e 2 é a dos juros civis ou a dos juros comerciais na estrita medida em que, ao afastar a aplicabilidade da taxa de juros prevista nos n.ºs 2 dos artigos 48.º e 49.º da LULL, abriu a porta à aplicação do direito interno, que é o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16.06».
Vale, no caso que nos ocupa, a argumentação expendida do referido acórdão, no sentido de a livrança corporizar «…uma relação jurídica diversa da subjacente, sujeita a um regime jurídico próprio, denominada relação cambiária. É neste sentido que se diz que o direito cartular incorporado na livrança é abstracto (…). Não há, pois, confusão possível entre a relação cambiária e a relação subjacente, como não pode haver entre o regime jurídico de cada uma delas. Nomeadamente, nada impede que a lei estabeleça taxas de juro diferentes para a hipótese de mora do devedor no âmbito de cada uma dessas relações. E, ainda que o legislador estabeleça taxas de juro idênticas, os juros moratórios devidos no âmbito da relação cambiária não se confundem com aqueles que são devidos no âmbito da relação subjacente. O recorrente optou por dar à execução a livrança, preenchida de acordo com o quantitativo em débito, à data do seu vencimento, no âmbito da relação subjacente. Sendo assim, é aplicável a taxa de juros moratórios que a lei estabelece para a livrança e não a taxa de juros moratórios que a lei ou o contrato estabelecem para a relação subjacente».
Destarte, conclui-se pela improcedência total do recurso, impondo-se confirmar a decisão recorrida.
A recorrente suportará as custas do recurso, por ter ficado vencida (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.

Lisboa, 27.02.2025
Rui Oliveira
Cristina Lourenço
Vítor Ribeiro