I - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes “efectivamente cometidos”, é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.
A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.
II - O crime de branqueamento de capitais pode ser definido como um crime de segundo grau ou um crime derivado porquanto, analisado o tipo incriminador, o preenchimento do tipo de crime em apreço encontra-se dependente da prática, em momento prévio de um outro tipo de crime, sendo que o n.º 1 do artigo 368.º-A do Código Penal prevê, concomitantemente, uma cláusula aberta – na qual se integram os “factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos” –, bem assim como uma catálogo de crimes.
O bem jurídico protegido pelo tipo incriminador reconduz-se à administração da justiça, o que resulta desde logo da sua inserção sistemática no Código Penal, estando o tipo integrado no título V do Código Penal (crimes contra o Estado) e capítulo dos crimes contra a realização da justiça, pelo que se pretende proteger o circuito financeiro, económico e jurídico, dele se expurgando bens de origem criminosa que aí buscam a sua legitimação, albergando a pretensão estatal de confiscar tais bens.
1. Nos autos com o nº 309/20.7PBELV, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, foi proferido, aos 27/06/2024, despacho de não pronúncia do arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal e um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do Código Penal, imputado no Requerimento para Abertura da Instrução apresentado pela assistente “BB”.
2. A assistente não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1.º Além dos crimes imputados a AA na acusação pública, os autos indiciam ainda a prática pelo mesmo arguido de crimes de abuso de confiança qualificado, p.p. pelo artigo 205º n.ºs 1 e 4 alínea b) do Código Penal e branqueamento, p.p. pelo artigo 368º-A do Código Penal.
2.º Os elementos constantes dos autos indiciam que o arguido AA, sem autorização ou conhecimento da Cliente CC e do BB, movimentou a conta de depósitos à ordem n.º …, titulada por esta Cliente, conta essa a que tinha acesso e de que podia dispor em razão das funções exercidas enquanto funcionário do Banco assistente.
3.º Os elementos constantes dos autos indiciam também que, enquanto funcionário do BB, o arguido AA encontrava-se investido de um poder sobre quantias que não lhe pertenciam que lhe dava a possibilidade de delas dispor, como dispôs, de forma não autorizada, assim causando prejuízo patrimonial à instituição bancária.
4.º Existe uma relação de concurso real entre o crime de abuso de confiança qualificado e o crime de burla informática qualificada imputado ao arguido AA, pelo que devia o arguido ter sido pronunciado também pela prática do primeiro ilícito.
5.º O arguido dissimulou, como queria, a verdadeira titularidade e movimentação das quantias de que dispôs e foi precisamente por isso que procedeu à abertura da conta de depósitos à ordem n.º …, em nome de CC.
6.º Ao movimentar em seu exclusivo proveito a conta de depósitos à ordem n.º …, que abriu em nome de CC mas que era efetivamente usada por si, quis o arguido AA ocultar a verdadeira titularidade e movimentação das vantagens anteriormente obtidas, como queria.
7.º A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 30º e 205º n.ºs 1 e 4 do Código Penal, na medida em que o Tribunal recorrido considerou que a movimentação não autorizada, efetuada por um funcionário bancário, de quantias depositadas por Clientes na Instituição bancária em que desempenha funções não consubstancia o crime de abuso de confiança qualificado, sendo certo que ainda que consubstanciasse, existe uma relação de concurso entre o mencionado ilícito e o crime de burla informática qualificada, não podendo ser imputados ao arguido os dois ilícitos.
8.º A decisão recorrida violou também o disposto no artigo 368º-A do Código Penal, na medida em que o Tribunal recorrido considerou que a conduta do arguido não revela a mínima intenção de disfarçar a forma como os fundos com que o mesmo se fez enriquecer entraram na sua esfera, nem como foram empregues, gastos e movimentados pelo arguido, considerando assim não estar indiciada a prática de crime de branqueamento.
9.º A decisão recorrida deveria ter feito uma correta interpretação dos artigos 30º e 205º n.ºs 1 e 4 do Código Penal e concluído que o arguido AA ao movimentar a conta de depósitos à ordem n.º …, titulada por CC, sem conhecimento ou autorização desta, através de levantamentos em numerário, pagamentos de bens e serviços e transferências, praticou um crime de abuso de confiança qualificado, pelo qual devia ter sido pronunciado.
10.º A decisão recorrida deveria ter feito uma correta interpretação do artigo 368º-A n.ºs 1, 2 e 4 do Código Penal e concluído que o arguido AA ao proceder à abertura da conta de depósitos à ordem n.º … e sua exclusiva movimentação, ocultou a verdadeira titularidade e movimentação dos montantes de que se apropriou, assim praticando um crime de branqueamento, pelo qual deveria ter sido pronunciado.
11.º Uma correta interpretação dos aludidos artigos 30º, 205º n.ºs 1 e 4 e 368º-A, todos do Código Penal, imporia a prolação de um despacho de pronúncia, por existirem indícios suficientes da prática, pelo arguido AA, dos crimes de abuso de confiança qualificado e branqueamento e por se mostrar suficientemente indiciada a imputação factual vertida na acusação material deduzida pelo Banco.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A DECISÃO INSTRUTÓRIA PROFERIDA E SUBSTITUINDO-SE POR OUTRA QUE PRONUNCIE O ARGUIDO AA PELA PRÁTICA DOS CRIMES DE ABUSO DE CONFIANÇA QUALIFICADO E BRANQUEAMENTO, NOS EXATOS TERMOS DA ACUSAÇÃO MATERIAL CONSTANTE DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO DEDUZIDO PELO ASSISTENTE, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
4. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos, em síntese (transcrição):
(…) Sempre se dirá, desde já, que a razão está com a nosso Ex.mo Colega junto da 1ª instância, bem como com a Mme Juiz “a quo”.
Relativamente ao crime de abuso de confiança qualificado temos pro acertada a decisão da Mme Juiz “a quo” quando refere, em conclusão: “Contrariamente, os factos apurados e descritos tanto na acusação pública, como no Requerimento de Abertura de Instrução, não são passíveis de subsumir, em acrescendo, ao crime Abuso de Confiança Qualificado, impondo-se, assim, não pronunciar o arguido AA pela prática deste crime.
Quanto ao crime de branqueamento de capitais as considerações tecidas pela Mme Juiz “a quo” são criteriosas e ajustadas, não merecendo censura ou reparo como bem defende o nosso Ex.mo Colega junto da 1ª instância.
Porém, a talhe de foice importa que se coloque em devido destaque que o branqueamento de capitais é o processo pelo qual os autores de algumas actividades criminosas encobrem a origem dos bens e rendimentos (vantagens) obtidos ilicitamente, transformando a liquidez proveniente dessas actividades em capitais reutilizáveis legalmente, por dissimulação da origem ou do verdadeiro proprietário dos fundos1.
O processo de branqueamento pode englobar três fases distintas e sucessivas, levadas a cabo para procurar ocultar a propriedade e a origem das vantagens ilícitas, manter o controlo das mesmas e dar-lhes uma aparência de legalidade:
Colocação (“placement”): os bens e rendimentos são colocados nos circuitos financeiros e não financeiros, através, por exemplo, de depósitos em instituições financeiras ou de investimentos em actividades lucrativas e em bens de elevado valor;
Circulação (“layering”): os bens e rendimentos são objecto de múltiplas e repetidas operações (por exemplo, transferências de fundos), com o propósito de os distanciar ainda mais da sua origem criminosa, eliminando qualquer vestígio sobre a sua proveniência e propriedade;
Integração (“integration”): os bens e rendimentos, já reciclados, são reintroduzidos nos circuitos económicos legítimos, mediante a sua utilização, por exemplo, na aquisição de bens e serviços.
No ordenamento jurídico português, o branqueamento de capitais constitui crime - artigo 368.º-A do Código Penal Português, 1ª versão: Lei n.º 11/2004, de 27/03, 2ª versão: Rect. n.º 45/2004, de 05/06, 3ª versão: Lei n.º 59/2007, de 04/09, 4ª versão: Lei n.º 83/2017, de 18/08, 5ª versão: Lei n.º 58/2020, de 31/08, 6ª versão: Lei n.º 79/2021, de 24/11 e 7ª versão: Lei n.º 2/2023, de 16/01
No nosso modesto parecer, a Mme Juiz “a quo” refere, de forma insuperavelmente clara, o seguinte: A imputação do ilícito criminal requerido pela assistente apenas poderia perspectivar-se caso houvesse efectivas tentativas de disfarce da origem das quantias ilicitamente obtidas, tais como circulação por outras contas de terceiras pessoas, levantamento e entrega de numerário a terceiras pessoas, promiscuidade contabilística, intermediação de pessoas colectivas, circulação transnacional, investimentos de “fachada”, envolvimento de “testas de ferro”, aquisição de bens de elevado valor sem registo, entre outras.
Relativamente a esta matéria e no nosso modesto parecer o crime de branqueamento de capitais (tanto na modalidade a que alude o nº 2 como na modalidade plasmada no nº 3 do artº 386 A do CP, é um crime que exige dolo específico – o agente tem de actuar tendo em vista dissimular a origem ilícita das vantagens em causa ou com o fim de evitar que o autor ou participante das infracções previstas no nº 1 seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção penal2.
Nessa matéria, merece destaque o Ac. Relação do Porto de 16.03.2022, relator Paulo Costa, onde se refere, com relevo para o caso concreto que: “… O crime de branqueamento de capitais consiste essencialmente na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade vantagens de crimes. Há nesta figura jurídico-penal uma relação umbilical, inextricável, obrigatória, entre a ação de ocultar ou dissimular a origem ou propriedade de determinados bens e a proveniência desses bens, pois devem forçosamente ser produto direto ou indireto de um crime anterior…”.
Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, não conceder provimento ao recurso apresentado pela assistente “BB” e manter o douto despacho de não pronúncia proferido nos autos.
6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se existem indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal e branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do Código Penal, imputado no Requerimento para Abertura da Instrução apresentado pela assistente “BB”.
2. Elementos relevantes para a decisão
2.1 Aos 14 de Março de 2024, foi proferido despacho de acusação pelo Ministério Público contra o arguido AA, pela prática de factos integradores, em seu entender (entre o mais relativamente a outras vítimas que para esta decisão não concerne) das seguintes infracções criminais, em concurso real e efectivo:
- um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218º, nºs 1 e 2, alínea a), em articulação com os artigos 217º e 202º, alínea b), do Código Penal (em que figura como vítima CC).
- um crime de burla informática qualificada, p. e p. pelo artigo 221º, nºs 1 e 5, alínea b), por referência ao artigo 202º, alínea b), do Código Penal - actualmente em relação de concurso aparente com o crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, p. e p. pelo artigo 225º, nºs 1 e 5, alínea b), do Código Penal (em que figura como vítima CC).
- um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15/09 - actualmente enquadrável no crime de contrafacção de cartões, p. e p. pelo artigo 3º-A, da mesma Lei (em que figura como vítima CC).
- um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alíneas c) e e), do Código Penal (em que figura como vítima CC).
A factualidade que descrita está nessa acusação e que releva é a seguinte:
1. O arguido AA foi admitido ao serviço do BB, como colaborador, em ….2010, tendo sido colocado na Agência de … com a categoria profissional de gestor comercial sénior, onde exerceu as funções correspondentes até junho de 2021.
2. No âmbito destas suas funções o arguido possuía o número interno/de utilizador (“…”) …, chave de acesso única (código de operador e password), que servia para se identificar e utilizava quando acedia ao sistema informático do Banco, mediante a conjugação de outras credenciais informáticas, máxime passwords, e que eram pessoais, secretas e intransmissíveis, sendo escolhidas e memorizadas pelo próprio.
3. Desta forma e com recurso a tais credenciais enquanto funcionário do BB, o arguido podia visualizar informações de clientes e realizar /autorizar operações bancárias.
4. A chave de acesso, também denominada código de operador (NUC), quando utilizada, era inserida no sistema informático do Banco, ficando registada sem o dígito de terminação, o qual corresponde ao check dígito.
5. No desempenho das suas funções como funcionário, colaborador e bem assim gestor de contas-cliente naquele Banco, incumbia ao arguido, entre outras tarefas, acompanhar tudo o que estivesse relacionado com a situação financeira dos seus clientes, concretamente saldos e extratos bancários, produtos financeiros subscritos, sua evolução, movimentos, transações e posição global.
6. Mais tinha acesso aos dados pessoais e ao perfil dos clientes, conhecendo designadamente a sua idade, estado de saúde, nível de formação, discernimento, situação pessoal, local de residência, fazendo também a monitorização do acesso às contas e da atividade bancária daqueles.
7. Em resultado destas suas funções, o arguido foi acumulando conhecimentos pessoais e granjeando a confiança pessoal dos clientes, os quais confiavam naquilo que este lhes transmitia e dizia, sobretudo os mais idosos, com menos conhecimentos, formação e discernimento mental para acompanhar aa operações bancárias e as ferramentas informáticas.
8. No desempenho de tais tarefas cabia-lhe primacialmente zelar pelos interesses de gestão das contas e interesses daqueles clientes, dispondo para isso de acesso privilegiado aos dados bancários, tais como informações sobre produtos financeiros, saldos, aplicações e posições globais.
9. Em data não concretamente apurada mas certamente antes do início do ano de 2019, o arguido decidiu valer-se das suas credenciais e atribuições funcionais naquele Banco, para começar a desviar quantias em dinheiro de contas de clientes, de forma a poder afetá-las e utilizá-las em seu benefício.
10. O arguido escolheu como alvo preferencial deste seu desiderato os clientes com idade mais avançada, os que tivessem menos discernimento e apetência para acompanhar os movimentos das suas contas bancárias ou que estivessem longos períodos sem consultarem esses movimentos, também se valendo da sua posição e da confiança que por isso nele depositavam.
Ofendida CC
11. Assim aconteceu com a cliente CC a qual, à época, era titular da conta bancária n.º …, a que correspondia o NIB …BB, domiciliada na Agência de …, sita na …, onde o arguido exercia funções em 2019/2020.
12. Associadas a esta conta, CC possuía duas outras contas a prazo e seis Planos Poupança Reforma.
13. A dado momento, o arguido, sabendo da idade avançada de CC e da confiança que esta depositava em si enquanto gestor de conta, resolveu apoderar-se de quantias que esta ali tinha depositadas.
14. A relação de confiança que mantinham era mútua, sendo que por vezes o arguido contactava CC para se deslocar à Agência do Banco para tratarem de assuntos de gestão das suas aplicações e contas bancárias, levando-a a assinar documentos, no próprio tablet do Banco, sem ligar muito ao seu conteúdo, sendo que esta por regra assinava os documentos que este lhe apresentava julgando estar a tratar de assuntos em seu benefício e interesse.
15. Assim, em 06.06.2019, estando CC na agência do BB em … para tratar de assuntos com o arguido, sucedeu que, aproveitando a confiança que aquela lhe depositava e as fragilidades decorrentes da sua idade, a dado momento, o arguido, sem que esta se apercebesse, apresentou-lhe um impresso bancário para abertura de uma nova conta de depósitos à ordem que aquela cliente, de boa-fé, assinou pensando que se tratava de um normal movimento nas contas já existentes, tal como o arguido lhe disse.
16. Desta forma, CC manuscreveu o seu nome nos espaços/impressos que o arguido lhe foi indicando, referentes a tal objetivo, desconhecendo que afinal estava a abrir uma nova conta bancária.
17. Estes impressos, assinados por CC acreditando que estava a tratar de operações correntes relacionada com a sua conta bancária n.º … ou planos associados, tal como o arguido lhe fizera crer erroneamente, viabilizaram a abertura de uma nova conta bancária à ordem e em seu nome.
18. Obtidas as assinaturas de CC nestes impressos, o arguido tratou de submeter os mesmos para que fosse aberta em nome daquela a nova conta bancária, sem que a mesma o soubesse.
19. Com tal atuação, aparentando ter sido determinado e como se tivesse sido vontade de CC abrir uma nova conta à ordem no BB, o arguido logrou convencer os seus colegas e colaboradores do Banco que assim era, tendo aquela conta sido aberta, em nome de CC e à qual foi atribuído o NIB ….
20. Tudo sem que CC tivesse tido consciência que desta forma tinha sido aberta essa conta bancária em seu nome.
21. Nesse mesmo dia, o arguido, utilizando a Convenção de Utilização de Assinatura Digital que CC havia subscrito em 09.05.2019, acedeu ao sistema informático do BB e inseriu o seu código de utilizador/password …, determinando a adesão daquela ao programa bancário “…”.
22. De seguida e aproveitando parte dos impressos que levara aquela a assinar nesse mesmo dia 06 de junho de 2019, atuando como se fosse intenção de CC, requisitou em seu nome a emissão de um cartão de débito “…” por referência àquela conta bancária n.º …, situação desconhecida por CC.
23. Na sequência deste pedido foi emitido o cartão de débito “…”, n.º … - conta n.º …, tendo sido remetido para a Agência de … do BB, ficando o arguido na sua posse bem como da password, sem que CC soubesse e tenha querido.
24. Em 20.08.2019, o arguido acedeu novamente, com as suas credenciais e password, ao sistema informático do BB, inseriu o seu código de operador n.º … e solicitou a emissão de outro cartão de débito (segunda via) em nome de CC, por referência à mesma conta n.º …, sem que esta cliente soubesse e o tivesse determinado.
25. Na sequência, foi emitido o cartão n.º … e remetido, com a password, para a Agência de …, tendo o arguido ativado o mesmo em 30.09.2019, sem que tal tivesse sido determinado e do conhecimento de CC.
26. Dispondo de tais cartões e utilizando aquelas credenciais e passwords, o arguido começou e foi paulatinamente acedendo ao sistema informático do BB e a inserir dados no sentido de determinar a transferência de fundos (a débito) saídos da conta n.º … para crédito na conta n.º … bem como ao resgate de apólices de seguros (PPR) e de contas poupança tituladas por CC e subsequente crédito nesta última conta.
27. Desta forma movimentando à sua vontade e em seu benefício, fundos daquelas contas de CC sem que esta soubesse e tivesse autorizado minimamente tais operações.
28. Foi assim que no dia 06 de junho de 2019 o arguido, sem qualquer permissão e conhecimento de CC, efetuou a liquidação integral do saldo da sua conta poupança aforro n.º …, que aquela ali possuía, creditando o seu valor na conta n.º ….
29. Levando desta forma a que os seus colegas e colaboradores do BB acreditassem que a abertura da conta, requisição de tais cartões e operações subsequentes tivessem sido queridas e determinadas por CC, o que afinal não correspondia à verdade.
30. No período compreendido entre 14.06.2019 e 29.11.2019, o arguido determinou, sempre à revelia de CC, nomeadamente os seguintes créditos na conta n.º …:
em 14.06.2019 – o valor de 70.000,00 euros saídos da conta n.º …;
em 17.07.2019 – o valor de 1.250,00 euros saídos da conta n.º …;
em 24.07.2019 – o valor de 21.000,00 euros saídos da conta n.º …; fundos estes saídos daquela conta n.º ….
31. E entre 05.12.2019 e 13.08.2020, o arguido, à revelia e sem conhecimento de CC, determinou pelo menos o depósito na mesma conta de valores resgatados e vencidos de aplicações/Apólices que aquela tinha subscrito através do BB, concretamente:
em 05.12.2019 – o valor de 19.716,83 euros da Apólice “…” n.º …;
em 12.12.2019 – o valor de 23.201,89 euros da Apólice “…” n.º …;
em 03.07.2020 – o valor de 21.868,68 euros da apólice “…” n.º …;
em 13.08.2020 – o valor de 5.118,55 euros da apólice “…” n.º …, procedendo ao seu depósito na conta n.º ….
32. O arguido utilizou as suas credenciais e logins, no exercício daquelas suas funções, para aceder ao sistema e inserir os dados no sentido de determinar tais operações de transferência e resgate das Apólices, originando os respetivos créditos, levando os seus colegas e colaboradores a acreditar que se tratavam de ordens legítimas e queridas pela respetiva titular das contas e das Apólices, o que afinal não acontecia.
33. CC não havia determinado tais operações, nem tinha conhecimento que o arguido AA as estava a fazer.
34. Dispondo de tais dados, com os referidos valores creditados na conta NIB …, possuindo aqueles cartões ns.º …, … e respetivas passwords, o arguido foi utilizando este dinheiro na compra de produtos para si e para seu proveito, efetuando vários levantamentos em numerário e pagamentos em lojas, pagando vários serviços e despesas, tudo sem que CC soubesse ou tivesse autorizado.
35. Designadamente, utilizando aquelas suas credenciais, da mesma forma e nesse intuito, em junho de 2019, o arguido efetuou o pagamento de 8.151,58 euros correspondente à referência MB (entidade beneficiária … e referência …), com fundos saídos da conta n.º …, a favor do DD, desta forma amortizando totalmente o empréstimo (contrato de mútuo n.º …) celebrado em 15.12.2015 com o DD e que contraíra nesta entidade para adquirir o veículo marca…, diesel, matricula …
36. Em 26 de julho de 2019 arguido utilizando daquela conta n.º … determinou e procedeu ao pagamento, através do Multibanco (entidade … e referência …), do valor de 4.007,90 euros referentes à compra para si de um aparelho de televisão plana, marca …, modelo … na loja “…”, sem conhecimento e autorização de CC, sendo emitida a respetiva fatura em 30.07.2019.
37. Assim gerando ordens de saída de fundos daquela conta e sem que CC soubesse e tivesse autorizado.
38. No dia 07 de agosto de 2019 o arguido, pelo mesmo meio, pagou o valor de 904,99 euros na aquisição para si de um sistema … que comprou na loja …, tendo sido efetuado com fundos saídos da conta n.º …, emitida fatura em seu nome, sendo a ordem de pagamento efetuada através de canais digitais pelo seu telemóvel.
39. Foi também mediante a inserção e utilização das suas credenciais do BB que o arguido, em 10 de agosto de 2019, acedeu ao sistema informático deste Banco e requisitou um módulo de cinco cheques por referência à conta n.º …, que recebeu, sem que CC soubesse e quisesse.
40. Na posse de tais cheques, sucedeu que o arguido:
em 14.08.2020 levantou a quantia de 10.900,00 euros que utilizou em seu proveito, através do cheque n.º …;
em 02.10.2020 levantou a quantia de 12.000,00 euros que utilizou em seu proveito, através do cheque n.º …,
ambos sacados daquela conta de CC e sem que esta soubesse e tivesse autorizado, manuscrevendo pelo seu punho o nome/assinatura de CC no espaço destinado para esse efeito como se correspondesse à verdade e tivesse sido feito por aquela.
41. No dia 22 de agosto de 2019, CC dirigiu-se à Agência do BB em … onde foi recebida pelo arguido, tendo pedido ao mesmo que diligenciasse pelo levantamento de 15.000,00 euros para pagar despesas relacionadas com a facultade de uma sua sobrinha.
42. Na sequência, seguindo tais indicações, o arguido tratou de desencadear uma ordem de levantamento de 30.000,00 euros a partir daquela conta n.º …, tendo entregue 15.000,00 euros e ficando com os remanescentes 15.000,00 euros para si, sem que aquela se tivesse apercebido e o tivesse autorizado.
43. Em 03 de outubro de 2019 o arguido, utilizando quantias saídas da conta n.º …, pagou o valor de 1.828,44 euros em artigos e produtos que adquiriu na loja on line “…” (pagamento referência …/…) e que utilizou em seu benefício, sem que CC soubesse e tivesse dado a sua autorização.
44. Em 12 de agosto de 2020, o arguido procedeu ao levantamento de 14.000,00 euros a partir da conta n.º …, utilizando um impresso para o efeito, manuscrevendo pelo seu punho, o nome/assinatura de CC no espaço destinado para esse efeito, como se o mesmo correspondesse à verdade e tivesse sido feito por aquela, o qual depois utilizou em seu proveito.
45. Em 08.10.2020, 11.11.2020, 02.12.2020 o arguido, utilizando as suas credenciais digitais como funcionário do BB, através de canais eletrónicos, acedeu àquela conta n.º … e determinou a saída, por transferência de 410,00 euros (pagamento de serviços referência …/…), 483,80 euros (pagamento de serviços referência …/…) e 1.025,00 euros (pagamento de serviços referência …/…) para uma conta que tinha na plataforma … de forma a pagar serviços de que usufruiu, sem que aquela soubesse e tivesse autorizado.
46. Em 11.11.2020 o arguido, utilizando tais credenciais e procedendo do mesmo modo, acedeu à conta n.º … de CC e determinou o pagamento do valor de 60,48 euros de correspondentes a uma fatura … (entidade …, referência …) de serviços prestados pela operadora … ao seu pai, de nome EE sem que CC soubesse e tivesse autorizado.
47. Em 17.12.2020, o arguido pagou o valor de 533,04 euros correspondente a IUC da sua viatura própria, marca …, modelo …, matrícula …, com fundos saídos da conta n.º …, sem que CC soubesse e tivesse dado autorização.
48. Atuando da forma descrita, utilizando as suas credenciais e códigos gerou e determinou a que fossem feitas estas e outras saídas e circulação de fundos entre aquelas duas contas bancárias de CC como se tivessem sido queridos e determinados por esta, facto que não correspondia à verdade.
49. Mais logrando convencer os restantes funcionários e colaboradores do BB a acreditarem que assim tinha ocorrido.
50. Tendo sido assim que o arguido creditou, no total, 125.155,93 euros na conta n.º …, entre transferências de outras contas de CC e resgate de apólices de seguros em nome da mesma.
51. Originando os consequentes registos e impulsos no sistema informático do BB, de forma que logrou viabilizar a utilização de tais quantias em seu único benefício, no pagamento de produtos e serviços, causando o correspondente prejuízo a CC.
(…) Elemento Subjetivo
126. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente.
127. Com a referida conduta o arguido quis lesar gravemente (…) CC (…) na proporção dos valores que, da forma descrita, indevidamente movimentou e utilizou em seu benefício, sem autorização e conhecimento daqueles.
128. Tudo em execução do plano que elaborou e executou, com vista a obter vantagens patrimoniais, que sabia não serem devidas, correspondentes aos valores que efetivamente utilizou em seu proveito.
Ofendida CC
129. Ao agir do modo descrito em relação à ofendida CC, o arguido quis e conseguiu fazer utilizar e suas as mencionadas quantias em dinheiro, bem sabendo que apenas lhes acedia por via das funções que desempenhava, das credenciais que possuía, e que as mesmas não lhe pertenciam nem lhe estavam destinadas, e que atuava em prejuízo e contra a vontade desta.
Burla qualificada
130. Aproveitando-se da confiança que sabia ter de CC, apresentou-lhe impressos bancários que lhe disse erroneamente serem para gerir assuntos correntes mas que verdadeiramente se destinavam a abrir uma nova conta bancária em seu nome.
131. Atuando de forma a levá-la a acreditar que efetivamente assim era, levando-a a assinar os impressos bancários que viabilizaram a abertura da conta bancária NIB …, a qual depois o arguido movimentou livremente e sem lhe dar conhecimento, culminando na saída de fundos que CC tinha no Banco, que gastou em seu benefício, não inferiores a 125.155,93 euros.
132. Com tal encenação, o arguido agiu no propósito conseguido de enganar CC, abrindo conta em seu nome e aí circulando fundos que esta tinha no Banco, tudo em prejuízo desta, obtendo um incremento financeiro correspondente e a que sabia não ter direito, como efetivamente aconteceu.
Burla informática qualificada
133. Ao utilizar a conta bancária NIB … e determinar a adesão em nome da cliente CC ao programa bancário “…”, solicitando a emissão de cartões bancários multicanal, ficando com a password, e para ali efetuar transferências a débito da conta NIB …, da forma descrita, atuou com intenção de manipular dados com vista a atingir tais resultados e consequentemente a processar o movimento de transferências, saídas de quantias monetárias daquelas contas de CC e resgates de aplicações, como se fosse titular das mesmas ou a tal estivesse autorizado, levando a entidade bancária a viabilizar os movimentos bancários acima descritos em seu benefício, o que conseguiu.
134. Tudo como se de ordens validamente emitidas para dar impulso e processar os respetivos dados pela titular das contas se tratassem, bem sabendo que tal não correspondia à realidade, por não ser vontade da ofendida CC.
135. No intuito alcançado de obter valores que sabia não lhe serem devidos, ciente que atuava sem autorização e conhecimento da titular das contas bancárias, causando-lhe um prejuízo patrimonial correspondente.
Falsidade informática
136. Sabia que ao atuar da forma descrita, introduzindo no sistema bancário, como se estivesse legitimado a tal e se tratasse da titular CC, iria gerar pedidos inverídicos de abertura de conta bancária, emissão de cartões e determinar movimentos a débito, a crédito e resgastes de aplicações/seguros, nos dados bancários existentes no BB em nome de CC, gerando os correspondentes impulsos eletrónicos e registos como se tivessem sido determinados por esta.
137. Levando assim a que no final fossem geradas ordens de saídas/transferências de dinheiro, mediante a estruturação não consentida de dados e informações digitais, como se tivessem sido determinadas pela titular das contas bancárias.
138. Mais suscitando que a entidade bancária BB e respetivos colaboradores/funcionários erroneamente viabilizassem tais operações bancárias em seu benefício, com os decorrentes incrementos financeiros indevidos e que utilizou no seu proveito exclusivo.
Falsificação de documento
139. Ao preencher os impressos bancários supra indicados, manuscrevendo a assinatura de CC, solicitando a abertura da conta bancária a que veio a ser atribuído o NIB .. e a emissão dos cartões ns.º … e …, da forma descrita, sabia que aquela era inverídica e não havia sido feita pela própria cliente nem correspondia à sua vontade.
140. Desta forma abusando da assinatura de CC, para assim viabilizar tais pedidos junto dos colaboradores e funcionários do BB como se tivessem sido validamente assinados pela respetiva cliente, o que sabia não corresponder à verdade.
141. Mais esteve sempre ciente que estava a pôr em perigo a segurança e a confiança que tais impressos bancários representam quando validamente preenchidos e assinados pelos respetivos subscritores/clientes.
142. Tudo no intuito de viabilizar a saída de fundos daquelas contas para a sua esfera de disponibilidade, sabendo que a tal não tinha direito, o que aconteceu.
143. Causando um prejuízo correspondente a CC.
2.2 Em 26 de Abril de 2024, a assistente “BB” requereu a abertura da instrução, impetrando a prolação de despacho de pronúncia quanto aos imputados factos (que adicionou aos constantes da acusação pública) e crimes de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal e branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1, 2 e 3 (e não nº 4, como consta das conclusões da motivação de recurso), do Código Penal, a adicionar aos crimes que integram a acusação do Ministério Público.
2.3 A decisão recorrida tem o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):
I. Relatório
Sob a forma de processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, o Digno Ministério Público deduziu Acusação contra o arguido:
AA, divorciado, natural de …/…, nascido em …1985, filho de EE e de FF, titular do cartão de cidadão nacional n.º …, residente na Rua …, n.º …, em …;
Imputando-lhe a prática, em autoria material (artº 26º do Código Penal), concurso real e efectivo (art.º 30º, n.º 1 do Código Penal), na forma consumada, os seguintes crimes:
A) Por referência à ofendida CC:
• um crime de burla qualificada, p. e p. pelo art.º 218º, n.º 1, 2, al.ª a), em articulação com os arts.º 217º e 202º, al.ª b), todos do Código Penal.
• um crime de burla informática qualificada, p. e p. pelo art.º 221.º ns.º 1 e 5º, al.ª b), por referência ao art.º 202º, al.ª b), todos do Código Penal (actualmente em relação de concurso aparente com o crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, p. e p. pelo art.º 225º, ns.º 1, 5, al.ª b) do Código Penal).
• um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (actualmente enquadrável no crime de contrafacção de cartões, p. e p. pelo art.º 3º-Ada Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro).
• um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, als.ª c) e e) do Código Penal.
B) Por referência à ofendida GG:
• um crime de burla informática qualificada, p. e p. pelo art.º 221.º ns.º 1 e 5º, al.ª b), por referência ao art.º 202º, al.ª b), todos do Código Penal (actualmente em relação de concurso aparente com o crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, p. e p. pelo art.º 225º, ns.º 1, 5, al.ª b) do Código Penal).
• um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (actualmente enquadrável no crime de contrafacção de cartões, p. e p. pelo art.º 3º-Ada Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro).
• um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, als.ª c) e e) do Código Penal.
C) Por referência ao ofendido HH
• um crime de burla informática qualificada, p. e p. pelo art.º 221.º ns.º 1 e 5º, al.ª b), por referência ao art.º 202º, al.ª b), todos do Código Penal (actualmente em relação de concurso aparente com o crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, p. e p. pelo art.º 225º, ns.º 1, 5, al.ª b) do Código Penal).
• um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3º, n.º da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (actualmente enquadrável no crime de contrafacção de cartões, p. e p. pelo art.º 3º-Ada Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro).
• um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, als.ª c) e e) do Código Penal.
D) Por referência à ofendida II
• um crime de burla informática, p. e p. pelo art.º 221.º n.º 1 do Código Penal (actualmente em relação de concurso com o crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, p. e p. pelo art.º 225º, ns.º 1, 5, al.ª b) do Código Penal).
• um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3º, n.º da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (actualmente enquadrável no crime de contrafacção de cartões, p. e p. pelo art.º 3º-A da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro).
• um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, als.ª c) e e) do Código Penal.
Inconformada com o libelo acusatório deduzido pelo Ministério Público, após a realização do respectivo inquérito, veio a assistente BB requerer a abertura da Instrução, imputando ao mesmo arguido factos que, a acrescer aos descritos em sede de acusação pública, consubstanciam ainda a prática, pelo mesmo (além do demais imputado pelo Digno Ministério Público), de:
- um crime de Abuso de Confiança Qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) do Código Penal; e
- um crime de Branqueamento de Capitais, p. e p. pelo 368.º-A, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Penal.
Para o efeito, em suma alega a assistente BB que os factos relacionados com a indevida movimentação a débito, processada pelo arguido na conta de depósitos à ordem titulada por CC (pontos 30, 31, 35, 41, 42, 45, 46, 47 e 50), nomeadamente as várias transferências processadas a débito, daquela conta, para crédito na conta de depósitos à ordem n.º …, consubstanciam ainda a prática do aludido crime de Abuso de Confiança Qualificado, porquanto o arguido, sendo à data colaborador do BB, dispondo de um código de operador/password pessoal e intransmissível, que utilizou para movimentar a mesma conta, movimentou a conta bancária da ofendida CC no âmbito das funções exercidas enquanto funcionário do Banco, apropriando-se das quantia melhor descritas no libelo acusatório, que lhe haviam sido confiadas no âmbito da sua actividade profissional (pois se encontrava investido num poder sobre essas mesmas quantias monetárias, que lhe deu a possibilidade de as desencaminhar e dissipar), tendo posteriormente, a partir dessa segunda conta, efectuado diversos pagamentos e levantamentos a seu próprio proveito, o que fez sem autorização da ofendida ou do Banco, e em seu benefício exclusivo, e assim causando prejuízo patrimonial à instituição bancária.
Numa outra perspectiva, mais alega a assistente BB que, relativamente aos factos imputados ao aqui arguido no libelo acusatório, que dizem respeito à movimentação da conta de depósitos à ordem n.º …, que o mesmo abrira em nome da ofendida CC, os mesmos consubstanciam, concomitantemente, a prática do imputado crime de Branqueamento de Capitais, porquanto o arguido agiu sempre com o propósito formulado de se apoderar de quantias monetárias que tal cliente havia confiando ao Banco e, em execução desse mesmo plano, abriu deliberadamente a referida conta bancária em nome de CC, de forma a poder usar indiscriminadamente o saldo que transferia para a mesma conta (para o efeito tendo determinado a emissão de cartões bancários de que posteriormente se apropriou), assim ocultando a verdadeira e efectiva titularidade da conta e de molde a conferir a essa conduta uma aparência de legalidade das vantagens que ilicitamente obteve, ocultando assim a sua localização, disposição, movimentação e titularidade.
Foi admitida a instrução e, não tendo sido requeridas diligências de prova, nem se afigurando necessária a realização de outras diligencias complementares em sede de instrução, teve o lugar o debate instrutório, com observância do legal formalismo, conforme resulta da respectiva acta.
II. Saneamento
O Tribunal é competente, em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação, e a assistente tem legitimidade para exercer a presente acção penal.
Inexistem nulidades processuais ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da decisão instrutória.
III- Fundamentação
3.1.) Das finalidades da Instrução:
A fase processual da instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento, conforme disposto no art.º 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal, in casu, pelos factos e qualificação jurídica atribuída aos mesmos pelo Digno Ministério Público.
Como tal, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, conforme disposto nos artigos 308.º n.ºs 1 e 2 e 283.º n.º 2 do CPP, ou seja, não se reclamando uma prova tão exigente como é aquela que tem na base a condenação de um arguido em audiência de julgamento, a qual não se fazendo em tal fase, levará a que esse arguido beneficie do princípio «in dubio pro reo» e seja absolvido.
Assim sendo, não se pretende nesta fase recolher prova de que os crimes denunciados se verificaram, mas sim de apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelos arguidos de factos que constituam crime, bem como que tipos legais serão imputáveis.
Deste modo, considerando que a fase de instrução está assente num critério orientador do juízo indiciário e fazendo um juízo de prognose, e conforme resulta dos normativos legais supra citados, haverão de se considerar como suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Assim, e de um ponto de vista negativo, a insuficiência de indícios implicará uma decisão de abstenção da acção penal, mediante o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Todavia, a lei não definindo o conceito de “indícios suficientes”, tal função ficou a cargo da Doutrina e da Jurisprudência.
Segundo o Professor Figueiredo Dias, os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta fosse mais provável do que a absolvição (Cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias coligidas por Maria João Antunes Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, lições policopiadas, 1988-9 – pp. 133), aceitando o mesmo autor uma tese intermédia sobre o conceito em causa, que é defendida principalmente pelo Professor Germano Marques da Silva que, por seu turno, tratando o problema à luz do arquivamento do processo de inquérito, afirma que “não sendo possível formular um juízo positivo, impunha-se formalmente um juízo negativo e é esse que efectivamente traduz a decisão de arquivamento por insuficiência de prova: o arguido, quando o haja, há de continuar, para todos os efeitos, a presumir-se inocente” ( Cfr. SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português – Do procedimento (Marcha do processo), Vol. III, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 102).
Já Carlos Adérito Teixeira, entende que “apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dúbio pro reo”. Mais acrescenta o autor que “a formulação do juízo de indiciação suficiente pressupõe o estabelecimento de dois juízos prévios: o da admissibilidade legal do procedimento ou verificação das condições legais, adjetivas e substantivas; e o da suficiência do inquérito ou realização integral da investigação.” - in “Indícios Suficientes”: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação, Revista CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, Almedina, p. 180.
Verifica-se assim que a Doutrina se tem dividido entre três posições acerca do que deverá ser entendido por indícios suficientes: a primeira, segundo a qual se entende que o juiz deve pronunciar o Arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a convicção de que é mais provável que o Arguido tenha cometido o crime do que não o tenha feito, pelo que a lei não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Germano Marques da Silva); a segunda, que entende que não basta a maior probabilidade de condenação do que de absolvição, mas antes que deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade futura de condenação; e outra que equipara a convicção e quem acusa ou pronuncia com a convicção de quem julga e condena (Carlos Adérito Teixeira).
Afirmando que para ser proferido despacho de pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31/03/1993, in Colectânea de Jurisprudência, XVIII, 2, p. 65.
Igualmente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/05/2008 (disponível em www.dgsi.pt) é referido que (…) III - Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da infracção, bastando-se com indícios da sua prática, de onde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de ter sido cometido um crime pelo arguido.
IV - Assim sendo, os indícios probatórios – que não a mera discordância legal, doutrinal ou jurisprudencial – são suficientes sempre que dos mesmos resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – arts. 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
V - Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”. (sublinhados nossos)
Em face do exposto, por esta banda adoptamos o primeiro entendimento mencionado, na esteira do que alguma jurisprudência tem avançado quanto ao conceito de “indícios suficientes”, na medida em que, na instrução deve o juiz compulsar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consequência com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento quando verifique uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, e por força dos indícios constatados, uma pena ou medida de segurança.
3.2.) Dos crimes cuja prática é imputada (adicionalmente) ao arguido pela assistente BB:
Importa começar por fazer notar que nem a assistente BB, nem o próprio arguido, colocaram em causa, em sede de instrução, os factos que já vinham imputados ao arguido dos presentes autos, ou as qualificações jurídicas vertidas no libelo acusatório deduzido pelo Digno Ministério Público, que não constituem o objecto da presente instrução.
Acresce ser ainda de relevar que os crimes pelos quais a assistente BB pretende ver o arguido pronunciado são pela mesma imputados exclusivamente a respeito dos factos imputados ao mesmo por referência à ofendida CC (factos 1 a 51 da acusação pública), razão pela qual é exclusivamente sobre estes factos, em conjugação com os adicionalmente imputados em sede de requerimento de abertura de instrução, que versa a presente decisão, o que desde já se consigna.
3.2.1) Do Crime de Abuso de Confiança Qualificado:
Conforme já referido, a assistente BB imputa ao ora arguido a prática, além do mais (e no que diz respeito aos factos que lhe são imputados por referência à ofendida CC), de um crime de Abuso de Confiança Qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) do Código Penal.
Nos termos da disposição legal citada, “1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. (…)
4 - Se a coisa ou o animal referidos no n.º 1 forem: (…)
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos; (…)”.
Por seu turno, determina a alínea b) do artigo 202.º que se entende por “Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto;”, cumprindo indicar que o valor das unidades de conta se encontra fixado, desde Abril de 2009, em € 102,00 (cento e dois euros) – cfr. Cfr. artigo 121.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de Dezembro, por referência ao artigo 5.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.
O bem jurídico protegido no tipo de abuso de confiança corresponde à propriedade, enquanto poder de disposição sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma, pelo que o conceito de civil de propriedade se revela inadequando para todos os interesses tutelados no presente tipo, que abrange tanto as relações de propriedade propriamente ditas, como as relações de gozo.
O crime em causa corresponde a um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção), sendo os seus elementos constitutivos, na vertente objectiva, a apropriação de coisa móvel ou animal alheio, que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade. Como salientam os autores Miguez Garcia e Castela Rio, “Consiste em fazer própria a coisa alheia, no sentido de passar a conduzir-se como se fosse proprietário dela, invertendo a posse. Trata-se de um tipo aberto, que não exige um modus operandi determinado.” - Vide: Código Penal: Parte Geral e Especial – com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 3.ª Edição, 2018, p. 937.
Ora, correspondendo o objecto de acção do agente, no que ao presente caso importa, a uma coisa móvel, importa notar que também no que toca às noções de “coisa” e “móvel”, estas são independentes das noções civilísticas, pelo que, nas palavras de Paulo Pinto Albuquerque “é coisa móvel para efeitos penais toda a coisa (corpórea ou incorpórea) que tem existência física autónoma quantificável e pode ser fruída ou utilizada por uma pessoa” – Vide: Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição, Universidade Católica Editora, 2015, p. 794.
No que diz respeito à entrega da coisa, a mesma pode ocorrer mediante todo e qualquer acto ou negócio jurídico pelo qual o agente é investido no poder de disposição da coisa, ficando obrigado à devolução da mesma ao transmitente ou a um terceiro. Por seu turno, a entrega tem de ocorrer antes do momento da apropriação, como resulta claramente da expressão legal “tenha sido entregue”, e pode ser feita pelo proprietário, possuidor ou detentor legítimo da coisa, não implicando necessariamente a sua transmissão física.
Ademais, a entrega da coisa ao agente deve ocorrer por título não translativo da propriedade, importando ainda que a mesma entrega tenha ocorrido com um sentido de confiança no agente, esclarecendo a este respeito o Sr. Professor Jorge de Figueiredo Dias que “Neste sentido pode e deve dizer-se – com consciência das relevantíssimas consequências dogmáticas que a afirmação importa -- que o abuso de confiança e um delito especial, concretamente na forma de delito de dever, pelo que autor só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança que o liga ao proprietário da coisa recebida por titulo não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de restituição.” - Vide: Comentário ao Artigo 205.º do Código Penal, in: AA.VV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Volume I, artigos 202.º a 254.º, 2.ª Edição, Gestlegal, 2022, p. 114.
Importa, ainda, acrescentar que a entrega da coisa ao agente tem de ser lícita, uma vez que o direito penal não protege as relações de confiança entre delinquentes, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade e a própria natureza de última ratio da intervenção penal do Estado.
No que diz respeito ao elemento objectivo de apropriação, este traduz-se sempre, no contexto do crime de abuso de confiança, na inversão do título de posse ou detenção “através da prática de um ou mais atos concludentes do agente, de que resulte inequivocamente a intenção do agente de fazer a coisa sua, como por exemplo, quando o agente coloca á venda. Aliena, penhora ou doa a coisa (…). Assim, não constitui crime a mera não devolução pelo Arguido de coisa que recebeu por título não translativo da propriedade sem que a vontade de apropriação se tenha revelado numa conduta externa incompatível com a vontade de restituir a coisa (…) nem o mero extravio da coisa entregue a um depositário (…)” – Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário… Ob. Cit., p. 813.
Sobre este aspecto, afirma ainda o Prof. Figueiredo Dias que “Sob que forma deva manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que (…) se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário” (...)”. Ademais, refere ainda o aludido autor que “No abuso de confiança o agente terá de se apropriar da coisa para si (…) [o] que evidentemente sucede quando o agente dá a coisa a outra pessoa, seja gratuitamente ou contra uma qualquer vantagem: também nesse caso houve um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropriou da coisa para si (…)”. - Comentário…, Ob. Cit., p. 122 e 123.
Por fim, importa ainda referir que sobredita apropriação deve ainda ser ilegítima, sendo certo que, como ensina ainda o Prof. José de Figueiredo Dias “(…) no abuso de confiança a ilegitimidade refere-se directamente à apropriação, tratando-se portanto, ao menos neste sentido imediato, de um elemento do tipo objectivo (…)”, explicando o mesmo autor ainda que “(…) a apropriação não deve ter-se per ilegítima sempre que ela não acarrete uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade, maxime, porque o agente detém sobre o desapropriado uma pretensão jurídico-civilmente válida, já vencida e incondicional (…)”. - Comentário… Ob. Cit., p. 124.
Trata-se de um crime comum, não exigindo particulares qualidades ou características do agente para o seu preenchimento, exigindo-se dolo genérico enquanto elemento subjectivo do tipo, em qualquer das suas modalidades, traduzido na consciência e vontade de actuar da forma prevista no tipo, bastando, portanto, o dolo eventual.
3.2.1.1) Dos indícios suficientes de que o arguido praticou os factos constantes do requerimento de abertura de instrução (abstractamente subsumíeis ao crime de Abuso de Confiança Qualificado):
Como é sabido, objecto da instrução encontra-se limitado pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução.
No caso dos presentes autos, e conforme já supra exposto, não concordando com o Despacho de Acusação deduzido pelo Digno Ministério Público, veio a assistente BB requerer a abertura da Instrução, pugnando pela pronúncia do arguido, além do mais, pela prática do crime de Abuso de Confiança Qualificado em função dos factos relacionados com a indevida movimentação a débito, processada pelo arguido na conta de depósitos à ordem titulada por CC (pontos 30, 31, 35, 41, 42, 45, 46, 47 e 50), nomeadamente as várias transferências processadas porquanto o arguido, sendo à data colaborador do BB, dispondo de um código de operador/password pessoal e intransmissível, que utilizou para movimentar a mesma conta, movimentou a conta bancária da ofendida CC no âmbito das funções exercidas enquanto funcionário do Banco, apropriando-se das quantia melhor descritas no libelo acusatório, que lhe haviam sido confiadas no âmbito da sua actividade profissional (pois se encontrava investido num poder sobre essas mesmas quantias monetárias, que lhe deu a possibilidade de as desencaminhar e dissipar), tendo posteriormente, a partir dessa segunda conta, efectuado diversos pagamentos e levantamentos a seu próprio proveito, o que fez sem autorização da ofendida ou do Banco, e em seu benefício exclusivo, e assim causando prejuízo patrimonial à instituição bancária.
Ora, delineado o objecto da instrução, de forma sucinta, resulta inequívoco que tal questão suscitada pela assistente é de ordem jurídica, pelo que cumpre apreciar os factos em análise e a prova recolhida e produzida no inquérito e na instrução.
Dessa mesma prova decorrem indícios que levaram o Digno Ministério Público a imputar ao arguido a factualidade descrita nos pontos 30, 31, 35, 41, 42, 45, 46, 47 e 50 da acusação pública, que se dão aqui por reproduzidos (indiciação essa que, repita-se, não foi posta em causa, nem cumpre ser peremptoriamente afastada em sede da presente instrução).
Apreciada a factualidade indicada, bem como o crime de Abuso de Confiança que a assistente pretende ver imputado ao arguido, importa começar por referir que se considera duvidoso, ab initio, que tal conduta do arguido seja subsumível ao crime de Abuso de Confiança Qualificado, pois o arguido não se limitou, como pretende a assistente, a proceder a levantamentos ou a fazer pagamentos de e com as quantias monetárias confiadas pela ofendida CC à instituição bancária, mas sim a movimentar essas mesmas quantias, através do sistema informático a que tinha acesso por conta das suas funções, sem autorização e conhecimento da mesma, tudo em execução do plano que elaborou e executou, com vista a obter vantagens patrimoniais.
Ou seja, o arguido não se limitou a, sem mais, apropriar-se do dinheiro a que tinha acesso por conta do poder sobre os fundos bancários, decorrente das suas funções, fundos esses que haviam sido entregues e confiados à instituição bancária por título não translativo da propriedade.
Não se ignora a jurisprudência citada pela Assistente BB, em especial a vertida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-09-2014 (processo n.º 423/10.7TABGC.P2, disponível em www.dgsi.pt), no âmbito do qual se defende que, sendo o depósito bancário um depósito feito em dinheiro por um cliente junto de um banco, qualificado pela doutrina como um depósito irregular que tem por objecto coisa fungível, como é o dinheiro, e portanto um contrato real quoad effectum, de que resulta a transferência da propriedade da coisa para o depositário (razão pela qual se verificará o elemento essencial à estrutura objectiva típica da conduta no crime de abuso de confiança, que é a entrega da coisa por título não translativo da propriedade, na medida em que o depósito bancário terá como efeito a transmissão da propriedade do dinheiro para o banqueiro e que o depositante é um simples credor deste, a relação fiduciária que aqui intercede é entre a banco e o seu funcionário), uma vez que o funcionário, quebrando essa relação de fidúcia ao efectuar levantamentos de quantias monetárias, dinheiro que lhe é entregue pelo banco no pressuposto de entrega ao cliente/depositante, ao apoderar-se desse mesmo dinheiro e enriquecer o seu património, enquanto o titular da conta debitada é alheio aos levantamentos efectuados, está a fazê-lo em função de coisa (dinheiro) que lhe foi confiado por título não translativo da propriedade.
Desde já adiantando que se nos colocam sérias dúvidas sobre a construção supra descrita (uma vez que o arguido claramente não agiu com intenção de obter benefício económico em prejuízo da instituição bancária, com dolo de apropriação das quantias monetárias que a mesma instituição lhe entregasse para este disponibilizar à cliente/ofendida, mas sim, pelo contrário, movido pela intenção de obter benefício económico, e atendendo à idade, estado de saúde, nível de formação, discernimento e situação pessoal da ofendida) porém não a afastando (por se tratar de uma solução de direito plausível), importa ter em consideração que, no caso dos autos, toda a actuação do arguido, conforme foi possível apurar nos presentes autos, não se cingiu a meros levantamentos e/ou pagamentos de facturas e serviços, a partir das normais contas da ofendida, mas antes tendo o arguido dado vários passos além na sua actuação, com engano da mesma para abertura de uma nova conta bancária, qual depois o arguido movimentou livremente e sem lhe dar conhecimento, culminando na saída de fundos que CC tinha no Banco, que gastou em seu benefício (crime de burla qualificada) e manipulando dados informáticos, com vista a atingir tais resultados e consequentemente processar o movimento de transferências, saídas de quantias monetárias daquelas contas de CC e resgates de aplicações, como se fosse titular das mesmas ou a tal estivesse autorizado, levando a entidade bancária a viabilizar os movimentos bancários acima descritos em seu benefício, tudo como se de ordens validamente emitidas para dar impulso e processar os respectivos dados pela titular das contas se tratassem, bem sabendo que tal não correspondia à realidade, por não ser vontade da ofendida CC (crime de burla informática qualificada).
Nesta medida, a conduta do arguido não é idêntica à retractada na jurisprudência e doutrina a que faz alusão a assistente no Requerimento de Abertura de Instrução, pois o arguido não aproveitou apenas a oportunidade que detinha, de domínio sobre os saldos da ofendida, que lhe teriam a si sido transferidos por título não translativo pelo banco (para entregar à ofendida), mas antes tudo tendo o arguido feito de molde a obter o domínio, através do engano da ofendida e da própria instituição bancária, mediante manipulação de dados, com vista a atingir tais resultados pretendidos.
Assim, sobre esta matéria, ou seja, atendendo à factualidade indiciada e o enquadramento dos tipos criminais cuja prática é imputada ao arguido em sede de acusação pública, resulta efectivamente fortemente indiciado o cometimento dos factos talqualmente imputados nessa sede, que são subsumíveis ao tipo criminal de Burla Informática Qualificada, p. e p. pelo artigo 221.º, ns.º 1 e 5º, al.ª b), por referência ao art.º 202º, al.ª b), todos do Código Penal, na medida em que, tal como decorre da acusação pública:
a) com a sua conduta o arguido quis lesar gravemente CC na proporção dos valores que, da forma descrita, indevidamente movimentou e utilizou em seu benefício, sem autorização e conhecimento da mesma, tudo em execução do plano que elaborou e executou, com vista a obter vantagens patrimoniais, que sabia não serem devidas, correspondentes aos valores que efectivamente utilizou em seu proveito;
b) ao utilizar a conta bancária NIB … e determinar a adesão em nome da cliente CC ao programa bancário “…”, solicitando a emissão de cartões bancários multicanal, ficando com a password, e para ali efectuar transferências a débito da conta NIB …, da forma descrita, actuou com intenção de manipular dados com vista a atingir tais resultados e consequentemente a processar o movimento de transferências, saídas de quantias monetárias daquelas contas de CC e resgates de aplicações, como se fosse titular das mesmas ou a tal estivesse autorizado, levando a entidade bancária a viabilizar os movimentos bancários acima descritos em seu benefício, o que conseguiu;
c) tudo como se de ordens validamente emitidas para dar impulso e processar os respectivos dados pela titular das contas se tratassem, bem sabendo que tal não correspondia à realidade, por não ser vontade da ofendida CC.
d) no intuito alcançado de obter valores que sabia não lhe serem devidos, ciente que actuava sem autorização e conhecimento da titular das contas bancárias, causando-lhe um prejuízo patrimonial correspondente.
Note-se que no crime de burla informática, à semelhança do crime de burla matricial, o bem jurídico tutelado por esta incriminação é o património de outra pessoa, entendido este como qualquer bem, interesse ou direito economicamente relevante que o integre, podendo a sua lesão incidir em qualquer desses seus elementos.
Trata-se igualmente de um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido - dano no património do lesado, mediante utilização de meios informáticos), de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção – consumando-se com a efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial a outra pessoa), e são elementos objectivos deste tipo de burla: (i) a interferência no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programas informáticos, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento; e (ii) a causação de prejuízo patrimonial do enganado ou de uma terceira pessoa, traduzido na verificação de um evento consistente na saída dos bens ou valores da esfera da disponibilidade fáctica da vítima (sem o qual apenas poderá haver burla informática na forma tentada), independentemente da efectiva verificação do benefício económico do sujeito activo da infracção ou de terceiro.
A consumação do crime de burla informática tem de ocorrer, pois, através de um dos meios específicos seguintes: «a) Interferência do agente no resultado de tratamento de dados, isto é, servindo-se ele, diretamente, do computador, ou fornecendo dados falsos a quem tiver por tarefa introduzi-los no computador. b) Estruturação incorreta de programa informático, significando a modificação do programa em ordem a que as instruções sejam diferentes das inicialmente concebidas pelo proprietário - por exemplo, a introdução de novas instruções ou funções no programa, a eliminação ou alteração do seu processo de funcionamento, ou a modificação dos sistemas de controlo do próprio programa. c) Aproveitamento de dados sem autorização, o qual abrange, entre outras condutas, a utilização de cartões de crédito de caixas automáticas, tanto por terceiro não autorizado pelo seu titular, como a utilização abusiva por parte deste, quer dizer, ultrapassando o limite da disponibilidade monetária concedida. d) A intervenção no processo sem autorização, que é uma forma ampla que pretende evitar possíveis lacunas legais, abrangendo, por isso, outras situações não subsumíveis nas modalidades anteriores ou de duvidosa subsunção» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-01-2015 – Processo n.º 90/11.0GCLLE.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Trata-se, portanto, de um crime de execução vinculada, em que a conduta enganosa corresponde às diversas modalidades de acção típica que visam causar uma disposição computacional, verificando-se a ofensa ao bem jurídico através de utilização de meios informáticos. Donde, «o prejuízo patrimonial é consequência adequada da conduta do agente, sem a mediação do ofendido ou da pessoa enganada, no que se afasta da estrutura tradicional do crime de burla (…). O prejuízo pode ser causado a pessoa diversa do proprietário ou utente dos dados ou programas informáticos» (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª. Ed., UCE., 2015, p. 860).
Com efeito, na burla informática a lesão do património ocorre mediante a utilização directa que o agente faz dos meios informáticos, sem necessidade de qualquer intervenção de terceiros, em suma: «[a] burla informática, consiste sempre em um comportamento que constitui um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação a uma pessoa (como na burla p. e p. pelo art.º 217.º), mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados. Mas, prescindindo do erro ou engano em relação a uma pessoa, prevê, no entanto, actos com conteúdo material e final idênticos: manipulação dos sistemas informáticos, ou utilização sem autorização ou abusiva determinando a produção dolosa de prejuízo patrimonial. O tipo pretendeu abranger a utilização indevida de máquinas automáticas de pagamento (ATM), incluindo os casos de manipulação ou utilização indevida no sentido de utilização sem a vontade do titular» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16-06-2012 – Processo n.º 264/06.6GBPSR.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
De referir, ainda, que o enriquecimento ilegítimo neste tipo pode ocorrer por diversas formas, seja mediante um aumento patrimonial dos bens do agente ou de terceiro, seja através da diminuição do passivo patrimonial do agente ou de terceiro, seja ainda pela poupança de despesas, que são satisfeitas pelo lesado.
Ou seja, a conduta do arguido é subsumível ao crime de Burla Informática Qualificada, e não ao crime de Abuso de Confiança Qualificado.
Mesmo que assim não se entendesse, ou seja, mesmo que se considerasse que se encontram simultaneamente preenchidos ambos os tipos de crime referidos no parágrafo que antecede, o crime de Abuso de Confiança Qualificado encontrar-se-ia em concurso aparente com o crime de Burla Informática Qualificada, uma vez que este último, no plano da tipicidade, é um crime de execução vinculada, como se disse supra, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos.
A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30.º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados.
A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.
Com efeito, há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes “efectivamente cometidos”, é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.
A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.
Especialmente difícil na sua caracterização é a consumpção. Diz-se que há consumpção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor.
O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime.
Consabidos os contornos e bem jurídico tutelado pelo crime de burla informática, vejamos, então, em traços largos, de iguais elementos respeitantes ao crime de abuso de confiança.
O crime de burla informática é um crime de resultado - embora de resultado parcial ou cortado - exigindo que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém. A tipicidade do meio de obtenção de enriquecimento ilegítimo (com o prejuízo patrimonial de alguém) consiste, como resulta da descrição do tipo, na interferência “no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático”, na “utilização incorrecta ou incompleta de dados”, em “utilização de dados sem autorização” ou na “intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento”.
A perspectiva geral de enquadramento do tipo remete, especificamente, para a interferência e a intromissão ilegítimas, abusivas ou intencionalmente incorrectas em dados e/ou programas informáticos, com a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo.
Pela amplitude da descrição, o tipo do artigo 221.º n.º 1, parece constituir um plus relativamente ao modelo de protecção contra o abuso de confiança, previsto no artigo 205.º do Código Penal.
A dimensão típica remete, pois, para a realização de actos e operações específicas de intromissão e interferência em programas ou utilização de dados nos quais está presente e aos quais está subjacente algum modo de engano, de fraude ou de artifício que tenha a finalidade, e através da qual se realiza a específica intenção, de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial.
Note-se que a burla informática, na construção típica e na correspondente execução vinculada, há de consistir sempre um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação a uma pessoa (como na burla - artigo 217.º do Código Penal), mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.
Importa, por isso, apurar se os factos típicos se inserem no plano da unidade ou pluralidade de infracções.
A resolução das situações tem sido procurada através da indagação acerca da resolução criminal do agente. No caso perscrutada a factualidade julgada indiciada verifica-se que o que o arguido pretendeu foi, afinal, apropriar-se de quantias monetárias que não lhe pertenciam, causando prejuízo à vítima (e eventualmente ao banco), o que fez através de um acesso informático que, embora estivesse autorizado, não se destinava à conduta que veio a impetrar, tendo depois disso se apoderado das quantias sobre as quais ganhou poder por força das funções que desempenhava na instituição bancária, o que constitui apenas o meio, em unidade, da mesma acção empreendida, sem autonomia típica.
Neste circunstancialismo, teremos por referência, entre o mais, à imagem global do facto e a conexão temporal, um concurso aparente, uma vez que aquele acesso perdeu a autonomia típica sendo que a resolução criminosa mais forte é efectivamente a de causar de um prejuízo e um correlativo enriquecimento ilegítimo, através da manipulação de dados informáticos, como se veio a verificar.
Nesta perspectiva, e ante o acervo factual em causa nos autos, o que se deve concluir é que ocorreu uma única e contínua resolução criminal por parte do arguido, que é complexa e compreende tanto a sua intenção em manipular os dados, como de, nessa sequência, obter enriquecimento ilegítimo e causar prejuízo patrimonial. Caso contrário, o arguido teria, com muito menos dificuldade, feito meros levantamentos da conta da ofendida. Nestes termos o abuso de confiança surgiria como crime-meio da burla informática, esta como crime-fim.
Em termos doutrinários, que há crime-meio quando «um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Gestlegal, 2019, 3.ª edição, pp. 1182.
Assim, entendendo-se que existiu uma inversão do título da posse, elemento objectivo do abuso de confiança, esta surge como elemento constitutivo do crime de burla informática, na medida em que aquele se verifica concomitantemente e produz o prejuízo na esfera patrimonial da lesada, consumando-se o crime de burla informática, o que faria com que se estivesse perante uma relação de consunção, que conduz à conclusão de apenas se verificar a prática de um crime de burla informática, que na circunstância, nos termos já referidos é qualificada.
Em face do exposto, da acusação pública deduzida pelo Digno Ministério Público constam todos os factos que, a provarem-se, permitem a condenação do arguido pelos crimes que lhe são imputados, integrando a prática desses mesmos ilícitos criminais, porquanto as alegadas condutas são aptas a, em abstracto, preencher todos os elementos, objectivos e subjectivos, de tais tipos de crime.
Mais importa referir que o enquadramento jurídico é abstractamente correcto em face dos factos constantes da acusação, uma vez que os mesmos, analisados no seu todo, são subsumíveis aos elementos objectivos e subjectivo dos tipos imputados.
Contrariamente, os factos apurados e descritos tanto na acusação pública, como no Requerimento de Abertura de Instrução, não são passíveis de subsumir, em acrescendo, ao crime Abuso de Confiança Qualificado, impondo-se, assim, não pronunciar o arguido AA pela prática deste crime.
3.2.2) Do Crime de Branqueamento de Capitais
Relativamente ao crime de Branqueamento de Capitais, estabelece o artigo 368.º-A, n.ºs 1 alínea b) e c) 2, 3, do Código Penal, o seguinte:
“1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:
(…)
b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, contrafacção de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;
c) Falsidade informática, contrafacção de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, actos preparatórios da contrafacção, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, intercepção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;
2 - Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior.
3 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos.
(…)” – sublinhados nossos.
O crime de branqueamento de capitais pode ser definido como um crime de segundo grau ou um crime derivado porquanto, analisado o tipo incriminador, o preenchimento do tipo de crime em apreço encontra-se dependente da prática, em momento prévio de um outro tipo de crime, sendo que o n.º 1 do artigo 368.º-A do Código Penal prevê, concomitantemente, uma cláusula aberta – na qual se integram os “factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos” –, bem assim como uma catálogo de crimes.
O bem jurídico protegido pelo tipo incriminador reconduz-se à administração da justiça, o que resulta desde logo da sua inserção sistemática no Código Penal, estando o tipo integrado no título V do Código Penal (crimes contra o Estado) e capítulo dos crimes contra a realização da justiça, pelo que se pretende proteger o circuito financeiro, económico e jurídico, dele se expurgando bens de origem criminosa que aí buscam a sua legitimação, albergando a pretensão estatal de confiscar tais bens.
No que ora releva, o elemento objectivo do tipo de crime reconduz-se a adquirir, deter ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização de vantagens provenientes de um facto ilícito típico.
Como refere Lourenço Martins em RPCC 9 (1999) o branqueamento pode ser definido como “procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações”.
No que tange ao elemento subjectivo, este crime está previsto na forma dolosa (em qualquer uma das modalidades de dolo: directo, necessário ou eventual) – cf. artigos 368.º-A, n.º 5, 13.º e 14.º, do Código Penal –, sendo de salientar que, quanto à norma que ora releva, não se exige qualquer dolo específico.
Não obstante, só podem ser autores deste crime os agentes que tenham conhecimento dessa ilicitude, embora possam não saber das circunstâncias detalhadas da infracção cometida (como o tempo, o lugar, a forma de cometimento, quem foram o autor e a vítima): “exige-se que o agente, ao efectuar qualquer operação no procedimento mais ou menos complexo de conversão, transferência ou dissimulação, tenha conhecimento da natureza das actividades que originaram os bens ou produtos a converter, transferir ou dissimular” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014, processo n.º 14/07.0TRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Por outro lado, de referir ainda que é indiferente o papel que o agente desempenhe naquelas operações, podendo estar do lado activo, do lado passivo ou prestar mero aconselhamento.
3.2.2.1) Dos indícios suficientes de que o arguido praticou os factos constantes do requerimento de abertura de instrução (abstractamente subsumíveis ao crime de Branqueamento de Capitais):
Tal como já anteriormente sumariado, alega a assistente BB que, relativamente aos factos imputados ao aqui arguido no libelo acusatório, que dizem respeito à movimentação da conta de depósitos à ordem n.º …, que o mesmo abrira em nome da ofendida CC, os mesmos consubstanciam, concomitantemente, a prática do imputado crime de Branqueamento de Capitais, porquanto o arguido agiu sempre com o propósito formulado de se apoderar de quantias monetárias que tal cliente havia confiando ao Banco e, em execução desse mesmo plano, abriu deliberadamente a referida conta bancária em nome de CC, de forma a poder usar indiscriminadamente o saldo que transferia para a mesma conta (para o efeito tendo determinado a emissão de cartões bancários de que posteriormente se apropriou), assim ocultando a verdadeira e efectiva titularidade da conta e de molde a conferir a essa conduta uma aparência de legalidade das vantagens que ilicitamente obteve, ocultando assim a sua localização, disposição, movimentação e titularidade.
Cumprindo apreciar e decidir, importa relembrar que, em função dos factos relativos à abertura desta conta por parte do arguido, em nome e mediante engano da ofendida CC, aí circulando fundos que esta tinha no Banco, tudo em prejuízo desta, obtendo um incremento financeiro correspondente e a que sabia não ter direito, o arguido foi acusado pela prática do crime de Burla Qualificada, p. e p. pelo art.º 218º, n.º 1, 2, al.ª a), em articulação com os arts.º 217º e 202º, al.ª b), todos do Código Penal, e ainda de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro, em virtude de o mesmo ter introduzido no sistema bancário, como se estivesse legitimado a tal e se tratasse da titular CC, sabendo que iria gerar pedidos inverídicos de abertura de conta bancária, emissão de cartões e determinar movimentos a débito, a crédito e resgastes de aplicações/seguros, nos dados bancários existentes no BB em nome de CC, gerando os correspondentes impulsos electrónicos e registos como se tivessem sido determinados por esta e levando assim a que fossem geradas ordens de saídas/transferências de dinheiro, mediante a estruturação não consentida de dados e informações digitais, como se tivessem sido determinadas pela titular das contas bancárias, mais suscitando que a entidade bancária BB e respectivos colaboradores/funcionários erroneamente viabilizassem tais operações bancárias em seu benefício, com os decorrentes incrementos financeiros indevidos e que utilizou no seu proveito exclusivo.
Ademais, e tal como defende o Digno Ministério Público, a actuação do arguido AA, indiciada nos autos, e conforme consta expressamente do texto da acusação imputada ao mesmo, não indicia, concomitantemente, actos compatíveis com uma dissimulação da origem ilícita dos fundos que desviou e utilizou em seu proveito.
Importa, nesta fase, e de molde a esclarecer os contornos do crime de branqueamento de capitais, que “(…) O branqueamento de capitais passa por dois momentos nucleares: um primeiro, conhecido por money launder um outro chamado recycling. O money laundering (branqueamento de capitais) constitui o núcleo essencial do branqueamento de capitais. Pretende-se, através de operações que visam alcançá-lo, que as vantagens ou incrementos patrimoniais resultantes do facto ilicito-tipico anterior, sejam expeditamente libertadas dos vestígios da referida origem criminosa. Normalmente, neste momento, as referidas «vantagens» são ainda constituídas por dinheiro em numerário, e o respetivo branqueamento concretiza-se em negócios de curto prazo, os quais visam, como se referiu dissimular não só a sua origem, como a respetiva identificação. É, normalmente, o que se passa através da troca do dinheiro sujo por outros valores monetários, designadamente por notas de maior valor, ou pela troca desse dinheiro por outros bens facilmente transportáveis, como sejam jóias, metais e pedras preciosas, títulos de participação, abertura de contas bancárias noutros países, de preferência em nome de pessoas coletivas. Já a recycling (transformacão/conversão), quando chega a ter lugar, concretiza-se em operações ou «manipulações» através das quais as vantagens patrimoniais convertem-se para que ganhem aparência de se tratar de objetos de proveniência lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico. O que sucede, em regra, com a aplicação do dinheiro em grandes negócios, como pizarias e salas de espetáculos ou através da ligação a negócios bancários ou de sociedades financeiras” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.03.2022 (processo n.º 109/19.7TELSB-G.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme se afere da prova reunida em inquérito, o arguido terá engendrado um esquema para lograr fazer sair dinheiro das contas de clientes da assistente que logo tratou, de forma mais ou menos directa, de gastar em seu proveito, sem elaborado esforço de dissimular a sua origem ou destino, fosse pagando, levantando fundos directamente da conta da ofendida ou transferindo para a conta que directamente dominava em exclusivo, sem qualquer elaborado disfarce ou embuste que revelasse a sua intenção de ocultar, disfarçar ou travestir a origem criminosa de tais fundos; o arguido mais não fez do que utilizar vários meios de pagamento e de transferências de fundos consoante lhe foi mais conveniente em função de cada situação, ao longo do tempo, para satisfazer os seus gostos, na sequência de ter desviado os valores das contas dos clientes do Banco.
Indiciam fortemente os autos que a circunstância de o arguido ter aberto uma conta “secundária” em nome da ofendida CC, foi aliás uma prática auxiliar do seu plano de apropriação de quantias monetárias, por forma a que, emitindo um cartão bancário para essa mesma conta, assim pudesse o arguido movimentar livremente e a seu bel prazer os fundos da ofendida que passou então a transferir para essa mesma conta, movimentações essas facilmente identificáveis e perfeitamente rastreadas, o que aconteceu igualmente nos actos subsequentes à sua apropriação, que se consubstanciaram em operações diversas para satisfazer as vontades e necessidades do arguido, por várias formas, mais uma vez perfeitamente identificáveis, sem disfarce aferível, designadamente em compras que foi efectuando de bens e serviços para si ou para os seus familiares e amigos.
Nem sequer foram adquiridos bens que lograssem disfarçar a forma como foram adquiridos (repare-se que foram pagas contas de electricidade de contratos celebrados em nome do arguido, comprados bens de consumo, amortizadas prestações de contrato de crédito para aquisição de veículo (celebrado em nome do arguido), pagamentos de selos de IUC, despesas em farmácias, compras em estações de serviços, restaurantes, entre outros, conforme se descreve na acusação).
Na conduta do arguido, fortemente indiciada como descrita na acusação pública deduzida pelo Ministério Público, não houve qualquer acção do mesmo que revelasse a mínima intenção de disfarçar a forma como os fundos com que o mesmo se fez enriquecer entraram na sua esfera, nem como foram empregues, gastos e utilizados pelo arguido.
Não houve, assim, quaisquer operações de branqueamento do dinheiro desviado das contas da cliente (nem dos demais ofendidos, note-se) nem de reconversão subsequente para ocultar a sua origem ilícita e assim, na falta de tais indicações mínimas, não é plausível a imputação ao arguido da prática daquele ilícito.
A imputação do ilícito criminal requerido pela assistente apenas poderia perspectivar-se caso houvesse efectivas tentativas de disfarce da origem das quantias ilicitamente obtidas, tais como circulação por outras contas de terceiras pessoas, levantamento e entrega de numerário a terceiras pessoas, promiscuidade contabilística, intermediação de pessoas colectivas, circulação transnacional, investimentos de “fachada”, envolvimento de “testas de ferro”, aquisição de bens de elevado valor sem registo, entre outras.
Não se verificando nos autos quaisquer indícios de condutas concludentes, também nesta parte se entende que os factos apurados e descritos tanto na acusação pública, como no Requerimento de Abertura de Instrução, não são passíveis de subsumir, em acrescendo, ao crime Branqueamento de Capitais, impondo-se, assim, não pronunciar o arguido AA pela prática deste crime.
V – Decisão
Em face de todo o exposto, ao abrigo do artigo 308.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Penal, decide-se NÃO PRONUNCIAR o Arguido AA, melhor identificado nos autos, pela prática dos factos e ilícitos criminais descritos e imputados no Requerimento de Abertura de Instrução de fls. 2857 a 2903v. (para os quais se remete).
Sem custas para o arguido, que não requereu a abertura da instrução.
Custas pela assistente - artigo 515º, número 1, al. a) do Código de Processo Penal – as quais se fixam (de acordo com o disposto no artigo 8º, número 5, do RCP) em 2 UC, atenta a complexidade do processado que de si dependeu e meios disponibilizados e utilizados pelo sistema de administração da justiça na sua execução.
Vejamos então.
Nos termos do artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
E, estabelece o artigo 308º, nº 1, do mesmo, que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por seu turno, esclarece-se no artigo 283º, nº 2, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento do arguido.
Nessa aferição o tribunal aprecia a prova (indiciária) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.
Salienta Figueiredo Dias que “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E acrescenta ainda: “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” - Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 133.
Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pág. 189.
Assim, os indícios qualificam-se de “suficientes” quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função deles, for razoável.
No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo “indícios suficientes” de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a este conceito não pode alhear-se do mencionado princípio.
No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23/10, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “a interpretação normativa dos artigos citados (286º nº 1, 298º e 308º nº 1, do CPP) que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição” – e no mesmo sentido da aplicação deste princípio em qualquer fase do processo, nomeadamente no inquérito e na instrução, se perfilam, entre outros, os Acs. da Relação do Porto de 04/01/2006, Proc. nº 0513975 e de 22/10/2008, Proc. nº 0814910, bem como os da Relação de Lisboa de 02/05/2006, Proc. nº 849/2006-5 e 16/11/2010, Proc. nº 3555/09.TDLSB.L1-5, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento.
Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta.
Regressando à matéria concreta dos autos, há, pois, que questionar se, com base nos elementos de prova indiciária recolhidos é de formular um juízo de probabilidade elevada de que, em julgamento, o arguido venha a ser condenado pelos factos e incriminações legais imputados no Requerimento para Abertura da Instrução pela assistente.
Pois bem.
Como resulta do Requerimento para Abertura da Instrução (doravante RAI) apresentado, almeja a assistente seja o arguido pronunciado, para além dos crimes já constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público aos 14/03/2024, pelo cometimento do crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal, com fundamento em que os factos relacionados com a indevida movimentação processada na conta de depósitos à ordem titulada por CC com o nº …, materializada nas várias transferências processadas a débito naquela conta para crédito na conta de depósitos à ordem …, consubstanciam, com suficiente indiciação, a prática desse crime.
Ora, a tribunal a quo, quanto a esta problemática pronunciou-se de forma bem clara e desenvolvida, com suporte na doutrina e jurisprudência, expressando um entendimento que nos merece total concordância (apenas dissidimos da utilização na peça de expressões como “se considera duvidoso” e “sérias dúvidas”, que se não mostram adequadas), mostrando-se despiciendo mais acrescentar, pelo que cumpre também concluir que inexiste, no caso concreto em apreço, concurso efectivo entre o crime de burla informática qualificada, p. e p. pelo artigo 221º, nºs 1 e 5, alínea b), por referência ao artigo 202º, alínea b), do Código Penal e o crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205º nºs 1 e 4, do mesmo Código, assinalado pela assistente.
Termos em que, o recurso improcede neste segmento.
Mas, considera também a assistente (com adicionamento da factualidade correspondente, no RAI), que suficientemente indiciada está também a prática pelo arguido de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do Código Penal, relativamente à movimentação da conta de depósitos à ordem nº …, que abriu em nome da ofendida CC, aduzindo que “ao proceder à abertura da conta de depósitos à ordem n.º … e sua exclusiva movimentação, ocultou a verdadeira titularidade e movimentação dos montantes de que se apropriou”.
Ainda que não mereça o assentimento de todos os autores, considera-se que o bem jurídico protegido com a incriminação das condutas típicas é o da administração da justiça, na sua particular vertente de perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da atividade criminosa, como se salienta no Ac. da Relação de Lisboa de 21/03/2024, Proc. nº 183/20.3PCCSC.L1-9, consultável em www.dgsi.pt.
E, ainda seguindo o mesmo aresto, “o tipo objetivo consiste em converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si (se o autor for o mesmo há concurso efetivo entre o crime de branqueamento e o crime subjacente) ou por terceiro, direta ou indiretamente; ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens ou direitos a ele relativos; e adquirir, deter ou utilizar vantagens provenientes de facto ilícito típico cometido por outrem.”
Trata--se de um crime de cometimento exclusivamente a título doloso, sendo suficiente o conhecimento de que as vantagens são provenientes de factos típicos “de catálogo” ou puníveis com pena superior a 5 anos de prisão, como refere Edgar Valente, em Criminalidade económico financeira, nomeadamente crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem e de branqueamento de capitais: O Crime de Branqueamento, Questões Práticas Atuais, publicado aos 22/01/2025 e que pode ser lido em tre.tribunais.org.pt/documentacao/estudos-e-intervencoes. Ou seja, basta que o agente esteja ciente que as vantagens têm origem em algum dos crimes enunciado no nº 1 do artigo 368º--A e que esse conhecimento seja contemporâneo da operação de branqueamento.
O tipo subjectivo do crime de branqueamento previsto no nº 3, do artigo 368º-A, do Código Penal, inclui ainda um elemento subjectivo adicional, ou “elemento subjectivo específico”, qual seja: a intenção de dissimular a origem ilícita da vantagem ou a intenção de evitar que o autor ou participante das infracções previstas no nº 1 seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal.
No período em que o arguido efectuou as transferências da conta nº … para a nova conta nº … que abriu em nome da ofendida não se encontrava em vigor a versão do artigo 368º-A, do Código Penal introduzida pela Lei nº 58/2020, de 31/08 (que passou a vigorar no dia seguinte à sua publicação), mas a versão da Lei nº 83/2017, de 18/08, sendo que foi com aquela alteração de 2020 que o crime de burla informática passou a constar do catálogo dos crimes precedentes previstos no nº 1.
De qualquer forma, sendo o crime de burla informática qualificada previsto no artigo 221º, nºs 1 e 5, alínea b), do Código Penal (cuja indiciação não é criticada no recurso, como visto) punível com pena de 2 a 8 anos de prisão, sempre o mesmo estaria abrangido nesse nº 1, tendo em conta o segmento “factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos”.
Dito isto, consideramos que ao efectuar o arguido as transferências a débito da conta à ordem nº … para crédito na nova conta nº …, que abriu como sendo titular a ofendida, sem conhecimento desta e subsequentemente adquirindo bens e pagando despesas com os cartões bancários associados a esta última conta, visava ele dissimular a origem ilegítima, ilícita, do dinheiro de que, como é óbvio, estava perfeitamente ciente, pois foi ele que cometeu (indiciariamente, bem entendido) os factos integradores do crime de burla informática qualificada.
Como bem articulou a assistente no seu RAI: com a movimentação dos cartões adstritos à conta à ordem nº …, conseguiu o arguido, como queria, transferir as vantagens obtidas e ocultar a sua localização, disposição, movimentação e titularidade. Ao fazê-lo, agiu com a intenção de dissimular a origem ilícita dos valores patrimoniais de que se apropriara e de converter e transferir as vantagens ilicitamente obtidas por si, como era sua vontade, factualidade que se tem de considerar também como suficientemente indiciada, pois resulta da realização de um raciocínio de inferência tendo em conta a demais constante da acusação pública e as regras da experiência comum.
Mas, suscita-se a problemática, no caso sub judice, da eventual consunção do crime de branqueamento pelo de burla informática (qualificada).
Neste aspecto, fazemos apelo, ainda, à posição sustentada na referida intervenção Criminalidade económico financeira, nomeadamente crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem e de branqueamento de capitais: O Crime de Branqueamento, Questões Práticas Atuais, onde se alumia: “divergimos do entendimento, em concreto, de que estejam abrangidos pela unidade de sentido social o “lucro do crime antecedente (…) e a aquisição de bens ou serviços fora do núcleo da normalidade da vida quotidiana ou da mera subsistência (…) não fará sentido, na nossa opinião, a operatividade da consunção relativamente à aquisição de bens ou serviços que exorbitem desse núcleo de normalidade da vida quotidiana, para já não referir a (quanto a nós) óbvia exclusão do juízo de consunção quanto à aquisição de bens ou serviços sumptuários (como a aquisição de um veículo desportivo de luxo (…) Podem descortinar-se sentidos sociais de ilicitude diferenciados entre a atividade precedente (…) e o enriquecimento desmesurado com os proventos de tal atividade, havendo uma essencial césure entre tais condutas, não sendo de valorar qualquer comportamento global juridicamente relevante para efeitos de consunção de um pelo outro.
É evidente que (pelo menos a maioria) dos factos típicos ilícitos de catálogo são praticados visando o lucro e o enriquecimento. No entanto, a atividade de fazer aumentar a dificuldade de recuperar (pelo Estado) tais “vantagens”, aliada à dimensão desproporcionada das mesmas (sendo a proporção o provimento das necessidades da vida quotidiana), provocam um sentido social de ilicitude substancialmente diferenciado, não se afigurando fundada a sua unificação, permitindo a operacionalidade da consunção.
Descreve-se na acusação do Ministério Público, que o arguido determinou, à revelia de CC, os seguintes créditos na conta n.º 4556679866805:
- Em 14/06/2019 – o valor de 70.000,00 euros, a débito da conta nº ….
- Em 17/07/2019 – o valor de 1.250,00 euros, a débito da conta nº ….
- Em 24/07/2019 – o valor de 21.000,00 euros, a débito da conta nº ….
Bem assim, que o arguido, utilizando os cartões associados à aludida conta nº … e respectivas “passwords”, efetuou vários levantamentos em numerário e pagamentos em lojas, pagando vários serviços e despesas, tudo sem que CC soubesse ou tivesse autorizado, mormente:
- O pagamento, através do Multibanco, do valor de 4.007,90 euros referentes à compra para si de um aparelho de televisão plana.
- O pagamento do valor de 904,99 euros na aquisição para si de um sistema … que comprou na loja ….
- O pagamento do valor de 1.828,44 euros em artigos e produtos que adquiriu na loja on line “…”.
E, vero é que estes artigos, tanto pelas suas características, como pelo respectivo valor de aquisição, não estão abrangidos pelo retro referido núcleo de normalidade da vida quotidiana.
Destarte, a actuação do arguido descrita na acusação pública, com o adicionamento dos factos respectivos narrados no RAI da assistente, indicia suficientemente o preenchimento dos elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do Código Penal.
Destarte, o recurso merece provimento nesta parte.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela assistente “BB”, revogando-se parcialmente a decisão recorrida de não pronúncia, que deve ser substituída por outra que pronuncie o arguido pelos factos respectivos constantes do Requerimento para Abertura da Instrução por aquela apresentado e prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do Código Penal.
Sem tributação.
Évora, 25 de Fevereiro de 2025
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
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(Artur Vargues)
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(Edgar Gouveia Valente)
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(Anabela Simões Cardoso)
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1 Consultar, entre outros, Eduardo Fabian Caparrós, El delito de Blaqueo de Capitales, Madrid, Colex, 1998, Rodrigo Santiago, O Branqueamento de Capitais e outros Produtos do Crime, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4 (1994), de José de Oliveira Ascensão, Branqueamento de Capitais: reacção criminal, in Estudos de Direito Bancário, Coimbra Editora, 1999; de Lourenço Martins, o seu Branqueamento de Capitais: contra-medidas a nível internacional e nacional, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Julho-Setembro 1999, Jorge Alexandre Fernandes, Do Crime de Branqueamento de Capitais, Coimbra, Almedina, 2001, Jorge Manuel Vaz Monteiro Dias Duarte, o seu Branqueamento de Capitais - o regime do D.L.15/93, de 22 de Janeiro, e a normativa internacional, Porto, Universidade Católica, 2002, de Luís Goes Pinheiro, O Branqueamento de Capitais e a Globalização (facilidades na reciclagem, obstáculos à repressão e algumas propostas de política criminal), in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Outubro- Dezembro de 2002, João Davin, o Branqueamento de Capitais - breves notas, in Revista do Ministério Público, nº 91, Julho-Setembro de 2002, Nuno Brandão, o seu Branqueamento de Capitais: o sistema comunitário de prevenção, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, Vitalino Canas, O Crime de Branqueamento de Capitais: regime de prevenção e de repressão, Coimbra, Almedina, 2004; de Jorge Dias Duarte, A Lei nº 11/2004, de 27 de Março. O Novo Crime de Branqueamento de Capitais consagrado no artº 368º-A do Código Penal, in Revista do Ministério Público, nº 98, Abril-Junho de 2004.
2 Neste sentido, com interesse, Ac. Relação de Guimarães de 23.09.2020, relatora Cândida Martinho, procº 393/15.5JABRG.G1