O requerimento de abertura de instrução do assistente, enquanto peça processual destinada a requerer a submissão do arguido a julgamento, tem a mesma função essencial da acusação. O núcleo dessa função essencial é delimitar o objeto factual do processo, de modo a que o arguido possa conhecê-lo e, desse modo, exercer de forma eficaz o seu direito de defesa.
É jurisprudência constante dos Tribunais Superiores que caso o requerimento de abertura de instrução do assistente não contenha uma narração inteligível dos factos imputados aos arguidos, contendo todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo de crime, então a instrução deve ser rejeitada por legalmente inadmissível.
No Juízo de Instrução Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 3/21.1GASTR, no qual, mediante despacho judicial, foi decidido não admitir (em parte) o requerimento para abertura da instrução1 apresentado pelos assistentes AA e BB.
Inconformados com essa decisão, recorreram tais assistentes, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões (transcrição):
“1. A decisão de que ora se recorre deverá ser parcialmente revogada na parte que indeferiu a instrução contra CC, DD e EE, mantendo-se na parte que admite a abertura de instrução em relação a CC e ao seu gerente FF,
2. Na parte que indefere parcialmente a abertura de instrução, a decisão encontra-se raiada de erros e omissões.
3. O erro mais flagrante do despacho diz respeito à arguida GG.
4. Os assistentes não requereram abertura de instrução contra a arguida GG porque, contra quem, já tinha sido proferido despacho de acusação pelo MP, notificado a 16.01.2023, acompanhado pelos assistentes que também deduziram pedido de indemnização civil, conforme logo afirmaram no art.1 do seu RAI.
5. Contudo, o TIC perdeu cerca de uma página (início do 3º parágrafo de fls. 4 até ao final do 3º parágrafo de fls. 5) a discorrer sobre os motivos pelos quais (face ao RAI dos assistentes) nenhum crime podia ser imputado à arguida GG.
6. Isto, quando há 09 meses havia sido proferido despacho de acusação do MP contra GG a imputar-lhe o crime de maus tratos (art. 152º-A, nº 1 al. a) e nº 2 als. a) e b) do CP).
7. No requerimento de abertura de instrução (RAI) foram feitas algumas menções à mesma apenas para permitir explicar os fundamentos e raciocínio que levaram à abertura de instrução quantos aos demais denunciados.
8. Esta parte da decisão recorrida é bem reveladora do desconhecimento da tramitação processual e de falta de cuidado na leitura do RAI.
9. Nos termos do disposto no art. 287º, nº 2 do CPP o requerimento de abertura de instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas”
Dispõe o art. 283º do CPP ex vi art. 287º do CPP, que deve conter:
c) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplica
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
10. Isto é, embora não esteja sujeito a formalidades especiais o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve observar três condições essenciais:
a) sintetizar as razões da discordância da acusação – possibilitando, nesta perspetiva, a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito; (feito nas primeiras 20 páginas) b) narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias – é ele que vai delimitar o objeto do processo; (feito nas primeiras 20 páginas e igualmente de paginas 21 a final)
c) especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução (feito nas primas 20 páginas, junção de 3 documentos e 5 testemunhas, 3 delas novas, fls 20 e 21)
11. Os assistentes cumpriram o exigido pela lei processual penal.
12. Na 1ª parte do RAI – até à pag. 20 - expuseram as razões de facto e direito pelas quais discordam da não acusação dos denunciados HH, DD, EE, CC, FF e II.
13. Fizeram-no confrontando os depoimentos prestados em sede de inquérito por assistentes, testemunhas e denunciados e apontando as contradições; analisando os relatórios de alta do Hospital de … e o Relatório do Gabinete de Medicina Legal de …, elaborado na sequência de exame mandado fazer pelo Tribunal no âmbito deste processo, e ainda o Relatório Médico Pericial de Avaliação do Dano Corporal, que juntaram como prova nova, que foi admitida, que, pese embora não ter sido obtido nos termos dos arts. 163º e 151º do CPP, representa mais um elemento de prova a somar ao Relatório do Gabinete de Medicina Legal.
14. Contudo, sobre as razões da não concordância com o despacho de não acusação do Ministério Público, ou seja, sobre as primeiras 20 páginas do RAI, onde se deu cumprimento ao art. 287º, nº 2 do CPP o TIC não se pronunciou, menosprezando esta 1ª parte do RAI, essencial para a abertura de instrução pretendida porque nela (também) se expuseram indícios da prática dos crimes.
15. Passou de imediato para a 2ª parte do RAI, i.é, para a acusação alternativa dos assistentes em que se identificaram os arguidos pelo nome, NIF, estado civil, morada e profissão, a fls. 21 do RAI, enunciaram as datas dos factos, a maioria até com indicação de dia exato, os locais de ocorrência dos factos; os crimes cometidos e as normas jurídicas violadas, descreveram os factos e grau de participação dos denunciados e em que qualidade, invocaram elementos subjetivos – dolo, bem como elementos objetivos do crime – factos
16. O TIC simplesmente fez tábua rasa que o RAI deve ser apreciado na sua globalidade,
17. Entendeu também, erradamente, que a descrição do processo causal que deu origem ao falecimento padece de sérias falhas, porque não indica a causa da morte da ofendida, dizendo-se apenas que faleceu a 9 de janeiro, 3 dias após a segunda cirurgia, e que, no mais, existe apenas uma transcrição de um documento que os assistentes juntaram com o RAI, que é um relatório pericial (mas que não tem valor de prova pericial nos termos do art. 163º, nº1 e 151º cpp)
18. Pelo contrário, na 2ª parte do RAI não se transcreveu apenas um Relatório Pericial que não foi obtido nos termos dos arts 163º,nº 1 e 151º do CPP,
19. Transcreveu-se, em primeiro lugar, o relatório da medicina legal e as notas de alta hospitalares.
20. Mas, para além disso, descreveu-se o processo causal que deu origem ao falecimento, com indicação de locais, datas e evolução do estado de saúde da ofendida. Nomeadamente: Em outubro de 2021, quando a ofendida foi observada pela médica JJ, apresentava ferimentos, ulceras de pressão, nas pernas, pés e costas (art. 35), A ferida do pé direito tinha um prolongamento até à perna (art. 36), Sendo as feridas profundas, apresentando necroses, tecido de fibrina, odor nauseabundo, com sinais de infeção (art. 37) a ofendida foi (…) às urgências do Hospital de …, no dia … de outubro de 2021 (art. 39) A utente (…) tinha de ser submetida a intervenção cirúrgica para amputação das duas pernas (art. 40, 2ª parte) KK tinha enormes e profundas feridas nas pernas, pés e costas (art. 46)A … de outubro 2021, conforme nota de alta das urgências de Cirurgia do Hospital de …, a doente ao exame objetivo apresentava (art. 47)
a) Ferida da face externa da perna direita com e exposição tendinosa e supuração, feridas do pé e escara do calcâneo, com tecido necrosado fétido
b) Perna esquerda com algumas feridas a nível da perna e do pé, com placas de necrose.
A … de outubro 2021 a idosa foi internada no Hospital de … para ser submetida a cirurgia da pena direita, tendo alta a … de novembro de 2021. (art. 48) Segundo nota da alta, kk foi submetida a amputação supracondiliana do membro inferior direito, e limpeza cirúrgica de úlceras da perna e pé esquerdos. (doc. 12 – nota de alta, junto à queixa crime dos assistentes) (art. 49) A equipa médica tentou salvar a perna e pé esquerdo, tendo procedido à respetiva limpeza cirúrgica, mas, como decorre da Nota da Alta, as feridas desta perna e pé estavam já com aparente evolução desfavorável e havia eventual necessidade de amputação do membro inferior esquerdo (doc. 12, fls 2 - Nota de Alta do H…, …, junto à queixa crime dos assistentes) (art. 50) Como resulta, de modo particular da alta de enfermagem do Hospital, as referências a úlceras de pressão são recorrentes. (doc. 13 – nota alta enfermagem H…, junto à queixa crime dos assistentes) (art. 51) Contudo, a situação da perna esquerda já era crítica quando a ofendida esteve internada no Hospital de … a primeira vez para amputação da perna direita e, mesmo com os necessários cuidados de enfermagem, (art. 57)A … de dezembro de 2021, foi à Urgência cirúrgica do H…, devido às feridas da perna esquerda, tendo indicação para voltar no dia ….01.2022 para amputação do membro inferior esquerdo (doc. 14, fls. 2 – diário Clínico – urgências, junto à queixa crime dos assistentes) (art. 58) A … de janeiro de 2022 a idosa deu novamente entrada no H…, …, para realizar exame de Medicina Legal ordenado pelo Tribunal no âmbito destes autos, passando depois para o internamento para amputação da perna esquerda. (art. 59) transcreveu-se o relatório do GABINETE MÉDICO LEGAL DE LEIRIA no (art. 60) Após realizar o exame Médico Legal, a ofendida passou para o internamento para ser submetida a cirurgia à perna esquerda (doc. 15 – nota de alta, junto à queixa crime dos assistentes) (art. 61) Consta da Nota de Alta (já falecida) que foi levada para o serviço de urgência por gangrena da perna esquerda e para ser submetida a amputação supracondiliana esquerda. (doc. 15 – nota de alta, junto à queixa dos assistentes) (art. 62) No dia … de janeiro de 2022, três dias após a segunda cirurgia, kk faleceu, no Hospital …, em … (doc. 16 - certidão de óbito, junto à queixa dos assistentes) (art. 63) transcreveu-se o RELATÓRIO MÉDICO PERICIAL, ELABORADO PELO PROF. DR. LL, no (art. 64) Acrescentaram, a definição da DGS de úlceras de pressão (art. 65) e suas causas (art. 66), e, entre outros, que: ao longo dos meses a formação das lesões dos membros inferiores e da profunda ferida nas costas, as intervenções cirúrgicas a posteriores tratamentos de enfermagem nos períodos que esteve no hospital e no Lar do …, necessariamente terão sido particularmente dolorosos para a infeliz idosa (art. 71) e culminaram na perda do direito à vida (art.72)
21. Pelo que, não se limitaram a transcrever o relatório do Médico Prof. LL nem a dizer que a ofendida morreu passados 3 dias.
22. Foram enunciados factos, locais, datas, evolução do estado de saúde da ofendida, remetendo-se posteriormente para documentos, que se transcreveram, para prova do alegado.
23. Aliás, foi com base nos factos narrados e na transcrição de documentos que o TIC admitiu a abertura de instrução contra CC e seu sócio gerente FF pelos crimes de maus tratos (art. 152º, nº 1 a) e nº 2 a) do CP) e homicídio qualificado (art. 132º, nº 1 e 2 c) do CP),
24. Se a descrição foi bastante para esse efeito também o será quanto aos demais denunciados, e trata-se de mais uma contradição da decisão.
25. Ao contrário da decisão do TIC os assistentes elencaram factos para definir a posição de garante de HH e seus sócios gerentes nos arts. 4, 5, 6, 7, 8, 9,73, 74 e 86 da acusação alternativa, assim: A … de julho de 2018 a idosa foi residir para o lar … (art. 4) explorado por HH, sociedade comercial por quotas de que eram sócios gerentes DD e EE (art. 5) para estar acompanhada e para que lhe fossem prestados todos os necessários cuidados de saúde, higiene, alimentação, hidratação e outros necessários à sua idade e condição frágil (art. 6), foram enumeradas as necessidades da ofendida no (art. 7)
Na sequência do contrato celebrado entre os filhos da ofendida, AA e BB, e a sociedade HH e respetivos sócios gerentes, estes comprometeram-se a assegurar que as referidas necessidades da ofendida eram integralmente salvaguardadas (art.8) No Lar … os filhos da ofendida começaram por pagar 700,00€ de mensalidade, a que acresciam despesas com fraldas e medicamentos. (art. 9) A idosa era pessoa especialmente vulnerável, desprotegida e indefesa em razão da idade avançada e da doença, e foi vítima de maus tratos quando estava ao cuidado e sob orientação de Lar de Idosos, seus gerentes, diretora técnica, funcionárias e prestadores de serviços. (art. 73) Lar que cobrava mensalidades, que eram pagas, para tratar condignamente da idosa. (docs. 17 a 33 - alguns dos talões entregues pelo Lar emitidos por HH e depois por CC, 2 faturas de HH e último cheque entregue, juntos à queixa crime dos assistentes) (art. 74)
Quando idosos são acolhidos em instituições ou lares de acolhimento e de assistência, através de um contrato de prestação de serviços remunerado, esta relação negocial transfere para o proprietário e para a direção técnica e os cuidadores ao serviço da instituição ou do lar, o dever de garante da saúde física, mental, psíquica, do bem-estar emocional, da satisfação das necessidades mais básicas inerentes à própria sobrevivência, como a alimentação, a higiene, a saúde, a toma de medicação adequada, a assistência médica e hospitalar que se mostrarem necessárias, além de outros deveres de cuidado e assistência, com aqueles que, pela sua idade avançada, são mais vulneráveis e estão dependentes de terceiros. (art. 86)
26. Mais, entendeu o TIC que não faz sentido imputar a HH e seus gerentes factos relativos a lesões que apenas ocorreram (de acordo com os limites temporais do RAI dos assistentes) em outubro de 2021, quando desde julho-agosto desse ano a sociedade não era responsável pelo cuidado da idosa
27. Como se disse na pag. 2, art. 1º do RAI, o despacho de arquivamento parcial de que se abriu instrução omite dois fatores importantes: o fator espaço e o fator tempo.
28. Sobre o factor tempo o TIC comete o erro de confundir observação com formação de escaras.
30. Como é do conhecimento comum, escaras de pressão não ocorrem num dia certo, nem os assistentes o afirmaram. As escaras de pressão formam-se e vão-se desenvolvendo ao longo do tempo se não forem devidamente tratadas.
31. A médica JJ viu as escaras em outubro e encaminhou a idosa para o hospital, não o poderia ter feito antes porque só em outubro passou a prestar serviços no Lar.
32. Mas o que se defende é que as feridas, pelas suas dimensões, se começaram a formar muito antes de outubro, caso contrário não teriam atingido tais proporções
33. Por outro lado, DD - sócio gerente de HH e desde 25.12.2021 de CC -afirmou (referindo-se ao Lar …)que a instituição é sua propriedade, mas de 15 de julho a 25 de dezembro 2021 o filho FF exerceu as funções de gerente do espaço,
34. Que tem conhecimento pelas funcionárias de tudo o que se passa na instituição bem como de todos os problemas que venham a ocorrer.
35. E que em agosto de 2021 a ofendida tinha já um ponto de cor negra, o que lhe foi relatado por uma funcionária, e – relaciona esta ocasião com o casamento do neto da ofendida -que foi a 4 de agosto
36. E que a partir dessa data começou a desenvolver feridas na zona das pernas
37. É sua convicção que não foi dada assistencia correcta à utente.
38. Ainda que restringíssemos os factos aos meses de agosto a outubro de 2021 (o que não fazemos) o arguido DD era o efetivo dono do Lar e todos lhe prestavam contas.
39. A propriedade e a gerência de facto era dele, e depois veio a assumir a gerência de direito em substituição do seu filho FF
Pelo que, sempre terá de ser admitida a abertura de instrução contra o mesmo.
40. E sua esposa, a denunciada EE também continuava a trabalhar no lar. Foi ela que no dia 04 de agosto recebeu a assistente, marido e filho, lhes levou a ofendida à sala, e lhes disse que ela estava bem.
41. Pelo que – e sem concerder – ainda que nos limitássemos aos meses de agosto em diante sempre estes dois denunciados seriam responsáveis, se mais não fosse a título pessoal e não como gerentes de HH.
42. Tudo isto foi exposto na 1ª parte do RAI, arts. 42, 43, 44,46,47, 50, 51, 52, 53 e 54, bem como no art. 42, da acusação alternativa
43. Contudo, como resultado Relatório do Gabinete de Medicina Legal de …, as lesões e sequelas referidas no relatório (que se transcreveu) terão resultado de imobilização prolongada no leito com formação de escaras de pressão e infeção das mesmas e inexistência de exigente, atempada e continua prestação de cuidados que casos desta natureza exigem (art. 60, 2ª parte do RAI)
44. E do Relatório Médico Pericial elaborado pelo Médico e Prof. Dr. LL, as lesões, ter-se-ão constituído, entre 3 e 5 meses antes de fim de outubro (escaras de pressão evoluída), outras entre 4 e 7 meses antes do fim de outubro (escaras depressão evoluída) e as mais antigas (profunda úlcera do decúbito sacro-coccigea) entre 5 a 9 meses antes do fim de outubro 2021 (art. 64, 2ª parte do RAI)
45. Ou seja, as escaras nos pés e pernas e do decúbito sacro-coccigea (costas) iniciaram a sua formação muito antes de outubro, ou mesmo de agosto, de 2021, tendo continuado sempre a agravar-se por falta de tratamento.
46. Iniciaram a sua formação quando ainda era HH que explorava o Lar … e gerentes, que ai também trabalhavam, DD e EE,
47. Que não proporcionaram à ofendida uma cama anti escaras, mantiveram-na deitada sem mudanças de posição e levantamentos regulares, falta de cuidados médicos e de enfermagem, higiene, hidratação, alimentação e demais cuidados necessário (art. 67, 2ª parte do RAI)
48. Termos em, violaram o dever de garante ao omitiram dolosamente cuidados médicos, medicamentos, de higiene, enfermagem e hospitalares à ofendida (art. 68, 69,70, 2ª parte do RAI)
49. Devendo ser admitida a instrução contra a sociedade e contra os seus sócios gerentes.
50. Defende ainda o despacho que nos pontos 14. a 25. do RAI se refere que a ofendida apresentou lesões mas não se descreve de forma clara qual a causa da lesões e em que medida são imputáveis à conduta dos arguidos. Apenas refere o que foi dito pela arguida EE quanto à causa dessas lesões e faz referência que quanto a uma das lesões foi dito ao neto da ofendida que tudo indicava que a lesão era proveniente de agressão física; Conclui que houve 3 ou 4 situações de maus tratos ou, pelo menos, caso se tenham tratado de quedas de cama, de negligência de cuidados. Não é apontada uma versão dos factos que responsabilize os arguidos, mas apenas são feitas referências a meios de prova e se formulam hipóteses alternativas de forma vaga e conclusiva, pelo que este segmento não pode ser utilizado para imputar a prática de um crime seja a quem for.
51. Ora, ao contrario do exarado no despacho, resulta dos arts.14 a 25 que: Em agosto 2019, a ofendida tinha a face magoada, com feridas e bastante vermelha, quando visitada pela sua filha e genro. (art. 14), Que noutra ocasião de 2019, a ofendida tinha marcas de ferimento na face, nomeadamente hematomas de cor vermelho, quando visitada por seu filho BB (art. 21), Noutra altura de 2019, tinha marcas de ferimento na cara, nomeadamente hematomas de cor vermelho, quando visitada por MM (art. 22),Ainda, no mesmo ano, tinha marcas de hematomas vermelhos na cara e pequenas feridas quando novamente visitada por MM (art. 23)E, também em 2019 teve marcas de ferimento e um galo na cabeça, quando visitada por MM.
52. Porque apenas viram as lesões mas não a forma como ocorreram é natural que constatem o facto e identificam cada uma das pessoas que observaram as lesões para ser possível distinguiras várias ocorrências, visto que não saberemos dias exatos, apenas o ano, com exceção da primeira vez que ocorreu em agosto de 2019.
53. Referiu-se que a sócia gerente do Lar, EE, lhes disse por 3 vezes que a idosa tinha caído da cama, uma vez que tinha sido um bicho, e outra que por vezes que por vezes ficava assim com a cara.
54. E imputam responsabilidade aos denunciados e invocam como deveriam agir, quanto às quedas da cama, quando dizem no art. 16 que era uma cama de madeira, normal, sem grades, apesar de a utente padecer de alzheimer que a impedia de falar e, consequentemente, de se queixar ou pedir auxílio, e que a assistente AA e o marido alertaram para a necessidade de colocarem uma grade na cama ou de a trocarem para tipo de cama mais adequado à sua condição (art. 17)
55. A responsabilização de HH foi invocada nos art. 6 e 7, 8, 9 e nos art. 73, 74, 74, 85 e 86, que resumimos: A ofendida foi internada no Lar por necessitar de acompanhamento e que lhe fosse prestado apoio a nível de higiene, cuidados de saúde, hidratação, alimentação e outros necessários à sua idade e condição frágil; que para isso os filhos pagavam mensalidade a HH que se comprometeu a prestar essa assistência; que esta tinha um dever de garante face à ofendida.
56. Estando a idosa internada naquele lar, inteiramente dependente dos cuidados prestados pelos gerentes, que nele também trabalhavam, a responsabilidade por qualquer ocorrência será sempre imputada ao lar e seus gerentes.
57. Aliás, até a transferência da utente das instalações primitivas para as “novas” é da responsabilidade de HH, que apenas o comunicou aos familiares,
58. Que só posteriormente tiveram conhecimento da existência da sociedade CC, pois quem viam nas novas instalações continuavam a ser os denunciados EE e marido DD
59. Defende ainda o despacho que o segmento está repleto de fórmulas vagas e imprecisas, versões alternativas dos factos, conclusões e menções a meios de prova que tornam essa peça insuficiente para sustentar o exercício eficaz do direito de defesa dos arguidos
60. Os assistentes na acusação alternativa identificam os denunciados contra quem pretendem que seja aberta instrução, descrevem os factos por ordem cronológica, indicam os locais onde sucederam e os dias, meses ou anos, indicam os crimes praticados e as normas penais violadas, indicaram os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime e prova.
61. Cada um tem a sua maneira de escrever e a da Signatária poderá não ser a mais direta, a mais sintética, mas os factos foram elencados de forma que torna a peça percetível a quem a lê, nomeadamente aos arguidos e permite a sua defesa,
62. A menção a meios de prova não invalida a acusação e, ainda menos, numa acusação alternativa que, no final da instrução, dará origem a um despacho de pronúncia redigido pelo Juiz.
63. Ora, os assistentes transcreveram documentos, nomeadamente, nota da alta de 21.10.2021, na parte que descreve as feridas da perna direita e esquerda (art. 47)
64. Contudo, previamente, nos arts. 35,36,37 e 46 havia descrito as feridas nas pernas sem remissão para qualquer documento.
65. No art. 49 refere nota de alta de 11.11.2021, referindo que foi submetida a amputação supracordiliana do membro inferior direito e limpeza cirúrgica de úlcera da perna e pé esquerdos
66. Mas, previamente, no art. 48, havia alegado que a … de outubro de 2021 a idosa foi internada no Hospital … para ser submetida a cirurgia para amputação da perna direita, tendo alta a … de novembro de 2021.
67. No art. 62 mencionam nota de alta (já falecida) referindo que foi levada para o serviço de urgência por gangrena da perna esquerda e para ser submetida a amputação supradordiliaa esquerda.
68. Mas, previamente haviam dito, no art. 59, que a … de janeiro a idosa deu novamente entrada no h… …, para realizar exame médico legal, passando depois para o internamento para amputação da perna esquerda, e no mesmo sentido o art. 61.
69. E o mesmo se diga do Relatório elaborado pelo Gabinete Médico Legal de …, ordenado pelo tribunal no âmbito destes autos, na sequência do exame do dia … de janeiro de 2022, que se transcreveu no art. 60, descrição, obviamente com mais detalhe, das lesões já referidas nos demais artigos e que é prova irrefutável.
70. Ou seja, os documentos transcritos são a prova dos factos previamente alegados.
71. O relatório pericial junto, e que foi admitido, será meio de prova, porque conjugado com os demais e elaborado com base nos documentos hospitalares e do GML e análise das fotografias juntas aos autos também terá toda a validade.
72. Pelo que carecem de validade os fundamentos invocados para indeferir a instrução.
73. Segundo Acordão TRC, proc. 5/17.2 GCSEI.C1, de 17.01.2018,
I - No requerimento para abertura da instrução devem estar descritos todos os elementos típicos do crime que se imputa ao arguido, quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos, sem a verificação dos quais não existe punição, de acordo com o princípio “nulla poena sine culpa”. II - Quando a assistente verteu no RAI a narração dos factos, objectivos e subjectivos, que imputa à arguida, fundamentadores da aplicação de uma sanção penal, indicando as disposições legais aplicáveis, inexiste fundamento para a sua rejeição por inadmissibilidade legal da instrução
74. Ao decidir nos termos em que o fez, o TIC violou o disposto nos arts. 287º, nº 1 b, e nº 3, 286, e 283º do CPP.
75. Termos em que o RAI deverá ser julgado legalmente admissível, devendo o despacho recorrido ser, nesta parte, revogado por inexistência de motivo para rejeição, e substituído por outro que admita a instrução, o que se requer.”
O recurso foi admitido.
Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu (transcrição):
“1. O presente recurso tem por objeto aferir se o RAI dos recorrentes está estruturado de acordo com as exigências legais aplicáveis à acusação, em obediência ao disposto no n.º 2, do artigo 287.º, do Código Processo Penal, nomeadamente se contém a narração dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes de maus tratos e de homicídio qualificado, p.p., respetivamente, pelos artºs 152º-A, nº 1, al. a) e 2 e artº 132º, nº 1 e nº 2., al. c), ambos do Código Penal, que imputaram aos arguidos “HH”, DD, EE e II;
2. Na senda da decisão proferida no AUJ nº 1/ 2015, tem vindo a ser estendido que a falta de narração factual, na acusação, de elementos subjetivos e/ou objetivos do tipo de crime não pode ser complementada pelo Juiz (seja o de julgamento ou de Instrução) sob pena de tal decisão estar ferida de nulidade por violação do disposto no artº 309º, nº 1 do CPPenal;
3. No caso dos autos, os recorrentes imputam aos arguidos, pessoas singulares e pessoas coletivas, a prática, em concurso real e em autoria material, de dois crimes sendo que, no que tange à pessoa coletiva “HH.”, o crime de homicídio não lhe pode ser imputado uma vez que tal ilícito não consta do elenco de crimes pelos quais podem tais entidades serem responsabilizadas criminalmente;
4. Acresce que, não tendo sido alegados quaisquer factos referentes ao crime negligente respetivo (seja por referência ao homicídio negligente seja por referência ao crime de maus tratos agravado pelo resultado morte), é manifesto que no que tange à pessoa coletiva denominada “HH”, não seria possível admitir o RAI dos recorrentes na parte relativa ao referido ilícito;
5. No que se refere ao arguido II, os factos que lhe são imputados constam dos pontos 10, 11 e 12 do RAI e onde se pode ler o seguinte: “A 24 de novembro de 2028 o médico, Dr. II, emitiu declaração, enquanto médico responsável pelo acompanhamento clínico dos utentes da Casa de …, em como a utente KK não se encontra em condições físicas e psíquicas para poder gerir qualquer ato quer oficial quer pessoal; pelo que, pelo menos desde aquela data, que o Dr. II Tinha consciência da condição frágil da ofendida; E consequentemente, da necessidade de acompanhamento médico superveniente, que não realizou.”.
6. Da simples leitura de tal articulado é manifesto que não é narrado qualquer ato praticado por tal arguido passível de consubstanciar o crime de maus tratos e muito menos resulta de tal alegação, qualquer facto passível de consubstanciar a prática, por tal arguido, de um crime de homicídio qualificado uma vez que a não realização de acompanhamento, que é, em si, uma conclusão, não se materializou em qualquer situação concreta;
7. Face a tal ausência de alegação dos concretos atos praticados por tal arguido, quer a titulo de ação quer a titulo de omissão, não se pode extrair o elemento subjetivo descrito nos pontos 84, 85, 86, 87, 88 e 89 do RAI o qual, necessariamente, tem de ser extraídos a partir de factos exteriores que exteriorizem o dolo do tipo;
8. Relativamente aos arguidos “HH” e aos seus sócios gerentes, importa, antes de mais atentar que os crimes em causa nos autos são imputados a título de autoria material e não sob a forma de qualquer comparticipação criminosa, não sendo narrado qualquer facto de onde resulte que os arguidos atuaram em coautoria, como autores mediatos ou outra, nomeadamente, com o arguido FF, legal representante da sociedade “CC.”;
9. Importa ainda, ter presente que nos parece que é imputada aos arguidos duas espécies de condutas distintas, uma delas praticada por ação e a outra por omissão;
10. Assim, até julho/agosto de 2021 a ofendida estava aos cuidados da sociedade denominada “HH” da qual eram sócios-gerentes os arguidos ….
11. A partir de julho/agosto de 2021 e até 11.11.2021 (ou mais precisamente, 28.10.2021 – data em que foi internada no Centro Hospitalar de …) os cuidados da ofendida passaram a estar a cargo da sociedade “CC” da qual é gerente o arguido FF.
12. Assim, e por referência ao período em que a ofendida esteve ao cuidado dos arguidos “HH” da qual eram sócios-gerentes os arguidos …, os factos narrados constam dos pontos 13 a 24 do RAI.
13. Da sua leitura fica-se com a ideia de que, aparentemente, terão sido praticados factos atentatórios da integridade física da ofendida – Ofensa à integridade física- mas, curiosamente, no ponto 25 levanta-se também a hipótese de se tratar de “manifesta negligência de cuidados”.
14. Na verdade, os recorrentes relatam aquilo que foi visualizado por AA e marido (ponto 14), por BB (ponto 20) e MM (ponto 22 e 23), bem como a justificação que foi dada por EE, não descrevendo quaisquer concretas condutas que cada um dos arguidos possa ter levado a cabo;
15. Para além de tal omissão, os recorrentes parecem deixar ao critério do julgador a conclusão a extrair de tais testemunhos, pois terminam tal narração com a seguinte alegação “Houve, pelo menos, três ou quatro situações de maus tratos na pessoa da ofendida ou, pelo menos, caso se tenham tratado de quedas da cama, de manifesta negligência de cuidados.” (cf. ponto 24);
16. Os restantes factos alegados e constantes dos pontos 26 até final, ocorreram entre julho/agosto de 2021 até 28.10.2021, portanto quando a ofendida estava ao cuidado da sociedade “CC”.
17. Com efeito, no ponto 26 do RAI começa-se por referir que “Em julho/agosto de 2021, o mencionado Lar …, onde a ofendida residia, passou a ser explorado pela sociedade “CC”. de que era seu legal representante FF, filho de DD (cf. artº 30) e o local onde o lar passou a funcionar e onde passaram a residir os utentes e a trabalhar os funcionários;
18. Após tal data não se faz mais nenhuma referência aos arguidos “HH”, DD e EE, exceto no ponto 42, onde se refere que, em agosto de 2021, quando o lar funcionava na Av. …, “todos lhes asseguraram, em particular a gerente EE, que a idosa estava bem de saúde (…)”;
19. Porém, em tal data, o lar era explorado por entidade diferente e na qual arguida EE não exercia qualquer cargo de gerência, ou, pelo menos, não é narrado qualquer facto de onde se possa extrair que tal arguida era gerente de facto;
20. Acresce que, pese embora se refira (por referência às conclusões da perícia transcritas no ponto 64 do RAI) que as lesões observadas (escaras e ulceras de pressão) terão resultado de imobilização prolongada e inexistência de atempada e contínua prestação de cuidados adequados exigidos”, nada se refere quanto à data em que tais lesões surgiram;
21. O que se diz é, tão só “Atendendo a que, desde o ano de 2018, a idosa residia naquele Lar, as lesões acima referidas são resultado do Lar não lhe ter proporcionado uma cama anti escaras e de manter deitada, sem mudança de posição e levantamentos regulares, a par de falta de cuidados médicos e de enfermagem, de higiene, conveniente alimentação, hidratação e demais cuidados necessários.”.
22. Tal como se refere no ponto 68 do RAI, as lesões descritas não se formam em semanas, “são fruto de incúria e maus tratos de vários meses”.
23. Ora, considerando que os recorrentes imputam o crime de maus tratos e de homicídio, a titulo de autoria material e que entre 2018 e 28 de outubro de 2021, a exploração do Lar foi efetuada por duas entidades distintas, impunha-se fixar (ainda que de forma aproximada) qual a data a partir da qual tais lesões surgiram;
24. Não nos podemos esquecer que um dos crimes imputados aos arguidos é o de maus tratos o qual, segundo a ratio do artº 152º-A, o agente tem de estar numa determinada relação com a vitima à qual inflige “(…), de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente”;
25. No domínio dos crimes omissivos, nomeadamente nos crimes impróprios de omissão, a situação típica terá de se traduzir na ausência de ação devida ou esperada a qual há de resultar daquilo que segundo a situação típica é necessário para obstar à verificação do resultado típico.
26. Em qualquer caso o resultado típico terá que ser objetivamente imputado a tal omissão, pelo menos de modo a poder afirmar-se que “a ação esperada ou devida deve ser tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico” – in Jorge Figueiredo Dias, in Direito Penal, questões fundamentais a doutrina geral do crime – parte geral tomo I, pág. 695.
27. No caso dos autos, resultando da narrativa factual efetuada pelos recorrentes, que a conduta omissiva ocorreu ao longo de anos, seria necessário estabelecer-se qualquer conexão entre as condutas omissivas de cada um dos arguidos no período em que, por força de contrato (ou da sua transmissão) assumiu o dever de garante relativamente à ofendida.
28. No entanto, a acusação é omissa quanto a tais factos, sendo que a narrativa parece compartimentar comportamentos pois que, alguns comportamentos são situados no ano de 2019 quando a ofendida estava aos cuidados da sociedade “HH” e respetivos sócios gerentes;
29. Mas os outros comportamentos são situados em julho/agosto de 2021, quando a ofendida passou a estar aos cuidados da sociedade “CC” e seu legal representante, sendo que em tal período e para tal período não é descrito qualquer facto que permita concluir que os arguidos “HH” e seus legais representantes continuaram a ter à sua guarda, ao seu cuidado ou sob a sua responsabilidade a vítima e, consequentemente, continuaram a assumiu o dever de garante relativamente àquela;
30. As omissões que acabamos de apontar para o crime de maus-tratos são igualmente válidas para o crime de homicídio que os recorrentes igualmente imputam aos arguidos;
31. Assim, porque o RAI é omisso quanto a elementos caracterizadores do dever de garante que recaiu sobre os arguidos “HH”, DD, EE e II nomeadamente no que tange às condutas omissivas, nem elementos caracterizadores de condutas atentatórias da integridade física da ofendida alegadamente ocorridas no período em que esta esteve aos cuidados de tais arguidos, bem andou o Mmo Juiz do Tribunal “ a quo” ao rejeitar parcialmente o RAI dos ora recorrentes, apenas admitindo o segmento narrativo que permite uma possível imputação criminal aos arguidos “CC” e seu legal representante;
Pugnando, em síntese, pelo seguinte:
“Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.”
O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de “que deve ser negado provimento ao recurso e mantido o douto despacho recorrido.”
Procedeu-se a exame preliminar.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal2, dando os assistentes “por integralmente reproduzidas, as alegações já apresentadas em sede de recurso”.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:
“I - Da (in)admissibilidade parcial da instrução requerida pelos arguidos:
Pretendem os assistentes submeter a julgamento os arguidos:
a) “HH”;
b) DD;
c) EE;
d) “CC”;
e) FF; e
f) II;
Imputando-lhes a prática dos crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A e n.º 2 do Código Penal, e homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132º, n.º 2, al. c) do Código Penal.
Cumpre notar que nos termos do artigo 287º, n.º 2, do CPP, é aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo código.
Ou seja, o assistente deve elencar, no seu requerimento de abertura de instrução:
“b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(…)
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;”.
Isto porque o requerimento de abertura de instrução do assistente, enquanto peça processual destinada a requerer a submissão do arguido a julgamento, tem a mesma função essencial da acusação. O núcleo dessa função essencial é delimitar o objeto factual do processo, de modo a que o arguido possa conhecê-lo e, desse modo, exercer de forma eficaz o seu direito de defesa.
É jurisprudência constante dos Tribunais Superiores que caso o requerimento de abertura de instrução do assistente não contenha uma narração inteligível dos factos imputados aos arguidos, contendo todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo de crime, então a instrução deve ser rejeitada por legalmente inadmissível (cfr. entre muitíssimos outros – Ac. da Rel. de Évora de 25-05-2023, proc. n.º 485%22.4GARMR.E1, Ac. STJ de 31-05-2022, proc. n.º 260/21.3TRLSB, disponíveis em www.dgsi.pt).
Mais se nota que a imputação do crime ao arguido deve assentar em factos concretos, destas se distinguindo as conclusões, as imputações vagas e a mera referência a meios de prova, sendo que as conclusões, imputações genéricas ou outras alegações que não correspondem a factos e que inviabilizam o exercício de um efetivo direito de defesa devem considerar-se como não escritas – vg. neste sentido entre outros Ac. Rel. de Évora de 26-04-2022, proc. n.º 8/18.0PBPTM-I-E1, in www.dgsi.pt.
De igual modo se nota que esta imputação de factos deve ser uma narração, ou seja uma sequência de factos lógica e cronologicamente sequenciados, pois só desse modo o arguido pode exercer eficazmente o seu direito de defesa.
Não cabe nem ao Tribunal nem ao arguido andar a “pescar” no meio de um conjunto de alusões vagas e conclusivas pelos factos que se lhe pretendem imputar, para depois ser este a reconstituir o puzzle factual e a construir uma narrativa, na esperança que seja a correta.
Os assistentes (na pessoa da sua I. Mandatária) compreenderam genericamente esta imposição, tendo dedicado um segmento autónomo do reu requerimento de abertura de instrução a deduzir a chamada “acusação alternativa” ou seja, elencando os factos pelos quais, no seu entender, o MºPº deveria ter acusado.
No entanto, ainda assim, esse segmento está repleto de formulas vagas e imprecisas, versões alternativas dos factos, conclusões e menções a meios de prova que tornam essa peça insuficiente para sustentar o exercício eficaz do direito de defesa dos arguidos.
Uma nota também para referir que a menção e referência a meios de prova também não pode substituir a alegação dos factos subjacentes.
É completamente diferente dizer “O Sr. A deu um murro na face do Sr. B” ou dizer “O Sr. C, disse em inquérito que o Sr. A deu um murro no Sr. B”. No primeiro caso estamos a afirmar de forma clara e concreta um facto com possível relevância criminal. No segundo estamos apenas a reproduzir as declarações de outrem, sendo que tal não é forma própria de alegar o evento subjacente, nem tal alegação pode ser feita por meio de “insinuação”. A alegação deve ser clara e unívoca, não podendo prestar-se a interpretações divergentes.
*
Passaremos pois por analisar o RAI dos assistentes, na parte em que descreve os factos pelos quais pretende a submissão dos arguidos a julgamento (pág. 21 e ss. dessa peça processual), para aferir se e em que medida o mesmo pode sustentar essa “acusação alternativa”.
No caso, são imputados aos arguidos crimes que alegadamente terão ocorrido por ação e por omissão.
Nos crimes por ação a acusação (e o RAI do assistente) deve esclarecer qual a conduta concreta imputada a cada um dos arguidos.
Nos pontos 14. a 25. do RAI, no segmento da descrição dos factos a imputar aos arguidos, refere-se que a ofendida apresentou lesões, mas não se descreve de forma clara (como é exigível num libelo acusatório) qual a causa dessas lesões e em que medida são imputáveis à conduta dos arguidos.
Apenas refere o que foi dito pela arguida EE quanto à causa dessas lesões e a faz referência à menção de que quanto a uma das lesões, foi dito a um neto da ofendida (NN) que “tudo indicava que a lesão era proveniente de agressão física”.
Conclui assim que “houve pelo menor três ou quatro situações de maus-tratos na pessoa da ofendida ou, pelo menos, caso se tenham tratado de quedas da cama, de manifesta negligência de cuidados”.
Ora não é apontada aqui, verdadeiramente, uma versão dos factos que responsabilize os arguidos, mas apenas são feitas referências a meios de prova e se formulam hipóteses alternativas de forma vaga e conclusiva.
Este segmento da alegação não pode, pois, ser utilizado para imputar seja a quem for a prática de um crime.
Cumpre também notar que nos crimes por omissão a acusação deve definir em termos concretos qual a conduta lícita alternativa, ou seja deve elencar quais os atos concretos que os arguidos (por referência a cada um deles) poderiam e deveriam ter praticado (e quando) de modo a evitar o resultado típico.
Necessário é também elencar os factos necessários para definir a chamada posição de garante, ou seja, qual o motivo pelo qual o arguido tem o dever jurídico de evitar o resultado típico.
Também aqui os assistentes falham no seu dever de alegação, desde logo quanto aos arguidos GG e II.
Referem os assistentes que a arguida GG os contactou, identificando-se como Diretora Técnica do Lar (mais uma vez se nota que não se afirma que a mesmo fosse diretora técnica do lar, apenas que se identificou nessa qualidade), em 21 de outubro de 2021, requerendo o seu consentimento para intervenção cirúrgica de amputação.
No dia 28 de outubro de 2021 a ofendida foi então submetida a essa intervenção e após alta, não mais voltou ao lar em causa.
Os assistentes afirmam que as lesões causadas na ofendida são o resultado de um processo causal prolongado no tempo, desde o ano de 2018, e que terminou em 28-10-2021, quando a ofendida saiu do lar, decorrente da falta de cuidados como utilização de cama anti-escaras, mudança de posição e levantamentos regulares, higiene regular e hidratação .
O que não resulta do RAI dos assistentes (que tem neste processo a função de acusação) é saber se de facto GG era diretora do dito lar (ou se apenas se identificou como tal) e na afirmativa, durante quanto tempo (até 28-10-2021), é que esta exerceu tais funções.
Isto porque na narração efetuada pelo RAI dos arguidos a dita GG apenas intervém dias antes do final de um processo causal que durou anos e que logo após culminou na amputação da perna esquerda da ofendida e, segundo o RAI veio a desencadear a sua morte.
Para que a responsabilidade por este processo causal lhe possa ser imputada, seria necessário alegar que a dita arguida teria exercido efetivamente as funções de diretora técnica do lar, assumindo a supervisão dos cuidados dos idosos aí acolhidos, durante um lapso de tempo significativo, e que, durante esse lapso de tempo, tenha omitido os cuidados que supra se referem.
Da leitura do RAI, no segmento da imputação dos factos, tal não resulta.
Assim sendo, por via do RAI dos arguidos, nenhum crime pode ser imputado à arguida GG.
De igual modo, quanto ao Dr.II, apenas se diz que este, emitiu em 24-11-2018 declaração onde afirmou que a ofendida “não se encontra em condições físicas e psíquicas para poder gerir qualquer ato da sua vida pessoal”, pelo que desde esta data tinha conhecimento da sua “especial fragilidade” e da necessidade de “acompanhamento médico superveniente” que não realizou (artigos 10. a 12. do RAI no segmento da imputação de factos).
Ora este segmento, que visa fundamentar a responsabilidade jurídico penal do arguido II pelos maus-tratos e morte da ofendida, mas não é do que um conjunto de expressões vagas e conclusivas que não permitem definir concretamente qual o conhecimento do arguido da situação concreta de saúde da ofendida (a incapacidade referida pode advir das mais diversas causas), nem definir concretamente qual o comportamento lícito alternativo (quais os atos médicos que o arguido deveria em concreto ter praticado e omitiu).
*
Também na descrição do processo causal que deu origem ao falecimento o RAI padece de sérias falhas.
Desde logo porque no segmento da imputação de factos nem tão pouco se indica a causa de morte da ofendida dizendo-se apenas que a mesma faleceu no dia … de janeiro de 2022, três dias após a segunda cirurgia.
No mais, existe apenas uma transcrição de um documento que os assistentes juntaram aos autos com o RAI que é um Relatório Pericial (mas que não tem o valor de prova pericial nos termos do artigo 163º, n.º 1, do CPP, pois a sua produção não ocorreu nos termos dos artigos 151º e ss. desse código).
Mais uma vez aqui se confunde a alegação de um facto com a descrição de um meio de prova.
Nota-se que o que aí consta é apenas a opinião do médico que subscreve esse relatório e que muitas vezes se baseia em dados que não são observações clínicas, como por exemplo quando fala de eventuais episódios de agressão física cujas putativas lesões não foram observadas por qualquer profissional de saúde, mas sim pelas declarações do neto da ofendida.
Por outro lado, esse relatório é em si mesmo contraditório nas suas conclusões nomeadamente quando na conclusão b) refere que “é de admitir que as lesões em causa possam ter resultado da inexistência de atempada e contínua prestação de cuidados adequados exigidos em casos desta natureza”, fazendo aqui um mero juízo de possibilidade e não de certeza.
Já na conclusão d) refere que se verificou “omissão de cuidados, causadora do dano corporal de que resultou a morte de KK.”, dando a entender já um juízo de certeza.
Existem diferenças apreciáveis entre um relatório clínico e uma acusação, não podendo “cortar” e “colar” citações de uma informação médica para com estas suprir um ónus de alegação que é essencialmente jurídico e com graus de exigência diferentes.
Os médicos, como praticantes de uma ciência, lidam factos derivados de um conhecimento probabilístico (ou seja, com probabilidades), ao passo que os juristas lidam com factos que devem ser alegados de forma certa e clara, tendo em conta os requisitos derivados da lei penal e processual penal à qual os médicos são alheios.
Os arguidos devem defender-se de acusações com factos concretos, formuladas nos termos da lei, e não de relatórios médicos que não são formulados tendo em conta as disposições legais aplicáveis à acusação.
*
De igual modo, quanto à responsabilização criminal da sociedade HH e seus gerentes, o RAI é omisso quanto a factos que a possibilitem.
Notamos a este respeito que, de acordo com o iter factual descrito no RAI (no segmento relativo à imputação de factos), a ofendida esteve no Lar …, explorado pela sociadade “HH” a partir de 18 de julho de 2028.
Em julho/agosto de 2021, tal lar passou a ser explorado pela sociedade “CC”.
Apenas em outubro de 2021 foram observadas na ofendida úlceras de pressão nas pernas, pés e costas, que levaram ao seu internamento e posteriores cirurgias (ponto 35. da imputação de factos).
As lesões em causa alegadamente resultam de “desde 2018”, pela falta de cuidados como utilização de cama anti-escaras, mudança de posição e levantamentos regulares, higiene regular e hidratação.
Ora não faz qualquer sentido imputar à sociedade “HH” (e seus gerentes) factos relativos a lesões que apenas ocorreram (de acordo com os limites temporais definidos no RAI dos assistentes) em outubro de 2021, quando já desde julho/agosto desse ano que essa sociedade não era responsável pelos cuidados da idosa.
Note-se também que, como já dissemos supra, as lesões descritas ocorridas anteriormente (nos pontos 14. a 25. do RAI) não descrevem adequadamente a sua causa pelo que não podem sustentar a imputação criminal seja de quem for.
*
Resta assim a possível imputação criminal do crime de maus-tratos (p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal) à arguida “CC” e ao seu gerente FF, bem como a possível prática, por este último, de um crime de homicídio qualificado (p. e p. pelos artigos 132º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Código Penal) posto que as pessoas coletivas não respondem por este último crime (artigo 11º, a contrario, do Código Penal).
*
Termos em que, com os fundamentos expostos:
a) admito apenas parcialmente o RAI dos assistentes quanto aos arguidos “CC” e ao seu gerente FF; e
b) no mais rejeito o RAI dos assistentes, por inadmissibilidade legal.”
Reproduz-se, na parte que interessa à presente decisão, o RAI deduzido pelos assistentes ora recorrentes:
“Pelo que deve ser proferido despacho de pronuncia e deduzida acusação contra os denunciados infra identificados,
1.HH, NIF …, com sede em Rua …, ….
2. DD, casado, NIF …, residente em Rua …, …, sócio gerente de HH.
3. EE, casada com DD, NIF …, residente em Rua …, …, sócia gerente de HH.
4.CC, NIF …, com sede em Avenida …, …, a laborar em Av. …, …, ….
5.FF, NIF …, solteiro, maior, residente em Rua …, nº…, …, sócio gerente de CC.
6. II, …, Rua do …, …
Porquanto,
1. A ofendida KK nasceu a ….1937.
2. Por padecer de …, e na sequência de uma queda, KK deixou de ter condições para permanecer sozinha na sua residência, por não conseguir zelar pela sua própria alimentação, higiene, vestuário e cuidados de saúde.
3. Pelo que os filhos, AA e BB, se viram obrigados a procurar instituição para lhe prestar os devidos cuidados.
4. A 18 de julho de 2018 a idosa foi residir para o Lar …,
5. Explorado por HH, sociedade comercial por quotas de que eram sócios-gerentes DD e EE.
6. Para estar acompanhada e para que lhe fossem prestados todos os necessários cuidados de saúde, higiene, alimentação, hidratação e outros necessários à sua idade e condição frágil.
7. Quando a ofendida foi integrada no Lar «…» necessitava:
i) Da administração de medicamentos por terceiros, com respeito pelas prescrições médicas;
ii) Da prestação de cuidados de higiene pessoal, do tratamento de roupa, da higiene dos espaços,
iii) Que fosse alimentada por terceira pessoa,
iv) De alimentação adequada às suas necessidades,
v) De cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde;
vi) Da prestação de cuidados de bem-estar físico, como ser mudada, com frequência, de posição (por exemplo, da posição de deitada, para a posição de sentada), de forma a evitar o aparecimento de úlceras de pressão.
8. Na sequência do contrato celebrado entre os filhos da ofendida, AA e BB, e a sociedade HH e respetivos sócios-gerentes, estes comprometeram-se a assegurar que as referidas necessidades da ofendida eram integralmente salvaguardadas.
9. No Lar «…», os filhos da ofendida começaram por pagar 700,00€ (setecentos euros) de mensalidade, a que acresciam despesas com fraldas e medicamentos,
10. A 24 de novembro de 2018, o médico, Dr. II, emitiu declaração, enquanto médico responsável pelo acompanhamento clínico dos utentes da Casa de …, em como a utente KK não se encontra em condições físicas e psíquicas para poder gerir qualquer ato quer oficial quer pessoal.
11. Pelo que, pelo menos desde aquela data, que o Dr. II tinha consciência da condição frágil da ofendida.
12. E, consequentemente, da necessidade de acompanhamento médico superveniente, que não realizou.
13. Em data anterior a agosto de 2019 a ofendida deixou de conseguir falar, de se expressar e comunicar.
14. Em agosto de 2019 a denunciante AA e o marido OO, ao visitarem KK, encontraram-na com a cara inchada e ferida.
15. Interpelada a gerente do Lar, EE, esta afirmou que KK tinha caído da cama.
16. Era uma cama de madeira, “normal”, sem grades, apesar de a utente padecer de … que a impedia de falar e, consequentemente, de se queixar ou pedir auxílio.
17. AA e marido alertaram para a necessidade de colocarem uma grade na cama ou de a trocarem para tipo de cama mais adequada à sua condição física.
18. No dia 06 de janeiro de 2022, quando o neto da idosa, NN, por ordem judicial, levou a idosa ao Gabinete de Medicina Legal do Centro Hospitalar de …, mostrou a fotografia que é o doc.3 junto à queixa crime, e foi-lhe dito que uma queda da cama não causaria aquele tipo de lesão, que tudo indicava que a lesão era resultante de agressão física.
19. Para além desta vez em que a idosa foi vista com a cara inchada e ferida, pela filha e pelo genro, em agosto de 2019,
20. Numa visita do filho BB, em 2019, a gerente EE não queria que ele fosse visitar a ofendida dizendo “até tenho vergonha que a veja assim.”
21. Apesar disso visitou a mãe e constatou que a ofendida tinha a face magoada, com feridas e bastante vermelha, tendo EE dito que a ofendida tinha caído da cama abaixo quando lhe estavam a mudar a fralda.
22. MM, namorado há vários anos da neta da ofendida, e que visitava a ofendida de 15 em 15 dias, no ano 2019, em data que não sabe precisar, numa das visitas à ofendida, visualizou que esta estava com marcas de ferimento na cara, nomeadamente estava com hematomas, de cor vermelha. Questionou a proprietária da instituição, a Sra. EE o porquê daqueles hematomas, tendo esta respondido “que por vezes a ofendida ficava assim com a cara” e não tendo dado mais qualquer tipo de justificação
23. Passado pouco tempo, ainda no ano 2019, (…) voltou a visualizar a ofendida com marcas de hematomas vermelhos na cara e com pequenas feridas. (…) EE disse-lhe, antes deste entrar no interior do quarto da ofendida, que a mesma “estava com algum inchaço na cara e que suspeitava que tinha sido um bicho que a tivesse mordido”
24. Que, ainda no ano 2019 (…) visualizou novamente a ofendida com marcas de ferimento, desta vez com um alto, “galo”, na cabeça, tendo a Sra. EE informado que (…) “ A ofendida tinha caído da cama abaixo quando se tentou levantar”
25. Houve, pelo menos, três ou quatro situações de maus tratos na pessoa da ofendida ou, pelo menos, caso se tenham tratado de quedas da cama, de manifesta negligência de cuidados.
26. Em julho/agosto de 2021, o mencionado Lar …, onde a ofendida residia, passou a ser explorado pela sociedade «CC”,
27. Sociedade comercial por quotas que tem como objeto social a atividade de apoio social para pessoas idosas, com alojamento e alimentação, e labora na residencial …, sita na Avenida …, em ….
28. A dita sociedade foi constituída a 05.06.2021
29. Era sócio – gerente, FF, filho de DD, este, por sua vez sócio gerente de HH.
30. FF exerceu aquelas funções desde a constituição da sociedade até dezembro de 2021, conforme confirmado por seu pai DD e consta do registo comercial.
31. Em agosto de 2021, o Lar …, onde a ofendida residia, foi transferido de local e passou a funcionar na residencial …, na Avenida …, ….
32. Os utentes (nomeadamente a ofendida) e os funcionários que trabalhavam no lar «…» (antes sito na Estrada …, Avenida …, n.º …, …) passaram a residir e trabalhar, respetivamente, na Avenida …, n.º …, …,
33. Esta alteração da sociedade exploradora do Lar ocorreu sem que previamente tivesse sido dado conhecimento aos familiares da ofendida.
34. Apenas foi comunicado aos familiares que, no mês seguinte (i.e. agosto2021), iam mudar de instalações e, por isso, a mensalidade aumentava 50,00€.
35. Em outubro de 2021, quando, a ofendida foi observada pela médica JJ, apresentava ferimentos, úlceras de pressão, nas pernas, pés e costas,
36. A ferida do pé direito tinha um prolongamento até à perna,
37. Sendo as feridas profundas, apresentando necroses, tecido de fibrina, odor nauseabundo, com sinais de infeção.
38. A médica procedeu ao encaminhamento da ofendida para as urgências do Hospital de …, em …,
39. A ofendida foi transportada pelos Bombeiros Voluntários de … às Urgências do Hospital de …, no dia 21 de outubro de 2021.
40. Nesse dia 21 de outubro de 2021, o filho BB e a filha AA receberam telefonemas da arguida GG, que se identificou como diretora técnica do Lar, a comunicar que a utente KK tinha de ser submetida a intervenção cirúrgica para amputação das duas pernas e a questionar se prestavam o seu consentimento ao referido ato.
41. AA e marido OO, residentes em …, deslocaram-se de imediato para Portugal, para averiguar pessoalmente o que se passava,
42. Pois, em agosto desse mesmo ano 2021 – ainda não tinha feito dois meses! – tinham estado várias vezes no Lar - já a funcionar nas novas instalações sitas em Av. …, …, … - e todos lhes asseguraram, em particular a gerente EE, que a idosa estava bem de saúde e que iria iniciar terapia da fala.
43. Em outubro de 2021, incrédulos com o que lhes foi relatado no Lar, mandaram chamar ambulância e levaram a ofendida KK ao Centro Hospitalar de …, em …, para que a examinassem e lhes dessem uma segunda opinião sobre a necessidade de amputar as pernas.
44. Pediram autorização ao médico para presenciar e fotografar, enquanto examinavam e tratavam KK, tendo as fotos juntas à queixa crime sido tiradas nessa ocasião (doc. 6,7,8 e 9 – fotos das pernas, pés e costas/sacro, juntas à queixa crime dos assistentes)
45. Atendendo à gravidade das lesões, o médico do … foi de opinião que KK deveria ser encaminhada para o Centro Hospitalar de … e submetida a cirurgia.
46. KK tinha enormes e profundas feridas nas pernas, pés e costas,(doc. 6,7,8 e 9 - fotos das pernas, pés e costas)
47. A 21 de outubro de 2021, conforme nota da alta da Urgência de Cirurgia do Hospital de … (H…), a doente ao exame objetivo apresentava: (doc. 5 – nota de alta, junto à queixa crime dos assistentes)
a) ferida da face externa da perna direita, com exposição tendinosa e supuração, feridas do pé e escara do calcâneo com tecido necrosado fétido,
b) perna esquerda com algumas feridas a nível da perna e pé com placas de necrose”
48. A … de outubro de 2021 a idosa foi internada no Hospital de … (H…), para ser submetida a cirurgia para amputação da perna direita, tendo alta a … de novembro de 2021, (doc. 10 e 11, fotos tiradas no Centro Hospitalar de …, após ter sido amputada a perna à idosa, junto à queixa crime dos assistentes)
49. Segundo nota da alta, KK foi submetida a amputação supracondiliana do membro inferior direito, e limpeza cirúrgica de úlceras da perna e pé esquerdos. (doc. 12 – nota de alta, junto à queixa crime dos assistentes)
50. A equipa médica tentou salvar a perna e pé esquerdo, tendo procedido à respetiva limpeza cirúrgica, mas, como decorre da Nota da Alta, as feridas desta perna e pé estavam já com aparente evolução desfavorável e havia eventual necessidade de amputação do membro inferior esquerdo (doc. 12, fls 2 - Nota de Alta do H…, …, junto à queixa crime dos assistentes)
51. Como resulta, de modo particular da alta de enfermagem do Hospital, as referências a úlceras de pressão são recorrentes. (doc. 13 – nota alta enfermagem H…, junto à queixa crime dos assistentes)
52. A ofendida KK deixou o Lar … no dia ….10.2021 para ser internada no Centro Hospitalar de … – Hospital de … (H…)
53. E, quando teve alta hospitalar, a … de novembro 2021, foi residir para outra Instituição Lar do … - com o devido acompanhamento médico e de enfermagem,
54. Não mais voltando ao Lar ….
55. No Lar do … foi sujeita a tratamentos diários de enfermagem à ferida das costas e da perna esquerda, na tentativa de evitar segunda cirurgia, conforme prescrição hospitalar.
56. A ferida das costas deu sinais de alguma cicatrização.
57. Contudo, a situação da perna esquerda já era crítica quando a ofendida esteve internada no Hospital de … a primeira vez para amputação da perna direita e, mesmo com os necessários cuidados de enfermagem,
58. A … de dezembro de 2021, foi à Urgência cirúrgica do H…, devido às feridas da perna esquerda, tendo indicação para voltar no dia ….01.2022 para amputação do membro inferior esquerdo (doc. 14, fls. 2 – diário Clínico – urgências, junto à queixa crime dos assistentes)
59. A … de janeiro de 2022 a idosa deu novamente entrada no H…, …, para realizar exame de Medicina Legal ordenado pelo Tribunal no âmbito destes autos, passando depois para o internamento para amputação da perna esquerda.
60. Do RELATÓRIO elaborado pelo GABINETE MÉDICO LEGAL DE …, na sequência do exame do DIA … DE JANEIRO DE 2022, consta (doc. 1, que ora se junta)
A - Sobre o estado da ofendida
i. Sobre as queixas:
Inapreciáveis, dado que a examinada não comunica (nada verbaliza)
ii. Sobre o exame objetivo:
1. Estado geral: a examinanda apresenta-se: consciente, mas não colaborante por ausência total de verbalização
2. Lesões e/ou sequelas relacionadas com o evento:
iii. A examinanda apresenta as seguintes lesões:
(…)
a) Região dorso-lombar: na região sarcococcigea, presença de penso anti-escara de decúbito, apos a remoção do qual se verificou ferida ulcerada, com sinais inflamatórios, medindo 6x4cm de maiores eixos
b) membro inferior direito: amputação do membro pelo terço proximal da coxa, com coto de aspeto normal
c) membro inferior esquerdo: ligadura a envolver a metade distal da perna e do pé, removida a qua se constatou a presença de vários pensos de gaze, repassados com exsudato inflamatório e purulento, tendo sido observadas as seguintes lesões:
i. interessando os terços médio e inferior da face lateral da perna, ferida ulcerada, orientada longitudinalmente, com exposição tendinosa, áreas necrosadas e abundante escorrência purulenta, mediando 10x3 cm de maiores eixos
ii. No terço proximal da face lateral do pé ferida ulcerada, com exposição tendinosa e fundo necrótico, medindo 2x2 cm de maiores eixos
- no terço médio da face lateral do pé, ferida ligeiramente ulcerada, com sinais inflamatórios locais, medindo 0,5 x0,5cm
- na base do 5º dedo, ferida ulcerada, com exposição tendinosa, áreas necrosadas e escorrência purulenta, medindo 2x2 cm de maiores eixos
- na base do hallux (1º dedo), ferida ulcerada, com exposição tendinosa, áreas necrosadas e escorrência purulenta, medindo 3x2 cm de maiores eixos
Todo o pé se apresentava edemaciado.
B - Conclusões
a) As lesões e sequelas referidas terão resultado de imobilização prolongada no leito com formação de escaras de pressão e infeção das mesmas
b) Conjugando os registos clínicos facultados, o observado no exame físico e o descrito pelo familiar da examinanda, é de admitir que estas lesões possam ter resultado de inexistência de uma exigente, atempada e contínua prestação de cuidados que casos desta natureza exigem.
61. Após realizar o exame Médico Legal, a ofendida passou para o internamento para ser submetida a cirurgia à perna esquerda (doc. 15 – nota de alta, junto à queixa crime dos assistentes)
62. Consta da Nota de Alta (já falecida) que foi levada para o serviço de urgência por gangrena da perna esquerda e para ser submetida a amputação supracondiliana esquerda. (doc. 15 – nota de alta, junto à queixa dos assistentes)
63. No dia … de janeiro de 2022, três dias após a segunda cirurgia, KK faleceu, no Hospital de …, em Leiria (doc. 16 - certidão de óbito, junto à queixa dos assistentes)
64. Por sua vez, resulta do RELATÓRIO MÉDICO PERICIAL, ELABORADO PELO PROF. DR. LL, doutorado em medicina, com competência em Peritagem Médica e Avaliação do Dano Corporal, que aqui damos por integralmente reproduzido e que sintetizamos: (doc. 3, que ora se junta),
i. Nos dados complementares, fls. 4 do Relatório (a numeração dada aos documentos que são os fotogramas está de acordo com a numeração dada pelo Prof. aos documentos juntos no final do relatório, e não à numeração dos documentos na queixa, e constam a partir da pag. 17 do mesmo)
a) fotograma de escara de pressão evoluída, que é o doc. 6, deverá ter-se constituído 3 a 5 meses antes de fins de outubro 2021
b) fotograma da escara de pressão evoluída, que é o doc. 7, deverá ter-se constituído 4 a 7 meses antes de fins de outubro 2021
c) fotograma de profunda úlcera do decúbito sacro-coccigea, que é doc. 8, deverá ter-se constituído 5 a 9 meses antes de finais de outubro de 2021.
ii. Na discussão
a) (…) KK (…) terá sido vítima de maus tratos consubstanciados na ausência de cuidados adequados e eventualmente em episódios de agressão física.
b) De igual forma ter-se-á verificado negligência grave e atraso de intervenção terapêutica adequada e atempada tendo a utente desenvolvido úlceras de pressão e escaras de decúbito nos membros e na região sacro-coccigea com lesão profunda, arrastada e de evolução muito desfavorável.
c) Apesar das amputações realizadas, devido à doença de …, a outras patologias crónicas e à evolução desfavorável das úlceras de decúbito, KK (…) veio a falecer a … de janeiro de 2022, no Hospital de … (três dias após a segunda amputação)
iii. Conclusões
a) As lesões e sequelas referidas terão resultado de imobilização prolongada da utente no leito, com formação de escaras de pressão e úlceras de decúbito com infeção secundária das mesmas
b) Conjugando os registos clínicos facultados e o que nos foi dado observar no relatório médico legal (Proc. Inq. 3/21.1GASTR) com o descrito pelo familiar da utente (neto) é de admitir que as lesões em causa possam ter resultado de inexistência de atempada e contínua prestação de cuidados adequados exigidos em casos desta natureza
c) As medidas de apoio e as terapêuticas foram tardias e a utente veio a falecer no Hospital de … três dias após a segunda amputação a … de janeiro de 2022, devido a grave descompensação biológica.
d) Verificou-se, assim, omissão de cuidados, causadora do dano corporal de que resultou a morte de KK (…)
65. Acrescentamos que, úlceras de pressão são “áreas da superfície corporal localizadas que sofreram exposição prolongada a pressões elevadas, fricção ou estiramento, de modo a impedir a circulação local, com consequente destruição e/ou necrose tecidular. (…): “O aparecimento de uma Úlcera de Pressão é, quase sempre, consequência do incumprimento de boas práticas nos cuidados prestados a doentes sujeitos a longos períodos de imobilidade. A sua prevenção e tratamento requerem uma equipa multidisciplinar composta por enfermeiros, médicos, nutricionistas, assistentes sociais e fisioterapeutas. O risco de desenvolvimento de úlceras de pressão aumenta consideravelmente quando se combinam os seguintes fatores: Imobilidade, compromisso do sistema imunitário, perda de massa muscular A manutenção da integridade cutânea, intervindo nos fatores que a condicionam, é determinante para a qualidade de cuidados prestados. (in Ulceras de pressão prevenção, DGS e cuidados Continuados, ano 2007)
66. A circular informativa da Direção Geral da Saúde de 23-06-98 refere que “o aparecimento de Úlceras de Pressão, associado ou não a outros fatores, é um indicador da qualidade dos cuidados prestados pela equipe de saúde”.
67. Atendendo a que, desde o ano 2018, a idosa residia naquele Lar, as lesões acima referidas são resultado do Lar não lhe ter proporcionado uma cama anti escaras e de a manter deitada, sem mudança de posição e levantamentos regulares, a par de falta de cuidados médicos e de enfermagem, de higiene, conveniente alimentação, hidratação e demais cuidados necessários.
68. As lesões visíveis nas fotografias e descritas nas Notas de alta hospitalar, no Relatório da Medicina Legal e no Relatório do Prof. Dr. LL, com aquelas dimensões, não se formam em semanas, são fruto de incúria e maus tratos de vários meses.
69. Existiu violência física e manifesta omissão dolosa de cuidados médicos, medicamentosos, de enfermagem, e de higiene à idosa KK.
70. Que se traduziram em ofensas à integridade física graves, que foram a causa direta e necessária da sua morte. (vide relatório pericial, doc. 3 ora junto)
71. Ao longo dos meses, a formação das lesões nos membros inferiores e da profunda ferida nas costas, as intervenções cirúrgicas, os posteriores tratamentos de enfermagem nos períodos que esteve no Hospital e no Lar do …, necessariamente terão sido particularmente dolorosos, para a infeliz idosa.
72. E culminaram na perda do direito à vida.
73. A idosa era pessoa especialmente vulnerável, desprotegida e indefesa em razão da idade avançada e da doença, e foi vítima de maus tratos quando estava ao cuidado e sob orientação de Lar de Idosos, seus gerentes, diretora técnica, funcionárias e prestadores de serviços.
74. Lar que cobrava mensalidades, que eram pagas, para tratar condignamente da idosa. (docs. 17 a 33 - alguns dos talões entregues pelo Lar emitidos por HH e depois por CC, 2 faturas de HH e último cheque entregue, juntos à queixa crime dos assistentes)
Aliás,
75. A arguida GG, em outubro 2021, informou a assistente e marido que o “Lar” não tinha alvará da Segurança Social,
76. E que não tinha equipa de enfermagem e eram as mesmas empregadas que desempenhavam funções de limpeza ou na cozinha, que faziam pensos e outros serviços quando necessário.
77. Também a médica JJ afirmou na GNR que não existia equipa de enfermagem.
78. Enfim, durante meses ou anos não prestaram os cuidados necessários à idosa.
79. Bastaria uma auxiliar dar banho ou trocar uma fralda a KK para não poder deixar de ver o seu estado físico, ter a obrigação de o comunicar aos proprietários e gerentes e estes tomarem todas as medidas necessárias.
80. À família, sempre foi garantido que a idosa estava bem de saúde, escondendo o real estado físico da idosa, quer aos residentes em … quer aos residentes em …, que se deslocavam regularmente ao Lar para visitar a idosa e para proceder ao pagamento mensal.
81. Quando os familiares visitavam KK era-lhes pedido que aguardassem na sala de estar que iam buscar a idosa ao quarto.
82. A idosa chegava junto deles em cadeira de rodas, vestida com camisola, casaco, meias calças, sem partes do corpo visíveis, exceto a cara e as mãos.
83. Sem falar, devido ao …, não se queixava com dores.
84. Os arguidos não providenciaram pelos cuidados atempados e adequados de que patentemente carecia a ofendida, pelo que é por demais evidente que incorreu na prática do ilícito de que vêm acusados.
85. O bem-estar, a saúde e a vida da ofendida foram lesados pelas condutas omissivas dos arguidos, as quais revestem acentuada gravidade e especial censurabilidade, considerando o lapso temporal por que perduraram e as consequências que tiveram e que culminaram na morte, tendo posto inequivocamente em causa o tratamento digno de que toda e qualquer pessoa é merecedora, ofendendo, por isso, também a sua dignidade pessoal
86. Quando idosos são acolhidos em instituições ou lares de acolhimento e de assistência, através de um contrato de prestação de serviços remunerado, esta relação negocial transfere para o proprietário e para a direção técnica e os cuidadores ao serviço da instituição ou do lar, o dever de garante da saúde física, mental, psíquica, do bem-estar emocional, da satisfação das necessidades mais básicas inerentes à própria sobrevivência, como a alimentação, a higiene, a saúde, a toma de medicação adequada, a assistência médica e hospitalar que se mostrarem necessárias, além de outros deveres de cuidado e assistência, com aqueles que, pela sua idade avançada, são mais vulneráveis e estão dependentes de terceiros.
87. Facto que os denunciados não podia desconhecer, mas, apesar disso, omitiram os cuidados necessários à ofendida.
88. Os denunciados agiram livre, consciente e voluntariamente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei,
89. Que molestavam física e psiquicamente a ofendida, debilitando-a, prejudicando o seu bem estar e ofendendo-a na honra e dignidade humana, e que a ofendida estava ao seu cuidado e dependia deles para ter os cuidados necessários para evitar e tratar as escaras e lesões e evitar o sofrimento e a morte que vieram a ocorrer.
90. Durante o tempo que a idosa residiu neste Lar, várias vezes trocaram de instalações, a última das quais no ano 2021, passando da Estrada …, … (doc. 34,35 – fotos junto à queixa) para a Av. …, …. (doc. 36, 37– print google maps e foto junto à queixa)
91. As faturas entregues, da farmácia e dos bombeiros, fazem referência a esta nova morada e a uma nova sociedade comercial, denominada CC, de que é sócio gerente FF, filho do gerente de HH (doc. 38, 39 e 40)
92. Sem avisarem os familiares, o Lar terá passado a ser explorado por outra sociedade e terão “passado” os idosos de uma empresa para a outra,
93. Em julho 2021, quando os familiares foram pagar a mensalidade, avisaram que iam trocar de instalações e que por isso a mensalidade aumentava 50,00€
94. Pelo que, pelo menos desde o mês de agosto de 2021 a sociedade CC, passou a explorar o Lar,
95. Termos em que não poderá deixar de ser também, assim como o seu sócio gerente e colaboradores (os mesmos de HH, incluindo os gerentes desta), criminalmente responsabilizados pelo ocorrido.
96. O comportamento de todas as pessoas relacionadas de algum modo com aquele Lar é tanto mais grave quanto era impossível não saberem o que se passava.
97. Porque durante meses ou anos não prestaram os cuidados necessários à idosa e porque bastaria uma auxiliar dar banho ou trocar uma fralda a KK para não poder deixar de ver o seu estado físico, ter a obrigação de o comunicar aos gerentes/proprietários e, a partir de agosto de 2021, também à Diretora, e serem tomadas providências.
98. Os sócios gerentes têm responsabilidade criminal pela qualidade que têm de gerentes que também trabalhavam no Lar, sendo quem dava as ordens e a quem eram reportadas as situações anómalas,
99. Nos termos do atual art. 11º, nº 2 do CP as pessoas coletivas são responsáveis pelo crime previsto nos arts. 152º-A do CP
100. Os denunciados agiram livre, consciente, concertada e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era punida por Lei mas querendo-a e conformando-se com o resultado.
101. O seu comportamento doloso é enquadrável na prática do crime previsto e punido pelo arts. 152º-A, nº 1 a) e nº 2 (maus tratos a idosos) e art. 132º nº 1 e nº 2 c) (Homicídio Qualificado) do Código Penal, porquanto a idosa foi tratada cruelmente e a morte produzida em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade por ser pessoa particularmente indefesa em razão da idade e doença, e foi causa direta e necessária da falta de cuidados.
102.
103. Pelo seu comportamento doloso cometeram o crime previsto e punido pelo arts. 152º-A, nº 1 a) e nº 2 (maus tratos a idosos) e art. 132º nº 1 e nº 2 c) (Homicídio Qualificado) todos do Código Penal, porquanto a idosa foi tratada cruelmente e a morte produzida em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade por ser pessoa particularmente indefesa em razão da idade e doença, e porque a morte foi causa direta e necessária dos ferimentos (escaras de pressão).
PROVA da acusação
(…)”
2 - Fundamentação.
A. Delimitação do objecto do recurso.
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
A questão a decidir no presente recurso consubstancia-se na inexistência (ou na existência) de fundamento legal de rejeição do RAI dos assistentes.
B. Decidindo.
1.ª questão – A existência (ou não existência) de fundamento legal de rejeição do RAI.
Segundo os recorrentes, a decisão recorrida deve ser parcialmente revogada quanto à rejeição do RAI contra HH, DD e EE.
Assim, desde logo, importa sublinhar que a pretensão recursória não abrange, subjetivamente, a rejeição do RAI quanto ao Dr. II.
Quanto aos mencionados arguidos, afirma-se que os dois últimos “violaram o dever de garante ao omitirem dolosamente cuidados médicos, medicamentos, de higiene, enfermagem e hospitalares à ofendida” KK, “[d]evendo ser admitida a instrução contra a sociedade e contra os seus sócios gerentes” (conclusões 48.ª e 49.ª).
Vejamos.
Atento o disposto no art.º 287.º, n.º 2, o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar. O objeto do processo que a acusação incorpora materializa-se numa unidade complexa4 que compreende uma questão de facto (a descrição dos factos imputados) e uma questão de direito (a indicação normativa, ou seja, mais especificamente, na indicação do crime imputado). É consequência necessária da estrutura acusatória do processo penal5 que cabe em exclusivo à entidade acusadora a definição rigorosa do respetivo objeto, ou seja, a conformação concreta da acusação, não sendo legalmente admissível qualquer interferência nesse labor, nomeadamente por parte do juiz. Foi intenção do legislador (de 1987) que “esta fase não deveria ser uma repetição do inquérito, nem uma antecipação do julgamento, mas apenas um instrumento de controlo judicial daquela decisão com que a investigação é encerrada.”6 Tal intenção cristalizou-se na seguinte redação do art.º 286.º, n.º 1, que que se mantém inalterada:
“A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” Segundo os recorrentes, no RAI “descreveu-se o processo causal que deu origem ao falecimento, como indicação de locais, datas, e evolução do estado de saúde da ofendida”. Em primeiro lugar, importa lembrar o texto da lei sobre esta temática:
Artigo 10.º7
Comissão por acção e por omissão
1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
(…)
Resulta dos próprios termos da lei que no n.º 1 está plasmada a chamada doutrina da causalidade adequada, em termos inspirados diretamente na lição de Eduardo Correia, expressas na sua obra “Direito Criminal”8, onde, especificamente no que toca à omissão, consta que “[d]a norma que quer evitar um resultado nasce, pois, para todos, não só o dever de evitar as actividades que o produzem, mas também o comando de levar a cabo as actividades que obstem à sua produção”9, ou seja, nos crimes comissivos por omissão existe “uma tipização indirecta10 que só se completa integrando a norma do art. 10.º com a norma incriminadora do crime comissivo por acção correspondente.”11 No que respeita, especificamente, ao nexo causal nos (chamados) crimes comissivos por omissão, importa referir que a “causalidade da acção não é o mesmo conceito da causalidade da omissão; sendo a omissão materialmente "nada"12, não pode ser fisicamente a causa de alguma coisa, diferentemente do que sucede relativamente à acção e por isso a relação causal ligará, segundo a lei, a "acção omitida" ao "não impedimento do evento"”.13
Em sentido semelhante, pode ler-se em Welzel14 que o “(…) autor da omissão não é castigado porque causa um resultado típico, mas por não o ter impedido… A única questão legítima dentro dos delitos de omissão dirige-se a se o levar a cabo a acção omitida teria impedido o resultado”, concluindo Kaufmann15 que a “(…) questão da causalidade potencial16 é, pois, a única "questão causal" que pode ter significado prático para a omissão, ali onde são importantes as consequências possíveis da acção imaginada.” Segundo Marcelo Almeida Ruivo17, “(…) a causação por omissão tem a mesma delimitação espaço-temporal da ação, sem que a verificação permita atingir sempre a certeza, pois o procedimento de supressão mental do omitir inclui duas variáveis. A ação que importa investigar é a que teria impedido o resultado ofensivo no contexto concreto. Primeiramente, é necessário averiguar qual ação culminou no resultado ofensivo e, depois, qual ação possível ao imputado o teria evitado. Há duas variáveis que demandam dois raciocínios hipotéticos, por isso de fala em método duplamente hipotético.”18 Para André Lamas Leite19, na esteira de Figueiredo Dias, deve aplicar-se, neste âmbito, a teoria da conexão do risco, ou seja, “a acção esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico20”, ou seja, por outras palavras, “o resultado pode ser imputado à omissão sempre que a prática da acção devida tivesse diminuído o risco de ocorrência do resultado.”21 Entendemos que “para haver imputação é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado um nexo causal concreto, ou seja, é necessário que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado.”22 Quer isto dizer que a acção esperada e omitida deve(ria) ser eficaz para evitar o resultado típico: “se fosse inequivocamente evidente, no momento em que se omite a ação, que esta era inteiramente ineficaz para evitar a lesão do bem jurídico, dever-se-ia negar a ilicitude e a tipicidade da omissão.”23 Voltando ao caso concreto dos autos: No RAI menciona-se (com base no relatório da medicina legal24) que as “lesões e sequelas” da ofendida “terão resultado”25 de uma imobilização prolongada no leito com formação de escaras de pressão e infeção das mesmas. Mais ali se afirma que “é de admitir”26 que as aludidas lesões “possam ter resultado da inexistência de uma exigente, atempada e contínua prestação de cuidados que casos desta natureza exigem”. Mais ali se alega (com base num relatório médico elaborado a pedido dos próprios assistentes27) que KK “terá sido28 vítima de maus tratos consubstanciados na ausência de cuidados adequados e eventualmente em episódios de agressão física” e que “ter-se-á 29 verificado negligência grave e atraso de intervenção terapêutica adequada e atempada tendo a utente desenvolvido úlceras de pressão e escaras de decúbito nos membros e na região sacro-coccigea com lesão profunda, arrastada e de evolução muito desfavorável.” Refere-se ainda que se conclui no último relatório mencionado que as lesões/sequelas da vítima “terão resultado”30 de uma imobilização prolongada da utente no leito, com formação de escaras de pressão e úlceras de decúbito com infeção secundária das mesmas”, pelo que “é de admitir” que que tais lesões “possam ter resultado de inexistência de atempada e contínua prestação de cuidados adequados exigidos em casos desta natureza”. Duas primeiras observações imediatamente se nos suscitam: Desde logo, o RAI ora qualifica a omissão de cuidados como gravemente negligente (página 15, 3.º §), como manifestamente dolosa (página 17, ponto 112), desconhecendo-se, efetivamente, qual o nexo de imputação subjetiva que pretende.
Por outro lado, ora ali se invocam ações (“violência física”31), ora se invocam omissões (de cuidados médicos, medicamentosos, de enfermagem e de higiene). Quanto à etiologia temporal das lesões apresentadas pela ofendida (se antes, se exclusivamente depois da sucessão societária) é de referir que, se ficar provado que uma determinada omissão é determinante para não evitar que um resultado típico se produza, a desoneração formal do dever de garante a partir de certo momento anterior ao facto lesivo mas posterior ao comportamento omissivo relevante (ou seja, a partir do seu terminus) não traduz, por si só, um afastamento da tipicidade. De qualquer forma, afigura-se-nos que, em face da exposição no RAI de um nexo causal (apenas) meramente possível 32, não pode ocorrer imputação já que entre a conduta (ação ou omissão33) e o resultado (os maus tratos e a morte da ofendida) não se afirma um nexo causal concreto, falhando a asserção de que tenha sido aquela conduta a causa efetiva daquele resultado, o que nunca poderá acontecer com a invocação de um nexo causal apenas hipotético.
Em síntese, entendemos que a causalidade do(s) evento(s) lesivo(s) não se encontra descrita / fundamentada positivamente, não podendo considerar-se, nesta sede (em que tem de ser moldado com exatidão o objeto do processo) qualquer (meramente) hipotético nexo entre qualquer comportamento omissivo dos arguidos e aquele evento lesivo.
É de sublinhar que, no RAI (do assistente), a imputação (objetiva e subjetiva) de um determinado resultado à conduta (por ação ou por omissão) do agente (arguido) deve (tem de) ser inequívoca e rigorosa, não podendo fundamentar um juízo “acusatório” (ou seja, mais especificamente, visando a pronúncia de determinado arguido) meras possibilidades ou probabilidades causais, pois a transmutação do possível em efetivo deve ocorrer a montante, ou seja, na investigação. Admitir o contrário, seria transformar a instrução em mais uma instância investigatória, o que não é legal e constitucionalmente admissível.
Nestes termos, falhando a imputação aos mencionados arguidos do resultado previsto nos referidos crimes (maus tratos e homicídio qualificado), é a instrução legalmente inadmissível, devendo, consequentemente, ser o RAI rejeitado, como efetivamente foi. Assim, entendemos que no despacho recorrido se efetuou uma correta interpretação da lei, improcedendo a pretensão recursória dos recorrentes.
3 - Dispositivo.
Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 515.º, n.º 1, alínea a) e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)
(Processado em computador e revisto pelo relator)
.............................................................................................................
1 Doravante RAI.
2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.
3 A referência à sociedade “CC” (feita na conclusão 1.ª) ter-se-á devido, neste contexto, a mero lapso, já que quanto à mesma o RAI foi aceite.
4 A. Castanheira Neves (in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 236) identifica o objecto do processo como “o caso jurídico concreto apresentado e a resolver”.
5 Cfr. art.º 32.º, n.º 5 da CRP.
6 Nuno Brandão, A Nova Face da Instrução in RPCC, Ano 18, n.ºs 2 e 3, página 232.
7 Do Código Penal.
8 I volume, Almedina, Coimbra, páginas 257 e ss.
9 Ob. cit., página 271.
10 André Lamas Leite (in “As "Posições de Garantia" na Omissão Impura”, Coimbra Editora, 2007, página 128) designa esta realidade como “tipo composto”.
11 Manuel Cavaleiro de Ferreira in Lições de Direito Penal, Parte Geral, Almedina, 2010, página 99.
12 Segundo Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend (Tratado de Derecho Penal, Comares, 2002, página 666), “a causalidade com categoria do ser exige uma fonte de energia real que seja capaz de produzir um esforço, algo que precisamente está ausente na omissão ("ex nihilo nihil fit").”
13 Manuel Cavaleiro de Ferreira in Ob. cit., página 102.
14 Apud Armin Kaufmann, Dogmática de Los Delitos de Omissión, Marcial Pons, 2006, página 84.
15 Idem, ibidem.
16 Por este motivo, Claus Roxin (Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, Marcial Pons – tradução da 9.ª edição original - 2016, pág. 446) entende que o domínio do facto nada tem que ver com este "domínio do impedir potencial".”
17 O Método de Verificação da Causalidade na Omissão Imprópria in Prof. Doutor Augusto Silva Dias, In Memoriam, vol. I, AAFDL Editora, 2022, página 477.
18 Em sentido semelhante, ou seja, existir a necessidade de uma dupla verificação para chegar à causalidade neste tipo de crimes, vide Maria Paula Ribeiro de Faria (Formas Especiais do Crime, Universidade Católica Editora Porto, 2017, página 201): “Em primeiro lugar, ter-se-á de estabelecer a relação causal efectiva entre uma acção ou um facto natural e um resultado (…). Num segundo momento, ir-se-á apurar a causalidade hipotética da omissão, ou seja, a eficácia potencialmente impeditiva do resultado teria tido a prática da acção devida.”
19 Ob. cit., página 226,
20 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, página 930.
21 Maria Paula Ribeiro de Faria in Ob. cit., página 203.
22 Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 3.ª edição, Universidade Católica Editora Porto, 2019, página 323.
23 Idem, página 555.
24 Que se afirma ter sido elaborado pelo Gabinete Médico Legal de … na sequência do exame de 06.02.2022. (fls. 28, ponto 60 do RAI)
25 Itálico e negrito nossos.
26 Idem.
27 Cfr. fls. 30, ponto 64 do RAI.
28 Idem.
29 Idem.
30 Idem.
31 Sublinhando-se que aqui nem sequer se imputam objetivamente, a qualquer dos arguidos, ações em que tal “violência” se tenha materializado.
32 Ou até meramente provável.
33 A este exato propósito, pode ler-se em Bernd Schünemann (Fundamento y Límites de los Delitos de Omisión Impropia, Marcial Pons, 2009, página 293) que “a igualdade entre a omissão e a comissão pressupõe um domínio sobre condições do resultado actuais, efectivas, e que, inclusivamente o domínio monopolístico sobre um mero meio de salvação, unicamente pode fundamentar a especial reprovação, mas nunca a igualdade entre a omissão e a comissão. Aí reside precisamente apenas o domínio potencial sobre o resultado, que se encontra numa relação de desigualdade com o domínio actual presente na acção e que nunca pode ser equiparado àquele.”