I - Um automóvel não é um receptáculo e o combustível existente no depósito de veículo não é coisa naquele colocada, mas sim substância estritamente necessária ao funcionamento do automóvel.
II - Não se considerando, pois, que o depósito de combustível de um veículo seja um receptáculo, mas sim uma parte componente do mesmo, temos, então, que o combustível existente no depósito do mesmo não é coisa naquele colocada, mas uma substância estritamente necessária ao seu funcionamento, a subtração do combustível existente no depósito de veículo não configura conduta subsumível no art. 204º nº 1 al. e) do CP.
III - Para a verificação da agravante prevista no citado art. 204º nº 2 al. e) do CP, não basta a penetração naqueles espaços [habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado] e daí subtrair bens móveis, pois exige-se que a penetração se tenha processado pelos aludidos meios específicos, ou seja, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, nos termos definidos pelo legislador no citado art. 202º do CP.
Realizado o julgado, foi proferida sentença, datada de 16 de Maio de 2024, nos termos da qual se fez constar no respectivo dispositivo final:
“Em conformidade com o exposto, julga-se a acusação do Ministério Público procedente por provada e, em consequência, decide-se:
a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de furto QUALIFICADO, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1, 204º n.º1 alínea e) e n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal., na pena de 6 (seis) meses de prisão.
b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção Social, tendo por objectivo promover a interiorização de competências pessoais do arguido no sentido que o mesmo se deve abster da prática de crimes seja de que natureza for, educando-o para o direito e devendo as entrevistas serem direcionadas para a educação cívica e interiorização de que a lei, decisões judiciais e ordens emanadas por autoridades competentes são para ser cumpridas e respeitadas, orientando o condenado para a vida em sociedade e cumprimento das normas em sociedade assim como para a compreensão da respectiva responsabilidade criminal
c) Condicionar a suspensão da pena ao pagamento de 750,00 aos bombeiros voluntários … devendo fazer prova de tal pagamento nos autos no prazo de suspensão, devendo o comprovativo apresentar a informação “injunção em processo penal” e indicando o nº de processo. (…).”
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2. Não se conformando com o teor de tal decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o RECORRENTE pela prática em autoria material, de um crime de furto QUALIFICADO, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º 1 , 26º, 22º, 23, 73º e 203º nº 1, 204º n.º 1 alínea e) e nº 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal., na pena de 6 (seis) meses de prisão.
II. O tribunal a quo considerou provados os factos 1 a 10 e 13 e 14 da douta sentença, os quais o RECORRENTE, não considerou como provados, nos termos expostos da douta sentença, nos termos já expostos acima no recurso, em virtude de considerar que relativamente ao factos dados como provados, não existiu prova e a que possa ter existido, nunca poderia resultar na condenação do RECORRENTE.
III. Considera o RECORRENTE. que foi incorretamente julgada como provada matéria, que não deveria tê-lo sido, porque não foi feita prova.
IV. O tribunal a quo ao dar como provados os factos 1 a 10 e 13 e 14 identificados na douta sentença, nas versões que constam da fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º , do CPP.
V. Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no art. 355º nº 1, do CPP.
Vl. Sem prescindir do supra alegado e admitindo, por mera hipótese académica, como provados os factos em que assentou a sentença objeto de recurso, constatamos, claramente, que o RECORRENTE não praticou o crime de furto QUALIFICADO, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º 1 , 26º, 22º, 23, 73º e 203º nº 1, 204º n.º 1 alínea e) e nº 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal, porquanto da prova produzida não resulta que o RECORRENTE, tenha preenchido os elementos objetivos e subjetivos daqueles tipos legais de crime.
VII. Pelo exposto, o tribunal não interpretou, nem aplicou, corretamente 14º n.º 1 , 26º, 22º, 23, 73º e 203º nº 1, 204º n.º 1 alínea e) e nº 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal.
VIII. Em suma, da prova produzida em sede da audiência de discussão e julgamento, nomeadamente da prova testemunhal, documental, não resulta que o RECORRENTE, tenha cometido tal crime, nos termos expostos na douta acusação e previstos e assentes na douta sentença;
IX. Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto, contradição entre a fundamentação e a prova produzida e a própria decisão, assim como erro notório na apreciação da prova.
X. Nos termos do supra alegado e não tendo existindo prova quanto ao crime de furto qualificado, na forma tentada, deve o RECORRENTE condenado, ser absolvido do crime de furto qualificado, na forma tentada, dada a ausência de prova produzida, Impondo-se a ASBOLVIÇÃO do RECORRENTE;
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o RECORRENTE absolvido do crime de furto QUALIFICADO, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º 1 , 26º, 22º, 23, 73º e 203º nº 1, 204º n.º 1 alínea e) e nº 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal, em que foi condenado.“
*
3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos autos e com efeito suspensivo, tendo ao mesmo respondido a Digna Magistrada do Ministério Público, junto do tribunal recorrido, pugnando no sentido de ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
Apresentou as seguintes conclusões:
“1. Veio o arguido recorrer da douta sentença proferida nestes autos, por considerar que houve violação do princípio da livre apreciação da prova, por não ter sido produzida prova bastante quanto à prática do crime, pelo mesmo.
2. Entende o recorrente que os factos dados como provados o foram incorretamente, por não ter sido produzida prova nesse sentido e, a ter existido, nunca poderia resultar na sua condenação.
3. Refere, ademais, existir contradição entre a fundamentação e a prova produzida, entre a prova produzida e a decisão, assim como erro notório na apreciação da prova.
4. Subsidiariamente, julga não preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de furto qualificado, pelo qual veio a ser condenado.
5. Acontece que, o recorrente apenas coloca em crise a livre convicção do julgador, pretendendo uma decisão de acordo com o seu próprio entendimento.
6. De facto, a sentença recorrida assentou na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, em consonância com os demais elementos do processo, de acordo com a livre apreciação da prova.
7. Salvo melhor opinião, inexistiu, na sentença recorrida, qualquer erro de julgamento ou uma qualquer convicção contrária às regras da experiência ou à lógica do homem médio.
8. Quanto ao não preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo do crime em sujeito, o certo é que o recorrente apenas aduz argumentos relativos à prova produzida.
9. Não obstante, o certo é que, com base nos factos dados como provados e não provados, não restava outra solução ao Tribunal a quo do que condenar o arguido pelo crime concretamente imputado.
10. Com efeito, o recorrente não efetua uma análise dos preceitos em causa, colocando questões de direito, mas apenas volta a colocar em crise a produção de prova, nos exatos termos em que o fez quanto à matéria de facto.
11. Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso e confirmada, integralmente, a sentença recorrida.”
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4. Subidos os autos a este tribunal, nele o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer, nos termos do qual, concordando, integralmente, com a resposta à motivação de recurso apresentada pela Ex.ª. Colega, junto da primeira instância, pugnou no sentido de ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida.
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5. Cumpridos os vistos, realizou-se a competente conferência.
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6. Questão prévia:
Observado o recurso interposto, verifica-se que o arguido recorrente pretende impugnar a matéria de facto dada por provada, por erro de julgamento, mostrando-se, no seu entendimento, incorrectamente julgados os factos 1 a 10, 13 e 14, dados como provados [impugna praticamente todos os factos dados como provados na sentença recorrida].
Apreciando:
Relativamente à invocada impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento, é sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma, ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12-6-2008 (Proc. nº 07P4375, em www.dgsi.pt): “a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º)” – também, neste sentido, o Ac. RL, de 10.10.2007, proc. nº 8428/2007-3, in www.dgsi.pt.
Daí que o tribunal de recurso só possa alterar o decidido se as provas indicadas pelo recorrente, que o tribunal vai ouvir, ou ler, sem a imediação, nem a oralidade, impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n°3 do art.° 412º do CPP).
Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 proferido no P.° 360/08-1.a, acessível em www.dgsi.pt: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»[sublinhado nosso].
Temos, assim, que, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspecto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente tem de expressamente indicar esse aspecto, a prova em que apoia o seu entendimento e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida.
Feitas estas considerações, e no que concerne ao caso em apreço, o que verificamos é que o recorrente se insurge contra os factos 1 a 10, 13 e 14, dados como provados, na sentença recorrida, com fundamento em erro de julgamento, mas sem que tenha dado cumprimento ao ónus de especificação, imposto pelos nº 3 e nº 4 do artº 412º do CPP, na medida em que invocou prova testemunhal, gravada, mas não indicou as concretas passagens/excertos das declarações que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida na decisão recorrida, limitando-se a apontar o início e o termo da respectiva gravação e, em alguns casos, um resumo do que as indicadas testemunhas terão dito em audiência de julgamento.
Conforme já afirmamos, o mecanismo de impugnação da prova, previsto no art. 412º nº 3 e 4 do CPP, destina-se tão só a corrigir aquilo que se constata serem erros manifestos do julgamento e que resultem ostensivos da leitura do registo da prova, mas sem nunca fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do princípio da livre convicção.
Como tem sido maioritariamente entendido na nossa jurisprudência, , o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse, como parece ser a pretensão do aqui recorrente. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros – cf. entre muitos outros, acessíveis in www.dgsi.pt. :Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461; Ac. TRE de 19-05-2015 : I - O recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância; Ac. TRL de 29-03-2011;: Ac. TRL de 21-05-2015; Ac.TRG de 23.03.2015; Ac. TRC de 24-04-2012; Ac. TRC de 28-01-2015; Ac. TRE de 26-02-2013; e, na doutrina, entre outros, Damião Cunha, in «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37, ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
No caso em apreço, temos, pois, que o recorrente não só não deu cumprimento ao preceituado no art. 412º nº 4 do CPP, como não cumpriu o ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do art. 412º nº 3 al. b) do CPP, pois tanto da leitura das motivações, como das conclusões, resulta que o presente recurso, em matéria de facto, se limita a procurar abalar a convicção formada pelo tribunal «a quo», relativamente ao julgamento “in totum” feito pelo tribunal “a quo”, pretendendo-se, na verdade, que este Tribunal de recurso proceda a um novo julgamento, valorando no sentido pretendido pelo recorrente a prova que ali foi produzida, o que não é legalmente permitido, termos em que não podemos considerar que procedeu a uma real impugnação da matéria de facto, com observância dos legais requisitos, tal como se mostram especificados nos nº 3 e 4 do art. 412º do CPP.
O recorrente veio, ainda, alegar que, ao se dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, se mostra violado o disposto no art. 355º nº 1 do CPP, pois, de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas na audiência.
Mais uma vez, não logrou o recorrente concretizar o por si afirmado, desconhecendo-se, por não alegado, a que factos se está o mesmo a reportar, ou a que provas se refere, que não tenham sido produzidas, ou examinadas, em audiência, em violação do art. 355º nº 1 do CPP.
Não obstante, sempre se dirá que, relativamente aos depoimentos prestados em audiência, observa-se que foram produzidos de acordo com todas as regras processuais, ou seja, o arguido teve oportunidade de exercer, sem qualquer restrição, o contraditório, sobre os mesmos, a significar que a situação em apreço nada tem a ver com a previsão do artigo 355.º, n.º 1, do CPP.
Por outro lado, o citado art. 355º do CPP não abrange a prova documental e os meios de obtenção de prova, isto é, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, que podem ser invocados na fundamentação da sentença, mesmo que não tenham sido examinados em audiência.
Como bem refere, a propósito, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2º ed, p. 891, em anotação ao artigo 355º: “conhecendo a defesa o inquérito, a defesa pode contrariar a admissão e o valor probatório da prova, sempre que quiser, mas “a leitura em audiência de dezenas de documentos nada acrescentaria às oportunidades de defesa do arguido”, o mesmo valendo para os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas (quanto aos documentos, acórdão do TC nº 87/99, e quanto às escutas telefónicas, acórdão do STJ de 29.11.2006, in CJ, Acs do STJ, XIV, 3, 235, e acórdão do TRL, de 12.01.2000, in CJ, XXV, 1, 135).
Em suma, cabendo ao recorrente, que pretende impugnar a matéria de facto, com base em erro de julgamento, para além de individualizar os concretos factos que, em seu entender, não deviam ter sido considerados provados e aqueles que, pelo contrário, o deveriam ter sido, explicar as razões para cada uma das apontadas divergências, como decorre das alíneas a) e b) do citado n.º 3 do art.° 412.° do C.P.P., assim como dar cumprimento ao disposto no nº 4 do referido preceito legal, o que se verifica, no caso em apreço, é que essas exigências não se mostram cumpridas, nem nas conclusões, nem ao longo de toda a motivação, termos em que, por falta de cumprimento do ónus de especificação previsto nos referidos n°3 e nº 4 do art.° 412.° do C.P.P., está este tribunal de recurso impossibilitado de reapreciar a matéria de facto.
É verdade que o art 417º nº 3 do CPP estipula que se a motivação do recurso não contiver conclusões, ou destas não for possível deduzir total, ou parcialmente, as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado, ou não ser conhecido na parte afectada.
No entanto, o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (art. 417º nº 4 do CPP).
Ou seja, só é possível o convite para a correcção quando essa correcção se processa dentro dos termos da própria motivação e não constitua uma substituição, mesmo que parcial da motivação.
Como vem referido no Ac. da Relação de Coimbra de 2 de Abril de 2008, no processo 604/05.5PBVIS.C1, quando o recorrente expõe consistentemente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinala devidamente nas conclusões, existem razões que se fundamentam na proibição de excesso, no princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado no art 18º nº 2 da CRP, que justificam a convite e a consequente possibilidade de correcção.
Porém, quando o recorrente no corpo da motivação do recurso, como é o caso, não enunciou as especificações, o convite à correcção não se justifica, porque, para se obter a harmonização entre as conclusões, o corpo da motivação e a obrigação legal de especificação, seria necessária uma reformulação substancial das motivações e das conclusões, o que significaria a concessão da possibilidade de um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do recurso - neste sentido decidiram, entre outros, o acórdão da RLx de 20/10/99, in CJ, XXIV, 4, 153; e Acs da Rel. Coimbra nº 140/2004, processo nº 565/2003 de 10/3/2004 (DR II série, nº 91 de 17/4/2004); de 30/1/02, in CJ XXVII, 1, 44 e 45; de 07.07.2010 (proc.520/08.9GAACB.C1) e de 13.12.2017 (proc. 177/15.0GAANS.C1), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, na medida em que, nem na motivação, nem nas conclusões, o recorrente cumpre o ónus de especificação, imposto pelo nº 3 e 4 do art. 412º do CPP, não se justifica o convite ao aperfeiçoamento, impondo-se a rejeição liminar, no que tange a qualquer pretendida impugnação alargada da matéria de facto, o que se determina.
*
7. O objecto do recurso versa a apreciação das seguintes questões:
- Dos vícios previstos no art. 420º nº 2 do CPP [da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (nº 2 al. a); da contradição insanável (nº 2 al. b); do erro notório na apreciação da prova (nº 2 al c)];
- Enquadramento jurídico dos factos.
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8. Observemos o que consta da decisão recorrida, quanto à factualidade provada e não provada e sua fundamentação:
“ A. Factos Provados: Com interesse para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 29 de Abril de 2022, o arguido AA, de acordo com um plano que previamente delineou, dirigiu-se ao estaleiro da Câmara Municipal de …, sito na Rua …, em …, com vista a apoderar-se de combustível que ali encontrasse.
2. Aí chegado, e de forma não concretamente apurada, o arguido logrou introduzir-se no interior do referido estaleiro, que se encontra vedado com um muro e painéis de rede metálica de cerca de 2m de altura,
3. Já no interior das referidas instalações, o arguido dirigiu-se ao veiculo de matricula …, e através de uma mangueira, retirou o gasóleo do interior do depósito de combustível do veiculo, que deu para encher três jerricans, dois jerricans de cor …, com 20 litros cada um de capacidade, e um jerrican de cor …, com capacidade para 30 litros.
4. De seguida, dirigiu-se para o veiculo de matricula …, e através de uma mangueira de cor verde, o arguido efectuou a trasfega do gasóleo que se encontrava no interior do depósito de combustível para um dos dois jerricans, um de 30 litros e o outro de 20 litros de capacidade, que ali se encontravam.
5. Nesse momento, o arguido foi surpreendido pelos Militares da GNR, BB e CC, que ocorreram ao local, tendo aquele se colocado em fuga, todavia, foi de imediato interceptado e detido pelos Militares.
6. valor total dos bens de que o arguido já se tinha apoderado e pretendia levar consigo é de o sentimos cêntimos), que corresponde a seis jerricans, dois de 30 litros e quatro de 20 litros, num total de 140 litros de gasóleo.
7. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente.
8. O arguido agiu com o intuito de se apropriar daquele combustível introduzindo-se no interior do estaleiro
9. Sabia o arguido que o gasóleo não lhe pertencia, quis fazê-lo seu, sabendo que actuava sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário, causando-lhe prejuízo patrimonial, só não tendo conseguido concretizar essa sua intenção por ter sido surpreendido pelos Militares da GNR.
10. O arguido sabia que a conduta supra descrita era proibida e punida por lei, todavia, não se absteve de a prosseguir
Mais se provou que:
11.A camara Municipal de …, abastece os veículos que se encontravam parqueados em posto próprio.
12. À data dos factos, a Câmara Municipal adquiriu o combustível ao preço de 1.4243€, acrescido de 23% de IVA, sendo por isso o litro de combustível no valor de 1,752€.
13. Dentro do estaleiro encontravam-se 6 jerricans com combustível, 2 de 30 litros e 4 de vinte litros, estando já de 20 litros cheios e junto à vedação que se encontrava danificada.
14. E os restantes encontravam-se junto ao veículo identificado em 4.
15. O arguido é …, trabalhando por conta de outrem, e auferindo € 800,00 mensais.
16. O arguido vive com a companheira em casa própria.
17. Tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade.
18. Do Certificado de Registo Criminal do arguido constam averbadas as seguintes condenações:
a) No Processo nº 10/…, do Tribunal de Circulo de…, pela prática de um crime de violação, praticado em 13/11/95, o arguido foi condenado na pena de 9 anos de prisão, por sentença datada de 97/04/08, transitada em julgado.
b) No Processo nº 1681/96…., no ..ª Vara Criminal de …, pela prática de um crime de Sequestro, violação, ofensa integridade física, o arguido foi condenado na pena de 9 anos de prisão, por sentença datada de 98/05/14, cumulada com a pena identificada em a) e após perdoado um ano, cumprindo, por decisão de 99/06/18, a pena Única de 16 anos de prisão. saindo em liberdade condicional em 24/10/2007, por decisão de 23/10/2007, revogada em 2014/12/02, para cumprimento de 5 anos, sendo concedida nova liberdade condicional em 2021/12/21.
c) No Processo nº 5/11..., no Tribunal da Comarca de …, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, praticado em 2011/01/07, o arguido foi condenado 75 dias de multa, à taxa diária de 5,00, que perfaz o total de 375,00 euros, pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados e 4 mês 15 dia, por sentença datada de 2011/01/11, transitada em julgado em 2011/02/11, ambas já declaradas extintas pelo cumprimento;
d) No Processo nº 868/09…, no Tribunal da Comarca de … …º juízo criminal, pela prática de um crime de roubo, um crime de furto simples e um crime de coação sexual na forma tentada, praticados em 2009/09/20, o arguido foi condenado na pena única de 5 anos de prisão, por sentença datada de 2011/06/07, transitada em julgado em 2014/02/13, declarada extinta pelo cumprimento;
e) No Processo nº 477/11…, no Tribunal da Comarca de …, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, praticado em 2011/12/02, o arguido foi condenado 110 dias de multa, à taxa diária de 5,00, que perfaz o total de 550,00 euros, e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados e 6 meses, por sentença datada de 2011/12/02, transitada em julgado em 2012/01/17, ambas já declaradas extintas pelo cumprimento;
f). No Processo nº 478/11…, no Tribunal da Comarca de …, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência e ofensa à integridade física simples, praticado em 2011/12/01, o arguido foi condenado na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, por sentença datada de 2013/03/06, transitada em julgado em 2013/04/05, já declaradas extintas pelo cumprimento.
g) No Processo nº 294/13…, no Tribunal Judicial de …, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, praticado em 2013/07/23, o arguido foi condenado 120 dias de multa, à taxa diária de 5,00, que perfaz o total de 600,00 euros, - convertida em prisão subsidiária de 66 dias - e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados e 12 meses, por sentença datada de 2013/07/30, transitada em julgado em 2013/10/01, ambas já declaradas extintas pelo cumprimento;
h) No Processo nº 313/13…, no Tribunal Judicial do …, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, praticado em 2013/07/23, o arguido foi condenado na pena de 4 meses de prisão, suspensa por um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados e 14 meses, por sentença datada de 2014/01/28, transitada em julgado em 2014/02/27, ambas já declaradas extintas pelo cumprimento;
B. Factos Não Provados:
Não resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
a) que foi o arguido que arrombou a vedação do estaleiro.
b) Que o arguido tenha sido assaltado e que nessa sequência tenha ficado sem telemóvel e a sua carteira em ….
III Motivação da Decisão de Facto:
Para a formação da sua convicção, o tribunal atendeu à conjugação de toda a prova produzida orientada pelo princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, fazendo ainda apelo às regras da lógica e da experiencia comum..
O arguido negou os factos, apresentando uma justificação para a sua presença na rua onde foi abordado pelos militares da GNR, como estando na zona do estaleiro, porquanto se havia deslocado aí para solicitar auxilio, pois que, havia sido assaltado após falhar o negocio de venda de um carro, que ocorrera em ….
O arguido indicou ao tribunal que havia deixado o seu carro em …, e que foi com o eventual vendedor para …, onde, enquanto esperava a entrega do veículo num local que desconhece -, foi assaltado por quem o havia levado, e tiraram-lhe o telemóvel e a carteira, e que após ter sido deixado no local, logrou conseguir boleia, de um individuo que desconhece, de volta para …, e que o deixou na zona industrial, mas longe de onde estaria o seu veiculo.
Mais referiu que estaria na zona do estaleiro, porque já ali havia trabalhado, e que por tal sabia que havia gente, e que iria pedir para contactar a família, para o irem auxiliar, e buscar a …, e que foi em tal momento que visualizou a GNR, e como havia ouvido barulhos que lhe pareceram tiros por isso terá corrido, quando avistou a GNR.
Em face da posição assumida pelo arguido, o tribunal ouviu as testemunhas arroladas, nomeadamente DD, motorista, que se encontrava a chegar ao estaleiro e se apercebeu da presença de alguém dentro do estaleiro, junto aos camiões e com jerricans e ainda os militares BB e CC.
O Tribunal atendeu ao depoimento da testemunha supra identificadas, que efectuaram um depoimento espontâneo e coerente, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, tendo assim merecido credibilidade. A testemunha DD referiu não ter dúvidas em ter visto alguém junto dos camiões a encher os jerricans apreendidos, e que por isso chamou as autoridades.
Já os militares da GNR, ao serem chamados, e tendo a testemunha DD dado acesso ao interior do estaleiro, referem que, à chegada ainda viram o arguido junto aos jerricans, e que este terá de imediato encetado fuga, directamente na direcção da vedação e do buraco aí existente - sem se deslocar a qualquer outro local, nomeadamente à saída do estaleiro tendo por ele saído, e sendo perseguido pelo Militar CC.
O Militar CC conseguiu ainda esclarecer que nunca perdeu o arguido de vista, tendo encetado perseguição e saído pelo mesmo buraco na vedação que o arguido, e tendo conseguido alcança-lo, não lhe surgindo dúvidas que era o arguido que estaria no interior do estaleiro e que fora alcançado por si em perseguição.
Mais, refere o Guarda BB, que após alcançar o seu colega, realizou uma revista sumária ao arguido e localizou a chave do veículo do arguido, veículo que localizou nas imediações do estaleiro … -, tendo sido possível fazer uma breve verificação ao seu interior, onde além de um canivete encontraram a carteira do arguido, tendo o mesmo sido identificado, através da sua identificação ai presente, uma vez que o mesmo procurou dissimular a sua identidade, tentando utilizar um sotaque estrangeiro.
Foram ainda ouvidos vereadores da câmara municipal, com relevo para o Dr. EE que esclareceu o valor do combustível adquirido pela camara à data dos factos.
Mais, e quanto aos elementos resultantes dos bens que o arguido pretendia apropriar-se, e pese embora existisse alguma incerteza, quanto ao numero de total de jerricans dúvidas suscitadas e decorrentes do tempo decorrido -, e as testemunhas não soubesse com precisão estabelecer o número ao certo de quanto estariam no local e qual a sua volumetria, a verdade é que consta dos autos, um auto de apreensão dos mesmos, assim como fotografias juntas com o auto de noticia, que mostram, de forma inequívoca, que seriam 6 jerricans, razão pela qual o tribunal deu como provados tais factos, assim como a sua volumetria, e o total de litros que o arguido se pretendia apropriar.
Na formação da sua convicção, o Tribunal atendeu ainda aos meios de prova disponíveis, nomeadamente à análise crítica dos documentos constantes de fls. 3 a 5, que são o auto de notícia, o Relatório fotográfico, de fls.11 a 12 e Auto de Apreensão, de fls.13.
Mais se considerou o certificado de Registo Criminal do arguido, actualizado, junto aos autos sob a refª …, sendo que quanto à sua situação socioeconómica, o tribunal estribou-se nas declarações prestadas pelo arguido, porque prestadas de forma espontânea, e descomprometida, foram consideradas credíveis e assim permitindo ao tribunal consolidar a sua convicção quanto a tais elementos
No que diz respeito aos factos não provados, o tribunal deu os mesmos como não provados por nenhuma prova ter sido produzida quanto aos mesmos.
O tribunal não logrou atribuir qualquer credibilidade à versão apresentada pelo arguido a verdade é que o arguido referiu também que o seu veículo estaria na zona envolvente do estaleiro, e que, conforme resultou da análise da prova produzida, o arguido tinha na sua posse a chave do veículo em causa (os militares acederam ao carro do arguido através da chave que se encontrava na posse do arguido), e portanto, não se aferiu que a razão alegada pelo arguido, para se encontrar na zona do estaleiro o eventual pedido de auxilio para o irem buscar a … não pode colher.
De facto, não foi possível concluir que tenha sido o arguido a arrombar a rede/gradeamento do estaleiro, pois que nenhum elemento quanto a isso resultou a prova produzida.
Da conjugação destes elementos não pôde o tribunal formar convicção dos factos elencados em a) e b) do, razão pela qual se deram tais factos como não provados.
IV Enquadramento Jurídico dos Factos:
Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa de acordo com o nº 2, a tentativa é punível.
Nos termos do artigo
Por sua vez, o art. 204º nº 1, alínea e) do Código Penal preceitua que “Quem furtar coisa móvel ou animal alheios: Fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança”.
Já o nº 2 al. e) refere que “Quem furtar coisa móvel ou animal alheios (…) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas .
São, assim, elementos objectivos do tipo, a subtracção, de uma coisa móvel, com carácter alheio e elementos subjectivos, o dolo e a ilegítima intenção de apropriação.
No que ao primeiro elemento do tipo objectivo diz respeito, a subtracção, de acordo com o ensinamento do Dr. José Faria Costa 1 traduz-se na conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor consequência a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa subtracção existe uma perda na detenção ou no poder de facto de guardar, dispor, ou de domínio sobre a coisa, contra a vontade do detentor, e a sua colocação à disposição do próprio autor da infracção ou de terceiro.
Em relação ao segundo elemento objectivo refere-se a lei a coisa móvel, uma vez que apenas as coisas móveis são susceptíveis de apreensão. A definição de coisa móvel é-nos dada pelo artigo 205º do Código Civil.
Para efeitos penais, mais concretamente no que respeita ao crime de furto, tem-se entendido por coisa toda a substância corpórea, material, susceptível de ser subtraída e apreendida, pertencente a alguém e que tenha um valor venal.
No que respeita ao carácter alheio da coisa, este elemento do tipo objectivo traduz-se na circunstância daquela não pertencer ao autor da apropriação, mesmo que não esteja determinado o proprietário ou esteja sob o seu poder de guarda ou detenção, uma vez que o bem jurídico protegido com este tipo legal de crime é, segundo o Dr. Faria Costa, a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa 2.
Quanto ao tipo subjectivo do furto, e no que concerne ao dolo, este verificar-se-á sempre que exista conhecimento dos elementos objectivos do tipo e vontade de os realizar, numa qualquer das modalidades do artigo 14º do Código Penal.
Já quanto à ilegítima intenção de apropriação, trata-se de um elemento subjectivo do tipo de ilícito, distinguindo-se, assim, do dolo enquanto elemento subjectivo geral. Este elemento do tipo preenche-se quando o agente revela a intenção, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, de passar a comportar-se, relativamente a ela, com animus domini, integrando-a na sua esfera patrimonial ou de outrem.
No crime de furto, o tipo objectivo esgota-se com o facto de o agente “subtrair coisa móvel alheia”. A intenção do agente, dirigida ao resultado apropriativo, é suficiente para o preenchimento do tipo mas o ilícito não se verifica sem a “ilegítima intenção de apropriação”.
Para que se verifique a agravante qualificativa da factispécie imputada ao arguido, e no que respeita ao caso presente, torna-se ainda necessário que os factos sejam praticados mediante introdução ilegítima no interior das instalações, aí permanecendo com a intenção de furtar. Existe aqui uma vinculação da conduta para que possa operar esta agravante, na medida em que o legislador descreveu o comportamento proibido.
Dos factos provados resulta que o arguido se introduziu no interior do estaleiro da Camara Municipal de …, que é um espaço fechado e vedado em todo o seu perímetro e ai permaneceu, com o intuito de retirar combustível do interior do depósito de veículos pesados que ai se encontravam parqueados, o que configura bem móvel, bem sabendo que o combustível não lhe pertencia.
Perante esta factualidade verificamos que o arguido quis fazer seu o combustível, que é coisa móvel e não lhe pertencia. Do mesmo modo, resulta evidente que o arguido, conhecendo o carácter alheio daquele bem, representou e quis, contra a vontade do seu legítimo dono, retirá-lo e fazê-lo seu, integrando-o na respectiva esfera patrimonial, conduta que preenche o dolo, na modalidade de dolo directo do artigo 14º nº 1 do Código Penal.
Olhando à factualidade provada, verifica-se que o arguido preencheu duas das agravantes previstas no artigo 204º, tanto pelo nº 1 com pelo nº 2, pelo que, há que chamar à colação o nº 3 do artigo 204º do Código Penal, sendo por isso prevalecente o previsto no nº 2 do referido artigo, sendo esse que fixará a moldura penal.
Cumpre, agora, verificar se existiu consumação do crime de furto.
O elemento subtracção radica na quebra, por parte do agente, da posse que sobre a coisa era exercida pelo seu detentor e na integração da coisa na sua esfera patrimonial ou de terceiro 3.
Várias teorias foram avançadas para determinar o momento em que se dá a consumação do crime de furto. A Jurisprudência maioritária tem seguido o entendimento que para que exista consumação, não é necessário que o arguido detenha os objectos furtados em pleno sossego e tranquilidade 4.
No entanto, temos seguido a orientação do Dr. Faria Costa quanto a este tema. Este Professor entende que há consumação do crime de furto quando o agente teve a possibilidade, ainda que mínima, de usufruir das utilidades da coisa, ou seja, a coisa entra na sua esfera jurídica e está aí um tempo de forma pacífica, tendo o mesmo o tempo suficiente para a poder esconder ou passar a um terceiro. Antes de isto suceder configura-se apenas uma tentativa quando tenham sido praticados actos de execução.
Atendendo aos factos considerados provados, verifica-se que não houve consumação do crime de furto praticado pelo arguido, uma vez que este não concluiu a sua acção, por ter sido surpreendido pelos militares da GNR, tendo deixado os bens no local e abandonado o mesmo.
Pelo exposto, o arguido não teve a possibilidade, ainda que mínima, de usufruir das utilidades do objecto, com a possibilidade de os esconder ou passar a um terceiro, por não ter tido o mesmo, na sua esfera jurídica, de forma pacífica, ainda que por um tempo não muito longo.
Assim, estão preenchidos, no caso em apreço, todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime de furto, na forma tentada, de que vem acusado o arguido, sendo certo que o mesmo conhecia a natureza ilícita da conduta que encetou, não se coibindo de a praticar.
V Da Escolha e Medida da Pena:
O arguido, com a sua conduta, preencheu o tipo objectivo e subjectivo do crime de furto qualificado, na forma tentada, que consubstancia uma moldura penal aplicável de pena de prisão de 1 mês até 5 anos e 4 meses (cfr. artigo 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1, 204º n.º1 alínea e) e n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), , e por aplicação do disposto no artigo 204º, nº 3 todos do Código Penal), sendo que, resultando os autos a limitação decorrente do artigo 391º-A, nº 2, do Código de Processo Penal a pena máxima encontra-se limitada a 5 anos
Da Medida Concreta da Pena
O critério legal que serve de guia na determinação da medida da pena é o constante no artigo 71º, nºs 1 e 2 do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a seu favor ou contra ele.
No direito vigente, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente (artigo 40º, nº 1 do Código Penal). Contudo, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40º, nº 2 do Código Penal).
Por outro lado, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, podem, e devem actuar, aspectos da prevenção especial de socialização, advertência individual e mesmo, de segurança, sendo estes que irão determinar, em último termo, a medida concreta da pena.
De acordo com o preceituado no nº 2 do artigo 71º do Código Penal, “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele via da culpa como pela via da prevenção.
No domínio particular dos crimes contra o património, dos quais o furto é paradigmático, ganham especial acuidade as exigências de prevenção geral e especial, sendo por demais consabido o alarme social que a vaga de crimes desta natureza provoca, urgindo repor a confiança dos cidadãos na validade das normas jurídicas em apreço.
No presente caso, verifica-se que depõe contra o arguido o grau de ilicitude dos factos, que é mediano, a intensidade do dolo, que é directo e o facto de ter antecedentes criminais registados.
Mais importa ponderar o facto de o arguido já deter extensos antecedentes criminais, por crimes de idêntica natureza, e com condenações já em penas de prisão efectiva, sendo no entanto as mesmas já com alguma antiguidade, resultando no entanto que o mesmo já esteve alguns períodos alargados em cumprimento de pena, sendo que não se olvida que o arguido se encontra familiar e socialmente inserido.
Assim, ponderadas as circunstâncias e os fundamentos referidos, bem como as exigências de prevenção geral e especial, e a medida da culpa, afigura-se-nos adequado aplicar ao arguido uma pena de 6 (seis) meses de prisão.
Do ponto de vista da prevenção especial, deve ser dada prevalência a penas não privativas da liberdade, devendo o juiz lançar mão das penas alternativas ou substitutivas não detentivas da liberdade. O tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas.
No que concerne à prevenção geral, as penas alternativas ou de substituição, desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias.
Do disposto no artigo 43º, nº 1 do Código Penal resulta que “A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes
Verifica-se, assim, que a substituição é o regime-regra, devendo lançar-se mão da mesma, salvo quando se verificar a excepção prevista no citado normativo, a qual só inclui considerações ligadas à prevenção do cometimento de futuros crimes, e não à culpa.
No caso em apreço, e atento o supra explanado, o arguido continua a demonstrar insensibilidade às anteriores penas em foi condenado, razão pela que se considera não estarem reunidas as condições para proceder à substituição da pena de prisão por multa em conformidade com o citado artigo 43º, nº 1 do Código Penal, aferindo-se que tal pena não se mostrará suficiente para salvaguardar as exigências de prevenção geral e principalmente especial, nem as finalidades da punição, dados os antecedente criminais do arguido.
No entanto, importa equacionar se é de suspender na sua execução a pena de 6 (seis) meses de prisão cominada ao arguido, sendo certo que tal suspensão deve, em nosso entendimento, ser qualificada como verdadeira pena de substituição, o que resulta, desde logo, da sua inserção sistemática, quer no Código Penal, quer no Código de Processo Penal, onde surge referida no título relativo à execução das penas não privativas da liberdade .
Deve, assim, entender-se que a pena de prisão suspensa na sua execução é uma verdadeira pena de substituição, não privativa da liberdade, e que, por essa razão, se encontra abrangida pela referência efectuada no citado artigo 43º nº 1 do Código Penal a”(…) outra pena não privativa da liberdade”.
Estabelece o artigo 50º, nº 1 do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. que o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
É, assim, pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação, pelo julgador, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes.
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é, pois, o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes.
No caso concreto, não obstante a explanada relevância dos respectivos antecedentes criminais, em face da antiguidade dos mesmos, cremos que tal juízo pode ainda formular-se de forma favorável ao arguido, na medida em que o mesmo se encontra familiarmente inserido, e que o cumprimento da pena em ambiente prisional não será efectivamente a melhor forma de ressocializar o arguido, sendo que se entende que a suspensão da pena, poderá facultar, desta forma, ao arguido como que um voto de confiança para que, em liberdade, e de uma vez por todas, se consciencialize da gravidade da sua conduta e da necessidade de a mesma não se repetir.
Pelo exposto, entendemos ser justificado um juízo de prognose favorável à ressocialização do mesmo, afigurando-se a eventual execução da pena de prisão ora fixada contraproducente quanto à finalidade político-criminal da socialização.
Tudo ponderado, afigura-se-nos que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção de futuros crimes, pelo que, nos termos do disposto no artigo 50º, n° 1, do Código Penal, decide-se suspender, a execução da pena de prisão de 6 (seis) meses aplicada ao arguido, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
Considera-se, no entanto, conveniente, face às necessidades de prevenção geral e especial verificadas neste caso, nos termos do disposto nos artigos 53º do Código Penal, para que o arguido apreenda a gravidade das infracções por si cometidas e a incutir-lhe um sentimento de responsabilidade social, que a suspensão da execução da pena de prisão fique subordinada a regime de prova através de plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, tendo por objectivo promover a interiorização de competências pessoais do arguido no sentido que o mesmo se deve abster da prática de crimes seja de que natureza for, educando-o para o direito e devendo as entrevistas serem direcionadas para a educação cívica e interiorização de que a lei, decisões judiciais e ordens emanadas por autoridades competentes são para ser cumpridas e respeitadas, orientando o condenado para a vida em sociedade e cumprimento das normas em sociedade assim como para a compreensão da respectiva responsabilidade criminal.
Mais, nos termos dos artigos 53.º e 54.º, do Código Penal, condiciona-se ainda a suspensão da pena aplicada, à entrega do montante de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) aos bombeiros Voluntários de … devendo fazer prova de tal pagamento nos autos no prazo da suspensão, devendo o comprovativo apresentar a informação “injunção em processo penal” e indicando o nº de processo.“
*
9. Apreciando:
O recorrente veio invocar que a decisão recorrida enferma dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição entre a fundamentação e a prova produzida e a própria decisão, assim como erro notório na apreciação da prova.
Apreciando:
No caso, o recorrente, com os mesmos fundamentos que utilizou para a pretendida impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 412º nº 3 e 4 do CPP, veio, também, se socorrer dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, sem proceder, contudo, à sua concreta individualização, numa mistela confusa de conceitos, e sem se restringir ao texto da decisão recorrida.
Vejamos, contudo, se a factualidade dada como provada / não provada padece de algum dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que, como se sabe, são de conhecimento oficioso.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a) do nº 2 do art. 410º do CPP, verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – cf. Ac do STJ de 06.04.2000, in BMJ nº 496, p.169.
Este vício, na esteira do entendimento exposto no Ac. da Relação do Porto de 26.05.1993, proc. 9350062, sumário disponível in www.dgsi.pt, tributário do princípio do acusatório, tem de ser aferido em função do objecto do processo, traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia, pelo que só quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação se concretizará tal vício.
A insuficiência a que se refere a alínea a) do nº 2 do art. 410º do CPP é, no fundo, a que decorre da omissão de pronúncia, pelo Tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados, ou como não provados, todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação, pela defesa ou resultado da discussão.
Este vício não tem a ver com a insuficiência da prova, mas com a falta de averiguação de factos necessários à decisão.
Daí que a alínea a) do nº 2 do art. 410º do CPP se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), que é insindicável em reexame da matéria de direito – neste sentido, vide Leal Henriques e Simas Santos, in Código de Processo Penal Anotado, t. II, p. 737, Ed. Rei dos Livros 2004.
No caso, o recorrente não concretiza este vício, pois não aponta qualquer facto relevante que o tribunal tenha deixado de apreciar, em correlação com o legítimo objecto do processo, em que está em causa o crime pelo qual o arguido vinha acusado [crime de furto qualificado, na forma tentada], nem este Tribunal o vislumbra.
*
O vício de contradição insanável [a que não possa ser ultrapassada ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum] da fundamentação, a que se refere a al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP, ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma, ou nega, a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e, ainda, quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou na contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. Tal vício deve resultar da leitura da sentença em si, sem recurso a qualquer outro elemento exterior.
No caso, no que tange a este vício decisório, que, também, não foi concretizado pelo recorrente, observada a decisão recorrida, não vislumbramos a existência de qualquer contradição, muito menos, insanável, entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
*
Por sua vez, o erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do CPP, caracteriza-se como o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum (vide neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-04-00, no B.M.J. n.° 496, pág.169).
No caso, do texto da decisão recorrida, tanto quanto à fixação da matéria de facto, como na sua fundamentação, não se vislumbra, nem o recorrente aponta, concretamente, qualquer erro notório na apreciação da prova, pois a divergência do arguido funda-se unicamente na apreciação da prova efectuada pelo tribunal a quo, por da mesma discordar, o que é totalmente diverso do regime dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP.
Cumpre, contudo, salientar que a decisão recorrida se encontra correctamente fundamentada, tendo sido feito um juízo crítico da prova feita, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta ou desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários.
Nestes termos, e perscrutando a decisão recorrida, facilmente se observa não ser possível surpreender nela qualquer insuficiência da matéria de facto provada, qualquer contradição de fundamentação ou entre esta e a decisão ou, ainda, qualquer asserção contrária às regras da experiência comum, ou qualquer juízo ilógico, arbitrário ou contraditório, pelo que é manifesta a inexistência de qualquer dos vícios de raciocínio ou violação das regras de experiência comum, que regem o princípio da livre apreciação da prova.
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- Da qualificação jurídica dos factos:
Por fim, veio, ainda, o recorrente sustentar que não praticou o crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1, 204º n.º1 alínea e) e n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal., por que foi acusado e veio a ser condenado, porquanto, da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal e documental, não resultou que tenha preenchido os elementos objectivos e subjectivos daquele tipo legal de crime, impondo-se, por isso, a sua absolvição.
Apreciando:
O arguido recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1, 204º n.º1 alínea e) e n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal., na pena de 6 (seis) meses de prisão.
Prevê o artigo 203.º do C.P, intitulado “Furto”:
“1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.”
Estabelece, por sua vez, ao art. 204.º do CP, intitulado “Furto qualificado”:
“1 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
a) De valor elevado;
b) Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais;
c) Afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério;
d) Explorando situação de especial debilidade da vítima, de desastre, acidente, calamidade pública ou perigo comum;
e) Fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança;
f) Introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar;
g) Com usurpação de título, uniforme ou insígnia de empregado público, civil ou militar, ou alegando falsa ordem de autoridade pública;
h) Fazendo da prática de furtos modo de vida; ou
i) Deixando a vítima em difícil situação económica;
j) Impedindo ou perturbando, por qualquer forma, a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia, calor, óleo, gasolina ou gás;
é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
a) De valor consideravelmente elevado;
b) Que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico;
c) Que por sua natureza seja altamente perigosa;
d) Que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público;
e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas;
f) Trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta; ou
g) Como membro de bando destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do bando;
é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
3 - Se na mesma conduta concorrerem mais do que um dos requisitos referidos nos números anteriores, só é considerado para efeito de determinação da pena aplicável o que tiver efeito agravante mais forte, sendo o outro ou outros valorados na medida da pena.
4 - Não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor.”
Observada a matéria de facto dada como provada, não existe qualquer dúvida que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1 do CP, a saber: o arguido formulou a intenção de subtrair combustível do interior do depósito de veículos pesados, que se encontravam parqueados no interior do estaleiro da Câmara Municipal de …, espaço fechado e vedado em todo o seu perímetro, e, na execução dessa intenção, deslocou-se ao local em questão, introduzindo-se no interior do estaleiro, de onde retirou essa substância, que se encontrava no interior do depósito de combustível de dois veículos automóveis, ali existentes, com o intuito de se apoderar da mesma, bem sabendo que não lhe pertencia, que actuava sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário, causando-lhe prejuízo patrimonial, só não tendo conseguido concretizar essa sua intenção por ter sido surpreendido pelos Militares da GNR.
Importa, agora, apurar se se mostram verificadas as circunstâncias qualificativas do crime de furto, que vinham imputadas ao arguido: o nº 1 al. e) e o nº 2 al. e) do art. 204º do CP.
Refere-se, a propósito na decisão recorrida: “Olhando à factualidade provada, verifica-se que o arguido preencheu duas das agravantes previstas no artigo 204º, tanto pelo nº 1 com pelo nº 2, pelo que, há que chamar à colação o nº 3 do artigo 204º do Código Penal, sendo por isso prevalecente o previsto no nº 2 do referido artigo, sendo esse que fixará a moldura penal.”
Observamos, assim, que, na sentença recorrida, não se procedeu à análise das referidas alíneas qualificativas do crime de furto, integrando-se os factos apurados, sem mais, nas mesmas, o que nos merece reparo.
Com efeito, e começando pelo nº 2 al. e) do art. 204º do CP, onde se estabelece: “ Quem furtar coisa móvel ou animal alheios: (…) - e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas;”
Define-se, por sua vez, no art. 202º al. d), e) e f) do CP, o que se entende como:
“d) Arrombamento: o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente;
e) Escalamento: a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem.
f) Chaves falsas:
I) As imitadas, contrafeitas ou alteradas;
II) As verdadeiras quando, fortuita ou sub-repticiamente, estiverem fora do poder de quem tiver o direito de as usar; e
III) As gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos de segurança;”
Para a verificação da agravante prevista no citado art. 204º nº 2 al. e) do CP, não basta a penetração naqueles espaços [habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado] e daí subtrair bens móveis, pois exige-se que a penetração se tenha processado pelos aludidos meios específicos, ou seja, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, nos termos definidos pelo legislador no citado art. 202º do CP.
No caso em apreço, deu-se como não provado que tivesse sido o arguido que arrombou a vedação do estaleiro, termos em que, só por este facto, não se mostrava verificada a circunstância qualificativa prevista no art. 204º nº 2 al. e) do CP., procedendo, por isso, nesta parte, o recurso.
Para além disso, suscita-nos dúvidas, face à matéria de facto assente, na sentença recorrida, que o crime de furto levado a cabo pelo arguido, perpetrado num espaço destinado a estaleiro, ainda que com acesso vedado com um muro e painéis de rede metálica, possa ser qualificado nos termos previstos da mencionada alínea e) do nº 2 do art. 204º do CP, ou seja, como “habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado”.
Com efeito, e tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.07.2018, disponível in www.dgsi.pt.:
“II. A expressão «casa ou lugar fechado dela dependente», usada no art. 202º, do C. Penal, como elemento dos conceitos jurídico-penais de arrombamento, escalamento ou chaves falsas para a integração da qualificativa agravante prevista no nº 2 alínea e) do art. 204º do mesmo código, abrange, não apenas as construções destinadas a habitação, mas também aquelas onde se encontrem instalados estabelecimentos comerciais e industriais, no sentido de casa para comércio, de casa para repartição pública, de casa da Justiça, de casa de saúde, etc..
III. Por outro lado, sendo indubitável que a matéria penal é dominada pelos princípios seguros e consolidados da legalidade e da consequente proibição da analogia, não pode a simples vedação de um espaço ser tido por concordante ou coincidente com o conceito de espaço fechado para qualificar o crime de furto, pois que o espaço fechado protege melhor da devassa da propriedade e é mais difícil de atingir de que o espaço meramente vedado.
IV. Além disso, o que caracteriza e justifica a agravante qualificativa do furto prevista na alínea f) do nº 1 do mesmo artigo 204º – tal como sucede com a daquela alínea e) – não é a circunstância de o agente se introduzir num espaço fechado ou vedado, mas, sim, a de esse espaço estar conexionado com a habitação ou com qualquer das construções acabadas de aludir, não representando a introdução em espaço fechado, só por si, um dano acrescido: a agravação da punição das acções que consubstanciam crimes de furto perpetrados dentro de casa (seja de habitação, de comércio ou de indústria) é justificada por esta ser considerada “um reduto de mais valias” merecedor de uma tutela penal acrescida ao bem jurídico que se visa tutelar (cf. AUJ nº 7/2000).
V. Por conseguinte, o crime de furto preenchido pela subtração de objectos perpetrada num espaço destinado a estaleiro ou a pedreira, ainda que com acesso vedado por uma rede ou por uma corrente, não é qualificado nos termos previstos por qualquer das mencionadas alínea e) e f), uma vez que a configuração física de tal espaço, não sendo este uma «casa» (com o expendido conceito) nem um «espaço fechado dela dependente», não é idónea a que o mesmo incorpore o conceito de estabelecimento ou de outro espaço fechado para poder ser enquadrado naquelas qualificativas.”
Por outro lado, não se mostra, também, correcta a condenação do arguido pela al. e) do nº 1 do art. 204º do CP, pela qual o mesmo vinha, igualmente, acusado [recorde-se que, na sentença recorrida, chamando à colação o nº 3 do artigo 204º do Código Penal, considerou-se prevalecente o previsto no nº 2 do referido artigo, sendo esse que fixou a moldura penal], na medida em que o combustível, existente no depósito de veículo, não é coisa naquele colocada, mas sim uma substância estritamente necessária ao funcionamento da viatura.
Saliente-se que para o preenchimento da qualificativa em causa - al. e) do nº 1 do art. 204º do CP - o que o agente tem de representar e querer é a apropriação de coisa que esteja fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo.
Como tem sido considerado pela nossa jurisprudência, a protecção das coisas móveis colocadas ou transportadas em veículos está toda ela contida na alínea b) do nº 1, do art. 204º do CP. e a alínea e) reporta-se, necessariamente, a espaços “autónomos”, ou seja, espaços que não estão integrados em objectos, em relação aos quais têm uma função meramente instrumental, cuja finalidade e função é guardar e estão fechados, com mecanismo que dificulta a sua abertura, sem a chave ou dispositivos próprios – neste sentido, entre outros, vejam-se o Ac. TRC de 04.05.2016, in www.dgsi.pt. : “A extensão normativa “colocada em veículo”, introduzida na al. b) do n.º 1 do artigo 204.º do CP pela Lei n.º 59/2007, 04-09, deve ser tida como manifestação do propósito de conferir protecção acrescida a todas as coisas que se encontrem em veículo, isto é, coisas móveis alheias ali deixadas. Contudo, essa protecção não abrange o combustível existente no depósito de veículo, porquanto não é coisa naquele colocada, sendo, isso sim, substância estritamente necessária ao funcionamento da viatura.; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-01-2020, Processo: 733/19.8GAMAI.P1, disponível in www.dgsi.pt..
Refere, a propósito, Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 66 “um automóvel não é, não pode ser um receptáculo”.
O combustível existente no depósito de veículo não é coisa naquele colocada, mas sim substância estritamente necessária ao funcionamento daquele.
Não se considerando, pois, que o depósito de combustível de um veículo seja um receptáculo, mas sim uma parte componente do mesmo, temos, então, que o combustível existente no depósito do mesmo não é coisa naquele colocada, mas uma substância estritamente necessária ao seu funcionamento, termos em que não se mostra a conduta do arguido subsumida no art. 204º nº 1 al. e) do CP.
Por conseguinte, face a todo o exposto, a conduta do arguido preenche apenas a previsão do crime de furto simples, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1 do Código Penal, sendo por esse mesmo crime que deverá ser condenado.
*
Por via da operada alteração do crime pelo qual o arguido vai condenado, importa proceder, também, à alteração da pena a aplicar.
O arguido recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1, 204º n.º1 alínea e) e n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal., na pena de 6 (seis) meses de prisão, ao qual correspondia a pena abstracta de 1 mês até 5 anos e 4 meses de prisão.
A nova moldura penal abstracta é de prisão até 2 anos ou pena de multa de 240 a 10 dias.
Refere o art.º 70º do Código Penal que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
De acordo com o n.º 1 do art. 40º do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Na opção entre a aplicação da pena de prisão, ou da pena de multa, há que apurar se a pena não detentiva se mostra suficiente para que, no caso concreto, sejam alcançados os efeitos que se pretendem obter com qualquer reacção criminal.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, 556 e 559, o critério da preferência pela pena de prisão é, exclusivamente, a profilaxia criminal, na dupla vertente da influência concreta sobre o agente (prevenção especial de socialização) e da influência sobre a comunidade (prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico).
Há, assim, que apurar se, na situação em apreço, uma pena não privativa da liberdade, nomeadamente a pena de multa, seria, ainda, suficiente para afastar o arguido recorrente da prática de novos ilícitos criminais, garantindo-se, assim, a validade e vigência da norma violada e a reintegração do mesmo na sociedade, bem como se tal reacção penal constituiria uma censura suficiente do facto.
Quanto às exigências de prevenção geral, que se fazem sentir, no caso em apreço, são as mesmas elevadas, uma vez que a prática deste tipo de ilícito é muito frequente, gerando entre a comunidade um forte sentimento de insegurança que os tribunais têm o dever de combater.
No que concerne às exigências de prevenção especial, são as mesmas, igualmente, elevadas, verificando-se que foram aplicadas ao arguido várias penas ao longo dos anos, que não o demoveram de voltar a praticar o mesmo tipo de crime.
Na verdade, o arguido conta com diversas condenações anteriores, tanto em penas de multa, bem como em penas de prisão suspensa na sua execução e penas de prisão efectiva, algumas delas pela prática de crimes da mesma natureza do aqui em causa, assim como por crimes de diferente natureza, mas, apesar disso, voltou a delinquir, o que é revelador de indiferença perante penas não detentivas (e até das detentivas) e de alguma facilidade em se decidir por este tipo de ilícito (furto), o que exige uma censura séria sobre a sua conduta, só passível de transmitir através da pena de prisão.
Por outro lado, depois de diversas condenações em pena de multa, não pode deixar de ser dado ao arguido um sinal claro que a repetição do mesmo crime tem algum reflexo na pena.
Temos, pois, que as condenações sucessivas do recorrente revelam, inequivocamente, uma personalidade insensível a condenações penais, sinal de falta de consciência critica em relação à sua conduta e de falta de interiorização do desvalor da mesma, o que só permite concluir que não tem capacidade para se deixar influenciar positivamente por penas não detentivas, termos em que apenas a pena de prisão poderá promover a recuperação social do delinquente e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
No que concerne à medida da pena a aplicar haverá de atender ao disposto no artigo 71°, n°1, do Código Penal, de acordo com o qual “a determinação da medida da pena (...) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
No caso, importa atender, para efeitos de determinação da medida da pena, ao grau de ilicitude dos factos, que é mediano, a intensidade do dolo – directo – e o facto de o arguido possuir antecedentes criminais, já com alguma antiguidade, alguns por crimes da mesma natureza do aqui em apreço, e com condenações em penas de prisão efectiva, que cumpriu, não beneficiando da mera confissão ou do simples arrependimento. Na sentença recorrida, atendeu-se à inserção social e familiar do arguido.
Depõem em desfavor do arguido as elevadas exigências de prevenção geral e as exigências de prevenção especial, nos termos supra explanados a propósito da decisão da espécie da pena.
Ponderadas as circunstâncias supra descritas e tomando por referência a medida da culpa e as exigências de prevenção que, no caso, se fazem sentir, decide-se fixar ao arguido, pela prática de um crime de furto, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1 do CP, a pena de 3 meses de prisão [não muito afastado do limite mínimo abstracto e abaixo do 1/3 entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta].
*
Considerando a medida concreta da pena a aplicar e no que concerne à possibilidade de o juiz lançar mão das penas substitutivas não detentivas da liberdade, atender-se-á ao entendimento vertido na sentença recorrida:
“ Do ponto de vista da prevenção especial, deve ser dada prevalência a penas não privativas da liberdade, devendo o juiz lançar mão das penas alternativas ou substitutivas não detentivas da liberdade. O tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas.
No que concerne à prevenção geral, as penas alternativas ou de substituição, desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias.
Do disposto no artigo 43º, nº 1 do Código Penal resulta que “A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes
Verifica-se, assim, que a substituição é o regime-regra, devendo lançar-se mão da mesma, salvo quando se verificar a excepção prevista no citado normativo, a qual só inclui considerações ligadas à prevenção do cometimento de futuros crimes, e não à culpa.
No caso em apreço, e atento o supra explanado, o arguido continua a demonstrar insensibilidade às anteriores penas em foi condenado, razão pela que se considera não estarem reunidas as condições para proceder à substituição da pena de prisão por multa em conformidade com o citado artigo 43º, nº 1 do Código Penal, aferindo-se que tal pena não se mostrará suficiente para salvaguardar as exigências de prevenção geral e principalmente especial, nem as finalidades da punição, dados os antecedente criminais do arguido.
No entanto, importa equacionar se é de suspender na sua execução a pena de 6 (seis) meses de prisão cominada ao arguido, sendo certo que tal suspensão deve, em nosso entendimento, ser qualificada como verdadeira pena de substituição, o que resulta, desde logo, da sua inserção sistemática, quer no Código Penal, quer no Código de Processo Penal, onde surge referida no título relativo à execução das penas não privativas da liberdade .
Deve, assim, entender-se que a pena de prisão suspensa na sua execução é uma verdadeira pena de substituição, não privativa da liberdade, e que, por essa razão, se encontra abrangida pela referência efectuada no citado artigo 43º nº 1 do Código Penal a”(…) outra pena não privativa da liberdade”.
Estabelece o artigo 50º, nº 1 do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. que o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
É, assim, pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação, pelo julgador, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes.
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é, pois, o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes.
No caso concreto, não obstante a explanada relevância dos respectivos antecedentes criminais, em face da antiguidade dos mesmos, cremos que tal juízo pode ainda formular-se de forma favorável ao arguido, na medida em que o mesmo se encontra familiarmente inserido, e que o cumprimento da pena em ambiente prisional não será efectivamente a melhor forma de ressocializar o arguido, sendo que se entende que a suspensão da pena, poderá facultar, desta forma, ao arguido como que um voto de confiança para que, em liberdade, e de uma vez por todas, se consciencialize da gravidade da sua conduta e da necessidade de a mesma não se repetir.
Pelo exposto, entendemos ser justificado um juízo de prognose favorável à ressocialização do mesmo, afigurando-se a eventual execução da pena de prisão ora fixada contraproducente quanto à finalidade político-criminal da socialização.
Tudo ponderado, afigura-se-nos que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção de futuros crimes, pelo que, nos termos do disposto no artigo 50º, n° 1, do Código Penal, decide-se suspender, a execução da pena de prisão de 6 (seis) meses aplicada ao arguido, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
Considera-se, no entanto, conveniente, face às necessidades de prevenção geral e especial verificadas neste caso, nos termos do disposto nos artigos 53º do Código Penal, para que o arguido apreenda a gravidade das infracções por si cometidas e a incutir-lhe um sentimento de responsabilidade social, que a suspensão da execução da pena de prisão fique subordinada a regime de prova através de plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, tendo por objectivo promover a interiorização de competências pessoais do arguido no sentido que o mesmo se deve abster da prática de crimes seja de que natureza for, educando-o para o direito e devendo as entrevistas serem direcionadas para a educação cívica e interiorização de que a lei, decisões judiciais e ordens emanadas por autoridades competentes são para ser cumpridas e respeitadas, orientando o condenado para a vida em sociedade e cumprimento das normas em sociedade assim como para a compreensão da respectiva responsabilidade criminal.
Mais, nos termos dos artigos 53.º e 54.º, do Código Penal, condiciona-se ainda a suspensão da pena aplicada, à entrega do montante de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) aos bombeiros Voluntários de … devendo fazer prova de tal pagamento nos autos no prazo da suspensão, devendo o comprovativo apresentar a informação “injunção em processo penal” e indicando o nº de processo.“ 5
Concordando-se com o explanado, pelo tribunal recorrido, nas considerações tecidas quanto à substituição da pena de prisão por uma pena não detentiva, e reportando tal entendimento à pena de 3 meses de prisão, que importa aplicar ao arguido, pela prática do crime de furto simples, na forma tentada, determina-se que tal pena seja suspensa na sua execução, pelo período de 1 ano e seis meses, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção Social, tendo por objectivo promover a interiorização de competências pessoais do arguido, no sentido que o mesmo se deve abster da prática de crimes, seja de que natureza for, educando-o para o direito e devendo as entrevistas serem direcionadas para a educação cívica e interiorização de que a lei, decisões judiciais e ordens emanadas por autoridades competentes são para ser cumpridas e respeitadas, orientando o condenado para a vida em sociedade e cumprimento das normas em sociedade, assim como para a compreensão da respectiva responsabilidade criminal.
Nos termos do artigo 51º nº 1 al. c) do Código Penal, condiciona-se, ainda, a suspensão da pena aplicada à entrega do montante de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) aos Bombeiros Voluntários de …, fazendo fazer prova de tal pagamento, nos autos, no prazo da suspensão da execução da pena de prisão, devendo o comprovativo apresentar a informação “injunção em processo penal”, com indicação do nº de processo.
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- Decisão:
Em conformidade com o exposto acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso, interposto pelo arguido e, em consequência:
a) Revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido, AA, pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1, 204º n.º1 alínea e) e n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202º al. d), todos do Código Penal., na pena de 6 (seis) meses de prisão;
b) Condena-se o arguido, AA, pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14º n.º1, 26º, 22º, 23º, 73º e 203º n.º 1 do CP, na pena de 3 (três) meses de prisão;
c) Suspender a execução da pena de 3 (três) meses de prisão, aplicada ao arguido, no ponto b), pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, acompanhada de regime de prova assente, num plano de reinserção social, a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção Social, tendo por objectivo promover a interiorização de competências pessoais do arguido, no sentido que o mesmo se deve abster da prática de crimes, seja de que natureza for, educando-o para o direito e devendo as entrevistas serem direcionadas para a educação cívica e interiorização de que a lei, decisões judiciais e ordens emanadas, por autoridades competentes, são para ser cumpridas e respeitadas, orientando o condenado para a vida em sociedade e cumprimento das normas em sociedade, assim como para a compreensão da respectiva responsabilidade criminal;
d) Condicionar a suspensão da execução da pena de 3 (três) meses de prisão, aplicada ao arguido no ponto b), ao pagamento de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), aos Bombeiros Voluntários de …, fazendo prova de tal pagamento, nos autos, no prazo da suspensão da execução da pena, devendo o comprovativo apresentar a informação “injunção em processo penal” e indicando o nº de processo.
Sem custas.
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(Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto)
Évora, 25 de Fevereiro de 2025
Os Juízes Desembargadores
Anabela Simões Cardoso
Manuel Soares
Artur Vargues
..............................................................................................................
1 Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 43.
2 Livro citado, pág. 30.
3 Eduardo Correia, parecer referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1968, BMJ nº 182, pág. 314.
4 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/02/98, in CJ-STJ, Tomo I, pág. 208.
5 Importa salientar duas incorreções contidas na sentença recorrida na indicação de preceitos legais, por o Mmº Juiz a quo não ter atentado nas alterações operadas no Código Penal pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, designadamente na redacção que foi conferida ao art. 45º daquele diploma legal:
i- O artigo que prevê a substituição da pena de prisão por multa é o art. 45º nº 1 do C.P e não o indicado art. 43º nº 1, sendo a redacção daquele a seguinte:
“Artigo 45.º
Substituição da prisão por multa
1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º”
ii- O artigo que estabelece que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, é o art. 51º do CP, e não os indicados artigos 53º e 54º do Código Penal, como consta na sentença recorrida.
É a seguinte a redacção do artigo 51º do Código Penal:
“Deveres
1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente. (…).”