EXECUÇÃO DE COIMAS
TRIBUNAL COMPETENTE
DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Sumário

I. O direito surge apenas com a decisão humana que liga as fontes ao caso concreto. Quando se aplica um parágrafo de um código, não só se aplica todo o código, como se faz intervir o pensamento do Direito em si mesmo. Não podendo a decisão judicial desligar-se das normas que a suportam; sendo o inverso também verdadeiro. Ou seja, as normas mobilizadas para uma dada decisão não podem ditar um sentido abstrato, devendo antes atender ao texto e ao contexto em que a mesma é produzida.

II. Do elenco do artigo 73.º RGC não consta o recurso de qualquer decisão judicial proferida na fase executiva da coima, apesar de tal fase ter existência legal e estar expressamente prevista a sua tramitação nos tribunais judiciais (artigos 89.º a 91.º do RGC).
III. Resultando expressamente dos artigos 89.º e 91.º RGC que a execução da coima corre perante os tribunais judiciais, tramitando segundo as regras processo civil (artigo 89.º, § 2.º RGC e 491.º, § 2.º CPP).
IV. Emerge das regras de admissibilidade de recurso das decisões tomadas no apenso executivo, a admissibilidade do recurso que declara o tribunal incompetente em razão da matéria (artigos 65.º, 97.º, § 2.º 98.º, 99.º e 577.º, al.a) CPC).
V. Não havendo na lei vigente (nomeadamente no artigo 148.º do Código de Processo e Procedimento Tributário - CPPT) nenhuma norma que afirme a competência da Autoridade Tributária para a execução de coimas não respeitantes a contraordenações tributárias ou previstas no Regime Geral das Infrações Tributárias.

Texto Integral

ACÓRDÃO
I – Relatório

a) Nos presentes autos vindos do ….º Juízo1 de Competência Genérica de …, o Ministério Público apresentou requerimento executivo contra AA, visando a cobrança judicial da coima no valor de 251€ aplicada no devido processo contraordenacional.

b) A Mm.a Juíza do ….º Juízo de …, por sequente despacho, de 16fev2024, declarou a incompetência absoluta daquele Juízo para tramitar a intentada ação executiva, considerando para tal efeito competente a Autoridade Tributária, em conformidade com o disposto no 35.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), na redação introduzida pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, em conjugação com o previsto no artigo 148.º, § 1.º, al. b) CPPT.

Tal decisão tem o seguinte teor:

«Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima no valor de 251€, devida à PSP.

Estabelece o actual art.º 35º do Regulamento das custas processuais (após - Lei n.º 27/2019, de 28/03) o seguinte:

1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.

2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.

3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.

4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil.

A propósito da alteração legislativa que deu origem à sobre dita norma, pronunciou-se o Ministério Publico no Parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018.

O parecer supra referido sustenta aliás a sua inteira concordância com ser retirada a competência aos tribunais judicias para proceder a cobrança de custas e coimas, manifestando unicamente a sua discordância relativamente a essa competência no que concerne à pena de multa.

Aliás e no que concerne ao disposto no art.º 89º do RGCO também o referido parecer contem menção da alteração que deveria ser feita à referida norma.

É certo que o diploma não contempla essa mesma alteração, no entanto uma interpretação sistemática do diploma (conjugada com a lei geral tributária e o código do procedimento e processo tributário) não pode deixar de considerar que a execução por coimas não cabe aos tribunais, mas antes à autoridade tributária

No âmbito aliás deste parecer, e com o intuito de facto delimitar as competências do Ministério Publico no âmbito das execuções de origem penal ou contra ordenacional, foi referido que o art.º 148º do C.P.P.T deveria conter uma alínea c) no seu numero 2º, contendo as coimas emitidas por entidades administrativas.

A referida alínea c) limitou-se a custas, multas não penais e sanções pecuniárias em processo judicial.

Porém a norma constante do nº1º, alínea b) da referida norma contempla as coimas aplicadas em decisões e sentenças, onde incluímos obviamente as coimas de entidades administrativas ou as coimas aplicadas em por sentença após recurso de impugnação judicial de decisão administrativa.

É aliás tal facto também referido no 1. Parecer do Ministério Publico n.º 27/2020, de 04-10 que refere o seguinte:

“Cobrança das custas fixada na fase administrativa do processo contraordenacional.

1.ª Na sua versão original, o Regime Geral das Contraordenações remetia a execução das custas para o disposto nos artigos 171.º e seguintes do Código das Custas Judiciais, assim atribuindo ao Ministério Público competência para promover a sua execução junto dos tribunais judiciais (artigo 202.º, n.º 2, daquele Código);

2.ª Esta solução, apesar das inúmeras alterações legislativas que enfrentou, manteve-se quase inalterada até a entrada em vigor da Lei n.º 27/2019, de 28 de março, relativa a aplicação do processo de execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial;

3.ª Com efeito, considerando a natureza tributária das custas e seguindo o exemplo da jurisdição administrativa e fiscal, o legislador inverteu aquele paradigma, remetendo para a execução fiscal a cobrança coerciva das custas fixadas em processo judicial;

4.ª Para esse efeito, a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário que passou a dispor que «Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: [...] Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial [artigo 148.º, n.º 2, alª c)];

5.ª Bem como o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, que sob a epígrafe «execução», passou a dispor que: «Compete a administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial»;

6.ª Embora nem a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, nem as normas que ela alterou, o digam expressamente, deve entender-se que este regime é aplicável as custas fixadas na fase administrativa do processo de mera ordenação social, competindo a Administração Tributária proceder a sua cobrança coerciva;

7.ª Desde logo, porque, continuando o artigo 92.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, a remeter para os preceitos reguladores das custas em processo criminal, será aqui aplicável o disposto no artigo 35.º do Regulamento das Custas;

8.ª Depois, porque, atenta a sua natureza, tais custas estão incluídas no âmbito do artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, segundo o qual o processo de execução fiscal abrange, para além do mais, a cobrança coerciva de taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais;

9.ª Em terceiro lugar, porque, em vez de atribuir ao juízo ou tribunal que as tenha proferido competência para executar as decisões relativas a multas, custas e indemnizações previstas na lei processual aplicável, o legislador passou a atribuir-lhe, apenas, competência para a execução das decisões relativas a multas penais e indemnizações previstas na lei processual aplicável (artigo 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário);

10.ª Em quarto lugar, porque o legislador restringiu os poderes do Ministério Público, maxime o poder de promover a execução por custas, conferindo-lhe, agora, apenas, competência para promover a execução das penas e das medidas de segurança e, bem assim, a execução por indemnização e mais quantias devidas ao Estado ou a pessoas que lhe incumba representar judicialmente (artigo 469.º do Código de Processo Penal);

11.ª Finalmente, porque o legislador eliminou a referência a execução por custas, que constava do artigo 491.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, passando a mesma a ser da competência exclusiva da Administração Tributária;

12.ª Com estas alterações, para além de ter atribuído a Administração Tributária competência para proceder a cobrança coerciva das custas, o legislador eliminou as normas que antes atribuíam ao Ministério Público competência para promover a sua execução e aos tribunais judiciais competência para a tramitar;

13.ª Desta forma, o artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, passou a incluir a cobrança da taxa de justiça e dos encargos legais, que, por força de disposições legais especiais, antes lhe estava subtraída; e

14.ª Se as entidades administrativas remeterem ao Ministério Público expediente destinado a cobrança de custas fixadas em processo de contraordenação, tal expediente deverá, por mera economia de meios, ser reencaminhado diretamente a Autoridade Tributária, com conhecimento ao remetente.

O parecer supramente citado, descreve a restrição da competência do ministério publico, circunscrevendo-a unicamente a multas penais e indemnizações arbitradas em processo penal.

Não podemos deixar ainda de trazer à colação o seguinte:

O Código de procedimento e processo tributário, no seu art.º 148º, nº1º, alínea b), estatui: “O processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas: b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns.

A questão da competência dos tribunais ou da administração tributária para proceder à cobrança de coimas aplicadas por entidades administrativas, tem pois que ser solucionada através de um processo de interpretação, uma vez que, as alterações sugeridas pelo Ministério Publico no parecer de 24.10.2018, relativamente à norma constante do art.º 89º do RGC não sofreram acolhimento na lei.

Nesta interpretação jurídica temos em conta elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente, socorrendo-nos de elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.

Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias:

a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];

b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;

c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).

Aplicando estes elementos à analise da Lei Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, a qual se encontra sumariada da seguinte forma: “Aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial, procedendo à sétima alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, trigésima terceira alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, sétima alteração ao Código de Processo Civil, décima terceira alteração ao Regulamento das Custas Processuais, trigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal, quarta alteração ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro”, conjugando com o parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ªGOV enviado em 24.10.2018, com as referências já mencionadas, bem como o art.º 148º, nº1º alínea b) e nº2º alínea c) do Código do Procedimento e Processo Tributário, entendemos que o legislador quis concentrar na administração tributária toda a cobrança de valores pecuniários, com excepção da quantia relativa à pena de multa ou indemnização arbitrada em processo penal (competência que se mantêm no Ministério Publico), uma vez que estas assumem relevância penal, seja para determinação do cumprimento de condição da suspensão, seja para extinção da pena de multa ou sua conversão em prisão subsidiária.

Face ao exposto declaro os tribunais judiciais absolutamente incompetente, em razão da matéria, para executarem coimas aplicadas por entidades administrativas. (este nosso entendimento mereceu confirmação do Tribunal da relação de Évora – Ac do TRE proferido no processo 319/23.2T9OLH.E1 de 07/11/2023)

A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a) do Código de Processo Civil.

Notifique.

-Existindo alguma penhora nos autos proceda ao seu imediato cancelamento.

- Existindo valores pagos proceda a notificação do executado com informação dos respectivos valores.

- Remeta os autos à conta.

Mais se consigna que o Tribunal da Relação de Évora tem decidido sucessivamente pela irrecorribilidade do presente despacho.»

c) Inconformado com essa decisão recorreu o Ministério Público, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões2: (transcrição):

«(…)

3. O Ministério Público promoveu a execução do remanescente em dívida da coima da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente pagos os valores em dívida por parte do executado.

(…)

5. Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT.

6. O mencionado despacho é susceptível de recurso.

7. O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.º, 88.º e 89.º, do RCP, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.

8. Perante a actual redação do artigo 35.º, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à Autoridade Tributária.

9. Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.º, 88.º, e 89.º, do RGCO, 35.º, do RCP, e 64.º, do CPC, por força do disposto no artigo 4.º, do CPP.

10. Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido não se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

11. Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa.»

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, emitiu entendimento no sentido da improcedência do recurso, considerando, designadamente que «só as decisões judiciais previstas nos artigos 63.º e 73.º do RGC admitem recurso para os Tribunais da Relação e delas não faz parte o despacho jurisdicional, ora em crise que declara a incompetência absoluta do Tribunal para conhecer da execução por coima aplicada por autoridade administrativa, como o aqui impugnado, sendo, pois, o mesmo irrecorrível. Assim sendo, deve o recurso apresentado pelo M.º P.º da 1.ª instância, ser rejeitado, por irrecorribilidade da decisão, pelos fundamentos ali doutamente expostos.»

e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

f. Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP)3. O presente recurso suscita as seguintes questões: i. Da recorribilidade do despacho sob impugnação; ii. Do regime de execução.

B. Da recorribilidade do despacho impugnado Importa em primeiro lugar, como questão prévia ao mérito do recurso aferir da recorribilidade da decisão impugnada, na medida em que a mesma vem suscitada pelo Ministério Público (junto deste Tribunal), constituindo esta, como previsto no artigo 420.º, § 1.º al. b) CPP, uma das causas típicas de rejeição do recurso: «o recurso é rejeitado sempre (…) que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º».

Este Tribunal da Relação tem-se dividindo relativamente à questão da recorribilidade do despacho judicial que declara a incompetência absoluta do Juízo respetivo, para tramitar a ação executiva interposta pelo Ministério Público, para cobrança da coima aplicada no respetivo processo contraordenacional, entendendo a corrente maioritária ser tal decisão irrecorrível, por a atual redação do artigo 73.º do Regime Geral das Contraordenações (RGC) o não prever. Sustentando que a alteração introduzida neste RGC pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro - que (entre o mais) revogou as alíneas que no artigo 91.º previam a recorribilidade de decisões na fase executiva das contraordenações – quis restringir a garantia do recurso na fase executiva da contraordenação (na execução da coima). Sustentando o entendimento de que com a supressão da versão original do § 2 do artigo 91.º, «a eliminação da consagração de um regime particular outro significado não poderá ter que não o da sujeição ao regime geral no processo contraordenacional constante do artigo 73.º do presente diploma”.4 Considerando, enfim, que com a eliminação da norma que previa a possibilidade de recurso para a relação das decisões proferidas pelo tribunal competente relativamente à execução da coima, «parece dever concluir-se pela inadmissibilidade de recurso de todas as decisões proferidas no processo de execução»5. O relator deste acórdão já perfilhou tal entendimento, do qual, entretanto (melhor ponderados os argumentos relativos à sua sustentação jurídica e à justiça) se afastou.

Brevemente diremos ter por seguro que as normas legais invocadas e interpretadas na tese que denominámos maioritária, mormente os artigos 73.º e 91.º RGC, não gizam restringir direitos nem garantias fundamentais de defesa. Pelo contrário, têm fito certo no contexto da lei em que se integram, que é apenas o de indicar os termos procedimentais a seguir.

Daí que devamos interpretá-las teleologicamente, com prudentia (termo que numa tradução singela para a língua portuguesa significará diretamente «prudência», mas para que abarque integralmente o seu sentido clássico significará também «sabedoria», «sensatez» e «racionalidade»). Atentando ao que é o plano da lei (a mens legis), pois a realização do direito não é automática.

Conforme a doutrina vem sublinhando, o direito surge apenas com a decisão humana que liga as fontes ao caso concreto6.

Neste exato contexto ensinava já no séc. XIX o jus-filósofo alemão Rudolf Stammler, que «quando se aplica um parágrafo de um código, não só se aplica todo o código, como se faz intervir o pensamento do Direito em si mesmo».

No binómio problema-solução, a procura da resposta começará na norma com a linguagem pré-conhecida do intérprete aplicador, ponderando as consequências da decisão, para aferir se ela corresponde à realização do Direito. E se, naturalmente, a decisão do juiz não pode desligar-se das normas que a suportam; a inversa também é verdadeira. Ou seja, as normas usadas na decisão não podem ditar o sentido desta abstratamente, sem olhar ao texto e ao contexto em que a mesma é produzida.7

Sendo também por isso que sapientemente se afirma que o direito não está nem na norma nem no caso, mas na relação entre eles. Na dúvida «o preceito da lei deve ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura (…) tendo em conta uma interpretação teleológica, atual e razoável.»8

Avancemos.

Talqualmente resulta da lei, o regime das contraordenações distingue-se quer do direito penal primário quer do secundário. Mas apesar das conhecidas diferenças dogmáticas entre o direito penal e o direito contraordenacional, elas esbatem-se no campo sancionatório, daqui emergindo, entre o mais, a necessidade de acautelar os direitos de defesa.

Isto é, não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). E esta é que deve ser a «pedra de toque» para aferir em cada caso se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar.

Daí que os requisitos de forma são nas mais das vezes estabelecidos como condição legal para que um ato seja aceite como legítimo. Não devendo por isso perder-se de vista que a forma está ao serviço de valores, os quais na circunstância presente são: a certeza e segurança jurídica, por um lado; e as garantias de defesa do arguido, por outro. Conforme estabelece a lei, o processo de contraordenação tem uma fase administrativa obrigatória e uma fase judicial que é facultativa. Abrindo-se esta apenas quando seja impugnada a decisão final condenatória da autoridade administrativa (artigo 59.º, 4 1.º RGC). O RGC prevê diretamente (no seu artigo 73.º) a possibilidade de impugnação judicial das seguintes decisões judiciais: - do despacho que rejeite a impugnação judicial por violação das regras de prazo ou exigências de forma (artigo 63.º, § 1.º RGC); - do despacho proferido nos termos previstos no artigo 64.º ou da sentença quando:

a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 249,40€;

b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;

c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 249,40€ ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;

d) A impugnação judicial for rejeitada;

e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

f) Poderá (ainda) o Tribunal da Relação admitir recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

g) E da decisão judicial prevista no artigo 95.º, § 2.º RGC.

Destas normas não consta o recurso de qualquer decisão judicial proferida na fase executiva da coima, apesar de tal fase ter existência legal e estar expressamente prevista a sua tramitação nos tribunais judiciais - conforme resulta dos artigos 89.º a 91.º do RGC. Concretamente se dispondo no § 2.º do artigo 89.º que a execução é promovida pelo Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal (CPP) sobre a execução da multa. Ora, a norma do CPP para a qual remete aquele normativo do RGC é o artigo 491.º, onde concretamente se dispõe:

«1. Findo o prazo de pagamento de multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efetuado, procede-se à execução patrimonial. 2. Tendo o condenado bens penhoráveis suficientes de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações.»

E justamente sob a epígrafe «execução pelas indemnizações», preceitua o artigo 87.º do Código de Processo Civil (CPC), que:

«1. Para a execução pelas indemnizações referidas no artigo 542.º e preceitos análogos é competente o tribunal em que haja corrido o processo no qual tenha sido proferida a condenação. «2. A execução pelas indemnizações corre por apenso ao respetivo processo.»

São, pois, as regras do processo civil que regulam os termos do apenso de execução da coima. Mas com limites específicos, atenta a natureza da responsabilidade impregnada na coima, uma vez que executar uma sanção contraordenacional (de natureza penal - em sentido amplo)9, implica, por exemplo, que a responsabilidade pelo seu pagamento seja intransmissível – dado o princípio da pessoalidade da responsabilidade, decorrente desde logo do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição da República).10 No especificamente respeitante à admissibilidade de recurso das decisões que se tomem em tal apenso, as regras aplicáveis são as que emergem da conjugação dos artigos 629.º, § 3.º e 644.º, § 2.º, al. b) e 853.º, todos do CPC, acrescendo - para o que aqui especificamente releva - que estando em causa decisão baseada na violação das regras de competência em razão da matéria, tal decisão é sempre recorrível (artigos 65.º, 97.º, 98.º, 99.º e 577.º, al. a) CPC). Discordamos, pois, da orientação jurisprudencial que com suposta base no preâmbulo do Decreto-Lei 244/95 (diploma este que revogou as alíneas que no artigo 91.º do RGC se referiam ao processo executivo das coimas) entende que tal diploma legal eliminou o direito ao recurso na fase executiva. E nessa linha sustentando que o artigo 73.º RGC contém um regime exaustivo, aplicável a todas as fases processuais do processo contraordenacional, incluindo (portanto) a executiva. E que, por assim ser, inexiste lacuna carecida de mobilização de qualquer regime jurídico subsidiário!

Cremos que esta argumentação não logra sustentação normativa bastante. Desde logo porque nada no preâmbulo do Decreto-Lei 244/95 indica que se pretendeu extinguir a possibilidade de recursos na fase executiva, sendo sua singela intenção aperfeiçoar o regime dos recursos e as regras da execução: as duas coisas. Seguramente não se quis eliminar o direito ao recurso nas execuções, pois tal não emerge do texto da lei nem do que se conhece da mens legis! Até porque - como sempre sucedeu desde a introdução das contraordenações no ordenamento jurídico nacional - as execuções correm em processo autónomo, em apenso próprio e sujeito a regras que não são – e nunca foram - as do RGC (cf. artigos 89.º e 91.º RGC e 491.º CPP (ex vi artigo 89.º, § 2.º RGC), mediante o regime procedimental previsto no Código de Processo Civil (CPC).

Além disso, parece ser contraditório afirmar, que com tal diploma legal (Decreto-Lei 244/95) se concederam maiores garantias de defesa ao arguido no processo de contraordenação do que tinha até então; mas do mesmo passo se teria eliminado o direito ao recurso no processo de execução da coima!

Conforme bem se refere no acórdão deste Tribunal, proferido no proc. 438/23.5T9OLH.E1, de 11fev202511, «na versão original do RGC, aprovada em 1982, o seu artigo 89.º n.º 2 dispunha que a execução por coima obedecia aos termos da execução por custas.

Ora, a execução por custas (ou, melhor, como então se chamava, por imposto de justiça) estava regulada no CPC, na versão resultante da revisão do Decreto-Lei 44 129, de 28dez1961.

Era promovida pelo Ministério Público (artigo 59.º), corria por apenso ao processo (artigo 92.º, n.º 1) e seguia a forma sumaríssima (artigo 927.º).

Na execução por custas apenas era admitido recurso nos embargos em que a sentença tivesse por fundamento a violação das regras de competência ou caso julgado (artigos 800.º e 678.º, n.º 2, ex vi artigo 801.º). Nos outros casos não havia recurso, uma vez que só era admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorria (artigo 678.º n.º 1) e no processo sumaríssimo o valor da causa não ultrapassava a alçada do tribunal de comarca (artigo 462.º, n.º 1). Quer isto dizer que, na sua versão originária, o RGC previa normas específicas relativas ao direito ao recurso na execução por coima porque, de outro modo, com a remissão para o regime da execução por custas, o recurso simplesmente não seria admissível. O Decreto-Lei 244/95 foi publicado em 14set1995 e entrou em vigor em 1out1995 (cf. o seu artigo 5.º). Nesse momento estava em finalização a grande revisão do processo civil que viria a ser introduzida, em 12dez1995, pelo Decreto-Lei 329-A/95, vigente a partir de 1jan1997 para os processos iniciados após essa data (cf. o seu artigo 16º). No novo regime do processo civil, a execução por custas passou a seguir a forma sumária (artigo 465.º, n.º 2) e nos recursos passaram a aplicar-se as regras dos recursos na execução ordinária, dos artigos 922.º e 923.º, por via da remissão do artigo 466.º, nº 3.»

Daí que «a tese da irrecorribilidade que estamos a rebater, a ser válida, quando posta à prova noutras situações, mostrar-se-ia inaceitável no plano da sistemática das leis e dos direitos constitucionais.

Para o demonstrar, assinalamos apenas algumas situações hipotéticas em que nos parece, de todo, insustentável defender que decisões contrárias aos interesses do executado, de terceiro ou do Estado (representado pelo Ministério Público), proferidas no processo de execução por coima, são insuscetíveis do recurso que a lei admite nos outros processos executivos, “apenas porque não está previsto no artigo 73.º do RGC”12: - Rejeição de embargos de executado por falta de intervenção no processo de contraordenação – o arguido foi condenado sem audição e apenas teve contacto com o processo na execução; - Rejeição de embargos de executado por violação de caso julgado – o arguido foi condenado duas vezes pela autoridade administrativa no pagamento da mesma coima; - Rejeição de embargos de executado por facto extintivo da obrigação – execução por coima paga ou prescrita; - Rejeição de oposição à penhora – na execução foram penhorados bens absolutamente impenhoráveis ou isentos de penhora; - Rejeição de embargos de terceiro – o bem penhorado pertencente a terceiro; - Rejeição de reclamação de créditos – um terceiro tem um crédito garantido pelo bem penhorado; - Indeferimento liminar do requerimento executivo – o tribunal considera a condenação em coima aplicada pela autoridade administrativa excessiva ou ilegal.» Como parece bom de ver, seria (no mínimo) contraditório num sistema jurídico harmónico e necessariamente garantístico, como é aquele que deflui da Constituição e de todo o ordenamento jurídico, se deixasse sem a tutela do recurso as prementes questões de legalidade que se deixaram alinhadas (e outras), as quais só na fase executiva da coima se poderão suscitar. Incompreensível ainda que tal ampla tutela dos direitos individuais e coletivos, se tornasse na fase executiva das coimas (e já não nos outros domínios da execução) exatamente no seu contrário!

Na interpretação da lei o aplicador não pode deixar de ponderar as consequências da sua decisão. E estas (as consequências) devem alertá-lo relativamente ao «(des)acerto do tiro». Em suma: a execução, conforme expressamente se refere nos artigos 89.º e 91.º RGC (na sua atual redação), corre perante os tribunais judiciais, tramitando e segundo as regras processo civil (artigo 89.º, § 2.º RGC e 491.º, § 2.º CPP).13 E como assim, mobilizando as regras respeitantes à admissibilidade de recurso no âmbito do processo civil, delas emerge a admissibilidade do recurso sobre o qual nos debruçamos, através da conjugação dos artigos 87.º, 629.º, § 3.º, al. c) e 644.º, § 2.º, al. b) e 853.º, todos do CPC. Acrescendo que as decisões baseadas na violação das regras de competência em razão da matéria, como é aqui o caso, admitem sempre recurso (artigos 65.º, 97.º, § 2.º 98.º, 99.º e 577.º, al. a) CPC).

Razões pelas quais consideramos o recurso admissível.

C. Do regime de execução

Como deixámos referido, as regras respeitantes à matéria de execução das coimas, constam dos artigos 89.º a 91.º RGC, estabelecendo o § 2.º daquele primeiro normativo que «a execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa», isto é, no artigo 491.º CPP.

Prevendo-se no § 2.º deste artigo 491.º CPP «que a execução segue as disposições previstas no Código de Processo Civil (CPC) para a execução por indemnizações», o que torna inquestionável que a execução das coimas corre perante os tribunais comuns (e não perante quaisquer outras autoridades); e que a sua respetiva cobrança será executada, com as devidas adaptações, nos termos da execução por multa (segundo as normas do CPC que respeitam à execução por indemnizações), nos termos supra referidos (tramitando e segundo as regras processo civil - artigo 89.º, § 2.º RGC e 491.º, § 2.º CPP.14 Finalizaremos afirmando, com sublinhada clareza que, ao contrário do que afirma a decisão recorrida, não encontramos na lei vigente (nomeadamente no artigo 148.º do Código de Processo e Procedimento Tributário - CPPT) fundamento normativo para afirmar que o legislador entendeu ser a execução fiscal mais eficiente do que a execução comum! E, mais precisamente, que tenha optado por esta quanto a coimas não respeitantes a contraordenações tributárias ou previstas no Regime Geral das Infrações Tributárias (pois só a estas respeita o texto do citado preceito do CPPT)15! E, como assim, o recurso mostra-se merecedor de integral provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conferência:

a) conceder integral provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho do Juízo Local de …, declarando ser aquele Juízo o competente para a tramitação da ação executiva interposta.

b) Sem custas.

Évora, 25 de fevereiro de 2025

J. F. Moreira das Neves (relator)

Laura Goulart Maurício

Anabela Simões Cardoso (vencida, com a seguinte declaração de voto):

Conforme tem sido perfilhado, em anteriores decisões, por mim proferidas, neste Tribunal, entendo, salvo o devido respeito por opinião diversa, que é irrecorrível a decisão aqui em causa, que declarou serem os tribunais judiciais absolutamente incompetentes, em razão da matéria, para executarem coimas aplicadas por entidades administrativas.

Com efeito, no que concerne ao regime de recurso, que rege o processo executivo para cobrança de coima, importa apurar se ocorre uma lacuna no RGCO, que comporte a aplicação subsidiária do direito processual penal (artigo 41.º, n.º 2 do RGCO), ou qualquer outro direito adjetivo, para o qual aquele remeta, designadamente o processual civil, sendo que o resultado a que se chega é o de que, da análise e interpretação do regime geral em matéria contraordenacional, não se verifica existir qualquer situação não prevista que suscite a necessidade de ser regulada pelas normas legalmente definidas para os casos omissos.

Vigorando, no direito das contraordenações, o princípio da irrecorribilidade das decisões, apenas podem ser impugnadas aquelas em que esta faculdade esteja expressamente prevista.

Tal princípio não é derrogado pelo art.º 74.º, nº 4, do RGCO, de acordo com o qual o recurso seguirá a tramitação do processo penal (subsidiariamente, do CPC, por força do art.º 4.º do CPP), tendo em conta as especialidades que resultam do RGCO, pois apenas se estatuí a remissão quanto ao regime de tramitação do recurso, e já não quanto às condições de admissibilidade do mesmo.

A norma especial do art.º 73.º não é, também, derrogada pelo art.º 89.º, n.º 2 do RGCO, pois este dispõe apenas quanto às normas aplicáveis à fase processual da execução da coima, remetendo-se para o preceituado no CPP, sobre a execução da multa, também aqui nada se mencionando quanto às condições de admissibilidade do recurso.

Assim considerando, entende-se não existir lacuna, e se aplicar, em todas as fases do regime das contraordenações, o RGCO (e, apenas, subsidiariamente, o regime processual penal, nos termos do art.º 41.º, n.º 1 do RGCO, e civil), com o seu regime regra da irrecorribilidade, apenas podendo ser impugnadas as decisões em que esta faculdade esteja expressamente prevista, o que não é o caso.

Observe-se, ainda, que, na sua redação inicial, resultante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o RGCO previa no n.º 2 do artigo 91.º a admissão de recurso na fase executiva, embora em termos muito limitados, sendo que, sob a epígrafe “Tramitação”, a norma do referido artigo tinha o seguinte teor:

“1 - O tribunal perante o qual se promove a execução será competente para decidir sobre todos os incidentes e questões suscitados na execução, nomeadamente:

a) A admissibilidade da execução;

b) As decisões tomadas pelas autoridades administrativas em matéria de facilidades de pagamento;

c) A suspensão da execução segundo o artigo 90.º

2 - Admite-se, todavia, recurso para a Relação nos seguintes casos:

a) Admissibilidade de execução de coima aplicada por via judicial;

b) Nos casos referidos na alínea b) do número anterior, quando as decisões forem da competência do tribunal da comarca.

3 - As decisões referidas nos n.º 1 e 2 serão tomadas sem necessidade de audiência oral, assegurando-se ao arguido ou ao Ministério Público a possibilidade de justificarem, por requerimento escrito, as suas pretensões”.

Resultava, assim, da versão inicial do diploma ser admissível, em casos rigorosamente delimitados, a possibilidade de recurso para a Relação das decisões proferidas pelo Tribunal no âmbito do processo de “execução da coima”.

Contudo, com o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, essa possibilidade foi eliminada, suprimindo-se o citado n.º 2 e passando o preceito a ter a seguinte redação, ainda, hoje, em vigor:

“1 - O tribunal perante o qual se promove a execução será competente para decidir sobre todos os incidentes e questões suscitados na execução, nomeadamente:

a) A admissibilidade da execução;

b) As decisões tomadas pelas autoridades administrativas em matéria de facilidades de pagamento;

c) A suspensão da execução segundo o artigo 90.º

2 - As decisões referidas no n.º 1 são tomadas sem necessidade de audiência oral, assegurando-se ao arguido ou ao Ministério Público a possibilidade de justificarem, por requerimento escrito, as suas pretensões”.

Ora, com a eliminação da norma que previa esta possibilidade de recurso, cumpre concluir pela inadmissibilidade do mesmo em todas as decisões proferidas em processo de execução – neste sentido, cf. SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA, in Contraordenações, Anotações do Regime Geral, ed. 2011: 644, anotação 2ª ao artigo 91.º, onde se considerou que as decisões proferidas em processo executivo são irrecorríveis.

Com efeito, não se compreenderia que a referida revogação tivesse como efeito um alargamento da recorribilidade das decisões proferidas, na fase executiva, que deixaria de se limitar às escassas situações previstas no revogado nº 2 do artigo 91º e passaria a abranger toda e qualquer decisão. É o que resultaria da aplicação ao caso do artigo 399º do Código de Processo Penal - neste sentido, veja-se o Ac. TRL de 8-6-2005, pr. 4638/2005-3, rel. Carlos Almeida.

Assim sendo, na falta de norma que preveja a possibilidade de recurso das decisões proferidas em processo executivo de coima, aplicada em processo de contraordenação, resta-nos socorrer da norma prevista no art. 73º do RGCO, relativa a decisões judiciais que admitem recurso.

Veja-se que, diversamente, do que logo, em primeira linha, sucede no processo criminal, o nº 10.º do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa apenas exige, em sede contraordenacional, que sejam garantidos os “direitos de audiência e de defesa” - Cf., também, acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 508/2016, de 21.09.2016, 355/2012, de 05.07.2012 e 659/2006, de 28.11.2006.

Temos, pois, que, contrariamente à regra geral vigente no processo penal (artigo 399.º CPP), onde é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, no âmbito do RGCO o regime regra é a irrecorribilidade das decisões, sendo excecionais as normas habilitadoras de recurso das decisões.

E, assim sendo, não se descortina a possibilidade de existência de um recurso sobre um despacho judicial que declare a incompetência material de um tribunal, para mais se lavrado em sede de fase executiva, do processo de contraordenação, ou seja, de uma decisão proferida depois da sentença, como é o caso dos autos, uma vez que, como já vimos, no âmbito do processo de contraordenação, apenas é admissível recurso para o Tribunal da Relação das decisões enumeradas taxativamente no citado art. 73º do RGCO, ou seja, no processo contraordenacional, só se pode recorrer para a Relação das decisões finais (sentença ou o despacho judicial proferido nos termos do art. 64º e nas situações aí previstas) que conheçam dos recursos das decisões da autoridade administrativa.

Pelo exposto, não admitiria o recurso

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Extraindo-se apenas as verdadeiras «conclusões», que nos termos da lei e da melhor exegese desta, constituem apenas: o «resumo das questões discutidas na motivação» (por todos cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, p. 1136, nota 14).

3 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

4 Cf. José António Henriques dos Santos Cabral e António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, Notas ao regime geral das contra-ordenações e coimas, 3.ª edição, Almedina, 2009, p. 291.

5 Cf. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações - Anotações ao Regime Geral, 6.ª ed., Áreas Editora, 2011, p. 644. Já Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, 2022, p. 405, entende que «[n]o processo executivo é admissível a interposição de recurso nos termos gerais (artigo 510.º do CPP e artigo 627.º do CPC), com os limites decorrentes do artigo 73.º, n.º 1 do RGC, uma vez que a reforma do RGC de 1995 suprimiu as limitações ao direito de recurso anteriormente constantes dos n.º 2 do artigo 91.º» Posição esta que, pelas razões expostas supra, não acompanhamos.

6 António Menezes Cordeiro, Tendências atuais da interpretação da lei: do juiz-autómato aos modelos de decisão jurídica, 1985, Revista Jurídica, pp. 7 ss.

7 Neste sentido cf. Ac. TConstit 246/2017, 17mai2017, relator José António Teles Pereira.

8 Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, 2008, 11.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 12.

9 «A coima é, antes de mais, evidentemente, uma pena, no sentido amplo de sanção de sentido não reparador», José Lobo Moutinho, Direito das Contra-Ordenações, p. 37.

10 Neste sentido cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2021, de 24/3/2021, relator Lino Rodrigues Ribeiro. E Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 190 ss.; Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações. Da Cisão à Convergência Material, Coimbra Editora, 2016, p. 913 ss.

11 Do qual foi relator Manuel Soares.

12 O itálico é da nossa responsabilidade.

13 Neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque (e outro), Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª ed., 2022, Universidade Católica Editora, pp. 399/400.

14 Neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque (e outro), Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª ed., 2022, Universidade Católica Editora, pp. 399/400.

15 Ressalva esta também feita por Paulo Pinto de Albuquerque, ob e loc cit.