VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DA PENA
ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO
MEDIDA DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I. No crime de violência doméstica o tipo objetivo tem por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge (ou outros indicados na lei), neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal ou sexual e privações da liberdade que
não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.
Sendo o elemento subjetivo constituído pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).
II. As circunstâncias concretas em que ocorreram os episódios de maus tratos, o tempo que as mediou, a gravidade concreta de cada um deles, o contexto vivencial do arguido e da vítima, as condições pessoais e modo de vida, justificam que a pena se quede um pouco acima do limite mínimo da moldura legal.
III. A lei prevê especialmente (artigo 21.º, § 1.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro), que à vítima do crime de violência doméstica seja «reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável», que só não será arbitrada se a vítima a tal expressamente se opuser (artigo 82.º-A CPP).
IV. Na fixação do quantum indemnizatório o critério normativo é claro: visa-se a reparação integral do dano sofrido, devendo, todavia, ter-se em conta a situação económica do responsável (artigo 496.º, § 4.º C. Civil). O quantitativo a fixar deve tender a viabilizar um lenitivo com significado, já que tirar à vítima o mal que lhe foi causado, isso já ninguém nem nada conseguirá.

Texto Integral

I – Relatório
a. No ….º Juízo1 Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum e tribunal singular de AA, nascido a …/…/1974, com os demais sinais dos autos, ao qual fora imputada a prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. a), § 2.º, al. a), § 4.º e § 5.º do Código Penal (CP), em concurso aparente com um crime de acesso ilegítimo, previsto no artigo 6.º, § 1.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro) e um crime de devassa da vida privada, previsto no artigo 192.º, § 1.º, al.) do Código Penal.

Vindo a ser condenado por sentença, como autor apenas de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. a) e § 2.º, al. a) CP, numa pena de 2 anos e 9 meses de prisão, que foi suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, que incluirá frequência de programa de agressores de violência doméstica.

Mais se condenou o arguido no pagamento da arbitrada2 quantia de 400€ a BB, a título de indemnização por danos não patrimoniais causados, acrescida de juros de mora computados à taxa legal, desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento.

b. Inconformado com tal decisão dela recorre o arguido, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões3:

«(…)

VI. No que se refere ao ponto 3. ignorou o Tribunal que o arguido apenas reteve a chave do veículo porque julgou que se encontrava a circular sem seguro e que após saber que o veículo já tinha seguro de imediato lhe devolveu as chaves à ofendida, versão que também foi confirmada pela ofendida. Bem como, que este veículo (…) não era o veículo habitualmente conduzido pela ofendida que tinha outro veículo (…). -Declarações do arguido: 15’15 - “pedi-lhe aas chaves do carro (...)perguntei-lhe se o carro estava legal (...) o carro na altura não tinha seguro”; 56’00 - “eu não tinha essa perceção, quando ela me disse que tinha levou a chave a seguir (...) eu não tenho a certeza se foi duas ou uma hora logo a seguir, isso praticamente logo a seguir (...) dei dei (...) continuou a circular com esse carro”; 13’38 -“essa viatura é minha, foi eu que a comprei, está em nome do meu filho (...) estava parada há 6 meses à porta da minha casa sem seguro tinha inspeção mas não tinha seguro porque ninguém andava nela (...) a BB tinha um … com seis meses (...)”

VII. Quanto ao ponto 7. dos factos provados “...o Arguido aproximou-se da viatura daquela (ofendida), bateu no vidro e disse-lhe, num tom de voz grave e sério «não quero ninguém na presença dos meus filhos, senão as coisas vão correr mal» e «vais-te arrepender», as declarações da ofendida não foram corroboradas com o depoimento da testemunha CC que estava consigo nesse momento na Escola …, afirmando que a memória lhe falha e que não consegue relatar o sucedido.

VIII. No que se refere aos pontos 10., 12. e 13. dos factos provados também aqui o Tribunal fundou a sua convicção apenas no depoimento da ofendida BB, ignorou que a casa da ofendida e o café a que se refere são próximos da casa do arguido, aliás, o café é em frente à casa do arguido. Declarações do arguido: 31’34 – “a casa da BB é a 100 metros da minha, eu há janela vejo a casa da BB (...) a escola é a outros 100 metros, é a 100 metros para um lado e a escola é a 100 metros para o outro.” 34’45 – “perto da escola é perto da minha casa, é o café em frente à minha casa, não sei a que horas isso foi mas eu para ir para casa tenho de parar ou ao pé desse café ou passar por esse café, assim como tenho de passar por casa da BB (...)”

IX. Quanto ao ponto 5. dos factos provados, a testemunha DD – mãe da ofendida – destinatária da chamada telefónica que relatou ter recebido o telefonema do arguido onde aquele lhe disse «eu vou matar a sua filha e depois mato-me a mim», afirmando “antes disso não tive nunca razões para deixar de falar com ele”. Recorda-se que “foi a um sábado”, ligou à filha, o arguido “estava muito desorientado”, “não sei se ele viu alguma coisa”, mas não se recorda de outros factos como por exemplo de quem saiu de casa, tratou-se, pois de um depoimento tendencioso e inconsistente, onde a testemunha não se lembra de toda a informação do mesmo jeito e aparenta ter uma memória “seletiva”.

X. O ponto 8. dos factos provados, refere a decisão em crise, assentou no depoimento da ofendida e da testemunha EE – colega de trabalho da ofendida – que afirmou que a ofendida recebeu uma chamada e atendeu-a na funcionalidade de altifalante, que avistou o arguido no exterior da Escola num … preto (carro que o arguido não tem nem nunca teve). Atenta a distância entre o local onde esta testemunha diz ter avistado o arguido e o acesso Escola, que é de cerca de 200 metros, é m impossível que tal tenha acontecido como relatado (12’40) “... sai para ver e realmente ele estava cá fora dentro do carro (...) a policia foi ver e ele já lá não estava”; “..temos o portão da escola …, está a paragem do autocarro, depois há aquela curvazinha e ele estava aí um bocadinho abaixo da curva do lado de lá (...) andei praticamente até à curva (...) e depois voltei (...)”. quando esta testemunha estava no seu horário e posto de trabalho. Esta testemunha vai afirma ainda que conhece o arguido dos bombeiros, que aquele já não frequenta há mais de 15 anos, foi um depoimento marcado com incongruências que o descredibilização.

XI. Não é permitido extrair das declarações da testemunha CC - que afirmou que lhe falha a memória e que não consegue relatar o sucedido - nem do filho do arguido FF não ter prestado depoimento, que os factos imputados ao arguido tivessem acontecido.

XII. De outra banda, não resultou provado que o arguido tenha causado intranquilidade perturbou o sentimento de segurança da ofendida, pelo contrário – declarações do arguido: 36’34 - “ ... agora a BB já pediu para ir trabalhar para a escola ao lado da minha casa”, o arguido saiu de casa e chegou a viver numa carrinha para que a ofendida pudesse ficar na casa com os filhos – declarações do arguido: 29’56 - “ estive 18 dias a dormir numa carrinha de noite só para dar bem estar aos meus filhos e agora vou mete-los numa situação destas”, ajudou a ofendida a encontrar casa para arrendar uma casa para aquela habitar – versão confirmada pela ofendida – a ofendida vive a poucos metros de distância da casa do arguido – declarações do arguido: 30’58 - “ eu vejo (...) companheiro da BB (...)a passar de mão dada com o meu filho a levar o meu filho à escola, e nunca ninguém me ouviu a dizer nada”; 31’34 “a casa da BB é a 100 metros da minha, eu há janela vejo a casa da BB (...) a escola é a outros 100 metros, é a 100 metros para um lado e a escola é a 100 metros para o outro”

XIII. Na fixação de montante indemnizatório a arbitrar às vítimas de crimes de violência doméstica, o julgador deve ponderar a gravidade da conduta do agressor, as consequências sentidas pela vítima, as concretas situações de vida por ambos vividas e ainda deverá ter presente um juízo de equidade (art.º 21°, nº 1 e 2, da Lei n° 112/2009 e art.º 82º-A, do CPP).

(…)

XVI. Atenta a prova produzida impunha-se decisão diversa da recorrida, nomeadamente nos pontos 3., 5., 6., 7., 8., 9., 10. 11., 13. e 14. dos factos provados, que o arguido considera incorretamente julgados, e que devem ser tido por não provados pela ausência de prova que os sustente - erro notório na apreciação da prova (art.º 410º, nº 2, alínea c) do CPP).

(…)

XVII. Mas, ainda assim, a subsunção dos factos ao direito, não se mostram verificados todos os elementos integradores do crime de violência doméstica, podem ter havido desentendimentos entre arguido e ofendida, mas a conduta do arguido não espelha uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.

XVIII. Dos factos imputados ao arguido tidos como provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime de violência doméstica, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena - insuficiência da prova para a decisão de facto proferida (art.º 410.º n.º 2 al. a) do CPP)

XX. No mínimo, coloca-se a dúvida insanável, perante as declarações do próprio arguido, que em decorrência do Princípio “in dubio pro reo” teria que ser resolvida a favor do arguido (art.º 32º, nº 2 da CRP), Princípio que aplica-se “sem quaisquer restrições… na prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão susceptível de desfavorecer, objectivamente o arguido” e deverá ser resolvida a favor do arguido, impondo a sua absolvição.

XXI.Com o respeito devido, a fundamentação da decisão recorrida é consequência de uma construção, aparentemente, lógico-dedutiva, em violação do disposto nos artigos 127º do CPP e 205º, nº 1, da CRP, resultando evidente a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

XXII. A prova em que se baseia a decisão do tribunal “a quo” não é consistente por ser sustentada em suposições e ilações e neste circunstancialismo o arguido põe em crise o julgamento dos pontos 3., 5., 6., 7., 8., 9., 10. 11., 13. e 14. dos factos provados, por não os ter praticado e também por considerar que não se fez prova que os mesmos tenham acontecido nos termos em que lhe são imputados, pelo que, o arguido, deverá ser absolvido.

(…)

XXV. Entende o Recorrente que na aplicação da pena em que foi condenado não se contemplou todas as circunstâncias exigidas pelo referido preceito legal, não foram observados os critérios de dosimetria, que a pena de dois anos e nove meses de prisão é demasiado penosa, inadequada, desajustada e desproporcional em função da culpa relevada e das exigências de prevenção que se fazem sentir.

XXVII. O Tribunal “a quo” não teve em consideração na determinação da medida da pena que o arguido e ofendida são vizinhos; vivem a cerca de 100 metros de distância; o hiato de tempo já decorrido desde a data dos fatos que são imputados ao arguido até à decisão aqui em crise; que não ocorreu qualquer incidente até à presente data; do certificado de Registo Criminal do arguido nada consta; que o arguido dedica-se à atividade profissional de …, reside com a sua companheira, com o filho desta (portador de deficiência com grau de incapacidade de 95%), com o seu filho mais velho que frequenta o curso de … na Universidade de … e inclui, ainda, em semanas alternadas, os seus dois filhos mais novos.

XXIX. (…) deverá fixar-se a pena no limite mínimo da moldura penal, suspensa na sua execução, que realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (violação dos artigo 40.º/1 e 71.º/1, 2 e 3 do CP).

XXX. Considerando os fundamentos que supra se expõem deverá ser revogada a sentença sob censura, por terem sido violados:

e) os artigos 20.º/4, 32º, 205º/1, todos da Constituição da República Portuguesa

f) os artigos 40.º/1; 71.º e 152.º/1 alínea a) e 2 alínea a), todos do Código Penal g) os artigos 82º-A e 127.º do Código de Processo Penal

h) O artigo 21°, nº 1 e 2, da Lei n° 112/2009.»

c. Na resposta ao recurso do arguido diz o Ministério Público, em síntese:

«A – Com relevância para a decisão em causa, afere-se que o Tribunal a quo formou a sua convicção na conjugação dos factos trazidos a juízo pela acusação, alicerçada, designadamente, no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em julgamento, na prova documental carreada nos autos, assim como, nas próprias regras da experiência.

B – A prova produzida foi devidamente ponderada, apreciada e corretamente valorada para efeitos de motivação dos factos dados como provados, porquanto é manifesto que o Tribunal a quo tomou em consideração todos os meios de prova produzidos, apreciando-os sensatamente, sopesando e valorando os mesmos para efeitos de fixação da matéria de facto.

C – Critérios que foram assertivamente ponderados e fundamentados na sentença recorrida, a qual se afigura, assim, perfeitamente ajustada, devendo, em consequência, o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, por infundado, mantendo-se aquela integralmente.»

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância elaborou douto parecer secundando a posição já sustentada na resposta ao recurso, sublinhando o acerto do julgamento em matéria de facto e quanto à pena aplicada.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º CPP, o arguido nada respondeu.

f. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso De acordo com o disposto no artigo 412.º CPP e com a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 7/95, de 19out19954, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. O presente recurso suscita as seguintes questões: i. Vícios da decisão recorrida; ii. Erro de julgamento (da questão de facto); iii. In dubio pro reo; iv. Medida da pena; v. Indemnização e valor desta.

2. Da sentença recorrida

O tribunal a quo deu como provado o seguinte acervo factológico:

«1. AA casou com BB no dia … de 2003.

2. Da relação entre ambos nasceram três filhos: FF, nascido a … de 2004, GG, nascido a … de 2012, e HH, nascido a … de 2015.

3. Em data não concretamente apurada, no final do mês de agosto de 2022, AA retirou a BB as chaves de acesso à viatura propriedade do seu filho FF, que a mesma utilizava de forma exclusiva, sem que tivesse qualquer motivo atendível para tal, deixando-a sem meio de transporte.

4. AA e BB divorciaram-se por sentença transitada em julgado no dia 17 de novembro de 2022.

5. Em dia não concretamente apurado no ano de 2023, pelas 01h30, o Arguido, ao saber que BB tinha arranjado um namorado, telefonou à mãe de BB, DD, e disse-lhe, com um tom de voz grave e sério «eu vou matar a sua filha e depois mato-me a mim».

6. Ao ter conhecimento das expressões referidas em 5., e dado o modo como as mesmas foram proferidas, BB ficou com receio que o Arguido atentasse contra a sua vida.

7. Em dia não concretamente apurado do mês de fevereiro de 2023, quando BB esperava que o treino de futebol do seu filho HH terminasse, o Arguido aproximou-se da viatura daquela, bateu no vidro e disse-lhe, num tom de voz grave e sério «não quero ninguém na presença dos meus filhos, senão as coisas vão correr mal» e «vais-te arrepender».

8. Em dia não concretamente apurado do mês de abril de 2023, AA deslocou-se à Escola …, local de trabalho de BB, telefonou-lhe e, num tom de voz grave e sério, o Arguido disse a BB «dou-te um tiro», enquanto lhe pedia que esta fosse até ao exterior do estabelecimento de ensino para falar com ele, tendo esta recusado.

9. Dado o modo como estas expressões foram proferidas, BB ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua vida.

10. Em dia não concretamente apurado do mês de maio de 2023, de manhã, AA deslocou-se à residência de BB, sita na Rua …, em …, e, com um tom de voz grave e sério, dirigiu a BB as seguintes expressões: «é hoje que os teus filhos ficam órfãos» e «eu mato-te».

11. Dado o modo como estas expressões foram proferidas, BB ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua vida.

12. O filho de ambos, HH, com 7 anos de idade, assistiu à situação descrita em 10.

13. Momentos mais tarde nessa mesma manhã, o arguido dirigiu-se para a sua viatura e iniciou a marcha seguindo a viatura de BB até esta se deslocar para um café, tendo aquele ficado a observá-la do interior da sua carrinha.

14. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de prejudicar a saúde psíquica e emocional de BB, sabendo que as suas condutas eram aptas a tal.

15. O arguido agiu com o propósito concretizado de coartar a liberdade de movimentos e incutir receio a BB, seguindo-a na via pública e dirigindo-lhe as expressões acima mencionadas, bem sabendo que as palavras que lhe dirigiu eram adequadas a ser levadas a sério pela mesma e a provocar-lhe sentimentos de insegurança e intranquilidade, fazendo com que se sentisse receosa da concretização do mal futuro anunciado, praticando ato que atentasse contra o seu corpo ou a sua vida, afetando-a na sua dignidade enquanto pessoa humana, no seu equilíbrio social e psicoemocional e no seu bem-estar, provocando-lhe angústia e sofrimento permanente, sabendo que as condutas supracitadas eram aptas a tal.

16. O arguido agiu sabendo que havia sido casado com BB, mãe dos seus filhos, e bem sabendo que lhe devia respeito e consideração, não se coibindo de o fazer em frente ao seu filho menor.

17. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

18. O arguido dedica-se à atividade profissional de …, auferindo, como contrapartida do seu trabalho, a quantia média mensal de 1 000€.

19. O arguido reside em casa própria com a sua companheira, com o filho desta que tem 16 anos de idade, e com o seu filho mais velho de 20 anos de idade, o qual frequenta atualmente o curso de … na Universidade de ….

20.O agregado familiar do arguido inclui, ainda, em semanas alternadas, os seus dois filhos mais novos, de 12 e 9 anos de idade.

21. A companheira do arguido exerce a profissão de …, no âmbito da qual aufere a quantia mensal de 300€.

22. O filho da companheira do arguido, por ser portador de deficiência, a quem foi atribuído grau de incapacidade de 95%, recebe pensão social de inclusão na ordem dos 200€ mensais.

23. O arguido despende da quantia de cerca de 1 200€ com amortizações de créditos relativos a habitação, aquisição de duas viaturas e um outro referente a tratamento dentário.

24. O agregado familiar do Arguido tem despesas fixas mensais com água, eletricidade, gás, serviços de telecomunicação, condomínio e alimentação na ordem dos 300€.

25. BB é … e presta serviços na … e em estabelecimento de ensino, auferindo mensalmente, como contrapartida do seu trabalho, a quantia de cerca de 1 200€.

26. BB despende de 450€ com a renda da casa onde habita, de cerca de 350€ em despesas fixas mensais com água, eletricidade, gás, serviços de telecomunicação e alimentação, e cerca de 480€ com amortizações de dois créditos contraídos em seu nome.

27. O agregado familiar de BB é composto pela própria, pelo seu companheiro, por uma sobrinha, e inclui, ainda, em semanas alternadas, os seus dois filhos mais novos, de 12 e 9 anos de idade.

28. O arguido não tem quaisquer condenações averbadas no respetivo certificado de registo criminal.

29. AA casou com BB no dia … de 2003.

30. Da relação entre ambos nasceram três filhos: FF, nascido a … de 2004, GG, nascido a … de 2012, e HH, nascido a … de 2015.

31. Em data não concretamente apurada, no final do mês de agosto de 2022, AA retirou a BB as chaves de acesso à viatura propriedade do seu filho FF, que a mesma utilizava de forma exclusiva, sem que tivesse qualquer motivo atendível para tal, deixando-a sem meio de transporte.

32. AA e BB divorciaram-se por sentença transitada em julgado no dia 17 de novembro de 2022.

33. Em dia não concretamente apurado no ano de 2023, pelas 01h30, o arguido, ao saber que BB tinha arranjado um namorado, telefonou à mãe de BB, DD, e disse-lhe, com um tom de voz grave e sério «eu vou matar a sua filha e depois mato-me a mim».

34. Ao ter conhecimento das expressões referidas em 5., e dado o modo como as mesmas foram proferidas, BB ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua vida.

35. Em dia não concretamente apurado do mês de fevereiro de 2023, quando BB esperava que o treino de futebol do seu filho HH terminasse, o arguido aproximou-se da viatura daquela, bateu no vidro e disse-lhe, num tom de voz grave e sério «não quero ninguém na presença dos meus filhos, senão as coisas vão correr mal» e «vais-te arrepender».

36. Em dia não concretamente apurado do mês de abril de 2023, AA deslocou-se à Escola …, local de trabalho de BB, telefonou-lhe e, num tom de voz grave e sério, o arguido disse a BB «dou-te um tiro», enquanto lhe pedia que esta fosse até ao exterior do estabelecimento de ensino para falar com ele, tendo esta recusado.

37. Dado o modo como estas expressões foram proferidas, BB ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua vida.

38. Em dia não concretamente apurado do mês de maio de 2023, de manhã, AA deslocou-se à residência de BB, sita na Rua …, em …, e, com um tom de voz grave e sério, dirigiu a BB as seguintes expressões: «é hoje que os teus filhos ficam órfãos» e «eu mato-te».

39. Dado o modo como estas expressões foram proferidas, BB ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua vida.

40. O filho de ambos, HH, com 7 anos de idade, assistiu à situação descrita em 10.

41. Momentos mais tarde nessa mesma manhã, o arguido dirigiu-se para a sua viatura e iniciou a marcha seguindo a viatura de BB até esta se deslocar para um café, tendo aquele ficado a observá-la do interior da sua carrinha.

42. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de prejudicar a saúde psíquica e emocional de BB, sabendo que as suas condutas eram aptas a tal.

43. O arguido agiu com o propósito concretizado de coartar a liberdade de movimentos e incutir receio a BB, seguindo-a na via pública e dirigindo-lhe as expressões acima mencionadas, bem sabendo que as palavras que lhe dirigiu eram adequadas a ser levadas a sério pela mesma e a provocar-lhe sentimentos de insegurança e intranquilidade, fazendo com que se sentisse receosa da concretização do mal futuro anunciado, praticando ato que atentasse contra o seu corpo ou a sua vida, afetando-a na sua dignidade enquanto pessoa humana, no seu equilíbrio social e psicoemocional e no seu bem-estar, provocando-lhe angústia e sofrimento permanente, sabendo que as condutas supracitadas eram aptas a tal.

44. O arguido agiu sabendo que havia sido casado com BB, mãe dos seus filhos, e bem sabendo que lhe devia respeito e consideração, não se coibindo de o fazer em frente ao seu filho menor.

45. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

46.O Arguido dedica-se à atividade profissional de …, auferindo, como contrapartida do seu trabalho, a quantia média mensal de 1 000€.

47. O arguido reside em casa própria com a sua companheira, com o filho desta que tem 16 anos de idade, e com o seu filho mais velho de 20 anos de idade, o qual frequenta atualmente o curso de… na Universidade de ….

48. O agregado familiar do arguido inclui, ainda, em semanas alternadas, os seus dois filhos mais novos, de 12 e 9 anos de idade.

49. A companheira do arguido exerce a profissão de …, no âmbito da qual aufere a quantia mensal de 300€.

50. O filho da companheira do arguido, por ser portador de deficiência, a quem foi atribuído grau de incapacidade de 95%, recebe pensão social de inclusão na ordem dos 200€ mensais.

51. O arguido despende da quantia de cerca de 1 200€ com amortizações de créditos relativos a habitação, aquisição de duas viaturas e um outro referente a tratamento dentário.

52. O agregado familiar do arguido tem despesas fixas mensais com água, eletricidade, gás, serviços de telecomunicação, condomínio e alimentação na ordem dos 300€.

53. BB é … e presta serviços na … e em estabelecimento de ensino, auferindo mensalmente, como contrapartida do seu trabalho, a quantia de cerca de 1 200€.

54. BB despende de 450€ com a renda da casa onde habita, de cerca de 350€ em despesas fixas mensais com água, eletricidade, gás, serviços de telecomunicação e alimentação, e cerca de 480€ com amortizações de dois créditos contraídos em seu nome.

55. O agregado familiar de BB é composto pela própria, pelo seu companheiro, por uma sobrinha, e inclui, ainda, em semanas alternadas, os seus dois filhos mais novos, de 12 e 9 anos de idade.

(…)»

Motivando a sua decisão quanto à matéria de facto julgada prova nos seguintes termos:

«A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto estribou-se na análise crítica, global e articulada dos elementos de prova constantes dos autos, da prova que foi produzida em audiência de julgamento, das regras da experiência comum e da livre convicção do julgador (cf. artigo 127.º, Código de Processo Penal).

No que respeita aos factos constantes dos pontos 1., 2. e 4. o Tribunal formou a sua convicção com base nos assentos de nascimento de fls. 35 a 39 dos autos e junto sob as ref.ª citius …. Quanto aos dois assentos em falta (os de GG e de HH), saliente-se que o Tribunal não ignora que, em regra, a filiação e o nascimento têm de ser provados por documento, designadamente, através de assento de nascimento. Não obstante, considerando, por um lado, que os factos em causa não respeitam a qualquer elemento típico do crime objeto dos presentes autos [tendo, somente, uma função de contextualização dos factos em discussão suscetíveis de ter relevo criminal] e que ninguém colocou em causa a sua veracidade, entende o Tribunal que os demais meios de prova carreados para o processo se mostram suficientes para dá-los como provados.

Quanto à demais matéria dada como provada, o Tribunal socorreu-se quase exclusivamente da prova testemunhal produzida. Muito embora tenha também o arguido pretendido prestar declarações, oferecendo a sua versão dos factos, dir-se-á que o mesmo se limitou a negá-los perentoriamente na sua grande maioria, dizendo, nomeadamente, «não faço este tipo de conversa», «não disse nada disto» ou até mesmo «não me lembro» (sic.). Com efeito, não tentou explicar em que contexto lhe são imputados os factos, nem sequer fornecer uma outra descrição dos mesmos, asseverando simplesmente que aqueles não sucederam. Veja-se. Ainda que a sua versão pudesse, em tese, e no campo das hipóteses, ter acolhimento, aquela inevitavelmente perde força e credibilidade quando o arguido não fornece, sequer, uma explicação para o clima de animosidade existente entre si e BB, afirmando, inclusivamente, que nada tem a ver com a vida daquela, que «não faz parte da minha vida», «pessoa que não me diz nada» e que «não me incomoda» (sic.); tais explicações não se coadunam, porém, com a irritabilidade e exasperação que resulta do seu discurso [que a imediação permite facilmente apreender], nomeadamente quando diz «onde ela está eu saio», «é pessoa que morreu para mim, deixou de existir para mim». Apresenta, pois, incongruências no discurso que acabam por descredibilizá-lo.

Por seu turno, a testemunha BB prestou um depoimento que, pela qualidade que assume neste processo [a de vítima/denunciante], não podia, evidentemente, ser isento, nem desinteressado; mas foi, outrossim, espontâneo, escorreito, não se tendo a mesma limitado à formulação de juízos conclusivos. Dentro daquilo que o decurso do tempo e o correlativo desvanecer natural da memória permite, conseguiu contextualizar e concretizar minimamente algumas das situações aqui imputadas ao arguido.

Com efeito, foi exclusivamente com base nesse depoimento que o Tribunal firmou a sua convicção positiva quanto à verificação dos factos vertidos nos pontos 3., 7., 10., 12., e 13.

De facto, quanto a eles não foi produzida qualquer outra prova, nomeadamente testemunhal, que corroborasse a versão de BB. Mas a circunstância de existir apenas a versão do arguido contra a da alegada vítima, não obsta a que o Tribunal possa atribuir credibilidade à da segunda se esse for o sentido da sua séria convicção.

Note-se que mesmo a versão desta testemunha tem fragilidades, nomeadamente no que tange ao [alegado] acesso pelo arguido à sua conta Messenger, visualização de conversações e divulgação do teor das mesmas, que não soube explicar como pode ter sucedido, assumindo simplesmente que assim ocorreu com base no que o seu filho [alegadamente] lhe relatara e, por outro lado, com base no que diz ter sido dito pelo próprio arguido.

Ora, a testemunha FF, filho do arguido e de BB, recusou-se validamente a depor, no uso da prorrogativa que a lei processual lhe confere, pelo que ficou o Tribunal impedido de confrontá-lo com aquela versão e com o desenrolar dos acontecimentos quanto a este ponto específico do libelo acusatório.

Inclusivamente, a acusação refere um print screen da conversação, tendo BB mencionado, antes, um print screen do perfil de uma conta de Facebook, que é público.

Assim, e adiantando-nos, desde já, na motivação dos factos não provados (por uma questão de lógica e clareza do raciocínio), diremos que semeado o estado de dúvida sobre a verificação daquela materialidade fáctica, a conclusão a extrair não pode ser outra que não, com base no in dúbio pro reo, considerar tal matéria como não provada (cfr. ponto b. e d. dos factos não provados).

Diferentemente, já mereceu total acolhimento por parte do Tribunal a versão oferecida por BB relativamente ao episódio do carro descrito em 3., tanto mais porque também o arguido prestou sobre ele declarações; declarações essas que se afiguraram, no mínimo, incongruentes, e nas quais aquele tentou justificar as suas ações, primeiramente, com o facto de o carro ser seu [quando era, conforme admite, do seu filho mais velho que vivia com BB àquela data] e depois com o facto de não ter seguro válido, mas percebendo-se, por fim, que a razão que o levou a tirar as chaves foi única e simplesmente o facto de saber que era BB quem usava o carro. E não obstante tenha sido conduzido pela defesa a referir que acabou por devolver as chaves a BB – o que esta, em rigor, confirma –, a verdade é que ficou, ainda assim, demonstrado o vertido no libelo acusatório quanto a este ponto.

Também o relato feito por BB quanto ao sucedido aquando do treino de futebol do seu filho [ponto 7. dos factos provados] mereceu total acolhimento. Tanto mais que é, em parte, e ainda que tacitamente, corroborado pelo depoimento da testemunha CC – sobrinha do Arguido e de BB, com quem residiu praticamente desde sempre – que começou por referir episódios passados na Escola … [onde os treinos tinham lugar], mas de forma muito evasiva, e, diga-se, pouco convincente, acaba por dizer que a memória lhe falha e que não consegue relatar, nem minimamente, o sucedido.

Por último, quanto ao episódio ocorrido em maio de 2023 [pontos 10., 12. e 13. dos factos provados], também com precisão conseguiu BB descrevê-lo ao Tribunal, tendo detalhado todos os momentos relevantes desse dia, do qual refere ter perfeita memória por ter sido aquele em que acabou por apresentar queixa junto das autoridades policiais.

O facto descrito em 5. resultou do depoimento da testemunha DD – mãe de BB e, portanto, destinatária da chamada telefónica, que teve conhecimento direto e em primeira mão do teor da mesma – a qual, num discurso escorreito, que se afigurou genuíno, até pela preocupação que demonstrou pelo bem estar da filha, relatou ter recebido o telefonema do arguido à 1h30 da madrugada onde aquele lhe disse «eu vou matar a sua filha e depois mato-me a mim» (Sic.). No mais, relatou ter de imediato telefonado a BB, reportando-lhe o sucedido, a qual no seu depoimento também confirmara que assim tinha ocorrido. Conclui a testemunha dizendo que o arguido não terá reagido bem à separação do casal e que, como tal, tomou como sérias as declarações por ele proferidas.

Já o facto vertido em 8., cujo circunstancialismo BB já havia fornecido ao Tribunal, teve como esteio o depoimento espontâneo e desinteressado da testemunha EE, cujo conteúdo foi corroborado pelo depoimento da própria BB. Com efeito, a testemunha EE – à data dos factos, colega de trabalho de BB na Escola … – assevera ter tido conhecimento direto destes factos, porquanto BB recebeu a chamada na sua presença e atendeu-a utilizando a funcionalidade de altifalante, permitindo, assim, que toda a conversa pudesse ser escutada por quem estava consigo. No mais, também confirma que, uma vez no exterior da Escola, avistou efetivamente o arguido.

No que tange aos factos mencionados nos pontos 6., 9., 11. e 14. a 17., sendo os mesmos do foro interno, psicológico e íntimo do Arguido e de BB, a sua prova há de resultar, não de prova direta, mas de prova indiciária.

Com efeito, partindo da factualidade provada nos autos, e analisando, ponderando e relacionando a mesma sob a lente das regras da lógica, da normalidade do acontecer e da experiência comum, é de se concluir, com elevado grau de certeza e para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido atuou com a intenção ali descrita, uma vez que os factos

provados aqui em discussão apenas se compreendem como sendo a exteriorização de uma total consciência, conhecimento e vontade finalisticamente dirigidos à sua prática.

Por seu turno, e relativamente à intranquilidade e perturbação do sentimento de segurança experienciados por BB, dir-se-á que também tais factos são resultado das máximas da experiência comum, afigurando-se totalmente verosímil que, atento o clima de animosidade existente, aquelas expressões, proferidas no contexto em que o foram, fossem tomadas como sérias pela visada, que assim receou a concretização do mal futuro anunciado.

A prova das condições pessoais, profissionais e económicas do arguido e de BB constantes dos pontos 18. a 27. estribou-se, respetivamente, no compulso do relatório social elaborado pela DGRSP, cujo teor o arguido corroborou em julgamento, e, por outro lado, no depoimento da visada.

Por fim, no que tange à ausência de antecedentes criminais registados em nome do arguido – ponto 28. –, valorou-se o respetivo certificado do registo criminal juntos aos autos.»

3. Apreciando

3.a Dos vícios da decisão recorrida e do erro de julgamento da questão de facto

Antes de nos debruçarmos sobre a preconizada impugnação da matéria de facto, nos termos previstos no § 3.º do artigo 412.º CPP, cabe fazer uma breve menção à impropriedade da alegação, feita a dado passo do recurso (ainda que pretensamente impugnando a matéria de facto julgada provada na sentença), de haver «erro notório na apreciação da prova» (conclusão XVI), bem como «insuficiência da prova para a decisão de facto proferida» (conclusão XVIII e XXI), com óbvia menção aos vícios da decisão previstos nas alíneas a) e c) do § 2.º do artigo 410.º CPP. A bem dizer o recorrente não invoca com propriedade tais vícios da sentença, antes utiliza as expressões que os designam querendo deveras referir-se ao erro de julgamento da matéria de facto. E assim o entendemos porquanto nada o recorrente adianta quanto à caracterização de tais (alegados) vícios.

Sempre diremos que também não vislumbramos nenhum vício da sentença. Efetivamente, conforme decorre da lei, os vícios previstos no normativo invocado pelo recorrente (§ 2.º do artigo 410.º CPP) respeitam a anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas embora à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto (trata-se de vícios da sentença), sem recurso a quaisquer elementos externos a ela (v.g. valoração de provas concretas com referência a factos concretizados), que são impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. No concernente ao vício do «erro notório na apreciação da prova», este vem sendo caracterizado pela doutrina e (sobretudo) pela jurisprudência, como sendo o erro indiscutível, facilmente percetível pelo comum dos observadores. Aquele que é facilmente cognoscível pela generalidade das pessoas, de tal modo que não haja motivo para duvidar da sua ocorrência.5 Referindo a tal propósito o Supremo Tribunal de Justiça6 que há erro notório «... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida». Também

ocorrendo quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.

Também no concernente à «insuficiência da prova para a decisão de facto proferida», referente ao vício previsto na al. a) do § 2.º do citado artigo 410.º, ali designado «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», ocorre este nas situações em que a matéria de facto que se julgou provada não suporta a decisão de direito. Isto é, quando há uma insuficiência tal de substrato factual que inviabiliza a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.7 De tal modo que quando se alega este vício, devem indicar-se logo os factos que seriam necessários para a decisão justa que devia ser proferida. Isto é os factos que o tribunal a quo devia ter indagado e conhecido, mas não indagou e consequentemente não conheceu, quando podia e deveria fazê-lo.

Como é bom de ver o recorrente não fez nada disso. O que apenas confirma a ideia da impropriedade da menção ao nomen juris do referido vício, querendo reportar-se ao erro de julgamento relativamente a factos concretos e provas concretas! Mas, claro, se a questão é de não ter sido feita prova bastante de um facto e ele foi dado como provado, o que verdadeiramente se quer alegar é o erro na apreciação da prova (matéria de que trataremos já a seguir), mas não qualquer insuficiência dos factos provados para a decisão proferida (artigo 410.º, § 2.º CPP).

Pois bem. O que o recorrente efetivamente preconiza, sem nenhuma margem para dúvida, é manifestar a sua discordância relativamente aos factos julgados provados na sentença recorrida, nesta indicados sob os n.ºs 3, 5 a 11, 13 e 14. Mas também neste caso lhe falha a razão. Desde logo, importará lembrar, a arguição de erro de julgamento não se basta com a mera enunciação da discordância, conforme se refere no § 3.º do artigo 412.º CPP (reportando-se justamente à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto).

Na invocação do erro de julgamento cabe ao recorrente, não apenas indicar expressamente a prova ou provas nas quais apoia a sua interpretação quando julgamento dos factos concretos; cabendo-lhe também demonstrar criticamente por que razão tal prova (ou conjunto de provas) impunha(m) que se tomasse decisão diversa com referência aos factos correspetivos (artigo 412.º, § 3.º, al. b) CPP).

É, pois, necessário identificar onde é que mora o erro de julgamento: indicando p. ex. que o tribunal refere na sua motivação que a testemunha «X» disse «A», quando afinal disse «B»; ou que o documento «Y» em que o tribunal firmou a sua convicção relativamente a um dado facto, este a ele se não refere; ou que esse documento é para esse efeito inidóneo, etc.

Só desse modo se cumprirá integralmente o desiderato normativo, na medida em que o que se giza é demonstrar o erro de julgamento - e não qualquer outra coisa!

Em suma: não é suficiente – como deveras sucede - dizer apenas que nas suas declarações o arguido/recorrente negou a existência de tais factos! Ou que alguma testemunha que era suposto pronunciar-se sobre certos factos o não fez! Ou ainda, por contraposição à convicção formada pelo julgador, limitar-se a manifestar o seu próprio entendimento sobre tais factos, sem a indicação da prova sustentadora do mesmo!

Como é óbvio só ao tribunal a lei atribui o poder funcional de apreciar livremente as provas (artigo 127.º CPP), ainda que sob parâmetros racionais, lógicos e controláveis. Daí a relevância da motivação da sua decisão.

Donde, a mera crítica à convicção firmada pelo tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não poderá ter sucesso se apenas alicerçada (como é manifestamente o caso), na referência atomizada ou desgarrada de um qualquer meio de prova; ou na diferente convicção formada pelo recorrente sobre a prova produzida e avaliada de modo parcial e/ou descontextualizado – como se demonstrará.

Conforme decorre do que se deixou dito, consideramos que a impugnação da matéria de facto vem feita pelo recorrente em moldes pouco mais que vagos, incumprindo o dever de clareza relativamente aos termos da impugnação da matéria de facto.

Não obstante detalharemos a inconsistência do que vem dito na peça recursiva.

Começaremos por avaliar as declarações do arguido prestadas na audiência.

Este teve uma atitude essencialmente negatória sobre a quase generalidade dos factos que lhe estavam imputados pela acusação.

Isso constitui um direito seu, evidentemente.

O que fica por compreender são as razões pelas quais considera que o acontecido afinal não aconteceu; ou pelo menos não aconteceu como se considerou na sentença!

Poderia agora em sede recursiva contextualizar alguns dos acontecimentos, pormenorizar outros e afrontar outros ainda, mas sempre com arrimo nas provas produzidas. O que, todavia, também não sucede.

A pretensão impugnatória começa na afirmação de que os acontecimentos descritos no facto 3.º só ocorreram porque ele pensava que a ofendida conduzia a viatura sem ela ter seguro válido!

Na verdade a sua posição quanto a este facto durante a audiência foi ziguezagueante: primeiro porque o carro era seu; depois lá admitiu que era do filho mais velho; depois que foi porque não tinha seguro válido… Na verdade, o que o levou a tirar as chaves do carro foi o facto de saber que era BB quem o usava...

E relativamente ao facto 5.º, o recorrente diz que a testemunha/ofendida tem «memória seletiva»; e que as respetivas declarações, respeitantes ao facto 7.º, não foram confirmadas pela testemunha CC.

O que sendo verdade, não é a verdade toda.

Ficou por referir que a jovem CC é sobrinha do arguido/recorrente e que esta residiu consigo e com a ofendida praticamente desde sempre. Sendo que ela só se não recusou a declarar, por não poder fazê-lo (como sucedeu com o seu primo FF, filho do recorrente e da ofendida, que recusou prestar declarações – artigo 134.º/1-a) CPP). Na verdade, os «esquecimentos» desta testemunha mais não visaram que protegê-lo.

Refere também que o depoimento de EE foi «incongruente e não credível». Decerto apenas porque confirmou as declarações da ofendida BB.

Ora, essa testemunha era colega da ofendida, trabalhando ambas na mesma escola. Tendo esclarecido credivelmente como teve conhecimento dos factos que relatou (escutou a chamada do arguido para a ofendida porque esta colocou o telemóvel em alta voz).

E relativamente à matéria dos factos 10.º a 13.º, refere que a casa e o café distam cerca de 100 metros e que isso não foi tido em consideração!

Mas isso é importante porquê? E em que provas assenta tais afirmações?

O que deveras sucede é que o recorrente não indicou, relativamente a qualquer dos factos referidos, nenhuma prova que permitisse infirmar o juízo efetuado na sentença!

E era isso que lhe cabia trazer ao recurso!

Ao contrário destas insuficiências, a sentença narra escorreitamente as razões que permitiram concluir pela prova dos factos 3.º, 5.º a 11.º, 13.º e 14.º, indicando-se quanto a cada um deles as provas que os demonstraram, sem que nenhuma delas constituísse prova proibida, não atropelando a narrativa provada as regras da experiência comum, não se constatando qualquer desacerto sobre facto histórico de conhecimento geral, nem ofensa às leis da física, da mecânica ou da lógica, nem ainda atropelo a conhecimentos científicos, criminológicos ou vitimológicos.

Recordaremos que o essencial da prova dos factos que vêm impugnados pelo recorrente assentou no depoimento da ofendida BB, o qual foi merecedor de credibilidade, pelas razões indicadas na motivação da sentença. Mas relativamente a diversos factos houve confirmação por outras testemunhas (por exemplo facto 7.º por CC; ou facto 8.º por EE). Nada impedindo, contudo, podendo até a realização da justiça impor, que a convicção do julgador se possa alicerçar no depoimento de uma única testemunha, mesmo que se trate do(a) ofendido(a), do assistente ou do demandante, desde que devidamente explicitadas e escrutinadas as razões do seu convencimento pelo julgador na motivação da decisão de facto.8 Como se mostra realizado.

Atentemos mais detidamente no modo como o tribunal conjugou as provas, tomando por exemplo o facto 3.º, que é um dos se giza impugnar.

Diz a sentença: (o arguido) «tentou justificar as suas ações, primeiramente, com o facto de o carro ser seu [quando era, conforme admite, do seu filho mais velho que vivia com BB àquela data] e depois com o facto de não ter seguro válido, mas percebendo-se, por fim, que a razão que o levou a tirar as chaves foi única e simplesmente o facto de saber que era BB quem usava o carro.»

Relativamente ao ponto 7.º o recorrente refere que CC não confirmou as declarações de BB. Mas não diz que também as não infirmou! Conforme já deixámos referido esta jovem é sobrinha do arguido/recorrente e residiu consigo e com a ofendida praticamente desde sempre. Apenas não se tendo recusado a declarar por a lei lhe o não permitir (senão faria como o seu primo FF, filho do recorrente e da ofendida).

Os 14.º a 17.º são do foro interno, reportados às intenções, vontades, conhecimentos, representações mentais, os quais não constituem realidades palpáveis, sensitivamente percetíveis, hipostasiáveis. E por isso são insuscetíveis de prova direta. «A maior parte das vezes os atos interiores não se provam diretamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores».9 Como assim, com ressalva do caso das declarações provenientes do próprio arguido, a única forma de os determinar consiste em utilizar técnicas de reconstrução indireta, como se fez Em suma: nenhuma das provas indicadas pelo recorrente (ou a conjugação destas) impõe que se altere o julgamento da decisão de facto relativamente a nenhum dos segmentos impugnados.

3.b Do in dubio pro reo

O recorrente alude também - em registo consequente - ao princípio in dubio pro reo, arrimando-se no essencial no facto de ele próprio ter contrariado, com as suas declarações prestadas na audiência, a versão dos acontecimentos apresentada pela ofendida e demais testemunhas. Fazendo-o do seguinte modo: «no mínimo, coloca-se a dúvida insanável perante as declarações do próprio arguido, dúvida que, em decorrência do Princípio “in dubio pro reo”.» Isto é, entende que uma vez que ele não confessou os factos que o tribunal considerou provados, haverá de ressaltar dúvida inultrapassável quanto à verificação dos mesmos!

Na sua resposta ao recurso o Ministério Público lembra, com inteiro acerto, que «face ao material probatório produzido em audiência de julgamento, o tribunal a quo não teve qualquer dúvida sobre qualquer facto, não resultando essa hipótese em qualquer ponto da sentença recorrida, bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto apresenta uma posição clara e inequívoca relativamente aos factos em discussão, não consubstanciados numa mera interpretação casuísta, como pretende fazer crer o recorrente, mas sim numa convicção motivada em regras da experiência, cimentadas em conclusões lógicas no sentido da confirmação e verificação de que os factos se passaram tal como descritos em sede de matéria de facto provada.» Efetivamente, o sentido e conteúdo do princípio in dubio pro reo - que integra uma das dimensões da presunção de inocência (garantia fundamental plasmada no § 2.º do artigo 32.º da Constituição)10 - não serve para esgrimir com base na convicção do próprio recorrente! Mas é isso e só isso o que subjaz a este argumento recursivo! Esclareçamos: o princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. É, em retas contas, uma forma de ultrapassar o impasse probatório em sede factual (um non liquet), na fase de apreciação probatória. Mas não se vulnera tal princípio «quando, de acordo com a opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado; somente quando o juiz apesar da existência real de uma dúvida condenou.»11 E assim porquanto só o tribunal é tercero en discordia12, isto é, só o juiz possui as características da independência e de imparcialidade (e, já agora, a necessária preparação técnica) que não só o habilita como legitima a julgar. Daí que a tal «dúvida» só possa ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, de modo evidente, que o tribunal tendo dúvidas (ou não podendo deixar de as ter) sobre o acontecido optou por decidir contra o arguido.

Mas, conforme claramente decorre da sentença, o tribunal recorrido não julgou os factos que o recorrente se apresenta a impugnar, com base em dúvidas que tenha tido relativamente à verificação dos mesmos. Antes os considerou provados por entender que as provas produzidas os demonstram para além de dúvida razoável, explicando como, conforme bem se explicita na motivação da decisão.

Frisemos: a mera (e interessada) circunstância de o arguido/recorrente, firmado na sua interpretação das declarações da ofendida, entender que as mesmas determinariam uma dúvida inultrapassável, apenas porque ele as não aceitou, não integra o pressuposto constitucional e legal a que vimos fazendo referência.

Não resulta do julgamento realizado - e da sentença que o materializa não emerge - que o tribunal a quo se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre qualquer dos factos em referência!

Restando, por isso concluir, que nenhuma vulneração sofreu a garantia constitucional da presunção de inocência, nem qualquer outra das garantias processuais do arguido/recorrente, pelo que nada há a alterar à factualidade julgada provada na 1.ª instância.

3.c Do crime e da pena

A descrição típica do ilícito de violência doméstica, constante do artigo 152.º CP, dimensiona um feixe de tutela de direitos que vai muito para além do espartilho que a respetiva inserção sistemática no código indicia, abrangendo os maus tratos físicos e psíquicos ao cônjuge (inter alia). Tendo o tipo objetivo por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal ou sexual e privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal. Sendo o elemento subjetivo constituído pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).

Na avaliação das circunstâncias e comportamentos do arguido importará sempre atentar na «respetiva situação ambiente e na imagem global do facto».13

No caso presente, os comportamentos ilícitos do arguido consistiram em limitações à liberdade, ameaças e ofensas verbais intencionais, que ele não dirigiu a um desconhecido, a um vizinho, a um colega de trabalho ou a qualquer terceiro. Antes, nas diferentes ocasiões e modo descritos (caracterizadores de maus tratos psíquicos) foram dirigidas à sua mulher, na consideração de que ela, de certa forma, estava à sua mercê e que não tinha como obstar a esse exercício da sua vontade.

Sendo, em tais circunstâncias, indubitável a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, que é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos (artigo 152.º, § 2.º CP). De acordo com os princípios plasmados no artigo 40.º CP, a pena concreta é limitada no seu máximo pela medida da culpa. E traçado esse limite (decorrente da dignidade da pessoa humana) é depois determinada uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. E dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida concreta da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial (em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais) – artigo 71.º CP.

As circunstâncias concretas em que ocorreram os episódios de maus tratos, o tempo que as mediou, a gravidade concreta de cada um deles, o contexto vivencial do arguido e da vítima, as condições pessoais e modo de vida, justificam que a pena se quede um pouco acima do limite mínimo da moldura legal, como veio a suceder. Tais circunstâncias, conjugadas com o facto de o arguido não registar antecedentes criminais, permitem um prognóstico positivo que legitima a suspensão da execução da pena pelo período fixado - conforme bem decidiu o tribunal recorrido.

Mostrando-se igualmente normativamente fundado e ajustado o regime de prova que foi fixado como condição de suspensão da execução da pena de prisão, incluindo a frequência de programa educativo virado para os agressores no âmbito da violência doméstica (artigos 53.º e 54.º CP).

Termos em que nenhuma censura merece o decidido neste conspecto.

3.d Da indemnização e do valor desta

Sem verdadeiramente concretizar as razões da sua discordância, a verdade é que o recorrente manifesta desacordo acerca do arbitramento realizado em matéria de indemnização à ofendida, pelos danos não patrimoniais causados e sofridos, fixados no valor de 400€. O recorrente limita-se, na verdade, a uma alusão vaga à equidade e ao disposto nos artigos 21.º, § 1.º e 2.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e ao artigo 82.º-A do CPP!

O tribunal recorrido considerou – e muito bem - que o arguido «sujeitou a ofendida a situações degradantes e a uma agressão reiterada dos seus direitos de personalidade, mormente a sua integridade moral, amedrontando-a e fazendo-a temer pela sua integridade física e vida, e provocando-lhe marcas psicológicas que afetam o seu equilíbrio emocional e psíquico», tendo por isso decidido «condenar oficiosamente o arguido no pagamento da quantia de 400€ à ofendida BB, a título de indemnização para reparação dos danos não patrimoniais pela mesma sofridos, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, e 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro.»

A lei prevê especialmente no artigo 21.º, § 1.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que à vítima do crime de violência doméstica seja «reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável», que só não será arbitrada se a vítima a tal expressamente se opuser (artigo 82.º-A CPP). Oposição essa que se não verificou. A descrição dos maus tratos e do tempo por que perduraram tornam não só evidente, como inarredável, serem os danos causados à vítima merecedores da tutela do direito (artigo 496.º do C. Civil).

O princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos encontra-se estabelecido no artigo 483.º, § 1.º do Código Civil, ali se dispondo que:

«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

De tal preceito resulta serem pressupostos da obrigação de indemnizar: a existência de um facto voluntário praticado pelo lesante; a ilicitude da atuação; a produção de um dano; a existência de um nexo causal ligando o facto lesivo ao dano sofrido; e uma atuação culpa.

O facto voluntário traduz-se num facto objetivamente controlável ou dominável pela vontade, pese embora não tenha que ser querido.

A ilicitude da atuação traduz-se na violação de um direito subjetivo de outrem ou de uma disposição legal que protege interesses alheios.

O dano corresponde ao prejuízo ou lesão sofrido pelo titular do direito violado, podendo ter natureza patrimonial ou não patrimonial.

O nexo de causalidade corresponde à ligação causal existente entre a concreta atuação do lesante e os danos sofridos pelo lesado.

No que respeita à culpa, ela traduz o juízo de reprovabilidade pessoal da conduta ao seu agente, que em face das circunstâncias específicas do caso podia e deveria ter agido de modo diverso. Corresponde ao juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor do dano.

Verificados que se mostram todos os referidos pressupostos da responsabilidade delitual, fica o lesante investido na obrigação de indemnizar o lesado (artigo 562.º do Código Civil). Na sua decisão sobre esta questão o tribunal recorrido atentou – e muito bem - nos parâmetros normativos cogentes, tendo ponderado todas as variáveis relevantes para fixar nos mínimos uma compensação à vítima. Tendo nomeadamente atendido à natureza dos maus tratos, aos lugares e modos de perpetração dos atos respetivos. Na fixação do quantum indemnizatório, o critério normativo é claro: visa a reparação integral do dano sofrido, devendo, todavia, ter-se em conta a situação económica do responsável (artigo 496.º, § 4.º C. Civil). O quantitativo a fixar deve tender a viabilizar um lenitivo com significado, já que tirar à vítima o mal que lhe foi causado, isso já ninguém nem nada conseguirá.

Evidentemente que nesta área dos danos não patrimoniais a alea será sempre inarredável. Mas ponderadas, nos termos previstos nos artigos 494.º, 496.º, § 1.º e 4.º e 566.º, § 2.º do C. Civil, as circunstâncias reveladas nos factos provados, relativos aos danos causados e sofridos, e atendendo à situação económica e social do demandado, cremos que o montante fixado à indemnização se quedou pelo mínimo admissível. Daí que deva simplesmente manter-se.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conferência:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

c) Notifique-se.

Évora, 25 de fevereiro de 2025

J. F. Moreira das Neves

Jorge Antunes

Edgar Valente

.............................................................................................................

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Nos termos previstos nos artigos 82.º-A do Código de Processo Penal e 21.º, § 1.º e 2.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.

3 As conclusões têm uma precisa função precisa no figurino normativo dos recursos, sendo coisa distinta do que o recorrente apresenta. A doutrina e a jurisprudência vêm bastamente sublinhando o que são e como se devem apresentar (como adiante de demonstrará). Enfim, seguimos a lição sagaz do Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 17/2/2005 (relator Pereira Madeira), processo n.º 05P1441, www.dgsi.pt , no sentido de que o recurso não deve ser serventuário do que sob tal «título» («conclusões») os recorrentes entendam colocar. Razão pela qual se deve proceder ao devido «aparo» para que as conclusões (e só estas) cumpram a função gizada na lei.

O que são, afinal, e para que servem no contexto do recurso penal as conclusões? Elas são: «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14); não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23; «devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335). Neste mesmo sentido vem a jurisprudência decidindo: cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Relator Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Relator Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Relator Filipa Costa Lourenço; e do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 9mar2023, proc. 135/18.3SMLSB.L2-9, Relator João Abrunhosa.

4 DR, I-A de 28dez1995.

5 Cf. acórdão do STJ, 6abr1994, CJ XIX, t. II, 185.

6 Acórdão do STJ, 4out2001 (CJ/AcSTJ, IX, T. III, 182).

7 Neste sentido decidiram, entre muitos outros, os seguintes arestos: Ac. TRLisboa, de 29/1/2020, proc. 5824/18.0T9LSB-3; Ac. TRPorto, de 9/1/2020, proc. 1204/19.8T8OAZ.P1; Ac. TRÉvora, de 7/5/2019, proc. 112/14.3TAVNO.E1 , todos disponíveis em www.dgsi.pt .

8 Cf., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da RL de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, in www.dgsi.pt

9 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1999, pp. 101

10 Em sentido algo diverso Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, 2019, Almedina, pp. 66 ss.

11 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 1.ª ed., 2019, p. 573 (tradução da 29.ª edição da C. H. Beck, München), Ediciones Didot, p. 573).

12 Título feliz de obra de Perfecto Andrés Ibañez (magistrado del Tribunal Supremo de España), Editorial Trotta, 2015, pp. 251 ss.

13 Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, revista JULGAR, n.º 12, 2010, p. 19.