CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
AMNISTIA
EXCLUSÃO
Sumário

O que se quis definir com o disposto no art. 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, foi a exclusão de determinados tipos de crimes, independentemente da fase processual em que os autos se encontrassem ou a posição processual ocupada pelo seu autor. Em suma, de acordo com os critérios previstos no art. 9º, do Cód. Civil, não se extraí a conclusão que o legislador apenas pretendeu excluir o benefício da amnistia e do perdão aos condenados. Pelo contrário, resulta claro que a intenção, que tem apoio na letra da lei, é a de que, como sempre aconteceu em casos idênticos, e como foi claramente anunciado e esclarecido, a amnistia e o perdão estariam excluídos de aplicação sempre que em causa estivessem determinados crimes, entre eles o crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Por despacho de 7 de outubro de 2024, o Tribunal recorrido declarou extinto, por amnistia, o procedimento criminal relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, imputado nestes autos ao arguido AA.

*

1.2. Recurso

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, de cuja motivação extraiu as seguintes conclusões (transcrição):

1 - O presente recurso é interposto do despacho que aplica a amnistia ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º do Código Penal, na interpretação de que o art. 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, com a expressão condenados só exclui o perdão de penas, extinguindo nesta parte o procedimento criminal contra o arguido;

2 - A Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto veio instituir o perdão e amnistia de algumas infracções e penas por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, mas como medida excepcional de clemência que é, concedida pelo Estado, visa sempre o respeito pelos princípios do Estado de Direito, aplicando-se apenas a situações que se consideram de menor gravidade;

3 - Isso mesmo teve o legislador em consideração, não só quando balizou no tempo os ilícitos, fixando que sua prática até às 00h00 de 19 de Junho de 2023, mas também, a idade do infractor/autor/condenado à data da prática dos factos, 30 anos- cfr. artigo 2.º da referida Lei e também quando estabeleceu limites, quer no tocante ao perdão de penas, conforme decorre do artigo 3.º, quer no tocante às infracções penais amnistiáveis, fixando o limite máximo da pena em 1 ano de prisão ou 120 dias de multa, previsto no seu artigo 4.º;

4 - Foram tomadas várias opções legislativas quer quanto aos critérios temporais, etários e materiais quanto ao tipo de criminalidade visada, considerada de menor gravidade, mas mesmo dentro destas molduras penais mais baixas, foram excluídos determinados ilícitos por se considerar que não obstante a sua moldura penal abstracta ou sanção/pena concreta, atento o tipo de ilícito que subjaz, são mais gravosos e as necessidades de prevenção são muito superiores, não podendo ser objecto de clemência, como é o caso de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art 292.º do Código Penal;

5 - Corresponde a uma necessidade de política criminal dada a elevada sinistralidade que ocorre na rede viária nacional, sendo premente a prevenção quer geral que especial, sendo de realçar que a condução sob o efeito do álcool, como contra-ordenação e como crime, nunca foi contemplada em qualquer lei de amnistia, o que sem dúvida revela a intenção do legislador em não classificar como de pouca gravidade tal comportamento estradal e uma continuidade na opção e pensamento legislativo;

6 - Assim, só podemos entender a utilização da expressão “condenados”, na no art. 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, como imprecisa, uma escolha menos feliz, antes utilizada em sentido lato e genérico, mas cuja exclusão se refere quer a aplicação do instituto da amnistia quer do perdão;

7 - O legislador não foi preciso na escolha de linguagem técnico-jurídica, devendo fazer-se uma interpretação declarativa do pensamento legislativo, conforme com o art 9.º do Código Civil, atendendo também ao elemento sistémico, teleológico, histórico e de continuidade da Lei;

8. Ademais, seria incongruente e ilógico, proibir-se a sua aplicação aos ilícitos contra-ordenacionais e o perdão de penas e permitir-se a aplicação do instituto da amnistia aos ilícitos que ainda não se encontrem julgados ou condenados;

9 - Tal equivaleria a atribuir um efeito mais benévolo a uma situação objectivamente mais grave do que aquela outra em que tal entendimento foi expressamente afastado pelo legislador, o que é vedado ao intérprete, face aos princípios vigentes em matéria de interpretação da lei enunciados pelo art. 9º do C. Civil, quer porque sem correspondência no texto legal (n.º2), quer pela presunção estabelecida no n.º3 do citado preceito;

10. Pelo que, não pode excluir-se a aplicabilidade da referida exclusão/proibição da amnistia aos agentes/autores/arguidos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º do Código Penal, sendo que a interpretação levada a cabo no douto despacho recorrido é desconforme à letra da lei, ao pensamento legislativo, a princípios de coerência e, também, ao seu elemento sistémico, teleológico e histórico;

11. Tal interpretação não configura uma ampliação da lei, pois a amnistia identifica-se com a natureza específica do crime e não com o estado dos autos, extinguindo a responsabilidade criminal, quer tenha ou não havido condenação, cfr. art. 128.º, n.º 2 do Código Penal;

12. Destarte, deverá o despacho ser revogado, porquanto com a sua interpretação violou o Tribunal a quo, os critérios contidos nos arts. arts. 2.º, n.º 1, 4.º e 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto e art. 9.º do Código Civil.

*

1.3. Resposta/Parecer

Não foi apresentada resposta.

Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no qual, concordando com a resposta apresentada, se pronunciou pelo provimento do recurso.

*

2. Questões a decidir no recurso

A única questão a apreciar é a de saber se o crime de condução de veículo em estado de embriaguez se mostra excluído da aplicação da amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, quando o seu autor ainda não sofreu condenação – art. 7º, nº1, al.d), ii), do citado diploma legal.

*

3. Fundamentação

3.1. Decisão recorrida

É o seguinte, o teor da decisão recorrida (na parte relevante para a apreciação da questão aqui em causa):

« Através da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto o legislador procedeu ao perdão de diversas penas e à amnistia de algumas infracções criminais.

A amnistia concedida é aplicável a ilícitos praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do crime (art. 2º nº 1 do diploma legal).

No que importa ao caso dos autos, lê-se no art. 4º da referida lei que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.

Segundo o art. 128º nº 2 do Código Penal a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.

O presente procedimento criminal corre por conta de um crime de condução em estado de embriaguez, ilícito punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (art. 292º nº 1 do CP).

Os factos em causa nos presentes autos datam de 19/02/2015.

Nessa data o arguido contava 19 anos de idade.

- - -

Por fim, o caso dos autos não se enquadra em qualquer das excepções previstas no art. 7º da Lei nº 38-A/2023.

Com efeito, o art. 7º nº 1 al. d) § ii) exclui a aplicação da amnistia concedida naquela Lei 38-A/2023, no que concerne a casos de condução de veículo em estado de embriaguez, nos seguintes termos:

Artigo 7º

Exceções

1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(...)

d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

(...)

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291º e 292º do Código Penal.

Da norma decorre pois (no que importa ao caso) que da amnistia (instituto que, de acordo com o supramencionado art. 128º nº 2 do CP, é aplicável tanto a condenados como a casos em que não houve ainda condenação) fica excluído quem tenha sido condenado pelo crime em causa — não tendo havido condenação não há exclusão de aplicação da amnistia.

*

Contra o que acaba de concluir-se antecipamos alguns argumentos.

Desde logo, a solução aparenta gerar alguma incongruência lógica, amnistiando-se certos arguidos e outros não consoante, apenas, aquilo que, à revelia da sua actuação foi a marcha processual (ou, até mesmo, podendo beneficiar da amnistia quem tenha um contributo obstaculizante do processo). O argumento, porém, não convence. Com efeito, esta diferença é uma decorrência inerente à natureza dos institutos da amnistia e do perdão em causa. Pense-se, por exemplo, no caso de um arguido que, por causa de uma marcha processual mais célere, já expiou integralmente uma pena de prisão por conta de um crime que depois é amnistiado, e um arguido que por qualquer motivo (estar foragido, por exemplo) não iniciou o cumprimento de uma pena igual a vê, agora, ser apagada do ordenamento em virtude da amnistia.

Parece desigual mas, dada a sua natureza e o modo como funciona, é consequência inevitável de toda e qualquer amnistia (e, mutatis mutandis, também de qualquer perdão de penas).

*

Um outro contra-argumento de apelo à congruência lógica nos ocorre: o legislador amnistiou crimes aos quais, aplicando as regras de exclusão do art. 7º, não perdoaria as penas? Fará sentido? A resposta parece ser, numa primeira abordagem, negativa.

Porém, a verdade é que o disposto noutras normas da Lei nº 38-A/2023 leva incontroversamente à conclusão que em certos casos esta mesma foi escolha do legislador. Pense-se, por exemplo, em todos os casos de concurso de vários crimes amnistiados em que o condenado sofre, em cúmulo jurídico, pena de 130 dias (ou mais) de multa, ou prisão superior a um ano. No primeiro caso (multa), de acordo com a Lei nº 38-A/2023, são amnistiados todos os crimes, e por isso extinguem-se por amnistia todas as penas — mas, se não intercedesse a amnistia, o legislador não permitiria qualquer perdão à pena (art. 3º nº 2 al. a) e nº 4 do diploma). No segundo caso (prisão), extinguem-se também in totum as consequências penais em virtude da amnistia — mas se não operasse a amnistia a prisão única do concurso de crimes só seria perdoada até um ano. E o mesmo sucede quanto a penas acessórias: no caso de crime de desobediência do art. 152º nº 3 do Código da Estrada, o legislador amnistiou o crime (eximindo o agente da pena principal e da pena acessória prevista no art. 69º nº 1 al. c) do Código Penal), mas se não operasse a amnistia não haveria lugar a perdão da pena acessória. A conclusão inelutável é precisamente essa: em certos casos a Lei nº 38-A/2023 amnistiou os crimes, mas nem por isso aquela lei permitiria o perdão (integral, no caso da prisão) das penas aplicáveis.

Ou seja, o que à partida (e em circunstâncias normais) seria um argumento convincente, por a solução aparentar levar a um resultado “contraditório” (“amnistia-se o que não se perdoaria”), acaba desarmado pela constatação de que essa foi, incontroversamente, a linha de raciocínio escolhida pelo legislador para certos casos.

*

Contra o que se conclui pode arguir-se, por outro lado, que o legislador terá usado a expressão condenados apenas porque usou de pouco cuidado no rigor legislativo, pois na verdade quereria referir-se a todos os casos que se reportem aos crimes excluídos independentemente do momento processual da acção penal. Não somos insensíveis a tal argumento1, mas em nosso entender o mesmo também não colhe. Ab initio, a palavra condenados nem sequer é aquela que nos parece a mais natural —na linguagem— que seria usada se fosse essa a intenção do legislador. Querendo-se excluir da amnistia os autores de todos crimes do art. 7º parece-nos que seria uma escolha de linguagem mais natural ter-se usado, precisamente, a palavra autores; Ou querendo-se excluir todos os crimes mencionados no art. 7º parece-nos que seria mais natural o legislador ter consagrado algo de semelhante a “O perdão a amnistia previstos na presente lei não têm aplicação aos crimes de...”.

Todavia, parece-nos que para interpretar a letra da lei é desnecessário recorrer a estas considerações, que tanto de subjectivo têm. E assim porque se o legislador em várias das alíneas do art. 7º usou a expressão condenados noutras não usou essa expressão: as alíneas j), k) e l) daquele art. 7º não mencionam condenados.

Mais, na al. l) o legislador escolheu precisamente a palavra autores (em vez de condenados) para esclarecer quem fica excluído do perdão e amnistia.

Deste contraponto extrai-se que, tanto quanto resulta do teor do art. 7º, a opção do legislador pela palavra condenados foi consciente e intencional. O legislador escolhe como legisla e, bem ou mal, escolheu legislar assim.

*

Ainda um outro argumento contrário se suscita: fará sentido que o legislador tenha expressamente excluído da amnistia os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo (al. l) do art. 7º) e não exclua os autores de um crime com contornos semelhantes? Amnistia-se a infracção maior (o crime) mas não a menor (a contraordenação)? Também não somos insensíveis ao argumento e diremos mesmo que, não fosse o que se assinala em seguida, o subscreveríamos2. Sucede que a opção de se amnistiar o crime e não a contraordenação é, no caso da Lei 38-A/2023, a regra: em todos os casos de crimes que foram amnistiados em que exista comportamento relacionado ou semelhante (mas menos grave) punido como mera contra-ordenação que tutele os mesmos bens jurídicos, o legislador amnistiou o crime mas não a contraordenação. Com efeito, a Lei 38-A/2023 amnistiou todas as infracções penais (salvo as excluídas no art. 7º) cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa e não amnistiou nenhuma contraordenação (apenas perdoou sanções acessórias de certas contraordenações). Em decorrência, pense-se em casos de infracções de regras de segurança rodoviária: o crime (comportamento mais grave) de condução sem habilitação legal do art. 3º nº 1 do Decreto-lei nº 2/98 foi amnistiado, mas uma mera contraordenação leve (comportamento menos grave) correspondente, por exemplo, a um excesso de velocidade já não o foi. E (entrando já no campo de abrangência do perdão concedido na lei em causa) resultados semelhantes a esta regra não se verificam apenas no contraponto entre contraordenações e crimes. O mesmo sucede com crimes, mais graves,

que exigiram a aplicação de prisão substituída ou suspensa, cujas penas são perdoadas quando não são perdoadas multas, aplicadas por infracções menos graves, caso a multa seja superior a 120 dias (art. 3º nº 2 da Lei 38-A/2023).

Não se desconhece diversa jurisprudência superior que acolhe este argumento. Por exemplo, sobre a questão pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Abril de 2024 (publicado em www.dgsi.pt, processo nº 5/23.3GBABF.E1):

Existe ainda outro argumento decisivo: não faz qualquer sentido, e contraria de forma flagrante a unidade do sistema jurídico, entender-se que relativamente às contra-ordenações praticadas sob a influência do álcool, por força da redacção dada à al. i) do referido artº 7º, nº 1 (“autores”), estão todos excluídos da amnistia e quanto ao crime de condução sob o efeito do álcool apenas os condenados estão excluídos.

Ou seja: preenchidos os demais requisitos, quem conduzir com uma t.a.s., por exemplo, de 0,6 g/l não beneficia (nunca) da amnistia, mas quem conduzir com uma t.a.s., por exemplo, de 2,00 g/l pode beneficiar, desde que ainda não tenha sido condenado. Não pode ser assim!

Mas o argumento do aresto, sempre com o devido respeito (que é, evidentemente, muito), não nos convence. Atente-se no caso do ilícito do art. 278º-A do Código Penal, o crime de violação de regras urbanísticas. De acordo com a legislação vigente (designadamente, art. 98º do Decreto-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, RJUE) quem construir edificação em desconformidade com as normas urbanísticas aplicáveis é punido com coima. E quem fizer a mesma coisa mas em via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal é punido com pena de prisão até três anos.

Do que resulta o seguinte: preenchidos todos os restantes requisitos, quem edificar ilegalmente, sem as agravantes que tornam a conduta num crime, não beneficia nunca do perdão, mas quem o fizer em Reserva Ecológica Nacional ou Reserva Agrícola Nacional pode beneficiar do perdão.

Não devia poder ser assim. Mas parece-nos que, no contexto da Lei 38-A/2023, assim é3.

Do que antecede concluímos o seguinte: o argumento de que não faz sentido lógico ter-se amnistiado o crime mas não uma contraordenação relacionada ou semelhante seria, em circunstâncias habituais, um argumento muito forte contra o entendimento que perfilhamos.

Todavia, na economia da Lei 38-A/2023 esse argumento não nos convence, uma vez que esta lei adoptou precisamente, e propositadamente, essa solução como regra. Não nos cabe, evidentemente, dizer se a escolha do legislador foi melhor ou pior, mas parece-nos que a constatação seguinte é insofismável: dentro dos pressupostos dos seus arts. 4º e 7º, a Lei 38-A/2023 amnistiou todos os crimes e não amnistiou nenhuma contraordenação que tutele os mesmos bens jurídicos. Assim sendo, não nos parece que possa encontrar-se na lei uma qualquer teleologia coerente e que justifique ampliar a letra da lei para assim chegar à conclusão de que deve também considerar-se excluído da amnistia quem o legislador não excluiu na letra da lei. Ou seja, uma vez que a teleologia que perpassa a lei é no sentido de amnistiar crimes e não amnistiar contraordenações, entendemos que não deve concluir-se no sentido de que, ao contrário dessa solução geral, afinal está excluído da amnistia quem a letra da lei não exclui.

E note-se, ainda, que, se bem nos parece, entender que a teleologia inerente à lei exclui da amnistia o crime em causa parece chocar de frente com a constatação de que foram amnistiados os crimes de desobediência correspondentes à recusa de submissão às provas de detecção de condução sob influência do álcool. Pretendeu o legislador beneficiar quem recusou submeter-se àquelas provas por comparação a quem na realização de tais testes cumpriu a lei e depois será sancionado por uma infracção que quem desobedeceu (e não só praticou a desobediência como possivelmente também a condução de veículo em estado de embriaguez) se eximirá? Pretendeu o legislador dizer que uma tal desobediência, afinal, “compensa”?

A resposta a todas estas interrogações é, a nosso ver, relativamente simples: no contexto da Lei nº 38-A/2023 pura e simplesmente não parece possível encontrar uma teleologia minimamente coerente, destinada a fazer sentido da lei em questão e afastar uma aparente contradição sem necessariamente se entrar noutra contradição igual ou pior.

E assim concluímos: o legislador é perfeitamente livre de legislar como entender dentro dos latos parâmetros que a Constituição da República lhe permite. Todavia, quando pretenda legislar sem que consiga respigar-se na lei alguma consistência teleológica que permita a sua interpretação coerente, então tem de ter um mínimo de rigor nas palavras que usa. Mais assim, ainda, em lei que respeite a responsabilidade criminal. Sob pena de, não se encontrado uma teleologia coerente, ter de se seguir a lei à letra.

- - -

Posto o que antecede, voltemos ao início.

O art. 4º da Lei 38-A/2023 estatui que são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.

O crime em causa nos autos é punido com pena não superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.

Do art. 7º nº 1 do diploma decorre que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos naquela lei (...) no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por (...) crimes de (...) condução de veículo em estado de embriaguez.

O arguido não foi condenado pelo crime em causa nos autos. Em decorrência, o caso dos autos não está excluído, na letra da lei, da amnistia concedida.

Do mesmo modo, não vemos que, considerando o restante teor e a teleologia da lei em questão, deva ampliar-se a letra da lei por forma a que a expressão “condenados” passe a significar “condenados e não condenados”.

*

Pelo que supra fica exposto, declaro extinto, por amnistia, o procedimento criminal dos presentes autos.»

* 3. 2 – Crime de condução em estado de embriaguez – exclusão de amnistia, art. 7º, nº1, al.d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Quer a amnistia, quer o perdão genérico, são duas medidas de clemência, concedidas pelo Estado, em determinas circunstâncias concretas, e por regra, em momentos entendidos como social ou politicamente relevantes. Distinguem-se, entre si, por a amnistia extinguir o procedimento criminal ou, no caso de já existir condenação, fazer cessar a execução da pena e dos seus efeitos, enquanto o perdão extingue, no todo ou em parte, a pena

A Lei nº38-A/2023, de 2/8, tal como resulta do seu art. 1º, «estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude». Estão abrangidas as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00H00 de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto – art. 2º, nº1. E, no que nos interessa, são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, exceto as relativas a crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal, as quais não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na mesma lei (arts. 4º e 7º, nº1, al.d), ii)). O crime em causa nos presentes autos é o de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no art. 292º, do Cód. Penal, o qual é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. Do que se deixa dito parece resultar evidente que apesar dos factos aqui em causa terem ocorrido antes de 19 de junho de 2023, do arguido ter, à data da sua prática, menos de 31 anos de idade e do crime ser punível com pena não superior a 120 dias de multa e 1 ano de prisão, não será de aplicar nem o perdão, nem a amnistia. Porém, o preceito que refere a exceção à aplicação das medidas de clemência, tem o seguinte teor: Artigo 7.º Exceções 1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (…)

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal. Com base na literalidade do preceito, que fala em condenados, entendeu o tribunal recorrido que apenas se mostram excluídos da amnistia aqueles que, tendo já sido alvo de julgamento, tenham aí sido condenados. E, como tal, todos aqueles que ainda não foram submetidos a julgamento ou, tendo-o sido, ainda não tenham sido efetivamente condenados, poderão beneficiar da amnistia. E é precisamente esta interpretação do preceito em causa que o recorrente impugna. Vejamos. As Leis de amnistia e de perdão revestem a natureza de normas excecionais (no essencial, aplicam-se a um conjunto restrito de situações e estabelecem um regime jurídico contrário ao comum e geral, vigente para o mesmo tipo de situações). Como tal, de acordo com o disposto no art. 11º, do Cód. Civil – aplicável por força do art. 4º, do Cód. Proc. Penal – não comportam aplicação analógica. E, como se pode ler no Assento nº2/2001, de 14/11 (Diário da República n.º 264/2001, Série I-A de 2001-11-14, páginas 7220 – 7227): «É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas (…). Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147. Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185. (…)». Porém, e como também ali se diz, tais normas, à semelhança de todas as outras, não deixam de ter que ser interpretadas. E, para tal efeito, importa atender ao que dispõe o art. 9º, do Cód. Civil (Interpretação da lei): «1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados». De acordo com este preceito, para a interpretação da norma tem necessariamente que se atentar à letra da lei. Mas isso não basta já que, sempre que esta suscite qualquer dúvida, terão que se considerar todas as circunstâncias concretas que estiveram na sua génese, de modo a entender qual o pensamento e a intenção legislativos, tendo sempre em conta a unidade e coerência do sistema jurídico no seu todo. No caso concreto, a letra da lei suscita dúvidas. Quereria efetivamente o legislador excluir do âmbito da aplicação da amnistia apenas aqueles que já se mostram condenados? Ou esta última expressão foi usado em sentido impróprio, não querendo significar tal conclusão?

Adiantamos desde já que perfilhamos este último entendimento. Vejamos as razões. Note-se, desde logo a inserção sistemática do preceito em causa (7º), na Lei em referência. Esta prevê, de forma totalmente coerente, nos seus arts. 1º e 2º, respetivamente, o seu objeto e âmbito, nos arts. 3º a 6º, as situações de aplicação de amnistia e perdão. E, de seguida – também com toda a lógica e coerência - no seu art. 7º as exclusões, ou seja, as exceções, os casos em que aqueles nunca serão de aplicar. E, do que resulta da conjugação desses preceitos, tais casos (de exceção) respeitam a tipos concretos de crime e não a concretas posições processuais. O mesmo ressalta, aliás, do nº4, do mesmo preceito (A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos), onde também o realce é dado apenas ao tipo de ilícito em causa. Por outro lado, é claro da Lei da Amnistia aqui em causa sempre teve por propósito excluir do seu âmbito os crimes rodoviários praticados sob a influência do álcool. Prova disso foi o que ocorreu após o Conselho de Ministros ter emitido o comunicado de 19 de junho de 2023, em que anunciava a aprovação da proposta de lei (https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/governo/comunicado-de conselho-de-ministros?i=558) e do qual não constava a exclusão dos crimes praticados sob a influência do álcool. Na sequência de acaloradas discussões públicas e fortes críticas a tal facto, foi necessário um esclarecimento por parte do Ministério da Justiça, no sentido de que tais crimes eram efetivamente afastados da aplicação da amnistia e do perdão. E, realmente, tal decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei que veio a ser aprovada, a qual expressamente menciona excluir do seu âmbito de aplicação a criminalidade muito grave e as contraordenações praticadas sobre influência de álcool. E, os casos entendidos como muito graves são precisamente todos aqueles que se mostram elencados no citado art. 7º. Saliente-se que a gravidade, que determina e justifica esta exclusão se prende essencialmente com a existência de fortes e elevadas necessidades de prevenção geral, e não propriamente com a noção corrente de pequena/média/elevada criminalidade que assenta essencialmente na moldura penal aplicável. E, também aqui, como é sobejamente sabido, as necessidades de prevenção geral no que concerne aos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez são elevadíssimas – do que decorre que seria socialmente inaceitável a aplicação de qualquer medida de clemência a este tipo de ilícito, tão frequente, tão reprovável e tão temido pela comunidade. Aliás, é de notar que, do ponto de vista histórico – de bastante relevo nesta tarefa interpretativa – os crimes praticados sob a influência do álcool sempre foram excluídos da amnistia e do perdão. Importa ainda considerar que o entendimento expresso na decisão recorrida se traduz numa incoerência da lei em causa e do sistema jurídico na sua globalidade. Desde logo porque não se compreende como se pode aplicar a amnistia a quem ainda não foi condenado, deixando de fora aqueles que, estando nas mesmas condições e contextos concretos, que praticaram factos exatamente iguais, ainda não o foram (apenas por motivos que, na maior parte das vezes, lhe não são imputáveis, como será, por exemplo, o caso de maior ou menor rapidez no andamento processual). Ou, como pode ser amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez relativamente a pessoa que ainda não foi condenada, mas não ser de aplicar a quem, nas mesmas condições, praticou uma contraordenação por factos idênticos, mas de menor gravidade (necessariamente uma TAS inferior). Tal solução, além de constituir uma clara violação do princípio constitucional da igualdade, tornaria incompreensível (não só para qualquer cidadão, como também para um técnico jurídico) e incoerente o sistema judicial na sua globalidade. E, a este respeito, e pela semelhança, embora relativa a situação distinta, não podemos ignorar o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/97, de 19/12/96 (DR I Série, 18/3/97) que, a propósito do art. 9º, nº2, al.c), da Lei 15/94, de 11 de maio (preceito da Lei da Amnistia que determinava a exclusão da amnistia e perdão aos transgressores ao Código da estrada e seu regulamento, quando tenham praticado a infração sobre o efeito do álcool ou com abandono de sinistrado), estabeleceu não beneficiarem de amnistia ou do perdão os crimes cometidos sob influência do álcool ou com abandono de sinistrado. E, na sua fundamentação, é dito precisamente, que seria ilógico excluir da amnistia os transgressores do Cód. Da Estrada, permitindo que dela beneficiassem os autores dos crimes de homicídio ou de ofensas à integridade física negligentes, também cometidas sob influência do álcool. Tal conclusão, impõe-se igualmente no caso que nos ocupa. Finalmente, somos do entendimento que a expressão “condenado” usada no preceito em análise não traduz qualquer intenção específica do legislador. Pelo contrário, tal como invocado pelo recorrente, este preceito, tem a sua “fonte” no art. 2º, nº6, da Lei 9/2020, de 10 de abril (Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19) que é precisamente o preceito que, nessa lei, elenca os crimes que se mostram excluídos do âmbito do perdão. E, aí, tratando-se de “perdão” foi usada a expressão “condenado”, a qual, ao ser transposta para a lei aqui em causa, não foi alterada. Traduz-se, em suma, numa ausência de cuidado e de atenção que, em nada reflete a vontade do legislador e que, por si só, nada significa. Aliás, nesse sentido, é de atender a que na al. l), do nº1, do mesmo art.7º, a propósito das contraordenações a expressão usada não é condenados, mas sim “autores”. De tal apenas pode resultar uma ausência de especial cuidado ou atenção (por desnecessária) quanto à expressão para designar os autores dos atos ilícitos em causa. E tal apenas pode significar, na nossa perspetiva a irrelevância desse aspeto. O que se quis definir foi a exclusão de determinados tipos de crimes, independentemente da fase processual em que os autos se encontrassem ou a posição processual ocupada pelo seu autor. Em suma, de acordo com os critérios previstos no art. 9º, do Cód. Civil, não se extraí a conclusão que o legislador apenas pretendeu excluir o benefício da amnistia e do perdão aos condenados. Pelo contrário, resulta claro que a intenção, que tem apoio na letra da lei, é a de que, como sempre aconteceu em casos idênticos, e como foi claramente anunciado e esclarecido, a amnistia e o perdão estariam excluídos de aplicação sempre que em causa estivessem determinados crimes, entre eles o crime de condução de veículo em estado de embriaguez. No mesmo sentido, entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 5/3/24, relatado pela Exma. Desembargadora Laura Goulart Maurício, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/24, relatado pela Exma. Desembargadora Cristina Branco (ambos em jurisprudência.pt), desconhecendo-se decisões de Tribunais da Relação em sentido contrário.

Desta forma, assiste inteira razão ao recorrente.

*

4 - DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, nos moldes que se entendam por adequados.

Sem custas.

*

Évora, 25 de fevereiro de 2025

Carla Oliveira (Relatora)

Edgar Valente (1º Adjunto)

Mafalda Sequinho Santos (2ª Adjunta)

..............................................................................................................

1 Ainda que nos pareça discutível se, num campo do Direito em que o legislador está sujeito ao princípio estrito da legalidade (art. 1º do Código Penal), se deverá ampliar a letra da lei (pois que aplicar a exclusão da amnistia a não condenados é inquestionavelmente uma ampliação daquela letra “condenados” tem afinal, nessa interpretação, de ter o significado de “condenados e não condenados”) para corrigir “imperfeições de significado” e, em resultado disso, concluir--se pela responsabilização criminal de alguém ou não.

2 Por exemplo, caso de aparente incongruência semelhante (“permitir--se o mais e não se permitir o menos”), originou, relativamente ao crime de consumo de estupefacientes (art. 40º nºs 1 e 2 do Decreto--Lei 15/93, Lei 15/93, entretanto descriminalizado) a Uniformização de Jurisprudência nº 8/2008, onde o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que aquela incongruência era a chave interpretativa para concluir que não houve lugar a descriminalização de certos casos previstos no crime de consumo.

3 A inconsistência legislativa vai ainda mais longe: quem negligentemente (art. 98º nº 9 do RJUE) praticar o ilícito de ordenação social não é perdoado; mas a conduta mais grave dolosa (única forma de praticar o crime) tem perdão.