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CONTRA-ORDENAÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL
LAR DE IDOSOS
INTUITO LUCRATIVO
Sumário
Sumário: 1. Para os fins do art. 11.º n.º 1 do DL 64/2007, na sua redacção original, uma estrutura residencial para pessoas idosas só podia iniciar a actividade após a concessão da respectiva licença de funcionamento. 2. Punindo o art. 39.º-B n.º 1 al. a) do mesmo diploma, como contra-ordenação muito grave, “a abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado ou não disponha de autorização de funcionamento válida”, e atendendo que a capacidade mínima daquela estrutura não pode ser inferior a 4 residentes (art. 6.º n.º 1 da Portaria 67/2012, de 21 de Março), a infracção é cometida se residirem 5 idosos, apesar de dois deles não pagarem qualquer prestação. 3. A circunstância de dois idosos não pagarem prestação não é relevante para afastar o preenchimento do conceito legal – a ausência de propósito lucrativo releva apenas quanto à medida da coima, cujos limites são reduzidos a metade, como previsto no art. 39.º-G n.º 1 do DL 64/2007.
Texto Integral
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
No Juízo do Trabalho de Faro, AA impugnou a decisão do Centro Distrital de Faro da Segurança Social, proferida nos autos de processo de contra-ordenação n.º 201800061197, que lhe aplicou a coima única de € 21.000,00, pela prática de:
· uma contra-ordenação muito grave, por violação das disposições conjugadas dos arts. 11.º n.º 1, 39.º-B al. a) e 39.º-E al. a) do DL 64/2007, de 14 de Março, concretizada no facto de ter em funcionamento uma Estrutura Residencial de Pessoas Idosas (ERPI) sem licença ou autorização provisória para tal, na coima de € 21.000,00;
· uma contra-ordenação por violação das disposições conjugadas dos arts. 3.º n.º 1 al. a), e 9.º n.º 1 al. a) do DL 156/2005, de 15 de Setembro, concretizada no facto de não possuir livro de reclamações, na coima de € 500,00.
Recebida a impugnação judicial, realizou-se julgamento, após o que foi proferida sentença julgando improcedente a impugnação.
A arguida interpôs recurso e concluiu:
(…)
Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Já nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público emitiu o seu parecer, aderindo às alegações de recurso produzidas na primeira instância.
Cumpre-nos decidir.
Questão prévia de inadmissibilidade parcial de recurso:
Entre as infracções que vêm objecto de recurso, conta-se uma à qual foi aplicada a coima parcelar de € 500,00, por infracção às disposições conjugadas dos arts. 3.º n.º 1 al. a), e 9.º n.º 1 al. a) do DL 156/2005, de 15 de Setembro, concretizada no facto de não possuir livro de reclamações.
De acordo com o art. 49.º n.º 1 al. a) da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, é admissível recurso para o Tribunal da Relação quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente; e acrescenta a al. b) que o recurso também é admissível se a condenação abranger sanções acessórias.
Acrescenta o n.º 3 que “se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.”
Logo, a admissibilidade de recurso face ao valor da coima é aferida em função da coima parcelar aplicada a cada infracção, e não em função do montante da coima única aplicada em cúmulo jurídico. Este tem sido o entendimento uniforme desta Relação, citando-se, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos de 08.11.2017 (Proc. 2792/16.6T8PTM.E1) e de 06.12.2017 (Proc. 3438/16.8T8FAR.E1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Consequentemente, declara-se inadmissível o recurso na parte relativa à referida contra-ordenação.
A matéria de facto foi assim estabelecida na sentença recorrida:
A. Em 2017-03-16, no estabelecimento sito em (…), a arguida exercia a actividade de acolhimento de idosos com uma capacidade instalada para 6 (seis) idosos, estavam acolhidos 5 (cinco) idosos, sendo estes indivíduos com 65 anos ou mais;
B. Aos utentes no estabelecimento eram prestados serviços de alojamento colectivo de utilização temporária ou permanente, com o fornecimento de refeições, cuidados de saúde, higiene, conforto e vigilância;
C. Os cinco utentes que se encontravam no estabelecimento estavam-se ao cuidado da arguida, e de BB, sendo que estava também presente uma trabalhadora, de nome CC, que desempenhava as funções de limpeza e higiene das instalações;
D. A prestação dos referidos serviços era efectuada mediante um pagamento à ora arguida ou a BB no valor de 400 euros por mês, com emissão de recibos por ambos os responsáveis, apenas para três utentes, uma vez que dois deles eram familiares dos responsáveis e não pagavam mensalidade;
E. A arguida não tinha a devida autorização de funcionamento ou comunicação prévia para a actividade de ERPI;
F. As instalações eram destinadas a habitação e os espaços não cumpriam os requisitos legais necessários para conceder uma autorização de funcionamento, acrescendo que as instalações não asseguravam as condições de acessibilidade necessárias a utentes com mobilidade reduzida;
G. Não foi feita prova da existência de licença de ou autorização de utilização, emitida pela Câmara Municipal de (…), para o fim prosseguido, nem da existência de parecer da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), que comprove o cumprimento das regras de segurança contra riscos de incêndio das instalações, nem da existência de certificação das instalações técnicas e de utilização de combustíveis, não estando asseguradas as condições de segurança exigíveis para o funcionamento de um equipamento de apoio social de alojamento a idosos;
H. Verificou-se a inexistência de comprovativos da implementação de medidas de autoprotecção, bem como a inexistência de parecer higieno-sanitário, certificado de inspecção de gás, nem certificação em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho e em segurança alimentar;
I. A estrutura residencial não dispõe de recepção, direcção, serviços técnicos e administrativos, instalações para o pessoal, convívio e actividades, serviços de enfermagem e serviços de apoio;
J. Não existiam planos de limpeza das instalações e de desinfecção dos materiais;
K. Inexistia director técnico, animador, enfermeiro, ajudante de acção directa e cozinheira, categorias profissionais, adequadas às actividades e serviços desenvolvidos;
L. Não existia livro de reclamações, entre outros documentos de organização técnico-administrativa, tal como livro de registo de ocorrências;
M. Foi emitida a notificação de intenção de encerramento do estabelecimento, sendo que, em sede de audiência prévia, foi então presentada resposta por parte dos responsáveis do ERPI, informando sumariamente: a data de cessação da actividade em 03.04.2017; a morada do local para onde foram encaminhados os utentes identificados; a identificação da pessoa responsável por cada um cada um desses utentes; a data de apresentação da declaração de cessação de actividade nas Finanças de BB (em 2017.07.10);
N. Foi a arguida notificada da extinção do procedimento administrativo da ERPI e procedeu-se à afixação do aviso de encerramento por iniciativa da entidade responsável;
O. A arguida bem sabia que não estava a cumprir as obrigações que lhe incumbiam, em prejuízo dos seus utentes.
Aplicando o Direito Do preenchimento do tipo legal
De acordo com o art. 51.º n.º 1 da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, ressalvando-se a apreciação de questões de natureza oficiosa, e certo é que não se vislumbra na decisão recorrida qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou, sequer, erro notório na apreciação da prova, que imponha o uso dos poderes consignados no art. 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
Já se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça Em Acórdão de 02.03.2016 (Proc. 81/12.4GCBNV.L1.S1), publicado em www.dgsi.pt. que o “erro notório na apreciação da prova”, vício previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, “verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada. (…) O vício de erro notório na apreciação da prova, tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem se usar elementos externos à própria decisão – mormente confrontar fotografias, documentos particulares ou declarações de arguido e testemunhas que constem do processo – a não ser factos contraditados por documentos que façam prova plena – documentos autênticos (art. 169.º, do CPP e art. 363.º, n.º 2, do CC).”
Argumenta a arguida que sentença violou as regras da prova por os concretos meios de prova não permitirem concluir que estavam acolhidos 5 idosos, pois dois eram familiares directos e não pagavam qualquer prestação.
No entanto, a sentença já tomou em consideração que estavam ao cuidado da arguida cinco idosos, mas apenas eram cobrados os serviços prestados a três deles, uma vez que dois eram familiares dos responsáveis e não pagavam mensalidade.
Não ocorre, pois, erro notório na apreciação da prova quanto a esta matéria, o qual teria de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem se usar elementos externos à própria decisão, nomeadamente depoimentos de testemunhas – e certo é que, analisando a decisão recorrida, não se vislumbra tal erro.
A arguida afirma ainda que ocorre ausência de elemento subjectivo nas contra-ordenações imputadas.
Sobre esta questão, Eduardo Correia In Direito Penal e de Mera Ordenação Social, no BFDUC, n.º XLIX (1973), pág. 268. referia que “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal.”
Daí que a culpa nas contra-ordenações não se baseie em qualquer censura ético-penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao mesmo agente, podendo o elemento subjectivo da conduta presumir-se da descrição do elemento objectivo. Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação do Porto de 11.04.2012 (Proc. 2122/11.3TBPVZ.P1), da Relação de Guimarães de 05.04.2018 (Proc. 4016/17.0T8VNF.G1), da Relação de Coimbra de 15.06.2018 (Proc. 1208/17.5T8LMG.C1), e da Relação de Guimarães de 05.03.2020 (Proc. 2481/19.0T8GMR.G1), todos em www.dgsi.pt.
Note-se, de todo o modo, que as contra-ordenações laborais são sempre puníveis a título de negligência – art. 550.º do Código do Trabalho. Explorando a arguida uma ERPI, sabia que não estava a cumprir as obrigações que lhe incumbiam, em prejuízo dos seus utentes, como ficou provado.
A arguida argumenta, ainda, que ocorreu a violação do princípio non bis in idem, ao não ter sido apensado outro processo de contra-ordenação – mas esquece que nesse processo outra pessoa é arguida, pelo que inexiste identidade subjectiva de imputações.
Argumenta, também, que ocorreu a prescrição do procedimento, mas há a ponderar a diversas interrupções e suspensões de prazo, nomeadamente:
- a acção inspectiva iniciou-se a 16.03.2017;
- o auto de notícia foi levantado a 01.09.2018;
- a arguida foi notificada para deduzir a sua defesa, o que fez a 14.08.2019;
- as testemunhas de defesa foram inquiridas a 14.02.2024;
- a arguida foi notificada da decisão condenatória da autoridade administrativa, proferida a 25.09.2024;
- a 07.11.2024 foi notificado o despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa.
Estes factos não apenas produziram a interrupção do prazo de prescrição, nos termos que decorrem das quatro alíneas do n.º 1 do art. 54.º da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, como igualmente produziram a suspensão desse prazo – art. 53.º n.º 1 al. d).
E se tal significa que a prescrição do procedimento pode ter normalmente um prazo máximo de oito anos – arts. 52.º, 53.º n.º 2 e 54.º n.º 3 da Lei 107/2009 – no caso temos ainda que atender aos 160 dias de suspensão do prazo decorrente da aplicação das leis especiais aprovadas em contexto de combate à pandemia COVID-19, concretamente o disposto nos arts. 7.º n.º 3 e 6.º-B n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, nos termos dos quais os prazos de prescrição em vigor estiveram suspensos entre 09.03.2020 e 02.06.2020 (86 dias) e entre 22.01.2021 e 05.04.2021 (74 dias), acrescendo aos prazos em curso o período de tempo em que vigorou a respectiva suspensão.
Tudo isto significa que a invocada prescrição do procedimento contra-ordenacional, não ocorreu.
Afirma a arguida que a actividade por si desenvolvida não se enquadra no âmbito da imputação legal, pois dos cinco idosos que estavam acolhidos, dois deles não pagavam qualquer prestação.
Face ao art. 1.º n.º 2 da Portaria 67/2012, de 21 de Março, “considera-se estrutura residencial para pessoas idosas, o estabelecimento para alojamento colectivo, de utilização temporária ou permanente, em que sejam desenvolvidas actividades de apoio social e prestados cuidados de enfermagem.”
O art. 6.º n.º 1 da mesma Portaria dispõe que “a capacidade máxima da estrutura residencial é de 120 residentes, não podendo ser inferior a 4 residentes.”
No caso, a arguida explorava um estabelecimento onde alojava colectivamente cinco idosos, todos com 65 anos ou mais, com o fornecimento de refeições, cuidados de saúde, higiene, conforto e vigilância, e tanto basta para o preenchimento do conceito legal de “estrutura residencial para pessoas idosas”.
Sendo certo que o art. 11.º n.º 1 do DL 64/2007, na redacção em vigor ao tempo dos factos – ainda a original, pois a mera comunicação prévia só foi prevista a partir das alterações introduzidas pelo DL 126-A/2021 – estipulava que este tipo de estabelecimentos só podia iniciar a actividade após a concessão da respectiva licença de funcionamento, o art. 39.º-B n.º 1 al. a) punia, e continua a punir, como contra-ordenação muito grave “a abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado ou não disponha de autorização de funcionamento válida.”
A circunstância de dois idosos não pagarem qualquer prestação não é relevante para afastar o preenchimento do conceito legal – a ausência de propósito lucrativo releva apenas quanto à medida da coima, cujos limites são reduzidos a metade, como previsto no art. 39.º-G n.º 1 do DL 64/2007.
A este propósito, já se decidiu, no Acórdão da Relação do Porto de 18.11.2019 (Proc. 5902/18.5T8MTS.P1), publicado no endereço da DGSI, que: “III – A finalidade lucrativa, ou não, relevará para a determinação dos limites mínimo e máximo da coima nos termos do art. 39º-G, nº 1, do citado DL 64/2007. (…) V - É que, se a Portaria 67/2012, no seu art. 6º, nº 1, exige que a estrutura residencial tenha uma capacidade mínima para quatro utentes, afigura-se-nos mais ajustado ao espírito da lei, bem como lógico e coerente que, para que a actividade se possa considerar como prestada por entidade que tenha finalidade lucrativa, que tal finalidade se encontre presente em relação a, pelo menos, quatro utentes.”
Assim, demonstrando-se a finalidade lucrativa em relação a apenas três dos cinco idosos acolhidos, os limites máximos e mínimos da coima devem ser reduzidos a metade, e ponderando que a arguida cessou efectivamente a actividade, embora apenas depois de notificada para esse efeito, e encaminhou os idosos para outro local, identificando a pessoa responsável por cada um deles, justifica-se a aplicação da coima pelo mínimo legal, ou seja, € 10.000,00.
Quanto à coima única a aplicar, que tem como valor máximo a soma das coimas concretamente aplicadas, desde que este não ultrapasse o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso, sendo o valor mínimo correspondente ao da mais elevada das coimas concretamente aplicadas – art. 19.º do R.G.C.O. – pondera-se a aplicação também do valor mínimo de € 10.000,00, atendendo em especial à cessação voluntária da actividade.
Decisão
Destarte, decide-se:
a) não admitir o recurso quanto à contra-ordenação relativa às disposições conjugadas dos arts. 3.º n.º 1 al. a), e 9.º n.º 1 al. a) do DL 156/2005, de 15 de Setembro (não existência de livro de reclamações);
b) no demais, conceder parcial provimento ao recurso, na medida em que se reduz a coima parcelar, devida por uma contra-ordenação muito grave, p.p. pelos arts. 11.º n.º 1, 39.º-B n.º 1 al. a), 39.º-E n.º 1 al. a) e 39.º-G n.º 1, ao valor de € 10.000,00;
c) fixar a coima única no mesmo valor de € 10.000,00.
Taxa de justiça pela arguida, fixada em 3 UC.
Évora, 27 de Fevereiro de 2025 Mário Branco Coelho (relator) Emília Ramos Costa Paula do Paço