Sumário:
1. O tribunal pode divergir, de forma fundamentada, do laudo pericial médico, quando estão em causa elementos factuais que vão além do mesmo, como sejam as concretas condições e exigências em que o trabalho era prestado e as repercussões das sequelas no desempenho dessas tarefas.
2. Não existe qualquer primazia jurídica do parecer médico em relação ao parecer do IEFP, pois é ao tribunal que cabe a tarefa de fixar a natureza e grau de incapacidade do sinistrado, em face de todos os elementos probatórios ao seu dispor e o seu prudente juízo.
3. Se os autos demonstrarem que as limitações sofridas pelo sinistrado o impedem efectivamente de exercer a sua profissão habitual, deverá atribuir-se uma IPATH, mesmo que os peritos médicos não se tenham pronunciado nesse sentido.
4. Tal é o caso de um sinistrado afectado de hérnia lombar com raquialgia residual, que desempenhava as funções de vigilante de transporte de valores, que em virtude dessa sequela não mais logrou retomar as funções profissionais, vindo a ser considerado em situação de invalidez relativa, motivo pelo qual a empregadora lhe comunicou a caducidade do seu contrato de trabalho.
No Juízo do Trabalho de Portimão, foi participado acidente de trabalho sofrido em 18.04.2016 por AA, quando exercia as funções de vigilante de transporte de valores, ao serviço de ESEGUR – Empresa de Segurança, S.A., a qual havia transferido sua responsabilidade infortunística para Seguradoras Unidas, S.A. e Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., em regime de co-seguro, na proporção de 50% para cada uma.
No exame médico singular, foi atribuída uma IPP de 2%, com alta a partir de 17.01.2017 mas, na tentativa de conciliação, o sinistrado não aceitou esse grau de incapacidade, motivo pelo qual requereu a realização de junta médica.
Esta realizou-se, com intervenção de médicos da especialidade de neurocirurgia, atribuindo uma IPP de 6%, desde a data da alta pelas Seguradoras.
Apresentada reclamação pelo sinistrado, foi indeferida e, posteriormente, proferida sentença fixando a IPP em 6%, com alta a 17.01.2017, fixando as prestações devidas ao sinistrado com base nesse pressuposto.
Interposto recurso, por Acórdão desta Relação de 11.05.2023 foi a sentença anulada, determinando-se:
a. a realização de inquérito descritivo da história profissional do sinistrado;
b. a realização de análise do seu posto de trabalho, com caracterização dos riscos profissionais e sua quantificação, se tecnicamente possível;
c. a requisição à empregadora de todas as fichas de aptidão para o trabalho realizadas ao sinistrado após o acidente, bem como informação sobre se retomou as suas funções profissionais ou se, pelo contrário, não foi possível a sua reconversão no seu anterior posto de trabalho;
d. ainda à empregadora, informação sobre o percurso profissional do sinistrado na empresa e, em especial, as modificações na sua categoria profissional ou no seu posto de trabalho ocasionadas pelas lesões sofridas no acidente; e,
e. a posterior realização de junta médica, com intervenção de médicos da especialidade de neurocirurgia, para determinar não apenas as sequelas directamente derivadas do acidente, mas ainda se ocorre:
• lesão ou doença consecutiva ao acidente, agravada por lesão ou doença anterior;
• agravamento de lesão ou doença anterior ao acidente, por via da lesão ou doença consecutiva a este.
Regressando os autos à primeira instância, foi solicitado o inquérito ao IEFP, solicitadas as informações à entidade empregadora, e realizada junta médica com intervenção de médicos da especialidade de neurocirurgia.
Após, foi proferida sentença com o mesmo sentido da anterior – atribuição de uma IPP de 6%, considerando-se que “decorre da condição física do sinistrado que, no contexto das limitações que presenta e lhe conferem uma IPP de 6%, permite o desempenho do núcleo essencial das tarefas associadas à actividade de vigilante, não sendo de reconhecer um quadro de IPATH.”
Inconformado, o sinistrado recorre e conclui:
1. Em consequência do acidente de trabalho sofrido, o ora apelante sofreu um traumatismo lombar (hérnia fiscal lombar em L5/S1 direita);
2. Foi acompanhado pelos Serviços Clínicos da Companhia de Seguros, tendo efectuado vários exames e iniciado tratamentos de fisioterapia;
3. Foi tratado cirurgicamente em 22 de Julho de 2016 apresentando nessa data ciatalgia direita;
4. Após regressar ao trabalho, foi observado na medicina do trabalho, tendo sido considerado inapto para as suas funções, sendo referenciado para o SNS onde permanece em ITA por acidente de trabalho;
5. Desde 18 de Dezembro de 2019, que se encontra em situação de invalidez relativa;
6. Não se tendo conformado com a incapacidade atribuída foi observado em novas juntas médicas, onde foi fixada uma IPP final de 6% recorreu para o Venerando Tribunal da Relação de Évora,
7. Tendo sido concedido provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida e determinado a ocorrência de novas diligências;
8. Foi realizada a análise do posto de trabalho e reunidas todas as informações, sendo que a nova JM aferiu as suas conclusões quanto à verificação ou não de IPATH, com base no pressuposto, erróneo, de que o sinistrado desempenhava as funções de vigilante e não de vigilante de transporte de valores;
9. Resultando de todos os documentos juntos aos autos que o sinistrado não foi reconduzido ao seu posto de trabalho, por não ter capacidade física para desempenhar as mesmas;
10. É modesto entender do ora recorrente que o Mmº Juiz a quo, não valorou devidamente o Parecer realizado pelo IEFP, uma vez que, (e não obstante a falta de juízo cientifico), este especifica de uma forma cabal e concreta as funções inerentes à sua categoria profissional e as limitações do sinistrado no desempenho das mesmas.
11. Para além do recorrente não concordar com o facto de não ter sido fixada IPATH,
12. Não concorda com o facto de não lhe ter sido atribuída bonificação nos termos do disposto na al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro;
13. Resulta do teor dos documentos juntos aos autos e da leitura do Auto de exame por junta médica de neurocirurgia efectuado a 2 de Novembro de 2022 que o ora recorrente foi considerado inapto para as suas funções;
14. Em consequência, foi referenciado para o SNS onde permanece em ITA por acidente de trabalho, sendo que, a partir de 18 de Dezembro de 2019, encontra-se em situação de invalidez relativa;
15. Tem direito a uma pensão por invalidez relativa quem apresenta uma incapacidade definitiva e permanente para a profissão que estiver a exercer ou a última que tiver exercido quando, devido à incapacidade, não pode ganhar na sua actual profissão mais de um terço do ordenado que normalmente ganharia ou que não se prevê que recupere, no prazo de três anos, a capacidade de ganhar mais de 50% do que normalmente ganharia;
16. Sendo certo que, o ora apelante cumpre os requisitos, não tendo capacidade para, desde o acidente sofrido, desempenhar o núcleo essencial da actividade profissional que desempenhava desde 13 de Maio de 2002;
17. Da leitura dos Autos de Exame por Junta Médica de Neurocirurgia realizados, resulta que não foi aplicada ao ora apelante qualquer bonificação, nem tão pouco foi a situação apreciada ou considerada;
18. Resulta do teor da al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro que o coeficiente de incapacidade previsto é bonificado, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo factor 1.5, se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho o que, efectivamente, não veio a acontecer;
19. Uma vez que o ora apelante não retomou o exercício das funções correspondentes ao concreto posto de trabalho que ocupava antes do acidente, e não beneficiou de qualquer bonificação, terá forçosamente a mesma de ser agora aplicada;
20. Certo é que o douto tribunal a quo só pode/deve afastar-se do resultado da junta médica em casos devidamente justificados, que se mostrem fundamentados em opinião científica;
21. Entendendo-se que o caso do ora apelante se encontra aí enquadrado, devendo o uma vez que se encontra devidamente justificada a fixação IPATH e que a mesma não é incompatível com a atribuição da bonificação prevista na al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro;
22. Pelo que, deverá alterar-se a douta sentença proferida, sendo que os cálculos das indemnizações a pagar pelas Rés bem como o montante da pensão anual e vitalícia deverão ser efectuados tendo também como base a bonificação constante na al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro e fixação de IPATH.
A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Nesta Relação, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu parecer no sentido da manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.
Alteração da decisão de facto
Nos termos do art. 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Nos autos foi solicitado ao IEFP parecer técnico relativo a inquérito profissional e estudo do posto de trabalho do sinistrado, nos termos do art. 21.º n.º 4 da LAT e da Instrução Geral n.º 13, als. a) e b), da TNI.
O parecer apresentado pelo IEFP procedeu à análise do posto de trabalho do sinistrado, enumerou as funções por ele desempenhadas como vigilante de transporte de valores, mencionou as exigências desse posto e descreveu os respectivos riscos profissionais.
Tal parecer tem valor de prova pericial1 – foi elaborado por perito especializado que, conforme consta do próprio parecer, estudou o posto de trabalho do sinistrado, não apenas como base na necessária entrevista que lhe fez, mas também com fundamento na análise da informação clínica que acompanha o processo e na consulta de informação técnica sobre a actividade profissional em causa – e está sujeito à livre apreciação do julgador (art. 389.º do Código Civil).
Por outro lado, também deve ser considerada a informação prestada pela entidade empregadora, relativa aos exames de medicina de trabalho realizados pelo sinistrado após o acidente, que o consideraram inapto temporariamente, não tendo retomado funções até que o seu contrato de trabalho cessou por caducidade, por passagem à situação de pensionista por invalidez.
Ademais, no elenco fáctico também deve ser incluído o parecer da comissão de verificação de incapacidades do Instituto da Segurança Social, que considerou o sinistrado em situação de invalidez relativa a partir de 18.12.2019.
Tais factos são essenciais para o apuramento da incapacidade do sinistrado para desempenhar as tarefas inerentes ao seu posto de trabalho, pelo que se decide aditar ao elenco fáctico quer a descrição do conteúdo funcional, das exigências e dos riscos profissionais do posto de trabalho, efectuada no parecer do IEFP, quer a informação prestada pela entidade empregadora e o parecer da comissão de verificação de incapacidades do ISS.
Mais se decide retirar do elenco fáctico a afirmação do sinistrado estar afectado de uma IPP de 6% – trata-se de matéria conclusiva, respeitante à determinação da sua incapacidade, questão jurídica essencial a determinar no recurso.
A matéria de facto fixa-se assim nos seguintes termos:
1. AA nasceu no dia ........1977.
2. No dia 18.04.2016, em ..., quando exercia as funções de inerentes à sua profissão, ao serviço de “ESEGUR – Empresa de Segurança, S.A.”, foi vítima de um acidente de trabalho, em consequência do qual sofreu traumatismo Lombar (hérnia discal lombar em L5/S1).
3. Actualmente apresenta raquialgia residual lombar.
4. Desse acidente resultou para o sinistrado:
a) uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 19.04.2016 a 30.12.2016 (256 dias);
b) uma Incapacidade Temporária Parcial (ITP) de 5% de 31.12.2016 a 17.01.2017 (18 dias);
c) cura clínica a partir de 17.01.2017.
5. Na data do acidente o sinistrado auferia da empresa “ESEGUR – Empresa de Segurança, S.A.” a retribuição anual de € 18.434,02 [(€ 962,33 x 14) + (€ 135,08 x 11) + (€ 3.475,52)].
6. Nessa data, a entidade patronal do autor tinha a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para as rés “Seguradoras Unidas, S.A.” e “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”, em regime de co-seguro, na proporção de 50% para cada uma delas.
7. O sinistrado já foi ressarcido da indemnização legal relativa aos períodos de incapacidade temporária devida pelas entidades seguradoras, pelo montante de € 8.885,20.
8. O conteúdo funcional da actividade desempenhada pelo sinistrado é o seguinte:
Assegura o manuseamento, transporte e segurança de valores (notas, moedas, entre outros) e conduz veículo pesado, blindado, de transporte de valores, de acordo com procedimentos e protocolos de trabalho definidos pelo empregador, executando as seguintes tarefas e operações:
1. Consulta diariamente o “diário de bordo” para se inteirar das localidades e clientes da empresa a que tem de prestar serviço e das tarefas a realizar;
2. Efectua o carregamento do veículo blindado com os valores a entregar no dia, conjuntamente com o colega;
2.1. Empurra o(s) “gradão(ões)” (contentor de metal, com rodas, com cerca de um metro de largura, por um metro de comprimento e um metro de altura) com os sacos com valores, da caixa-forte do estabelecimento da empresa para junto da carrinha de transporte dos mesmos;
2.2. Procede à arrumação dos sacos com valores no cofre do compartimento de transporte da carrinha e confere-os, utilizando dispositivo de leitura óptica;
3. Conduz o veículo pesado de transporte de valores nos itinerários previstos (Algarve e Baixo Alentejo, bem como de dois em dois meses Algarve-Lisboa), alternadamente com o colega, respeitando as regras de segurança, horários, zelando pela viatura e salvaguarda da segurança dos valores:
3.1. Controla a velocidade e direcção do veículo, procedendo às manobras necessárias, por meio da utilização coordenada dos comandos e instrumentos adequados (volante, alavanca da caixa de velocidades, pedais, etc.) atendendo ao estado da via e do veículo, à circulação de outros veículos e peões, e às regras e sinais de trânsito;
3.2. Efectua manobras de parqueamento, por vezes em locais de espaço limitado, para proceder ao descarregamento e carregamento de valores relativos a cada entidade cliente (agências bancárias, hipermercados, supermercados, hotéis e espaços com ATM,) recorrendo com persistência ao manuseamento do volante, utilização dos pedais e caixa de velocidades e visualização dos espelhos retrovisores.
4. Procede à entrega e à recolha de valores (ou de excedentes no caso das máquinas ATM) aos diferentes clientes, em dias alternados com o colega:
4.1. Coloca um saco com notas na mala de segurança, tantas vezes quantos os sacos com notas a entregar aos clientes no dia;
4.2. Solicita ao colega, condutor, abertura de porta sempre que sai ou entra do veículo no decurso dos actos de entrega e recolha de valores;
4.3. Transporta a mala de segurança com valores em nota e os sacos com moeda do veículo blindado para as instalações de cada cliente, carregando-os manualmente;
4.4. Recebe nas instalações do cliente os sacos de moedas e os sacos com notas, coloca os valores em nota na mala de segurança, e transporta os sacos com moedas e a mala de segurança para o veículo de transporte de valores;
4.5. Retira os cacifos das notas das máquinas ATM, procedendo à abertura das máquinas, mediante introdução de código e accionamento de manivela de abertura, e puxando para o seu exterior o dispensador que contém os cacifos;
4.6. Transporta os cacifos vazios dos espaços com ATM para o veículo, onde procede ao seu carregamento com notas, transportando-os posteriormente para a máquina;
5. Realiza vários percursos a pé, do veículo de transportes de valores para as instalações do cliente/espaço com ATM, e vice-versa (em média, cerca de 150 por período diário de trabalho);
6. Abre e fecha (desarma e arma) a mala de segurança de transporte de notas no interior do veículo e no cliente, as vezes que forem necessárias;
7. Confere os sacos entregues e recebidos, com dispositivo de leitura óptica;
8. Imprime, a partir de impressora móvel que transporta presa a si, talão com valores entregues em cada cliente e assina;
9. Coloca os sacos com notas recolhidas nas prateleiras e os sacos com moedas no piso do cofre do veículo blindado, procurando distribuir o peso e manter separados os valores recolhidos daqueles a entregar;
10. Verifica as condições de segurança do meio envolvente da viatura, através de câmaras, das janelas da cabine de condução e dos retrovisores, autorizando a saída do colega que transporta os valores e procedendo à abertura e encerramento da porta de acesso ao cofre, através de comandos posicionados no tablier, quando se encontra a conduzir, ou efectuando o reconhecimento do local, mediante circuito a pé pela parte traseira da viatura, quando procede à entrega e recolha de valores.
9. As exigências do posto de trabalho do sinistrado são as seguintes:
• Relativamente às condições de execução do trabalho, as tarefas são executadas, tanto em espaço fechado climatizado (interior da viatura - na cabine de condução quando conduz o veículo, no compartimento de transporte de valores quando procede à sua entrega e recolha). As operações inerentes ao transporte de valores entre o veículo e as instalações do cliente são, por vezes, realizadas ao ar-livre, estando nesta situação o trabalhador sujeito às diversas condições atmosféricas (frio, calor, vento, chuva), bem como a mudanças de temperatura. No exercício do posto de trabalho está, ainda, sujeito a vibrações de corpo inteiro, bem como a permanecer longos períodos de tempo em espaço confinado (interior do compartimento de transporte de valores).
• Quanto às exigências físicas, relativamente à postura de trabalho, o trabalhador adopta durante longos períodos de tempo a posição de sedestação, no interior da cabine de condução ou no interior do compartimento de transporte de valores. Adopta ainda a posição ortostática, por vezes inclinado, bem como agachado, ao conferir os valores a entregar, e de joelhos, ao proceder à abertura e carregamento de valores em máquinas ATM. No desenvolvimento da actividade o trabalhador está sujeito a persistentes flexões e torsões do pescoço, flexões e torsões do tronco, nomeadamente ao colocar e remover sacos com moedas e mala de transporte de notas no interior do compartimento de transporte do veículo, proceder à arrumação dos sacos de valores e conferi-los, remover e colocar cacifos nos ATM, assim como a trabalhar com os braços estendidos em frente (manusear o volante e o manípulo da caixa de velocidades, efectuar manobras de condução, designadamente parqueamentos em marcha atrás, e arrumar os sacos de notas nas prateleiras do cofre).
• Em termos de locomoção a função exige deslocações rápidas em terreno geralmente plano, transportando com muita frequência cargas (sacos de moedas, mala com notas, cacifos com notas), bem como subir e descer escadas nas instalações dos clientes e, persistentemente, subir/descer ao compartimento de transporte de valores do veículo a cerca de 40cm de altura do solo.
• No que diz respeito ao tipo e intensidade do esforço, o desempenho da actividade exige que o trabalhador possa manusear, levantar, baixar e transportar, subindo e descendo do compartimento de transporte de valores, pesos na ordem dos 16Kg e dos 20K, respectivamente mala de segurança com notas e sacos de moeda, assim como empurrar pesos na ordem dos 200Kg (gradão). Requer, ainda, que o trabalhador possua força dinâmica ao nível dos membros superiores, inferiores e do tronco, nomeadamente na manipulação e transporte frequente de sacos de moedas e da mala de segurança com valores nota, na persistente manipulação do volante, no accionar dos pedais, na manipulação do manípulo da caixa de velocidades, bem como na frequente subida e descida do compartimento de transporte de valores da viatura.
• Quanto às exigências sensoriais é necessário para o desempenho das tarefas de condução acuidade visual ao longe, campo visual, visão estereoscópica, bem como visão crepuscular e resistência ao deslumbramento, atendendo a que o trabalhador conduz em períodos nocturnos e de mudança de luminosidade (Inverno e quando faz o horário 17h-02h/03h).
• Em relação a exigências psicomotoras é necessária agilidade física e coordenação motora no desenvolvimento das tarefas, especificamente a coordenação motora mão-mão, pé-pé, ombro-braço-mão, mão-dedos, coxa-perna-pé e óculo-manual-pedal (tarefas e gestos de condução, subir e descer do veículo pesado).
• Ao nível das exigências perceptivo-cognitivas o trabalhador necessita deter capacidade de estimação de movimento, rapidez de integração perceptiva e atenção distribuída acima da média, para a execução das tarefas de condução do veículo, sendo estas duas últimas também importantes para proceder às operações inerentes à entrega e recolha de valores.
• Em termos personalísticos são exigidas ao trabalhador suficiente estabilidade emocional e resistência a situações de tensão psíquica e esforço cognitivo contínuos, que lhe permitam conduzir um veículo pesado em condições de segurança, assim como realizar sem falhas a conferência dos valores entregues e recolhidos, exposto ao risco de assalto e de agressão física.
10. Os riscos profissionais a que está mais exposto são a manipulação manual de cargas, inerente à arrumação de sacos com valores e, sobretudo, ao transporte manual de sacos com moedas e de mala de segurança com notas, vibrações mecânicas de corpo inteiro, decorrentes da deslocação do veículo sobre o piso das estradas, agressões e violência física, associados a potenciais assaltos e furtos, bem como tensão psíquica, inerente à manutenção de um estado de permanente atenção e ao risco de agressão física com perigo de vida.
11. Após o acidente, o sinistrado não retomou as tarefas profissionais, tendo sido declarado inapto temporariamente em exames de medicina do trabalho realizados em 24.05.2016 e em 10.01.2017;
12. Manteve-se em situação de baixa médica e foi-lhe atribuído pelo SNS um atestado médico de incapacidade multiusos, reconhecendo uma IPP de 69%;
13. A comissão de verificação de incapacidades do Instituto da Segurança Social veio a declarar que o sinistrado se encontrava “em situação de incapacidade permanente que o impede de auferir, na sua profissão, mais de um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal, presumindo-se que o mesmo não recupere a capacidade de auferir, no desempenho da sua profissão, mais de 50% da retribuição correspondente, dentro dos próximos 3 anos. Por esse motivo, foi considerada a situação de invalidez relativa a partir de 2019/12/18”;
14. A partir dessa data passou a auferir pensão de invalidez relativa e a entidade empregadora, ao tomar conhecimento deste facto, comunicou a caducidade do contrato de trabalho.
APLICANDO O DIREITO
Da fixação da incapacidade
De acordo com o art. 138.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, a parte que não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, requer perícia por junta médica, a qual se realiza nas condições previstas no art. 139.º do mesmo diploma.
A prova assim apreciada pelo juiz é essencialmente pericial, tanto mais que estão em apreciação factos para os quais são necessários conhecimentos especiais, nomeadamente de carácter médico, que os julgadores não possuem. Porém, “apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente critério dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio de que aos juízes não é inacessível controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu lado e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos.”2
No âmbito do procedimento para fixação da incapacidade emergente de acidente de trabalho, o juiz não apenas preside à perícia por junta médica, como pode solicitar aos peritos os esclarecimentos que entender por convenientes, formular quesitos e determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, se o considerar necessário – art. 139.º n.ºs 1, 6 e 7 do Código de Processo do Trabalho. E pode fazê-lo por sua própria iniciativa, independentemente do impulso processual das partes, pois está em causa um poder discricionário do juiz.3
No caso em apreciação, os peritos médicos declararam que o sinistrado estava apenas afectado de uma incapacidade parcial permanente de 6%, recusando a atribuição de IPATH.
O Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que os casos de IPATH são situações típicas de não reconvertibilidade do sinistrado em relação ao seu anterior posto de trabalho.4 Se o trabalhador retoma o essencial das suas funções, embora com limitações decorrentes das lesões sofridas no acidente, não se pode concluir que se mostra em situação de IPATH; se, pelo contrário, não consegue desempenhar o essencial das tarefas inerentes ao seu posto de trabalho, então já se poderá concluir que se encontra afectado de IPATH.5
Os factos apurados demonstram que o sinistrado exercia as funções de vigilante de transporte de valores, em tarefas que exigem a manipulação manual de cargas, inerente à arrumação de sacos com valores e, sobretudo, ao transporte manual de sacos com moedas e de mala de segurança com notas, vibrações mecânicas de corpo inteiro, decorrentes da deslocação do veículo sobre o piso das estradas, agressões e violência física, associados a potenciais assaltos e furtos, bem como tensão psíquica, inerente à manutenção de um estado de permanente atenção e ao risco de agressão física com perigo de vida.
O parecer do IEFP descreve as exigências do posto de trabalho, acima reproduzidas no ponto 9 do elenco fáctico, e certo é que o sinistrado não mais retomou as funções profissionais, vindo a ser declarado em situação de invalidez relativa a partir de 18.12.2019, motivo pelo qual a sua entidade empregadora lhe comunicou a caducidade do contrato de trabalho.
Os peritos médicos concordaram que o sinistrado sofreu hérnia discal em L5/S1, padecendo de raquialgia residual lombar, que enquadraram na seguinte rúbrica da TNI:
• Capítulo I – 1.1.1.b) – Coluna vertebral – Entorses, fracturas e luxações – Traumatismos raquidianos sem fractura, ou com fracturas consolidadas sem deformação ou com deformação insignificante – Apenas com raquialgia residual: 0,02 a 0,10, tendo arbitrado um coeficiente de 0,06, sem qualquer bonificação.
Ora, é preciso atender às concretas tarefas desempenhadas pelo sinistrado, de vigilante de transporte de valores, em tarefas que exigem a manipulação e transporte manual de cargas, vibrações mecânicas de corpo inteiro, risco de agressões e violência física, e tensão psíquica.
Trata-se de tarefas que requerem esforço, mobilidade e destreza, com pleno uso dos membros e da coluna, e certo é que o sinistrado nunca mais pode retomar as funções profissionais – foi declarado inapto temporariamente em dois exames de medicina do trabalho, passou à situação de baixa médica e veio a ser declarado em situação de invalidez relativa a partir de 18.12.2019, com subsequente perda do seu posto de trabalho, por caducidade comunicada pela empregadora.
Destes elementos, devemos concluir que o sinistrado não voltou a desempenhar as funções que exercia à data do acidente, e não foi sequer reconvertido no seu posto de trabalho.
Nesta Relação de Évora6 já se decidiu que o tribunal pode divergir, de forma fundamentada, do laudo pericial médico, em especial quando estão em causa elementos factuais que vão além do mesmo, como sejam as concretas condições e exigências em que o trabalho era prestado e as repercussões das sequelas no desempenho dessas tarefas. Deste modo, se os autos demonstrarem que as limitações sofridas pelo sinistrado o impedem efectivamente de exercer a sua profissão habitual, deverá atribuir-se uma IPATH, mesmo que os peritos médicos não se tenham pronunciado nesse sentido.
Acresce que não existe qualquer primazia jurídica do parecer médico em relação ao parecer do IEFP, pois é ao tribunal que cabe a tarefa de fixar a natureza e grau de incapacidade do sinistrado, em face de todos os elementos probatórios ao seu dispor e o seu prudente juízo.7
Por último, temos a apontar que a lesão detectada na coluna, hérnia discal em L5/S1, e a sequela subsequente, revelou-se objectivamente impeditiva do exercício pelo sinistrado da sua profissão.
E certo é que a actividade profissional desempenhada pelo sinistrado exige intensa mobilização da coluna, dada a necessidade de manipulação e transporte manual de cargas, e a sujeição constante a vibrações mecânicas de corpo inteiro.
Nestas condições, não conseguindo o sinistrado desempenhar o essencial das tarefas inerentes ao seu posto de trabalho, temos a concluir que se encontra afectado de IPATH, e que à sua incapacidade deve ser adicionado o factor de bonificação de 1,5 por não ser reconvertível em relação ao seu posto de trabalho – Instrução Geral 5, al. a), da TNI, elevando assim o coeficiente de incapacidade a 9%.
A pensão anual e vitalícia a que o sinistrado tem assim direito, face ao disposto no art. 48.º n.º 3 al. b) da LAT, obtém-se de acordo com a seguinte fórmula: € 18.434,02 x (0,09 x 0,20 + 0,50) = € 9.548,82.
Esta pensão, devida desde o dia 18.01.2017, está sujeita a actualizações anuais, que as Seguradoras aplicarão de forma automática e imediata, nos termos prescritos no art. 8.º n.º 1 do DL 142/99, de 30 de Abril.
Quanto ao subsídio por situação de elevada incapacidade permanente a que se refere o art. 67.º n.º 3 da LAT, ascende a: € 421,32 x 1,1 x 12 x (0,09 x 0,30 + 0,70) = € 4.043,15.
DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, decidindo-se:
a. condenar as Rés Seguradoras, na proporção de 50% para cada uma, a pagar ao sinistrado, com efeitos a partir de 18.01.2017, a pensão anual e vitalícia de € 9.548,82, a qual actualizarão anualmente, de forma automática e imediata, acrescendo juros de mora em relação às prestações já vencidas e até integral pagamento;
b. condenar as mesmas Rés a pagar, na mesma proporção, por uma única vez, um subsídio de elevada incapacidade permanente no valor de € 4.043,15, acrescendo juros de mora desde a mesma data e até integral pagamento.
Valor da causa: (€ 9.548,82 x 15,55) + € 4.043,15 = € 152.527,30.
Custas pelas Seguradoras.
Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
1. Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 27.05.2022 (Proc. 1142/12.5TTLRA.1.C1), publicado em www.dgsi.pt.↩︎
2. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 583.↩︎
3. Neste sentido, vide o Acórdão de Relação de Lisboa de 13.07.2016 (Proc. 1491/14.8T2SNT.L1-4), e da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Proc. 12/14.7TTBCL-C.G1), ambos em www.dgsi.pt.↩︎
4. Em especial, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2014, de 28.05.2014 (publicado no DR, I Série, de 30.06.2014), chamando-se a atenção para a jurisprudência citada na respectiva nota 12.↩︎
5. Cfr., a propósito, o Acórdão da Relação de Lisboa de 07.03.2018 (Proc. 1445/14.4T8FAR.L1-4), publicado em www.dgsi.pt.↩︎
6. Neste sentido, vide os Acórdãos desta Relação de Évora de 14.06.2018 (Proc. 1676/15.0T8BJA.E1), de 07.04.2022 (Proc. 1025/17.2T8PTM.E1) e de 16.03.2023 (Proc. 47/18.0T8TMR.E1), também publicados na página da DGSI.↩︎
7. Neste sentido, o Acórdão desta Relação de Évora de 17.06.2021 (Proc. 249/15.1T8PTM-A.E1), publicado na mesma página da DGSI.↩︎