IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
PRESUNÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

Sumário elaborado pela relatora:
I. Incumpre o ónus primário de impugnação previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a recorrente que não indica nas conclusões do recurso quais os pontos de facto que especificamente impugna.
II. Havendo uma total omissão de indicação dos segmentos das gravações dos depoimentos testemunhais em que se funda a impugnação e da decisão alternativa que é proposta para os pontos impugnados, considera-se inobservado o disposto na alínea c) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC.
III. Compete àquele que invoca a existência de um contrato de trabalho, alegar e demonstrar a sua verificação ou, pelo menos, demonstrar a base da presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho para que, neste último caso, possa beneficiar da presunção de laboralidade consagrada neste artigo.
IV. Apurando-se que as partes processuais eram marido e mulher e atuavam em conjunto, e em igualdade de posições, na exploração de um lar de idosos que mantinham na casa de morada de família, sem que a Autora estivesse sujeita ao poder de direção, orientação e fiscalização do réu, não se pode concluir pela existência de uma relação laboral.
V. Revelando a materialidade apurada que a Autora veio alegar factos inverídicos e deduzir pretensão absolutamente infundada, o que não poderia deixar de ignorar, uma vez que estavam em caus factos pessoais, nenhuma censura merece a sua condenação como litigante de má-fé.

Texto Integral

P.1505/23.0T8TMR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1


I. Relatório


Na presente ação declarativa, com processo comum, que AA intentou contra BB, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 133.925,00, acrescida de juros à taxa legal de 4% até integral pagamento e a efetuar os devidos descontos para a Segurança Social, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o réu do pedido. Mais foi a autora condenada como litigante de má-fé em 5 UC de multa e 15 UC de indemnização a favor do réu.


A pretensão deduzida pela autora fundava-se na alegada celebração de um contrato de trabalho, com a duração de 12 anos e 1 mês, sem que réu (empregador) lhe tenha pago as quantias devidas como contrapartida pelo trabalho prestado, nem feito os devidos descontos para a Segurança Social.


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A autora interpôs recurso da sentença, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:


«1.º Existe um contrato de trabalho entre Autora e Réu.


2.º A Autora agiu com boa fé.


3.º O Réu deve ser condenado no pedido.


4.º A Autora deve ser absolvida da condenação como litigante de má –fé;


5.º A Autora deve ser absolvida da condenação no pagamento de multa e indemnização ao réu.


6.º A Autora não praticou o crime de falsas declarações.


7.º As testemunhas CC e DD não praticaram o crime de falsidade de depoimento.


Pelo exposto, e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser concedido provimento ao recurso, condenando-se o apelado na totalidade do pedido, com o que se fará Justiça!»


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O réu contra-alegou, mas, por falta de pagamento da tributação legal, não foram admitidas as contra-alegações e foi ordenado o seu desentranhamento.


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A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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O processo subiu à Relação e o Ministério Público emitiu parecer, a pugnar pela parcial procedência do recurso no que se refere à condenação da Apelante como litigante de má-fé.


O Apelado veio responder.


Foram colhidos os vistos legais.


Cumpre apreciar e decidir.


*


II. Objeto do recurso


É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).


Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:


1. Impugnação da decisão da matéria de facto.


2. Existência de contrato de trabalho.


3. Falta de fundamento para a condenação por litigância de má-fé.


*


III. Matéria de Facto


A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:


1.- Autora e Réu contraíam, entre si, casamento, no dia .../.../2011.


2.- No dia .../.../2022, foi declarado o divórcio entre ambos, por mútuo consentimento.


3.- O Réu era empresário em nome individual.


4.- O Réu e a Autora, em casa propriedade do primeiro, correspondente também à casa de morada da família de ambos, desde data não concretamente apurada, colaboraram entre si, na exploração de um estabelecimento de apoio a idosos, com ocupação efetiva de idosos em regime de internamento, em número variável, por vezes de cerca 8 a 12 pessoas, assumindo iguais posições de autoridade e chefia na execução das tarefas necessárias ao exercício dessa atividade, inclusive dando ordens, instruções e fiscalizando o trabalho das empregadas contratadas por ambos.


5.- No exercício dessa atividade, a Autora e o Réu, por si, ou através de pessoas que contratavam para o efeito:


a) Tomavam conta dos idosos durante 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados;


b) Pernoitavam no primeiro andar, residindo os idosos no rés-do-chão da casa;


c) nos quartos dos idosos e da Autora e do Réu existiam campainhas, para que, em caso de necessidade, os primeiros os chamassem durante a noite;


d) Davam banho aos idosos; mudavam as fraldas; Faziam a higiene dos idosos e curativos;


e) Vestiam-nos e calçavam-nos.


f) Preparavam-lhes as refeições;


g) Lavavam e passavam a roupa a ferro;


h) Limpavam e arrumavam a casa, quer o rés do chão, quer o primeiro andar;


i) Tratavam dos animais domésticos;


j) Tratavam dos 2 cães que viviam no quintal;


l) Limpavam todos os cómodos da casa;


m) Limpavam todos os terraços exteriores e pátios;


n) Acompanhavam os idosos ao Hospital, Centro de Saúde e Farmácia;


o) Faziam a ronda da noite e davam assistência aos idosos durante a noite;


p) Lavavam a roupa da “...”.


6.- Em data não concretamente apurada, a Autora e o Réu abriram um restaurante.


7.- A Autora passou a descontar para a Segurança Social, a partir de junho de 2019, como trabalhadora independente.


8.- No estabelecimento de apoio aos idosos, trabalharam cerca de 2 a 3 pessoas, para auxílio dos cerca de 8 a 12 idosos, às quais foi pago salário.


9.- A Autora enviava mensalmente à mãe € 150,00 para o Brasil.


10.- A Autora visitava a família no Brasil, uma vez por ano, em julho ou agosto.


11.- Era a Autora e o Réu que prestavam assistência aos idosos durante a noite, se algum tocasse a campainha.


12.- O horário de algumas funcionárias do lar era das 08h às 17 horas.


13.- O Réu nunca proporcionou à Autora formação profissional e a Autora nunca auferiu do Réu vencimento mensal durante cerca de 12 anos e um mês.


14.- A Autora e o Réu beneficiaram da atividade de apoio a idosos e com a mesma sustentaram o respetivo agregado familiar.


15.- Pertencem à Autora e Réu a Pizzaria denominada “...”, sita na localidade de ..., freguesia de ... e concelho de ....


16.- A Autora explora a referida pizzaria.


17.- A Autora e o Réu têm uma licença de táxis sediada em ....


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E julgou não provados os seguintes factos:


a.- A Autora trabalhou por conta do Réu, sob a sua direção e fiscalização desde 01/12/2009 até 31/12/2022.


b.- Mediante a celebração de contrato de trabalho verbal.


c.- Ultimamente a Autora tinha a categoria profissional de Auxiliar de Serviços Gerais.


d.- A Autora nunca teve folgas.


e.- A Autora estava isenta de horário de trabalho e estava sempre ao serviço 24 sobre 24 horas.


f.- Por serem casados entre si, o Réu entendia que a Autora não deveria receber salário nem estar inscrita na segurança social.


g.- Apenas o Autor possuía e explorava o estabelecimento de apoio a idosos.


h.- Os animais referidos em 5), al. i) eram 20 galinhas, 5 perus, 1 porco e três ovelhas.


i.- A Autora executou as tarefas referidas em 5), em cumprimento das ordens e indicações dadas pelo Réu.


j.- O restaurante referido em 6) foi aberto em nome da Autora e explorado pelo Réu.


k.- Foi o Autor que iniciou os descontos para a Segurança Social a favor da Autora em dezembro de 2019.


l.- A Autora reclamava que tinha direito a um ordenado, como as outras funcionárias, ao que o Réu respondia: “ tens comida no prato e não te falta nada”.


m.- As férias referidas em 10) eram de cerca de 1 mês.


n.- Era o Réu que pagava à Autora as passagens de ida e volta para visitar a família no ....


o.- A última vez que a Autora visitou os pais no Brasil foi em 2018.


p.- Nos anos de 2019 a 2022 a Autora não gozou férias.


q.- A Autora começava a trabalhar pelas 08h, não tinha pausa para o almoço, almoçava conjuntamente com os idosos, prestando-lhes assistência enquanto comia e só terminava as suas funções quando os idosos iam dormir pelas 21h.


r.- A Autora mal saia de casa, a não ser para adquirir alimentos ou ir à farmácia.


s.- Trabalhava e vivia sob o controlo apertado do Réu.


t.- A Autora não tinha dinheiro para comprar roupa, calçado ou ir ao cabeleireiro.


u.- Após o divórcio, o Réu começou a proferir as seguintes expressões: “ Ainda cá estás? Não te vais embora? A casa é minha. Andas a chular e a comer o que é meu”.


v.- O Réu proferia ainda as seguintes expressões:” não fazes nada… não fazes cá falta nenhuma… só estorvas... já é tarde… já devias ter ido embora”.


w.- Ao agir como descrito despediu a Autora.


x.- Com o comportamento do Réu, a Autora sentiu-se “banida”, fragilizada, triste, desgostosa, ansiosa, nervosa, cética e vendo a sua vida profissional e pessoal muito conturbada, visto trabalhar durante mais de doze anos para a mesma entidade patronal, seu Marido, à data dos factos, e quando nada fazia crer, ver-se desempregada, e sem receber remunerações, com dois filhos a seu cargo, ambos estudantes, sendo uma menor.


y.- A Autora vive sozinha com os filhos do Réu, em casa arrendada.


z.- O que causou uma grave depressão nervosa na autora, que se viu obrigada a recorrer à ajuda de medicação, sendo medicada com anti -depressivos e calmantes.


aa.- A Autora sente -se triste, acabrunhada, cética em relação ao futuro, desgostosa com a vida, pois trabalhou parte da sua vida para uma empresa, na qual investiu todas as suas forças e dedicação, vendo todas as suas expectativas defraudadas e sentindo-se “abandonada” pelo Réu, que quando nada fazia crer, a despediu.


bb.- a Autora, por decisão conjunta do casal, cuidou da filha de ambos até perfazer a idade de frequentar o infantário.


cc.- A Autora e o Réu, também por decisão conjunta, adotaram um sobrinho da Autora, de nacionalidade brasileira.


dd.- A Autora dedicava-se a organizar a vida familiar e a cuidar das crianças, complementado o seu dia a dia a cuidar do seu aspeto físico.


ee.- A Autora não tinha necessidade de cozinhar ou até de passar a ferro.


ff.- Era a Autora que administrava as contas bancárias do casal e que utilizava os cartões multibanco conforme melhor entendia, sem necessidade de prestar quaisquer contas.


gg.- A Autora comprou sempre o que bem entendeu, sem dar qualquer satisfação ao Réu.


hh.- O Réu nunca proibiu/ impediu/ maltratou, a Autora de fazer manicure as vezes que entendesse por conveniente, de ir ao cabeleireiro quando assim o entendesse, de comprar roupa, sapatos, malas que gostasse e até colocou uma dentição no valor de € 10.000,00, sem que tal fosse impedida.


ii.– A Autora permanecia no Brasil pelo período que entendia, chegando a ficar meses nesse país.


jj. – O Réu desconhece o preço das viagens, nunca tendo perguntado por contas à Autora.


kk.- Foi a Autora que no dia 17 de novembro de 2019, abriu uma Pizzaria denominada “...”.


ll.- Foi a Autora que em agosto de 2021 deu início à atividade de táxi.


mm.- A Autora despendeu de dias para tirar a carta de condução de transportes públicos.


nn.- A Autora explora duas atividades comerciais.


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IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto


Nas alegações do recurso, a Apelante parece não se conformar com a decisão proferida sobre a matéria de facto respeitante aos pontos 4 a 6, 8, 11, 12 e 14, insurgindo-se com a circunstância do tribunal a quo ter valorado os depoimentos das testemunhas EE e FF e ter desprezado os depoimentos das testemunhas DD e CC, bem como as declarações prestadas pela Apelante.


Vejamos.


É consabido que a impugnação da decisão da matéria de facto constitui uma prerrogativa do recorrente.


Todavia, o legislador civil (e o legislador laboral, por subsidiariedade de aplicação do regime), sujeitou-a a determinadas condições.


O artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, prescreve o seguinte:


1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b. Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.


3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.


Sobre as exigências/condições impostas por esta norma, refere António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129: «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.».


Quanto à consequência prevista para o desrespeito do ónus de impugnação, resulta do citado artigo que é a rejeição do recurso.


Ora, no caso que nos ocupa, nas conclusões do recurso a Apelante não faz qualquer menção sobre a impugnação da decisão de facto.


E em sede de alegações, apesar de indicar os pontos fácticos que coloca em crise e identificar meios probatórios, não indica os registos da gravação dos depoimentos das testemunhas que apoiam a sua apreciação da prova e não indica especificamente qual a decisão alternativa que propõe.


Deste modo, incumpriu nas conclusões o ónus primário contemplado no n.º 1, alínea a), do artigo 640.º - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-2016 (Proc. n.º 324/10.9TTALM.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt.


E no corpo das alegações não observou o disposto nos n.ºs 1, alínea c), e 2, alínea a), do artigo 640.º.


O que a Apelante fez foi uma genérica afirmação de discordância com a valoração da prova feita pelo tribunal a quo.


Por conseguinte, rejeita-se a impugnação por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil.


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Uma palavra final:


A Apelante, nas conclusões do recurso, refere que não praticou o crime de falsas declarações e que as testemunhas CC e DD não praticaram o crime de falsidade de depoimento.


Este remate surge na sequência da interpretação e valoração da prova que fez em sede de impugnação da decisão de facto.


Sempre se dirá, contudo, que não competiria a este tribunal de competência especializada apreciar a prática (ou não) de qualquer crime.


*


V. Sobre a alegada existência de um contrato de trabalho


A Apelante insiste que celebrou um contrato de trabalho com o Apelado, que teve a duração de 12 anos e 1 mês, e que o tribunal a quo errou ao concluir pela inexistência da relação laboral.


A argumentação que apresenta para sustentar a sua posição baseia-se nos factos que alegou na petição inicial.


Sucede que, de harmonia com o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não lhe bastava alegar, tinha, ainda, que demonstrar a verificação dos factos alegados.


E nesse desiderato não foi bem sucedida.


O tribunal a quo quando concluiu que não resultou demonstrada a celebração do contrato de trabalho, fê-lo, como não podia deixar de ser, com arrimo nos factos provados e não nos factos alegados na petição inicial.


E por se concordar inteiramente com a fundamentação de direito apresentada pela 1.ª instância, para evitar tautologias, limitamo-nos a transcrever o que se redigiu na sentença recorrida (sem as notas de rodapé):


«Assim e em primeiro lugar importa aquilatar se dos factos provados se pode afirmar que entre a Autora e o Réu foi celebrado um contrato que deva qualificar-se de trabalho.


Invoca a Autora que foi contratada verbalmente pelo Réu, tendo trabalhado sob as suas ordens, direção e fiscalização de 01/12/2009 a 31/12/2022.


O artigo 11.º do CT, define o contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.


No artigo 1152.º do CC também encontramos a definição de contrato de trabalho como sendo aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta.


Num contrato de trabalho a prestação da atividade laboral, traduz-se numa prestação de facto positiva, cuja tarefas são definidas e determinadas previamente pelo empregador, sendo pago ao trabalhador uma retribuição.


O elemento essencial do contrato de trabalho é a subordinação jurídica, por ser típico e específico do contrato de trabalho.


A subordinação jurídica traduz-se na posição de domínio do empregador sobre o trabalhador sobre quem tem poderes de direção e de disciplina, havendo dependência do trabalhador e inserção na estrutura organizacional do empregador.


O elemento da subordinação jurídica revela um relacionamento desigual entre o empregador e o trabalhador estando este vinculado ao dever de aceitar as ordens e instruções daquele e sujeito ao poder disciplinar deste.


A subordinação é jurídica e não económica, podendo o trabalhador não depender economicamente do salário, sendo apenas decisivo que esteja sujeito aos poderes laborais do empregador. Pode também o empregador não ter necessidade de exercer o seu poder de direção e instrução sobre o trabalhador, bastando essa possibilidade, bem como esta existirá de forma mais ou menos intensa consoante as aptidões e especialização dos trabalhadores em detrimento dos trabalhadores indiferenciados, bem como a subordinação, sendo jurídica e não técnica, permite o respeito pela autonomia técnica em função do tipo de atividade exercida.


No entanto, não sendo fácil determinar a existência de subordinação jurídica, há determinados indícios apontados pela doutrina e jurisprudência que nos auxiliam nessa tarefa.


Assim, são indícios de subordinação jurídica mais frequentes, a titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho pelo credor, o desenvolvimento da atividade em local daquele ou por ele indicado, o cumprimento de um horário de trabalho, o cálculo da remuneração em função do tempo, a inexistência de assunção do risco da não produção do resultado pelo trabalhador, o facto de o credor ter outros trabalhadores ao seu serviço, a dependência do trabalhador dos rendimentos do trabalho ou trabalhar em exclusivo para o credor, o regime fiscal e regime de segurança social a que o trabalhador está vinculado, a sujeição do trabalhador a ordens diretas ou a simples instruções genéricas e o controlo direto da sua prestação pelo credor, a inserção do trabalhador na organização predisposta pelo credor e a sua sujeição às regras dessa organização.


O recurso aos indícios de subordinação jurídica permitirá qualificar um contrato como de trabalho, não se exigindo a presença de todos mas dos determinantes para essa conclusão, em função do tipo de trabalho exercido e do grau de autonomia técnica e de especialização do mesmo, não deixando de ter relevância a vontade real das partes na conclusão do negócio (artigo 236.º do CC). No entanto, esta vontade não permite que se qualifique um contrato como de serviço se o conteúdo do mesmo se traduzir num de trabalho, com verificação de indícios de subordinação do trabalhador.


O artigo 12.º, n.º 1 do CT estabelece uma presunção da existência de contrato de trabalho, nos seguintes termos: “Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:


a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;


b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;


c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;


d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;


e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa..


Verificando-se duas ou mais das caraterísticas indicadas, ocorre a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 350.º do CC, presumindo-se a existência de um contrato de trabalho, podendo o empregador ilidir a presunção, nos termos dos artigos 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 2, ambos do CC.


Descendo ao caso dos autos apurou-se que a Autora e o Réu contraíam, entre si, casamento, no dia .../.../2011. Divorciaram-se, por mútuo consentimento, em .../.../2022.


Na versão da Autora, a mesma passou a trabalhar para o Réu desde momento anterior ao do seu casamento, ou seja, desde 01/12/2009 e até momento posterior ao do divórcio, designadamente até 31/12/2022.


Nenhum facto se apurou sobre a existência de um acordo verbal estabelecido entre a Autora e o Réu para que a primeira passasse a prestar ao segundo trabalho e nem sequer se apurou desde que data passaram os mesmos a colaborar entre si na exploração do estabelecimento de lar de idosos que funcionou no imóvel do Réu que igualmente constituiu a casa de morada de família do casal. A prova produzida, não nos permitiu concluir que a Autora trabalhou para o Réu, sujeita às suas ordens, direção e fiscalização desde 01/12/2009 e até 31/12/2022.


Outrossim, apurou-se que desde data indeterminada, tanto a Autora como o Réu colaboraram entre si na exploração, em comum, de um lar de apoio a idosos, o qual funcionou em imóvel do primeiro, no qual o casal também tinha a casa de morada da respetiva família.


O casal geria a sua vida familiar e de trabalho, no mesmo local, colaborando entre si no exercício em conjunto das atividades necessárias à prossecução da atividade de apoio a idosos em regime de internamento que funcionava no imóvel propriedade do Réu. Era nesse imóvel que o casal tinha o seu centro económico e de vida familiar em comum.


Apenas o Réu estava formalmente declarado como empresário em nome individual, mas, da prova produzida resultou que a Autora e o Réu, por si ou através de terceiros que contratavam para o efeito, exerciam as tarefas necessárias à prossecução dessa atividade e que constam indicadas em 5) dos factos provados. Não se apurou que o Réu dava ordens à Autora, que a mesma estava sujeita ao seu poder disciplinar, observava horas de entrada e saída fixadas pelo Réu, e que os instrumentos e equipamentos de trabalho eram tão só do Réu. À Autora, como a mesma invocou, não foi paga qualquer retribuição pelo Réu.


Os factos provados demonstram a existência de uma colaboração mútua entre Autora e Réu, desempenhando ambos as tarefas necessárias ao exercício da atividade de apoio a idosos em estrutura residencial e em regime de internamento. E apesar do número expressivo de idosos internados no Lar (por vezes entre 8 a 12), o estabelecimento onde a Autora e o Réu colaboravam em conjunto, traduzia-se numa empresa de gestão familiar, assumida por aqueles, em que ambos tanto davam as ordens necessárias e tomavam as decisões gestionárias, como executavam quaisquer tarefas necessárias as quais correspondiam às que também eram executadas pelas empregadas que contratavam, como a de tomar conta dos idosos e a preparação das refeições.


Não se olvida que a atividade foi realizada em imóvel pertença do Réu e que a Autora, em conjunto com o mesmo, dirigia a atividade empresarial, o que parece preencher as características indicadas no artigo 12.º, n.º 1, als. a) e e) do CT para permitir a presunção da existência de um contrato de trabalho. Porém, o imóvel era também a casa de morada da família, era o local onde a Autora e o Réu tinham o seu centro de vida familiar e conjugal, não havendo uma distinção entre um imóvel afeto ao estabelecimento de lar e um imóvel afeto à casa de morada da família, existindo até no quarto do casal e dos utentes campainhas para que os segundos os chamassem, pelo que não se pode entender que este elemento possa ser relevante para se presumir a existência de um contrato de trabalho. E as tarefas que a Autora desempenhava eram também as que o Réu executava, tendo ambos idênticas posições, assumindo-se ambos, num patamar de igualdade e não de supremacia de um em relação ao outro. E tendo a prova traduzido este resultado, não pode presumir-se que vigorou entre as partes um contrato de trabalho. A prova produzida traduziu que inexistiu subordinação jurídica da Autora ao Réu, tendo ambos atuado em conjugação de esforços na execução das tarefas necessárias à prestação de apoio a idosos em regime de internamento, não tendo a Autora estado sujeita ao poder de direção, orientação e fiscalização do Réu. Note-se, inclusive, que nem nos foi possível apurar factos que nos permitissem distinguir o que constituiu a vida familiar da Autora e do Réu, com o cumprimento dos inerentes deveres de cooperação e assistência previstos nos artigos 1672.º, 1674.º e 1675.º, do CC, do que foi a colaboração mútua entre ambos na execução das tarefas necessárias à exploração em conjunto da atividade de lar.


Porquanto entende-se que não é de fazer funcionar a presunção indicada no artigo 12.º do CT, por os factos apurados demonstrarem a inexistência de subordinação jurídica entre as partes.


E mesmo que outro fosse o entendimento, sempre se mostraria ilidida a presunção visto não ter sido dado como provado que o Réu tivesse sobre a Autora poderes de direção e disciplina, nem existia uma posição de desigualdade entre as partes, mormente uma posição de domínio ou superioridade do Réu para com a Autora.


Porquanto, e em face do exposto, conclui-se que entre o Réu e a Autora não vigorou um contrato de trabalho.»


Em síntese, não tendo a Apelante logrado provar a alegada existência de um contrato de trabalho, não poderia, obviamente o réu, ora Apelado, ser condenado no pedido.


Em suma, improcede, nesta parte, o recurso.


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VI. Sobre a condenação por litigância de má-fé


A 1.ª instância condenou a Apelante por litigância de má-fé em 5 UC de multa e 15 UC de indemnização a favor do Apelado.


A Apelante não se conforma com esta decisão e pretende que o tribunal ad quem a revogue.


Analisemos a questão.


A decisão da 1.ª instância baseou-se na seguinte fundamentação (retiradas as notas de rodapé):


«Prescreve o artigo 542.º, n.º 1 do CPC ex vi artigo 1.º, n.º 2, al. a) do CPT que “Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”. E, resulta do n.º 2 da citada norma que “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.


Tal norma visa sancionar tanto a lide dolosa como a lide temerária. Assim, quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam a litigância de má-fé.


Da leitura do preâmbulo do DL 320-A/95, de 12/12, resulta que tal alteração ao regime anterior visa uma maior responsabilização das partes.


“As partes têm o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes com a boa-fé (artigo 266-A). A lide diz-se temerária, quando essas regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente. A litigância temerária é mais do que a litigância imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve (…).


É corrente distinguir má-fé material (ou substancial) e má-fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má fé”- cfr. Lebre de Feitas, CPC Anotado, Volume 2.º, pág. 194 e 196.


As partes têm o dever de litigar de boa-fé como decorrência do princípio do dever de boa-fé processual plasmado no artigo 8.º do CPC.


A má-fé subjetiva é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte e é objetiva se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.


“Qualquer das referidas modalidades da má-fé processual pode ser substancial ou instrumental: - é substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (…), alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (…), isto é, violar o dever de verdade; - é instrumental se a parte tiver omitido, com gravidade, o dever de cooperação (…), ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (…)” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 63.


Descendo ao caso que nos ocupa a versão dos factos apresentada nos autos pela Autora, foi inverídica pois a mesma não estava sujeita às ordens, direção e fiscalização do Réu mas exercia, em conjunto com aquele, e em igualdade de posições, a exploração do lar de idosos. E os factos inverídicos invocados e a omissão de outros relevantes para a compreensão cabal dos factos, diz respeito a factos que são do conhecimento direto da Autora. Ao alegar factos que sabia serem inverídicos e omitindo outros relevantes para a correta compreensão dos factos, a Autora assumiu um comportamento doloso, visto conhecer bem a verdade dos factos, vindo aos autos voluntariamente relatá-los sem correspondência com a verdade e sem relatar todos os factos relevantes para a descoberta da verdade e justa composição do litígio.


Porquanto, a Autora alterou, conscientemente, a verdade e a realidade dos factos por si conhecida, como resulta patente dos factos dados como provados e não provados e respetiva motivação.


Em suma, o comportamento da Autora ao vir alegar factos que sabia não serem verdadeiros, adotou um comportamento doloso, com violação intencional e como tal, necessariamente consciente que a sua atuação processual nos autos não era e é conforme ao dever de boa-fé.


Atuou com má-fé material ou substancial na medida em que visou com o seu comportamento a obtenção de uma sentença desconforme com a realidade dos factos ocorridos e por si conhecidos, e como tal injusta, com clara violação daquilo que é o comportamento exigível para com o tribunal e os demais sujeitos processuais.


Porquanto a Autora, com a posição que manifestou neste processo, veio articular factos inverídicos sem correspondência com a verdade dos factos que eram do seu conhecimento direto e omitiu outros que conduziam à improcedência imediata da sua pretensão.


De tudo o exposto resulta que é manifesto que a Autora veio deduzir pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar (artigo 542.º, n.º 2, al. a) do CPC) e alterou a verdade dos factos, violando o dever de verdade (artigo 542.º, n.º 2, al. b) do CPC), entorpecendo a ação da justiça (artigo 542.º, n.º 2, al. d) do CPC).


A censurabilidade do seu comportamento processual nestes autos, tendo sido doloso, merece intensa reprovação, face ao já descrito.


Tendo litigado de má-fé a parte é condenada em multa e indemnização à parte contrária se esta a pedir (artigo 542.º, n.º 1 do CPC). (…)»


Desde já adiantamos que esta decisão, e a sua fundamentação, não merecem qualquer reparo.


Efetivamente a materialidade apurada permitiu concluir que a Apelante veio alegar factos inverídicos e deduzir pretensão absolutamente infundada, como não poderia deixar de ignorar, uma vez que estavam em causa factos pessoais.


Ademais, omitiu factos relevantes para uma decisão esclarecida do pleito.


Em suma, violou deliberadamente o dever de verdade.


Como tal, bem andou a 1.ª instância ao proferir a decisão condenatória por litigância de má-fé.


Soçobra, assim, a última das questões colocada no recurso, sendo certo que o valor da multa e indemnização fixados pelo tribunal a quo não foram postos em causa.


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Concluindo, o recurso improcede na totalidade.


As custas do recurso serão suportadas pela Apelante - cf. artigo 527.º do Código de Processo Civil – sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia.


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VII. Decisão


Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.


Custas do recurso a suportar pela Apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


Notifique.


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Évora, 27 de fevereiro de 2025


Paula do Paço


João Luís Nunes


Mário Branco Coelho





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1. Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho↩︎