Sumário elaborado pelo relator:
I – Em processo de contraordenação laboral o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, salvo as questões de conhecimento oficioso que decorrem do artigo 410.º do Código de Processo Penal:
II – Não se verifica erro notório na apreciação da prova se a matéria de facto provada e não provada se apresenta congruente, bem como a respetiva motivação com aquelas, sendo que o inconformismo da recorrente se centra na discordância com a matéria de facto fixada.
III – No processo de contraordenação laboral não podem aplicar-se, tout court, as regras e/ou princípios do processo penal, sendo que naquele o auto de notícia faz fé em juízo, pelo que os factos materiais dele constantes consideram-se provados a não ser que fundadamente sejam postos em causa.
IV – As disposições conjugadas do artigo 36.º do Regulamento (UE) n.º 165/2014, e do artigo 25.º n.º 1 al. b) da Lei 27/2010, impõem a imediata apresentação aos agentes de controlo das folhas de registo utilizadas no dia em curso e nos 28 dias anteriores.
V – Por isso, comete a contraordenação aí prevista a arguida /recorrente cujo condutor ao seu serviço aquando da fiscalização não apresentou as folhas de registo utilizadas no tacógrafo do veículo em que circulava respeitantes a todos os 28 dias anteriores à fiscalização, nem era portador de qualquer documentação emitida pela recorrente, designadamente a declaração de atividade referente aos dias em falta, tendo-se limitado a referir que não conduzira nesses dias, mas sem que apresentasse qualquer prova.
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1:
I. Relatório
União de Camionagem de Carga, Lda., impugnou judicialmente a decisão da ACT - Autoridade para as Condições do Trabalho (Unidade Local do Litoral e Baixo Alentejo) que lhe aplicou a coima de € 3.060,00 pela prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelo artigo 36.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Fevereiro e art.º 25.º, n.º 1 al. a), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto.
A infração consistiu, em síntese, no facto de no dia 10-11-2021 um trabalhador/motorista da arguida conduzir, no interesse, sob as ordens e fiscalização da mesma, o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-XL, equipado com tacógrafo, sem que se fizesse acompanhar do registo de tacógrafo referente aos 28 dias anteriores, ou documento justificativo dessa omissão.
Por sentença de 6 de novembro de 2024, do Juízo do Trabalho de Sines, foi negado provimento ao recurso, assim confirmando a decisão da autoridade administrativa.
De novo inconformada, a recorrente interpôs recurso para este tribunal, tendo na motivação de recurso formulado as seguintes conclusões:
«A - A sentença recorrida, baseou-se numa errada aplicação da Lei por parte da Meritíssima Juiz ad Quo, já que seguiu o caminho mais simples, condenando pela Lei Geral e pelo art.º 36.º, n.º 1 i) a iii), do Regulamento (UE) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Fevereiro, estipulando o n.º 1 i)
B - Acontece que a empresa aqui recorrente, dotou o motorista, seu empregado, de todos os elementos, consagrados naquele Artº 36 do Regulamento (UE) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Fevereiro,
C- Já que ao entregar-lhe as declarações de actividade referentes aos dias em que esteve a fazer trabalho de armazém, ao pedir-lhe que as lê-se e que as assinasse, de modo a fazer-se acompanhar das mesmas, cumpriu a sua obrigação legal
D- Tais situações foram relatadas pela testemunha, AA, motorista ao serviço da arguida desde 2019, que afirmou ter recebido as declarações por parte do representante da arguida em ...; e pela testemunha BB – gestor de frota da arguida, que afirmou, que ao verificar a situação aquando do conhecimento da decisão administrativa, verificou que ao motorista haviam sido entregues as declarações já que constavam do arquivo dos ficheiros dos tempos de condução e repouso a que alude o artigo 8º da Lei 27/2010 de 30 de Agosto.
E- Aliás, foi dessa consulta que a testemunha, BB, gestor de frota da arguida com domicilio na sede da mesma, conseguiu verificar, primeiro que as declarações estavam arquivadas porque lhe haviam sido enviadas por parte do representante da empresa em ..., através de E-mail, e que as mesmas estavam bem preenchidas e assinadas pelo encarregado em ... e pelo motorista CC, e em segundo lugar após falar com aquele motorista apurou que as mesmas lhe haviam sido entregues, mas que aquele se esqueceu delas dentro do bolso do casaco que ficara no cacifo destinado a guardar as coisas do empregado no armazém da empresa.
F- Razão pela qual se reitera, a empresa cumpriu a sua obrigação de organizar o trabalho e dotar o seu motorista dos elementos que o mesmo se devia fazer acompanhar enquanto conduzisse.
G- O condutor da arguida, ao esquecer-se das declarações é que praticou uma contra-ordenação, já que teve formação, quando entrou na empresa e todos os anos seguintes, sabe que a empresa se dedica ao exercício da actividade transportadora e que lhe é aplicável o Contrato Colectivo de Trabalho para este sector.
H- De acordo com qualquer dos CCTV firmado entre a ANTRAM, de quem é associado e qualquer um dos sindicatos, já que na sua essência (texto legal) são iguais, constam no seu número 2 da cláusula 13º o seguinte: "2- Paro além dos deveres indicados no número l da presente cláusula, sobre os trabalhadores com a categoria profissional de motorista, recai um especial dever de acatar os ordens, instruções de trabalho do empregador e legislação relativa a matérias sobre: a) Tempos de condução, pausas, descanso e utilização dos aparelhos de tacógrafo e respectivos registos;"
I- Pelo que sabe o motorista, que tem por dever de profissão e por Lei (Artº 36 do Regulamento CE 165/2014 e art 25 nº da Lei 27/20210, bem como pelo CCTV) de se fazer acompanhar das folhas de registo do dia em curso e as utilizadas pelo condutor nos 28 dias anteriores; do cartão de condutor, se o possuir; e das Declarações de actividade entregues pela
Empresa
J- Sendo tal assumido pelo motorista em sede de Julgamento
K- Assim como foi assumido, que embora sabendo, se esqueceu das mesmas, mas que declarou ter trabalhado em armazém naqueles dois dia em questão.
L- A Meritíssima juiz ad quo fez tábua rasa destas declarações e condenou de preceito, apenas porque a empresa já havia sido condenada.
M- A Meritíssima Juiz ad quo não levou em linha de conta que a empresa organizou o trabalho e dotou o motorista de todos os elementos obrigatórios com os quais de deve fazer acompanhar quando conduz.
N- A Meritíssima Juiz ad quo com os argumentos da condenação e tendo em conta o que se passou em julgamento, não levou em linha de conta a prova produzida e violou o PRINCIPIO IN DUBIO PRO REU.
O- A Meritíssima Juiz ad quo não teve em linha de conta o CCTV, pese em embora se tivesse chamado à atenção para tal, e as obrigações dai decorrentes para os motoristas nomeadamente a alínea a) seu número 2 da cláusula 13º.
P- Afirma-se -não praticou a arguida, qualquer contra-ordenação, tendo como se descreveu e se viu em julgamento cumprido a Lei.
Termos em que:
Deverão Vªs Exªs julgar totalmente procedente o presente recurso, e, em consequência, revogar a sentença, absolvendo a arguida da prática da contra-ordenação pela qual vem acusada, pelos motivo que acima se verteram».
Admitido o recurso na 1.ª instância, ao mesmo aí respondeu o Ministério Público, a pugnar pela sua improcedência.
Subidos os autos a esta Relação, neles a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, que não foi objeto de resposta, no sentido da improcedência do recurso.
Elaborado projeto de acórdão, colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso
Como é consabido o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contraordenações e Coimas) e do artigo 50.º, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, sendo que este último diploma estabelece o regime jurídico processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social.
Assim, tendo em conta as conclusões de recurso, a questão a decidir centra-se em saber se a arguida, aqui recorrente, é responsável pela contraordenação em apreciação nos autos.
Tal questão tem subjacente a prévia análise de duas sub-questões:
-se houve uma errada apreciação da matéria de facto;
- se foi violado o princípio in dubio pro reo em relação à arguida/recorrente.
III. Matéria de facto
A) A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade:
1. A arguida União de Camionagem de Carga. Lda., titular do NIPC ... tem sede na ... e dedica-se à atividade de transportes rodoviários de mercadorias (49410 – CAE Rev. 3).
2. No dia 10 de novembro de 2021, pelas 11:00 horas, a arguida tinha a circular na AE2 área de serviço de Alcácer do Sal Norte/Sul, o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-XL, equipado com tacógrafo.
3. O referido veículo era conduzido pelo trabalhador da arguida, AA, motorista de veículos pesados.
4. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, no ato da fiscalização, o condutor identificado não possuía as folhas de registo utilizadas no tacógrafo do veículo em que circulava ou de outro veículo pesado, ou registo de veículo ligeiro respeitantes aos dias 26 de outubro e 9 de novembro de 2021.
5. O condutor não apresentou qualquer documento idóneo que justificasse a inexistência dos referidos registos, nomeadamente Declaração de Atividade referente aos dias em falta de 26 de outubro e 9 de novembro de 2021.
6. A arguida não cuidou de organizar a sua atividade de modo a permitir a fiscalização pelas autoridades competentes dos tempos de condução e repouso do seu motorista.
7. Sobre a arguida impendia a obrigação de acautelar que o motorista seu trabalhador se fizesse acompanhar dos registos referentes aos vinte e oito dias anteriores ao dia da fiscalização ou documento idóneo que justificasse a inexistência dos registos referentes aos vinte e oito dias anteriores, todavia, não atuou em conformidade.
8. A arguida tem registada no Registo Nacional de Infratores, para além do mais, a prática das seguintes contraordenações muitos graves por negligência:
- uma contraordenação, prevista e punida pelo art.º 25.º, n.º 1 alínea b), da Lei n.º 27/2009, por factos praticados em 03.06.2020, tendo-lhe sido aplicada no âmbito do processo ... a coima no valor de € 2.856,00, por decisão irrecorrível em 25.11.2022 e sendo a sua data de prescrição de 02.06.2025.
- uma contraordenação, prevista e punida pelo art.º 25.º, n.º 1 alínea b), da Lei n.º 27/2009, por factos praticados em 09.07.2019, tendo-lhe sido aplicada no âmbito do processo ... a coima no valor de € 2.213,40, por decisão irrecorrível em 01.08.2022 e sendo a sua data de prescrição de 07.07.2024.
- uma contraordenação, prevista e punida pelo art.º 25.º, n.º 1 alínea b), da Lei n.º 27/2009, por factos praticados em 21.06.2017, tendo-lhe sido aplicada no âmbito do processo ... a coima no valor de € 2.244,00, por decisão irrecorrível em 14.03.2019 e sendo a sua data de prescrição de 20.06.2022.
-uma contraordenação, prevista e punida pelo art.º 25.º, n.º 1 alínea a), da Lei n.º 27/2009, por factos praticados em 27.10.2015, tendo-lhe sido aplicada no âmbito do processo ... a coima no valor de € 2.196,92, por decisão irrecorrível em 26.02.2018 e sendo a sua data de prescrição de 25.10.2020.
-uma contraordenação, prevista e punida pelo art.º 25.º, n.º 1 alínea b), da Lei n.º 27/2009, por factos praticados em 29.12.2011, tendo-lhe sido aplicada no âmbito do processo ... a coima no valor de € 2.142,92, por decisão irrecorrível em 30.01.2017 e sendo a sua data de prescrição de 27.12.2016.
9. Aquando da fiscalização, o condutor referiu que naqueles dias não tinha conduzido qualquer veículo.
10. O condutor havia estado a efetuar trabalhos de armazém nos citados dias.
11. Respetivamente com data de 26 de outubro e de 9 de novembro de 2021, a arguida emitiu declarações de atividade, constando das mesmas que, nesses dias, o condutor DD “realizava outras atividades profissionais distintas da condução”.
B) A 1.ª instância deu como não provada a seguinte factualidade:
A. O responsável pelo armazém da arguida em ... passou, assinou a entregou ao condutor DD as declarações referias em 11), que o mesmo então assinou e levou consigo.
B. A arguida, sempre que o condutor efetua outros trabalhos passa declarações de atividade que o condutor assina e leva consigo.
C) Com eventual relevância para decisão, a 1.ª instância motivou assim a resposta à matéria de facto:
«Da articulação do vertido no auto de notícia com o depoimento do militar EE, não restam dúvidas quanto ao provado, relevando a falta de credibilidade e verosimilhança demonstradas pelo depoimento de CC. Com efeito, nesta mesma base, não restam dúvidas de que o condutor, no acto da fiscalização, não se fazia acompanhar de qualquer documento que justificasse a não apresentação das folhas de registo referentes aos dias 26 de Outubro e de 9 de Novembro de 2021, como não apresentou qualquer justificação para tanto (máxime por não ter consigo declarações de actividade), excepto o facto de não ter conduzido veículos automóveis naqueles dias. Caso efectivamente tivessem sido emitidas declarações de actividade com as datas apostas nas mesmas (doc. 1 e 2 juntos com as alegações) e caso estas tivessem sido entregues ao motorista CC, mal se entende que este, no acto da fiscalização, não tivesse desde logo feito referência à existência dessas declarações e ao seu esquecimento de as fazer transportar consigo.
Por outro lado, as declarações em causa reportam-se a dias distintos (26 e 9), de meses distintos (Outubro de Novembro), existindo um período temporal de permeio entre as duas datas, não se compreendendo a razão pela qual as duas declarações, a terem sido emitidas com as datas nelas apostas, ficaram uma junta com a outra e ambas esquecidas no dia 10.11.2021, quando o motorista teria tido já de se fazer acompanhar, pelo menos, da declaração de dia 26.10.2021.
Note-se que a declaração do motorista no acto da fiscalização de que “não possuía Declaração de Actividade” tem necessariamente de ser entendida no sentido comum, isto é, de não só não ter consigo essa Declaração no momento (deter), como de a mesma não se encontrar sequer na sua esfera de acção (no escritório ou em qualquer outro lugar). Esta interpretação encontra inteiro respaldo no depoimento do militar da GNR EE.
Por outro lado, não deixa de relevar o facto de o próprio original das declarações não ter sido junto aos autos (tendo sido juntos documentos reproduzidos por scanner), de BB não se recordar em que datas) terão sido recepcionadas as declarações de actividade na sede da arguida, como não deixa de ser sintomático o facto de um motorista reportar um esquecimento e de nada mais ser feito quanto a tal falta (sendo encarada tal falta com absoluta naturalidade), quando a arguida tem registada a prática de outras infracções da mesma natureza».
IV. O direito
1. Ao longo das conclusões da motivação de recurso, a recorrente parece insurgir-se contra a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância.
Importa antes de mais ter presente que este tribunal apenas conhece da matéria de direito, salvo as questões de conhecimento oficioso que decorrem do artigo 410.º do Código de Processo Penal (cfr. artigo 51.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro).
Cremos que na motivação da recorrente parece estar subjacente a invocação de erro notório na apreciação da prova por parte da 1.ª instância.
De acordo com o n.º 2, alínea c) do referido artigo 410.º do Código de Processo Penal:
«2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum:
(…)
c) Erro notório na apreciação da prova».
Está em causa uma falha grosseira e ostensiva na apreciação da prova, percetível por um cidadão comum; ou seja, perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o “senso comum”, o cidadão comum facilmente se apercebe que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos.
Dito ainda de outro modo: verifica-se este vício quando se dá como provado algo que não podia ter acontecido, sendo o erro detetável por qualquer pessoa minimamente atenta: ou, como escrevem Simas Santos e Leal Henriques (Recursos em Processo Penal, 7.ª Edição, Rei dos Livros, pág. 77) «(…) há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá consta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis».
Acentue-se que, como resulta expressamente do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, tratando-se de vícios da sentença (ou acórdão), os mesmos terão de resultar do texto da própria sentença, apreciada na sua globalidade, sem o recurso a elementos que lhe sejam externos, ainda que integrando o processo e para eles remeta a sentença.
No caso em apreço, da leitura da matéria de facto, por um lado, e da respetiva motivação, por outro, não extraímos qualquer erro notório na apreciação da prova, pelo que não pode proceder o alegado nesta matéria pela recorrente.
2. Mas a recorrente alega também que foi violado o princípio do princípio in dubio pro reo: ao que extrai, por existindo dúvidas sobre a verificação dos factos que lhe foram imputados, tal dúvida deveria beneficiá-la, o que vale por dizer que deviam esses factos ter sido dados como não provados.
Também aqui não se pode anuir ao entendimento da recorrente.
Desde logo porque não podem transpor-se, diremos tout court, as regras e/ou princípios do processo penal para o regime das contraordenações (neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional de 19-06-2008 e de 12-03-2019, procs. n.º 336/2008 e n.º 141/2019, respetivamente).
Além disso, o auto de notícia faz fé em juízo (artigo 13.º, n.º 4 da Lei n.º 107/2009) pelo que os factos materiais dele constantes consideram-se provados a não ser que fundadamente sejam postos em causa.
Mas ainda: nos termos do artigo 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, a empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional (n.º 1); tal responsabilidade só é excluída se a empresa demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor cumprisse o estabelecido legalmente (n.º 2 do emsmo artigo).
Consagra-se, assim, uma presunção juris tantum de imputação da violação de um dever de comportamento à empregadora do condutor do transporte rodoviário.
Compreende-se essa responsabilidade das empresas de transportes: por um lado, não pode olvidar-se que muitas das vezes a razão do trabalhador/condutor violar as regras estradais e laborais e, assim, pôr em causa a segurança rodoviária, radica no desproporcionado volume de trabalho que lhe é cometido e na respetiva organização, sendo as entidades empregadoras/empresas de transportes que têm interesse e beneficiam da realização do trabalho naqueles circunstâncias; por outro lado, cometendo-se a tais empresas a obrigação de cumprirem o disposto no Regulamento e de darem instruções adequadas aos condutores e efetuarem controlos regulares, essas instruções e controlo não podem deixar de abranger o que se refere à necessidade dos condutores se fazerem acompanhar dos documentos necessários com vista às entidades de fiscalização aferirem da observância ou não das normas do Regulamento.
E é nesta mesma linha que se deverá interpretar o citado n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30-08, ao prescrever que a responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85 (atualmente, face à revogação deste, no Regulamento 165/2014) e no capítulo II do Regulamento (CE) n.º 561/2006.
Assim, competia à empresa/recorrente demonstrar que organizou o trabalho de acordo com os Regulamentos, organização essa onde se inclui a instrução e formação aos condutores sobre o cumprimento dos Regulamentos, designadamente quanto a fazerem-se acompanhar dos tacógrafos referentes ao dia da fiscalização e aos 28 dias anteriores para serem apresentados aos agentes de fiscalização quando para tal solicitados, ou de documento(s) justificativo(s) da sua não apresentação, quando para tal tenham sido solicitados.
Não tendo sido feita tal prova, não o podia o tribunal a quo deixar de fixar a matéria de facto nos termos em que a fixou.
Acresce que ainda que aqui fosse aplicado o princípio in dubio pro reo – que não é, como se deixou explicitado – sempre seria de concluir que tal princípio não se mostra violado.
Trata-se de um princípio que constitui, ao fim e ao resto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Isto é, o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto: um non liquit na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 5.ª Edição, Editorial Verbo, pág. 83); o processo deve assentar em alicerces precisos e fundamentados.
Porém, não pode ser qualquer dúvida sobre os factos a autorizar, sem mais, uma solução favorável ao arguido; isto é, por exemplo a circunstância de haver depoimentos contraditórios não pode, só por si, levar à existência de uma dúvida razoável sobre determinado(s) facto(s), e, consequentemente, por aplicação do aludido princípio, à absolvição do arguido.
Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que nos atos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida [cf., sobre a matéria, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997 e acórdão do STJ de 10-01-2008 (Processo n.º 4198/07 – 5.ª Secção)].
Como faz também notar Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 340), «o princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal (…). Trata-se da aplicação de uma regra de decisão (…). Mas é importante que se note que este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido (…), pois o princípio in dubio não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio in dubio não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto».
Ora, da matéria da matéria de facto não resulta que o tribunal tenha tido quaisquer dúvidas sobre os factos que deu provados: o que resulta, sim, é que o depoimento de algumas testemunhas, em sentido favorável às pretensões da recorrente, não mereceram credibilidade.
Daí que, reafirma-se, ainda que, em teoria, fosse de convocar para os presentes autos o princípio in dubio pro reo, no concreto circunstancialismo o mesmo não seria aplicável pois o tribunal recorrido não teve dúvidas quanto à matéria de facto, que deu como provada ou não provada.
3. Finalmente quanto à responsabilização da recorrente pela prática da contraordenação.
A pretensão da recorrente quanto à procedência do recurso – por a infração não lhe poder ser imputada – era tributária da pretendida alteração da matéria de facto.
Não tendo obtido êxito quanto a esta, forçosamente que o recurso terá que improceder.
Com efeito, ao contrário do sustentado pela recorrente, da matéria de facto não decorre que a mesma tenha cumprido a sua obrigação de “organizar o trabalho e dotar o seu motorista dos elementos que o mesmo se devia fazer acompanhar enquanto conduzisse”.
Neste sentido, a convocação do CCTV outorgado entre a ANTRAM – de que diz ser associada – e vários sindicatos é absolutamente inócua à questão objeto dos autos.
O que releva, face à matéria de facto, é que o condutor da recorrente não possuía as folhas de registo utilizadas no tacógrafo do veículo em que circulava respeitantes a todos os 28 dias anteriores à fiscalização, designadamente os dias 26 de outubro e 9 de novembro de 2021, nem era portador de qualquer documentação emitida pela recorrente, designadamente a declaração de atividade referente aos dias em falta 26 de outubro e 9 de novembro de 2021, tendo-se limitado a referir que não conduzira nesses dias, mas sem que apresentasse qualquer justificação.
E com base nessa matéria de facto impõe-se concluir que a recorrente praticou uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelo artigo 36.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro e artigo 25.º, n.º 1 al. a), da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto.
Como este tribunal tem repetidamente afirmado, o artigo 36.º do Regulamento (UE) n.º 165/2014, pretende, essencialmente, assegurar a imediata apresentação aos agentes do controlo das folhas de registo utilizadas no dia em curso e nos 28 dias anteriores, sendo a obrigação de apresentação que constitui o dever imposto pela norma e, «(…) não sendo apresentadas todas ou alguma(s) das aludidas folhas de registo, deve o condutor apresentar um documento comprovativo que justifique a ausência das folhas de registo em relação aos dias em falta, pois só por esta via, o agente encarregado da fiscalização pode concluir que todas as folhas existentes com referência ao período temporal imposto pela norma, lhe foram apresentadas ou não e, nesta última situação, autuar o agente infrator» [acórdão deste tribunal de 11-05-2023 (proc. 1351/22.9T8TMR.E1); no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos, também deste tribunal, de 24-05-2018 (proc. n.º 977/17.7T8PTG.E1), de 31-10-2018 (proc. n.º 138/18.8T8STR.E1 ), de 27-06-2019 (proc. n.º 2276/18.8T8EVR.E1) e de 23-11-2023 (proc. n.º 1872/23.6T8PTM.E1].
Aqui chegados, sem desdouro pela argumentação da recorrente, a mesma não pode proceder, pelo que se impõe confirmar a decisão recorrida.
Vencida no recurso, a recorrente deverá suportar o pagamento das custas respetivas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (artigo 59.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e artigo 8.º, n.ºs 7 e 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, e respetiva tabela III anexa).
V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
(Documento elaborado e integralmente revisto pelo relator).
Évora, 27 de fevereiro de 2025
João Luís Nunes (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço
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1. Relator: João Nunes; Adjuntas: (1) Emília Ramos Costa, (2) Paula do Paço.↩︎