ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PELA RELAÇÃO
AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
CASO JULGADO FORMAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

Sumário:
1. A matéria de facto só deve ser alterada pelo Tribunal da Relação se a apreciação crítica da prova efetuada pelo Tribunal a quo não se revelar lógica e coerente ou contrariar as regras da experiência comum, isto é, se houver erro na decisão da matéria de facto.

2. Adicionalmente, essa alteração deve ser útil para a decisão a proferir, possuindo aptidão para modificar a mesma, por ser essa a finalidade dos recursos.

3. Tendo o pedido da A. sido julgado inteiramente procedente, o recurso que a mesma interpôs da sentença, a título subsidiário, requerendo a apreciação de outros fundamentos em suporte da sua pretensão, para prevenir a eventualidade de vir a ser julgado procedente o recurso do R., não configura um recurso subordinado, mas antes uma ampliação do objeto do recurso.

4. Apenas pode constituir fundamento de ampliação do objeto do recurso a matéria de facto ou de direito que tenha sido alegada na ação, pelo que se os fundamentos invocados pela A. para aquele efeito foram deduzidos em requerimento de alteração do pedido e da causa de pedir que foi rejeitado pelo Tribunal a quo, tendo este despacho transitado em julgado, não pode em recurso atender-se a esses fundamentos.

5. O exercício de poderes oficiosos no âmbito dos recursos não pode pôr em crise a estabilidade da instância resultante do funcionamento das regras processuais, desde logo, as que regem sobre o caso julgado formal.

6. Assim, tratando-se de uma questão de conhecimento oficioso, competirá ao Tribunal ad quem apreciá-la estritamente à luz da matéria de facto provada.

(Sumário da responsabilidade do Relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Apelação n.º 1630/20.0T8PTM.E1

(1ª Secção)


***


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I – Relatório


1. Pontautos - Comércio de Automóveis, Lda., propôs a presente ação declarativa de condenação contra AA, pedindo, a final, que seja este condenado a pagar-lhe a quantia de € 49.900,00 e juros comerciais à taxa legal.


Fundamentou a sua pretensão, alegando que o R. escolheu uma viatura Volvo V60 que ela tinha exposta no seu stand em ... tendo em vista a sua aquisição, e que nesta sequência as partes acordaram na compra e venda pelo valor de € 54.900,00 dos quais aquele pagou € 5.000,00, tendo ainda entregue a sua viatura usada, não paga ainda na totalidade ao banco financiador, ficando ela responsável por este pagamento.


Mais alegou que os € 5.000,00 foram pagos em 2 tranches, uma de € 1.000,00 e outra de € 4.000,00, tendo sido esta última paga em 27 de setembro de 2019, data em que ela e o R. acordaram em que fosse solicitado ao Banco Santander Consumer um pedido de financiamento em nome deste da restante quantia de € 49.900,00. E, nesse mesmo dia, autorizou o R. a tomar posse do veículo até o pedido de financiamento se encontrar aprovado.


No entanto, o pedido de financiamento, apesar de ser viável, estava condicionado à apresentação pelo R. do comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito a antecipar e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito, pedido que o R. nunca satisfez. E, não obstante isso, e, por conseguinte, a não aprovação do financiamento, não devolveu o veículo, nem nada mais pagou, apesar das diversas solicitações para o efeito, utilizando-o a seu belo prazer.


2. O R. deduziu contestação, onde se defendeu por impugnação e deduziu os seguintes pedidos reconvencionais:


- que se condene a A. a pagar-lhe a “quantia referente à totalidade das prestações vencidas e referentes à mensalidade, desde outubro de 2019 até à prolação da sentença/ trânsito em julgado dos presentes autos, as quais totalizam, até à entrada da ação em juízo a quantia de € 7.665,48, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento”;


- que se condene a A. a pagar-lhe “indemnização por danos não patrimoniais, resultantes da imobilização do automóvel já há cerca de 2 anos, que se computa em pelo menos € 10.000,00 por cada ano até essa efetiva e devida utilização da viatura pelo Réu (…) tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento”;


- que se condene a A. no “pagamento de indemnização por danos não patrimoniais derivados ao stress, à humilhação, à vergonha sofrida pelo comportamento da Autora, no valor de € 6.000,00, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento”.


3. A A. apresentou réplica, onde impugnou o alegado pelo R. no pedido reconvencional e as quantias peticionadas, considerando que o mesmo age em abuso de direito e com litigância de má-fé, concluindo pela formulação de pedido de condenação do R. no pagamento de uma indemnização.


4. Foi indeferida a intervenção nos autos do Banco Santander Consumer Finance, S.A. – sucursal em Portugal, a título principal, o que havia sido requerido pelo R., mas foi admitida a sua intervenção acessória, como auxiliar da defesa, tendo o Chamado apresentado contestação.


5. A. veio ampliar o pedido em articulado superveniente, tendo a ampliação sido parcialmente admitida, nos seguintes termos:


“a) Deve o Réu ser condenado a pagar à Autora o preço de EUR. 49.900,00 (quarenta e nove mil e novecentos euros), devido a título de preço, no âmbito do contrato de compra e venda do veículo automóvel celebrado entre as Partes, acrescido de juros de mora civis, vencidos e vincendos, desde a data de entrega do carro [27.09.2019] até efetivo e integral pagamento, que, na presente data, totalizam a quantia de EUR. 8.629,28 (oito mil seiscentos e vinte e nove euros e vinte e oito cêntimos) [admissível à luz do artigo 265.º, n.º 2 CPC];”


“g) Em qualquer caso, deverá o Ré ser condenado a pagar à Autora uma indemnização no montante mínimo de EUR. 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), ou em valor a fixar pelo Tribunal, de acordo com a equidade, a título de litigância de má-fé [pedido feito anteriormente].”


6. Em resposta a essa ampliação, veio o R., entre o mais, pedir a condenação da A. como litigante de má fé.


7. Após realização da audiência de julgamento foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


“Nestes termos, tendo por base os fundamentos e preceitos legais supracitados, decide-se:


- julgar a ação integralmente procedente, e, em consequência, condena-se o Réu AA a pagar à Autora Pontautos - Comércio de Automóveis, Lda. a quantia de € 49.900,00 (quarenta e nove mil e novecentos euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal civil em vigor desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;


- julgar a reconvenção integralmente improcedente, e, em consequência, absolve-se a Reconvinda Pontautos - Comércio de Automóveis, Lda. de tudo quanto foi peticionado pelo Reconvinte AA;


- julgar improcedentes os pedidos de condenação da Autora e do Réu como litigantes de má-fé.”


8. O R. apelou da referida sentença, concluindo nos seguintes termos as suas alegações:


“1º - O Contrato é válido, não relevando a alegada indisponibilidade financeira do Réu, a quem veio a ser concedido crédito embora com prestação de valor superior ao que informado e contrato pela Pontautos com aquele.


2º - o Réu pagou mais do que o admitido pela Autora, entre outros, nomeadamente com a substração do direito de uso, fruição e gozo da sua propriedade,


3º - E sente-se prejudicado, gravemente, pela impossibilidade de utilização da viatura, o que é um facto perfeitamente objectivo pela matéria assente e constatável pelos quilómetros nele apostos em virtude da apreensão e falta de declaração de circulação emitida pela A. .


4º - O tempo em que o veículo esteve na disponibilidade e ou indisponibilidade da Autora não é imputável ao Réu, que, a tanto, não deu causa mas sim aquela pela sua postura negocial e extra negocial que é obvia e demonstrada pelo cotejo da prova.


5º - A circunstância de as Testemunhas arroladas pela Autora serem seus funcionários, e, por isso, interessadas, deveriam, os seus depoimentos, ser avaliados com, ainda mais, especial cautela, ponderando-se a credibilidade, necessariamente reduzida, justificando-se a improcedência da Acção.


6º - Ao decidir conforme resulta da douta Sentença de Fls., a factualidade veio a ser decidida contra os factos, regras de experiência e direito optando por considerar que o vendedor da A. se poderia “ ter enganado” ao ordenar ao R. que assinasse o contrato, entregasse a viatura anterior e levantasse a nova considerando que ele até tem lista de clientes e ligas-lhes quando chega a altura de trocar de viatura, trabalhando há, Pelo menos, mais de 10 anos na Pontautos, e por isso experiente no “métier”.


7º - O douto Tribunal “a quo” fundou a sua convicção em depoimentos de Testemunhas que não tiveram conhecimento pessoal e directo dos factos, e ou que não participaram em qualquer reunião, limitando-se a reproduzir o que “ouviram dizer” e do que sabiam tentaram criar nevoeiro de forma a proteger a incúria da A. ao criar convicção no R. das circunstâncias negociais se encontrarem válidas e eficazes que até lhe entregaram a viatura e todo o demais conforme se observou, colocou-o numa situação de fragilidade que absorveu a família deste afectando-os a nível pessoal e económico.


8º - O Réu recebeu o veículo convicto que o havia adquirido regularmente cumprindo tudo o que lhe foi pedido pela Autora e, esta, quando ordena a apreensão da mesma abre “ guerra” e demonstra não desejar sanar uma situação criada por si própria, o que se denota curioso e incompreensível, a qualquer Bonus Pater familiae pois, no mínimo, o representante da volvo, deveria repor a situação que o cliente lesado tinha anteriormente à incúria desta e ou indemnizando-o como nunca desejou fazer até hoje.


9º - Se lapsos tiverem existido, relativamente à formalização do negócio, só à Autora serão imputáveis, nada permitindo formular a convicção que fundamente a procedência da Acção oferecendo provimento as ilegítimas pretensões daquela em lesão dos direitos pertencentes ao Sr. BB.


10º - A apreensão da viatura ficou a dever-se a um autêntico abuso de direito, na medida em que se não justificava, salientando que este entregou a viatura “antiga” que servia o seu agregado familiar ficando sem ela e sem o governo familiar que esta lhe proporcionava e com outra viatura verdadeiramente inutilizada pois não podia circular com ela.


11º - De onde resultou um grave dano para o Réu-Reconvinte( e sua família), cuja Reconvenção deveria ter sido julgada procedente na sua totalidade fazendo-se justiça.


12º - Os fundamentos de facto e de direito que fundamentaram a douta Decisão de condenar, no pedido, por imprecisos, e contra as regras de experiência, levam a que a douta Sentença seja nula, nos termos do disposto no artigo 615º-1-b) do Código de Processo Civil.


13º - Tendo o Réu agido com manifesta boa-fé, convicto que poderia passar a utilizar a viatura que lhe havia sido entregue, nunca poderia ter sido privado do respectivo gozo, como não deveria ter sido condenado.


14º - O ora Recorrente teve o crédito pretendido e acordado aprovado, não lhe sendo imputável posteriores “dificuldades” que não lhe podem ser imputadas mas somente à Autora pela sua má fé manifesta e inaceitável incúria enquanto parte mais forte no negócio e vendedora de uma marca de renome mundial como a Volvo, na modalidade de “Venire contra factum proprium”.


15º - O douto Tribunal “a quo” sempre deveria ter considerado os montantes entregues pelo Réu, em que se terão que incluir, para além do valor em numerário, inicial, o valor da viatura entregue, e não o tendo feito, a Autora enriqueceu, sem causa, à custa do Réu.


16º - Se se considerar, à cautela, que o Réu não comprou, mas alugou, por longa duração, pagas as rendas, nunca seria devido mais qualquer valor, existiu erro na aplicação do direito e da prova de quem se recorre, salvo devido respeito.


17º - Tendo resultado não provado que, entre outros, k) O pedido de financiamento não foi aprovado porque o Réu não forneceu os documentos pedidos pela Interveniente Santander Consumer Finance referidos em 17)., mostra-se afastada qualquer responsabilidade por parte do Réu, ora Recorrente, que deveria ter sido absolvido dos pedidos lavrados pela Autora, existindo assim , pelo menos, contradição na prova assente como provada e não provada e subsequentemente com a fundamentação usada para tanto.


18º -Assim , nessa linha lógica, considerando provados todos os demais e 12, 16, 19, 22, 23, 39, 42, 44, 49, 50, 53, 54( com as alterações exaradas face aos factos supra descritos) e g), h), q), r), s), t), u) e w)( na sentença não provados), pela correcta análise dos depoimentos vertidos de, (depoimento/declarações de parte) CC e DD, e das testemunhas, EE, FF, GG, HH, melhor exarados na motivação, e assim, haveria de lograr-se à costumada justiça para com o tratamento que o ora Réu teve e não merecido considerando que a autora tinha dever de sanar a situação que criou de forma inaceitável violando o seus próprios protocolos de entrega das viaturas com financiamento sanar-se-á o erro notório na apreciação da prova, senão outro erro vicio, que lesou a decisão mais justa que concederia provimento as pretensões legitimas do Réu II em detrimento das outras, com todo o respeito.


19º-Assim:


1. A Autora é uma sociedade cujo objeto é o comércio, nomeadamente, de automóveis e camiões, novos e usados, seus pertences e sobressalentes.


2. O Réu já era cliente da Autora, possuindo uma viatura da marca Volvo.


3. O Réu pretendia adquirir à Autora uma outra viatura das expostas no seu stand.


4. No dia 11 de setembro de 2019, após a realização de um test-drive nas instalações da Autora, sitas em ..., o Réu escolheu um outro Volvo, um V60, com matrícula ..-VL-...


5. O preço acordado entre Autora e Réu foi de € 54.900,00.


6. Desde o início dos contactos entre Autora e Réu, que este informou aquela da sua indisponibilidade financeira para efetuar o pagamento do preço integral da viatura e da necessidade de recorrer a financiamento.


7. Para adquirir a viatura referida em 4), o Réu entregou à Autora, em 11 de setembro de 2019, € 1.000,00.


8. No dia 11 de setembro de 2019 foi preenchido um documento intitulado “contrato de compra e venda”, referente à viatura referida em 4), assinado na parte concernente à Autora e ao Réu, do qual constava como valor da venda € 54.900,00, como retoma um Volvo no valor de € 14.900,00, e como modo de pagamento numerário (€ 1.000,00) e financiamento através da entidade Santander Consumer.


9. No documento referido em 8) constavam, entre o mais, as seguintes cláusulas:


10. No dia 11 de setembro de 2019, a Autora apresentou ao Réu uma simulação de financiamento, que este concordou.


11. Por acordo entre Autora e Réu, foi solicitado à Interveniente Santander Consumer um pedido de financiamento em nome do Réu para pagamento do remanescente do preço.


12. O Réu entregou, por email, documentação que lhe foi solicitada pela Autora, concretamente documentação pessoal e extratos bancários referentes ao período de 3 meses e por isso o Réu entregou toda a documentação requerida no stand da Autora em ....


13. Em 17 de setembro de 2019, a Autora inseriu no sistema, através de portal institucional, uma proposta para financiamento para a aquisição pelo Réu do veículo referido em 4), à qual coube o n.º interno 2019.035185.00, que previa uma entrada inicial de € 5.000,00 e 83 rendas mensais e sucessivas de € 638, 79.


14. Tal proposta foi recusada pela Interveniente Santander Consumer, por não cumprir os limites definidos pelo Banco de Portugal em matéria de endividamento.


15. No dia 18 de setembro de 2019, perante a informação que o Réu se propunha antecipar o crédito que detinha noutra instituição de crédito, a Interveniente Santander Consumer solicitou à Autora o envio de extratos bancários do Réu para reapreciação da proposta e nova análise de risco.


16. Em 19 de setembro de 2019, após a receção dos extratos bancários, a proposta para financiamento com o n.º 2019.035185.00 foi condicionalmente aprovada pela Interveniente Santander Consumer, facto que o Réu AA desconhecia.


17. Consta na resposta da Interveniente Santander Consumer o seguinte:


18. A proposta para financiamento referida em 16) era viável, mas ficou dependente da apresentação por parte do Réu de documentação, nomeadamente, do comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.


19. O Réu, posteriormente e em momento não concretamente apurado mas já depois de haver levantado a viatura por ordem da Autora, foi informado da necessidade daqueles documentos para aprovação do financiamento que na perpectiva já estava aprovado segundo aquela lhe informou aquando do levantamento da mesma.


20. A 23 de setembro de 2019, a Autora procedeu à emissão do contrato com o n.º 2019.035185.01.


21. O contrato referido em 20) encontrava-se assinado na parte referente à Interveniente Santander Consumer.


22. A Autora ligou ao Réu a 27 de setembro de 2019, por intermédio dos seus funcionários, nomeadamente GG, informando-o de que poderia ir levantar a viatura ao stand, e aquando do telefonema referido a aquela, na pessoa dos seus funcionários, informou o Réu que o crédito solicitado estava aprovado.


23. No dia 27 de setembro de 2019, sob instruções do vendedor da Autora, GG, o Réu foi buscar a viatura nova referida em 4).


24. No stand da Autora, a 27 de setembro de 2019, o Réu assinou um documento sob a designação de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, com inicio a 23 de setembro 2019 e termo a 25 de setembro de 2026, que comportava uma mensalidade de € 638,79 a ser paga em 84 prestações, vencendo-se a primeira em 25 de outubro de 2019.


25. No contrato referido em 24), consta nas condições gerais, entre o mais, as seguintes cláusulas:


26. Consta nas cláusulas particulares do contrato referido em 24), o seguinte:


27. No dia 27 de setembro de 2019, o Réu entregou à Autora o comprovativo da celebração de seguro de responsabilidade civil respeitante à viatura referida em 4).


28. Naquele mesmo dia 27 de setembro de 2019, a Autora entregou ao Réu uma declaração de autorização de circulação da viatura válida durante um mês, acordo de garantia, declaração aduaneira do veículo e certidão comprovativo de pagamento do imposto único de circulação.


29. Ainda no dia 27 de setembro de 2019, o Réu entregou à Autora mais € 4.000,00, en numerário, e a sua viatura usada.


30. O Réu não tinha a viatura usada totalmente paga junto da financiadora, devendo ainda o montante aproximado de € 14.900,00.


31. Para receber a viatura livre de ónus e encargos, a Autora pagou junto da financiadora o valor referido em 30).


32. O contrato referido em 24) foi remetido para validação à Interveniente Santander Consumer a 30 de setembro de 2019 já depois da viatura se encontrara na posse do réu II.


33. Em anexo ao contrato referido em 24) constava uma Ficha de Informação Normalizada em Matéria de Crédito aos Consumidores.


34. Em data concretamente não apurada, mas posterior a 27 de setembro de 2019 e prévia a 16 de outubro de 2019, foi remetido à Interveniente Santander Consumer o comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.


35. O envio do comprovativo referido em 34) ditou, por parte da Interveniente Santander Consumer, uma alteração do plano financeiro por forma a respeitar os limites impostos pelo Banco de Portugal, tendo sido exigido o aumento da entrada inicial para € 8.650,00 e 83 rendas de € 498,38.


36. No dia 16 de outubro de 2019, foram comunicadas pela Interveniente Santander Consumer à Autora as novas condições de financiamento.


37. No dia 17 de outubro de 2019, a Autora ligou, na pessoa do seu funcionário, GG, ao Réu informando-o que existia um problema com a celebração do crédito.


38. Após a data referida em 36), a Autora não enviou à Interveniente Santander Consumer um novo contrato, tendo em conta as novas condições de financiamento.


39. Foram feitas diversas interpelações pela Autora ao Réu para que este lhe devolvesse a viatura referida em 4) tal como o Réu lavrou pedidos de reunião com aquela,


40. No dia 25 de novembro de 2019, o Réu enviou uma carta à Autora com o seguinte teor:


41. A Autora respondeu à carta referida em 40), por carta datada de 26 de novembro de 2019, com o seguinte teor:


42. A Autora apresentou queixa-crime contra o Réu pela prática de um crime abuso de confiança.


43. O Réu apresentou no Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo do ... uma reclamação contra a Autora.


44. A Autora solicitou junto do IMT a apreensão da viatura referida em 4), alegando que a mesma foi cedida ao Réu e não foi por este devolvida.


45. A viatura referida em 4) continua com o registo averbado em nome da Autora.


46. A viatura referida em 4) continua até à data de hoje com o Réu.


47. O contrato de seguro referente à viatura referida em 4) está em nome da Autora, que procedeu ao seu pagamento.


48. A Autora não recebeu até à data de hoje o remanescente do preço, no valor de € 49.900,00, por parte do Réu.


49. A Interveniente Santander Consumer não transferiu para a Autora o remanescente do preço em virtude da Autora não haver por diligenciado pela correcta junção de documentação e sua aprovação junto daquela e haver entregue a viatura ao Réu com tal incompletude.


50. A partir do início de outubro de 2019, o Réu não mais pode circular com a viatura referida em 4) considerando a ordem de apreensão referida em 44, e por tal desiderato que a viatura referida em 4) se encontra imobilizada, deixando o Réu de a utilizar nas deslocações diárias que efetuava.


51. A viatura referida em 4) foi escolhida pelo Réu para fazer face ao seu quotidiano e do seu agregado familiar, composto por si, sua mulher e sua filha.


52. O Réu possui uma carrinha que usa na sua atividade profissional para transportar peixe.


53. As condutas da Autora que impossibilitaram a utilização pelo Réu da viatura causaram-lhe a si e à sua família ansiedade, tristeza, insegurança, desconfiança, intranquilidade e falta de descanso.


54. As condutas da Autora que impossibilitaram a utilização pelo Réu da viatura causaram-lhe humilhação, perturbação, vergonha, stress na sua vida quotidiana e familiar, ofensa da sua honra e consideração e deixaram-no várias noites sem dormir.


Factos Não Provados e que haveria de ser considerados provados:


g) Aquando do telefonema referido em 22) a Autora, na pessoa dos seus funcionários, informou o Réu que o crédito solicitado estava aprovado.


h) O contrato referido em 20) devia ser remetido à Interveniente Santander Consumer, acompanhado da documentação referida em 17)


q) A partir do início de outubro de 2019, o Réu não mais pode circular com a viatura referida em 4) considerando a ordem de apreensão referida em 44).


r) A viatura referida em 4) era a única que o Réu possuía.


s) A partir de outubro de 2019, o Réu teve de efetuar o transporte da família na carrinha referida em 52).


t) O Réu é pessoa de bem, séria, honesta, trabalhadora e bem vista no meio onde se insere.


v) As condutas da Autora que impossibilitaram a utilização pelo Réu da viatura causaram-lhe a si e à sua família ansiedade, tristeza, insegurança, desconfiança, intranquilidade e falta de descanso.


w) As condutas da Autora que impossibilitaram a utilização pelo Réu da viatura causaram-lhe humilhação, perturbação, vergonha, stress na sua vida quotidiana e familiar, ofensa da sua honra e consideração e deixaram-no várias noites sem dormir.


20º-Se houvesse sido peneirada a prova testemunhal, nos moldes esmiuçados supra e aplicado o direito adequado ao caso concreto teria sido concluído que a propriedade é do Réu e não poderia concluir-se, pois, que o negócio celebrado entre Autora e Réu a 11 de setembro de 2019 se tratava de uma simples “reserva” mas sim uma compra e venda efectivamente conforme contrato de compra e venda lavrado que transferiu a propriedade da viatura mas o gozo, fruição e uso não lesando o legitimo proprietário AA, existindo erro na aplicação do direito em tal parte.


21º-Ficou provado que o Réu foi informado de que existia um problema com a celebração do crédito, foram lhe propostas novas condições de financiamento que traduziam prestações mensais até mais altas das inicialmente propostas( e não como concluiu o tribunal da decisão, mal a ver do recorrente, pois a taxa de esforço era maior e logo a prestação a pagar não era mais baixa mas mais alta e era por isso que se exigia posteriormente entrada de valor muito superior ao acordado e assente como provado) e aquele não aceitou (apesar da não aceitação não constar dos factos provados é dedutível, por presunção judicial, dos factos provados n.ºs 37 e 38) e não se contesta tal factualidade, mas, ainda assim…aquele tinha dinheiro na conta caso fosse necessário “saque” por parte da interveniente Santander e tal não ocorreu por culpa exclusiva da A.( considerando o contrato assinado aquando do levantamento da viatura)


22º-Por outro lado, entender como fez o Tribunal de quem se recorre, que em face da não aprovação do financiamento e da não aceitação das novas condições, o Réu sabia que a Autora estava sem receber o remanescente do preço, mas ainda assim não encontrou alternativas para o pagar, o que lhe incumbia (ou em último recurso devolver a viatura à Autora e exigir-lhe a restituição do que lhe havia entregue) é “ aberrante” pois o Réu contactou a Autora, enviando-lhe missivas, e até o Tribunal de 1ª Instância, entendeu que, a instâncias da testemunha FF, os documento infirmavam tal teoria em detrimento daquele mas suportavam, ao invés, as suas alegações.


23º-Supondo que o Réu entregava a viatura que é sua propriedade aquela como faria com a viatura entregue?! Que era a única que tinha?...é que foram tentados vários acordos com a A. e esta nunca aceitou compensar de que forma fosse aquele cliente lesado pelos seus maus ofícios, com todo o respeito o Tribunal não esteve na melhor sensibilidade concedendo tal desiderato com o qual a família do AA não se conforma.


24º-Omissão de pronúncia quanto à questão da propriedade não estar assente na matéria factual, o que se submete à apreciação, da Veneranda Relação de Évora, nos termos do disposto no nº 1, alínea d) do artigo 615º do CPC.


25º-Arguir a nulidade processual, nos termos do artigo 195º nº 1 do CPC, por omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve e a irregularidade cometida influir no exame e na decisão da causa.


Requer-se oficiosamente a censura de conhecimento oficioso em toda a matéria de factos e direito, “Iura Novit Curia”.


Termos em que,


deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, e, consequentemente, revogada a douta Sentença de Fls., a substituir por outra que o absolva o Réu, condenando a Autora no pedido reconvencional, com todos os efeitos adjacentes,


À cautela,


Que seja repetido o julgamento para sanar irregularidade ou quaisquer vícios existentes, como é de Justiça.“


9. A A. apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou sobre a nulidade da sentença, a impugnação da decisão de facto e da decisão de direito, tendo ainda requerido a ampliação do objeto do recurso da matéria de facto e interposto recurso subordinado, concluindo as suas contra-alegações, nestes últimos segmentos, do seguinte modo:


Da reapreciação da matéria de facto


81. Pese embora a incontestável falta de fundamento do recurso do Recorrente, vem a Recorrida, por mero dever de patrocínio e exacerbada cautela, requerer a reapreciação da prova e o consequente aditamento do elenco de factos dados como provados, com vista à confirmação da decisão recorrida (art. 636.º/2, do CPC).


82. Desde o início das negociações que Recorrente e Recorrida sabiam que aquele necessitava de obter um financiamento bancário para pagamento do remanescente do preço acordado pela aquisição da viatura aqui em crise, no âmbito do contrato de compra e venda (cfr. facto provado n.º 6 da sentença recorrida).


83. Por saber isso, e na sequência da não aprovação do financiamento do crédito pelo Interveniente Santander Consumer, a Recorrente disponibilizou-se a ajudar o Recorrente a encontrar uma solução para resolução desta questão.


84. Nesta senda, a Recorrida entende que o Tribunal a quo devia ter dado como provados, além do facto n.º 6 da sentença recorrida, os seguintes factos com os seguintes fundamentos:


i. Novo Facto Provado n.º 1: Na sequência da não aprovação do crédito pelo Interveniente Santander Consumer, a Autora disponibilizou-se a ajudar o Réu a encontrar uma solução para o pagamento da viatura. O qual resulta provado do do DOC 9 junto com a PI e do DOC 1 junto com o Req. com a ref.ª 12117869.


ii. Novo Facto Provado n.º 2: A Autora apresentou ao Réu várias propostas para pagamento do preço da viatura, entre as quais, (i.) a possibilidade de aumento do valor da entrada inicial, no montante de cerca de Eur. 3.000,00, por forma a diminuir o valor da renda devida no âmbito do contrato de financiamento, (ii.) a possibilidade de emprestar ao Réu cerca de Eur. 3.000,00, no caso deste não conseguir aumentar o valor da entrada inicial e ainda (iii.) a possibilidade de devolver ao Réu o valor por ele pago a título de entrada inicial mediante devolução da viatura. O qual resulta provado da conjugação das declarações de parte do Recorrente, dos depoimentos das testemunhas GG, FF e HH e DOC 1 junto com o Req. com a ref.ª 12117869.


iii. Novo Facto Provado n.º 3: O Réu não aceitou qualquer das propostas apresentadas pela Autora para ultrapassar a não aprovação do financiamento requerido para aquisição da viatura. O qual resulta provado da conjugação das declarações de parte do Recorrente, dos depoimentos das testemunhas GG e FF e DOC 1 junto com o Req. com a ref.ª 12117869.


iv. Novo facto Provado n.º 4: O Réu não apresentou contrapropostas à Autora para pagamento da viatura. O qual resulta provado da conjugação das declarações de parte do Recorrente, e dos depoimentos das testemunhas GG e FF.


85. Destes novos factos e da prova carreada dos autos, resulta evidente que o Recorrente pretendeu efetivamente celebrar um contrato de compra e venda com a Recorrida (que considera ter sido valida e eficazmente celebrado), independentemente da (não) aprovação do contrato de financiamento pelo Interveniente Santander Consumer.


86. Se assim não fosse, e sabendo da não aprovação do crédito, o Recorrente teria aceitado alguma das propostas apresentadas pela Recorrida ou apresentado uma contraproposta ou, no limite, ter-lhe-ia devolvido a viatura mediante a devolução da entrada inicial.


87. Mesmo perante a não aprovação do crédito, o Recorrente manteve a posse da viatura e a vontade de manter o contrato e compra e venda, independentemente do financiamento, conformando-se com a celebração de um contrato de compra de venda [simples] para aquisição do veículo, com todas as consequências daí emergentes, nomeadamente a obrigação de pagamento do preço (cfr. art. 879.º, al. c), do CC).


88. Pelos motivos expostos, deve a proposta da Recorrida em aditar como factos provados os novos factos supra identificados ser procedente, mantendo-se, em qualquer circunstância, a decisão recorrida. (…)


Recurso subordinado


112. Na eventual procedência do recurso interposto pelo Recorrente, concretamente no que respeita à validade do contrato ALD celebrado, o que apenas se concebe por mero dever de patrocínio e exacerbada cautela, vem a Recorrida, na respetiva alegação e a título subsidiário, ao abrigo do art. 633.º/3 do CPC, arguir a nulidade (de conhecimento oficioso) do referido contrato com fundamento na existência de contratos coligados e a repercussão das vicissitudes de um no outro e daí retirar as devidas conclusões.


113. Entende a Recorrida que, apreciadas as alegações do Recorrente, se o Tribunal concluir pela nulidade do contrato de compra e venda, deverá aplicar o DL n.º 133/2009, de 2 de junho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, diploma referido no Contrato de Financiamento, de 23.09.2019.


114. Os contratos aqui em crise – o de compra e venda e o de financiamento – encontram-se coligados, nos termos do no art. 4.º/1, al. o) do DL n.º 133/2009, de 2 de junho.


115. Para que exista um contrato de crédito coligado, é necessário o preenchimento de dois requisitos: (i.) o crédito deve servir tão-somente para financiar a aquisição ou prestação de serviços; e (ii.) ambos os contratos devem constituir objetivamente uma unidade económica, o que se verifica, desde logo, quando o contrato de crédito remeta para o contrato originário, ou seja, se a finalidade da contratação estiver expressamente prevista no contrato de crédito.


116. No caso, ambos os requisitos encontram-se verificados: (i.) ficou assente que o Recorrente só recorreu ao financiamento bancário para ter liquidez financeira para pagar o remanescente do preço da viatura à Recorrida; (ii.) a viatura aqui em crise consta expressamente no contrato de crédito.


117. Portanto, os contratos em questão estão ligados por uma relação de funcionalidade, na medida em que o financiamento tinha como objetivo viabilizar a celebração do contrato de compra e venda. O crédito destinava-se a financiar a aquisição, sendo esta a causa daquele. Assim, apesar de serem contratos autónomos e sujeitos aos respetivos regimes jurídicos, existe entre eles uma interdependência funcional recíproca44.


44 Neste sentido, entre outros, o Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, de 17-09-2025, proc. n.º 162/07.6TBCHV-A.G1, Relator: Ana Cristina Duarte, disponível para consulta em www.dgsi.pt.


118. O Tribunal a quo concluiu, e bem, pela aplicação do regime previsto no DL n.º 133/2009; no entanto, não retirou as devidas consequências (cfr. disposto no art. 18.º/1).


119. O Tribunal devia ter aplicado o regime previsto no art. 18.º/1 do DL n.º 133/2009, que refere que a invalidade ou a ineficácia do contrato de crédito coligado repercute-se, na mesma medida, no contrato de compra e venda. Isto é, o Tribunal deveria ter concluído também pela nulidade do contrato de compra e venda.


120. Sendo os contratos inválidos por força da lei, encontrava-se o Tribunal obrigado a retirar as devidas consequências desta invalidade (in casu, nulidade de conhecimento oficioso), procurando aplicar as normas referentes às consequências da declaração de nulidade do negócio, previstas no art. 289.º do CC.


121. Com efeito, no caso de este Tribunal concluir pela nulidade do contrato de compra e venda, e por força da aplicação do art. 18.º/1 do DL n.º 133/2009 e art. 289.º do CC, deverá o Recorrente restituir à Recorrida a viatura aqui em crise e ressarcir a Recorrida pelo uso de veículo alheio.


122. Uma vez declarada a nulidade, a ordem jurídica pressupõe o regresso ao status quo ante, isto é, à situação que existiria se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado.


123. Em termos práticos, como bem sendo defendido pela doutrina, a liquidação do contrato inválido terá de conciliar o princípio da retroatividade resultado do regime legal da nulidade e a realidade prática.


124. Isto porque, no rigor da prática, há efeitos do contrato inválido que não podem ser apagados, seja, por exemplo, num contrato de trabalho em que o trabalhador prestou a sua prestação ou, como na situação carreada aos presentes autos, um contrato de compra e venda de um veículo automóvel cuja detenção e utilização foi efetuada pelo comprador, ora Réu, não tendo liquidado qualquer prestação/renda definidos do corpo do dito Contrato.


125. Como defende a Colenda Conselheira MARIA CLARA SOTTOMAYOR, em comentário ao artigo 289.º do Código Civil Anotado45, no processo de aferição do valor da coisa, [e]em regra, o critério para calcular o valor da coisa e o valor do envio prestado será aquele que foi adotado no próprio contrato inválido que fixou a valor da contraprestação, o que tem por consequência que cada uma das partes retém a prestação recebida, equivalendo, na prática, a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo (destaques nossos).


45 Maria Clara Sottomayor, Comentário ao Código Civil: parte geral / [coord. de Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença], Universidade Católica Editora, 2014, pág. 718.


126. In casu, a renda do contrato celebrado entre as Partes foi fixada em € 638,79 (seiscentos e trinta e oito euros e setenta e nove cêntimos) – Facto Provado n.º 24 da sentença recorrida.


127. Em face de tudo o que precede, s.m.o. deve o Venerando Tribunal da Relação aquando da decisão de nulidade do contrato aqui em crise, determinar o pagamento do valor da prestação a pagar desde o início do contrato, em setembro de 2019, até efetivo e integral pagamento. À data da submissão das presentes contra-alegações, entre a celebração do contrato e a presente data decorreram 61 (sessenta e um meses), pelo que, para além da entrega do veículo (e sem prejuízo de outros direitos indemnizatórios que assistam à Autora), deve o Réu ser condenado a pagar a quantia de € 38.966,19 (trinta e oito mil euros novecentos e sessenta e seis euros e dezanove cêntimos), atualizados à taxa da inflação, acrescido das quantias vincendas, por cada mês de detenção do mesmo, até efetiva entrega do veículo.


Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis, doutamente supridos por V. Exas.:


a) deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a Sentença que condenou o Réu ao pagamento da quantia de € 49.900,00 (quarenta e nove mil novecentos e novecentos euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal civil, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, devendo ainda, em paralelo, ser admitida a ampliação do âmbito do recurso e, consequentemente, serem aditados à lista de factos provados da sentença os factos supra elencados.


b) Caso assim não se entenda, o que apenas de concebe por exacerbada cautela, deve ser admitido o recurso subordinado interposto pela Autora e/ou conhecida da nulidade do negócio em crise oficiosamente e, em qualquer caso e consequentemente, deve ser alterada a decisão proferida pelo Tribunal a quo e o Réu ser condenado (i.) a entregar à Autora o veículo objeto dos presentes autos (ii.) e, cumulativamente, a pagar à Autora, a quantia mensal de € 638,79 (seiscentos e trinta e oito euros e setenta e nove cêntimos), pelo uso do veículo, à data, durante 61 meses [SET2019 a SET 2024], o que perfaz a quantia de € 38.966,19 (trinta e oito mil euros novecentos e sessenta e seis euros e dezanove cêntimos), atualizados à taxa da inflação, acrescido das quantias vincendas, por cada mês de detenção do mesmo, até efetiva entrega do veículo.”


10. O Tribunal a quo indeferiu a nulidade da sentença arguida pelo R..


11. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


Assim, cumpre apreciar se:


a) a sentença padece de nulidade;


b) a matéria de facto deve ser alterada nos termos pugnados pelo R.;


c) deve ser apreciada a ampliação do objeto do recurso quanto à decisão da matéria de facto;


d) deve ser alterada a decisão de direito nos termos propugnados pelo R.;


e) na eventualidade de proceder o recurso, se deve ser apreciado o recurso subordinado.


III – Fundamentação


A) Da nulidade da sentença


1. Veio o R. arguir a nulidade da sentença, alegando:


- que os fundamentos de facto e de direito são imprecisos e contra as regras da experiência, situação que o R. reconduz ao disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil;


- que tendo resultado não provado o facto k), mostra-se afastada qualquer responsabilidade por parte do R., que deveria ter sido absolvido dos pedidos lavrados pela A., existindo assim, pelo menos, contradição na prova assente como provada e não provada e subsequentemente com a fundamentação usada para tanto;


- que a questão da propriedade não está assente na matéria factual, situação que o R. reconduz ao disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.


A A. pugnou pelo indeferimento da nulidade.


O Tribunal a quo pronunciou-se no sentido do indeferimento da nulidade.


2. Consta do citado artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que “É nula a sentença quando:


(…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;


c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;


d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”.


Ora, percorrendo a argumentação aduzida pelo R. em suporte do primeiro fundamento de nulidade invocado, verificamos que o que dela emerge é a discordância do R. quanto à convicção formada pelo Tribunal a quo sobre os factos submetidos ao seu julgamento, de onde se depreende que o Tribunal a quo indicou os meios de prova produzidos sobre os factos e a valoração que fez dos mesmos.


A questão colocada não se situa, assim, no domínio da nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, mas antes em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, que o R. também deduziu.


Improcede, assim, a invocada nulidade.


3. Pese embora não qualifique esta situação, o R. alude a que o facto não provado sob k) afasta a sua responsabilidade, pelo que deveria ter sido absolvido dos pedidos formulados pela A., assim, atento o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, passaremos a apreciar esta questão.


Ora, ocorre nulidade apenas “quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier a ser expresso” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.05.2024 (Nelson Borges Carneiro), Processo n.º 311/18.9T8PVZ.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/).


Porém, inexiste uma linha direta entre o referido facto não provado k) e a condenação do R. no pagamento do preço.


Com efeito, a decisão de condenação do R. no pagamento do preço resulta da conjugação de múltiplos factos, designadamente, os factos 34. a 38., que contêm as afirmações de que foi comunicada pelo Banco Santander Consumer uma alteração do plano financeiro, ditada pelas informações entretanto recebidas pelo Interveniente acerca da capacidade de endividamento do R. e os limites do Banco de Portugal a este respeito, bem como o teor do clausulado do contrato aludido no facto provado 25., que sujeita o contrato à condição suspensiva da aprovação do mesmo pelo Interveniente, e ainda a ausência de demonstração de um novo contrato, com as novas condições.


Assim, o Tribunal a quo articulou os factos submetidos à sua apreciação de uma forma lógica, pelo que não padece a sentença do vício que lhe é apontado.


4. No que tange ao terceiro fundamento de nulidade invocado, resulta evidente do teor da sentença o oposto do que alega o Recorrente, porquanto a condenação do R. no pagamento do preço da viatura é a conclusão que o Tribunal a quo extrai da consideração de que o contrato de compra e venda ficou perfeito pelo acordo de vontades da A. e do R. nesse sentido, daí decorrendo para o R. a obrigação de pagamento do preço.


Por sua vez, a conclusão acima indicada é alicerçada, pelo Tribunal a quo, nos factos que se mostram provados, verificando-se que o R. diverge do juízo probatório subjacente a alguns desses factos e ao seu subsequentemente enquadramento jurídico.


Ou seja, não ocorre omissão de pronúncia, antes estamos de novo em presença de uma discordância atinente ao sentido da decisão da matéria de facto e da decisão de direito, que não consubstanciam nulidade, situando-se diversamente no domínio da impugnação da decisão da matéria de facto e da decisão de direito, que o R. também deduziu.


Improcede, assim, a invocada nulidade.


B) Da impugnação da matéria de facto


1. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”


E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:


“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”


A ideia fundamental que se extrai da norma transcrita é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.


A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).


Consequentemente, o referido n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil aplica-se no estrito âmbito delimitado pelas alegações do recorrente, o que equivale a dizer que não compete ao Tribunal da Relação reexaminar todo o processo e sindicar indiscriminadamente todos os factos e todos os meios de prova, como se de um segundo julgamento completo se tratasse.


Antes compete ao tribunal de recurso tão somente reapreciar os específicos factos identificados pelo recorrente, atentando nos meios de prova concretos que, de acordo com o recorrente, impõem decisão diversa, sem prejuízo de dever tomar em consideração outros meios de prova que, conjugadamente, imponham decisão diversa.


Não encontra, deste modo, acolhimento legal a pretensão do Recorrente de “censura de conhecimento oficioso em toda a matéria de factos e direito”.


No mais, constata-se que o Recorrente indicou os pontos de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova.


É certo que o Recorrente não discorreu sobre cada um dos meios de prova com respeito a cada um dos factos, mas transcreveu múltiplos excertos das declarações de parte do R. e dos depoimentos das testemunhas HH, GG, JJ, CC e FF, expondo, de seguida, de forma global, os aspetos mais relevantes que considera sobressaírem destes meios de prova relativamente à matéria de facto por si impugnada.


Ora, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2024 (Mário Belo Morgado) (Processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/) que :


“IV- O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que todas as especificações referidas no seu n.º 1 constem das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 deste artigo, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.


V- Tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova -, o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.”


Atendendo, assim, a que de uma forma geral são apreensíveis as razões da discordância do R. quanto à decisão da matéria de facto, conclui-se que estão reunidas todas as condições para que deva ser apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto.


Importa ainda assinalar que, por força do atual regime de recursos compete ao Tribunal da Relação apreciar a prova sindicada pelo recorrente, de acordo com as regras legais pertinentes, em ordem a formar a sua própria convicção, “por isso, a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.” (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, p. 348).


Não se trata, no entanto, de um poder de modificação irrestrito, precisamente porque não se visa proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de reapreciar a decisão proferida pela 1ª Instância, assim, “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do Tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 350).


No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2027 (Maria João Matos) (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, in http://www.dgsi.pt/) que:


“I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).”


2. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:


“1. A Autora é uma sociedade cujo objeto é o comércio, nomeadamente, de automóveis e camiões, novos e usados, seus pertences e sobressalentes.


2. O Réu já era cliente da Autora, possuindo uma viatura da marca Volvo.


3. O Réu pretendia adquirir à Autora uma outra viatura das expostas no seu stand.


4. No dia 11 de setembro de 2019, após a realização de um test-drive nas instalações da Autora, sitas em ..., o Réu escolheu um outro Volvo, um V60, com matrícula ..-VL-...


5. O preço acordado entre Autora e Réu foi de € 54.900,00.


6. Desde o início dos contactos entre Autora e Réu, que este informou aquela da sua indisponibilidade financeira para efetuar o pagamento do preço integral da viatura e da necessidade de recorrer a financiamento.


7. Para adquirir a viatura referida em 4), o Réu entregou à Autora, em 11 de setembro de 2019, € 1.000,00.


8. No dia 11 de setembro de 2019 foi preenchido um documento intitulado “contrato de compra e venda”, referente à viatura referida em 4), assinado na parte concernente à Autora e ao Réu, do qual constava como valor da venda € 54.900,00, como retoma um Volvo no valor de € 14.900,00, e como modo de pagamento numerário (€ 1.000,00) e financiamento através da entidade Santander Consumer.


9. No documento referido em 8) constavam, entre o mais, as seguintes cláusulas:








10. No dia 11 de setembro de 2019, a Autora apresentou ao Réu uma simulação de financiamento, que este concordou.


11. Por acordo entre Autora e Réu, foi solicitado à Interveniente Santander Consumer um pedido de financiamento em nome do Réu para pagamento do remanescente do preço.


12. O Réu entregou, por email, documentação que lhe foi solicitada pela Autora, concretamente documentação pessoal e extratos bancários referentes ao período de 3 meses.


13. Em 17 de setembro de 2019, a Autora inseriu no sistema, através de portal institucional, uma proposta para financiamento para a aquisição pelo Réu do veículo referido em 4), à qual coube o n.º interno 2019.035185.00, que previa uma entrada inicial de € 5.000,00 e 83 rendas mensais e sucessivas de € 638, 79.


14. Tal proposta foi recusada pela Interveniente Santander Consumer, por não cumprir os limites definidos pelo Banco de Portugal em matéria de endividamento.


15. No dia 18 de setembro de 2019, perante a informação que o Réu se propunha antecipar o crédito que detinha noutra instituição de crédito, a Interveniente Santander Consumer solicitou à Autora o envio de extratos bancários do Réu para reapreciação da proposta e nova análise de risco.


16. Em 19 de setembro de 2019, após a receção dos extratos bancários, a proposta para financiamento com o n.º 2019.035185.00 foi condicionalmente aprovada pela Interveniente Santander Consumer.


17. Consta na resposta da Interveniente Santander Consumer o seguinte:





18. A proposta para financiamento referida em 16) era viável, mas ficou dependente da apresentação por parte do Réu de documentação, nomeadamente, do comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.


19. O Réu foi informado da necessidade daqueles documentos para aprovação do financiamento.


20. A 23 de setembro de 2019, a Autora procedeu à emissão do contrato com o n.º 2019.035185.01.


21. O contrato referido em 20) encontrava-se assinado na parte referente à Interveniente Santander Consumer.


22. A Autora ligou ao Réu a 27 de setembro de 2019, por intermédio dos seus funcionários, informando-o de que poderia ir levantar a viatura ao stand.


23. No dia 27 de setembro de 2019, sob instruções do vendedor da Autora, o Réu foi buscar a viatura nova referida em 4).


24. No stand da Autora, a 27 de setembro de 2019, o Réu assinou um documento sob a designação de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, com início a 23 de setembro 2019 e termo a 25 de setembro de 2026, que comportava uma mensalidade de € 638,79 a ser paga em 84 prestações, vencendo-se a primeira em 25 de outubro de 2019.


25. No contrato referido em 24), consta nas condições gerais, entre o mais, as seguintes cláusulas:





26. Consta nas cláusulas particulares do contrato referido em 24), o seguinte:





27. No dia 27 de setembro de 2019, o Réu entregou à Autora o comprovativo da celebração de seguro de responsabilidade civil respeitante à viatura referida em 4).


28. Naquele mesmo dia 27 de setembro de 2019, a Autora entregou ao Réu uma declaração de autorização de circulação da viatura válida durante um mês, acordo de garantia, declaração aduaneira do veículo e certidão comprovativo de pagamento do imposto único de circulação.


29. Ainda no dia 27 de setembro de 2019, o Réu entregou à Autora mais € 4.000,00 e a sua viatura usada.


30. O Réu não tinha a viatura usada totalmente paga junto da financiadora, devendo ainda o montante aproximado de € 14.900,00.


31. Para receber a viatura livre de ónus e encargos, a Autora pagou junto da financiadora o valor referido em 30).


32. O contrato referido em 24) foi remetido para validação à Interveniente Santander Consumer a 30 de setembro de 2019.


33. Em anexo ao contrato referido em 24) constava uma Ficha de Informação Normalizada em Matéria de Crédito aos Consumidores.


34. Em data concretamente não apurada, mas posterior a 27 de setembro de 2019 e prévia a 16 de outubro de 2019, foi remetido à Interveniente Santander Consumer o comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.


35. O envio do comprovativo referido em 34) ditou, por parte da Interveniente Santander Consumer, uma alteração do plano financeiro por forma a respeitar os limites impostos pelo Banco de Portugal, tendo sido exigido o aumento da entrada inicial para € 8.650,00 e 83 rendas de € 498,38.


36. No dia 16 de outubro de 2019, foram comunicadas pela Interveniente Santander Consumer à Autora as novas condições de financiamento.


37. No dia 17 de outubro de 2019, a Autora ligou, na pessoa do seu funcionário, GG, ao Réu informando-o que existia um problema com a celebração do crédito.


38. Após a data referida em 36), a Autora não enviou à Interveniente Santander Consumer um novo contrato, tendo em conta as novas condições de financiamento.


39. Foram feitas diversas interpelações pela Autora ao Réu para que este lhe devolvesse a viatura referida em 4).


40. No dia 25 de novembro de 2019, o Réu enviou uma carta à Autora com o seguinte teor:





41. A Autora respondeu à carta referida em 40), por carta datada de 26 de novembro de 2019, com o seguinte teor:





42. A Autora apresentou queixa crime contra o Réu.


43. O Réu apresentou no Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo do ... uma reclamação contra a Autora.


44. A Autora solicitou junto do IMT a apreensão da viatura referida em 4), alegando que a mesma foi cedida ao Réu e não foi por este devolvida.


45. A viatura referida em 4) continua com o registo averbado em nome da Autora.


46. A viatura referida em 4) continua até à data de hoje com o Réu.


47. O contrato de seguro referente à viatura referida em 4) está em nome da Autora, que procedeu ao seu pagamento.


48. A Autora não recebeu até à data de hoje o remanescente do preço, no valor de € 49.900,00, por parte do Réu.


49. A Interveniente Santander Consumer não transferiu para a Autora o remanescente do preço.


50. Desde data concretamente não apurada que a viatura referida em 4) se encontra imobilizada, deixando o Réu de a utilizar nas deslocações diárias que efetuava.


51. A viatura referida em 4) foi escolhida pelo Réu para fazer face ao seu quotidiano e do seu agregado familiar, composto por si, sua mulher e sua filha.


52. O Réu possui uma carrinha que usa na sua atividade profissional para transportar peixe.”


3. E julgou não provados os seguintes factos:


“a) A Autora dedica-se à compra e venda de veículos automóveis há cerca de 50 anos contando com 45 trabalhadores e sendo concessionária da marca Volvo no ....


b) A Autora sempre pautou a sua atividade com honradez, cortesia e confiança.


c) O pedido de financiamento da quantia de € 49,900,00 referido em 11) ocorreu concretamente no dia 27 de setembro de 2019, tendo o Réu se comprometido a aceitar o seu resultado.


d) O Réu entregou toda a documentação requerida no stand da Autora em ....


e) O Réu nunca satisfez o pedido de entregar o comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e o comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.


f) O Réu possuía um alto nível de endividamento junto de outras instituições de crédito.


g) Aquando do telefonema referido em 22) a Autora, na pessoa dos seus funcionários, informou o Réu que o crédito solicitado estava aprovado.


h) O contrato referido em 20) devia ser remetido à Interveniente Santander Consumer, acompanhado da documentação referida em 17).


i) No dia 27 de setembro de 2019, como prova da boa vontade e confiança para com o Réu, a Autora autorizou-o a levantar e utilizar a viatura até o pedido de financiamento ser aprovado.


j) A autorização conferida ao Réu referida em i) ficou com condicionada à aprovação definitiva do financiamento da viatura.


k) O pedido de financiamento não foi aprovado porque o Réu não forneceu os documentos pedidos pela Interveniente Santander Consumer Finance referidos em 17).


l) Foi em 14 de outubro de 2019 que foi remetido à Interveniente Santander Consumer o comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.


m) Através da análise do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito foi detetado que a prestação devida pelo Réu em outra instituição de crédito era de apenas € 393,46 ao invés dos € 600,00 inicialmente declarados na proposta como esforço financeiro mensal.


n) No dia 17 de outubro de 2019, a Autora emitiu novo contrato, com as novas condições apresentadas pela Interveniente Santander Consumer.


o) Após a situação referida em 37), o Réu pediu à Autora recibo dos € 5.000,00 que lhe havia entregue por conta do preço referido em 5).


p) A carta referida em 41) é datada de 29 de novembro de 2019.


q) A partir do início de outubro de 2019, o Réu não mais pode circular com a viatura referida em 4) considerando a ordem de apreensão referida em 44).


r) A viatura referida em 4) era a única que o Réu possuía.


s) A partir de outubro de 2019, o Réu teve de efetuar o transporte da família na carrinha referida em 52).


t) O Réu é pessoa de bem, séria, honesta, trabalhadora e bem vista no meio onde se insere.


u) O Réu foi pagando à Interveniente Santander Consumer as prestações mensais que se foram vencendo referidas em 24).


v) As condutas da Autora que impossibilitaram a utilização pelo Réu da viatura causaram-lhe a si e à sua família ansiedade, tristeza, insegurança, desconfiança, intranquilidade e falta de descanso.


w) As condutas da Autora que impossibilitaram a utilização pelo Réu da viatura causaram-lhe humilhação, perturbação, vergonha, stress na sua vida quotidiana e familiar, ofensa da sua honra e consideração e deixaram-no várias noites sem dormir.”


4. O Tribunal a quo apresentou a seguinte motivação da decisão da matéria de facto, com respeito aos factos impugnados pelo R. e factos conexos com estes:


“(…) De notar que o depoimento da referida testemunha KK (trabalhadora da Interveniente) se afigurou imparcial e espontâneo e esta explicou como decorreu o processo, desde a recusa da primeira proposta de financiamento submetida pela Autora em virtude dos requisitos exigidos pelo Banco de Portugal não estarem no caso preenchidos; a sua aceitação posterior, após reavaliação com base em novos documentos e informações, mas de forma condicionada; a emissão do contrato datado de 23 de setembro de 2019, pré assinado digitalmente pela sua responsável, o seu envio posterior pela Autora à Interveniente com a assinatura do Réu e a sua anulação/não aprovação a jusante pela Interveniente em virtude da análise dos comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e de liquidação de outra instituição de crédito, enviados pela Autora em meados de outubro de 2019; a apresentação pela Interveniente de novas condições, que passavam pelo aumento da entrada e pela redução do valor das prestações mensais; a emissão de um novo contrato com base nestas condições e o não envio pela Autora deste novo contrato assinado pelo Réu.


Portanto, foi com base neste depoimento, que encontra também respaldo no teor dos documentos n.ºs 2 a 4 juntos pela Interveniente e do documento n.º 4 junto com a contestação, que se deram como provados os factos n.ºs 14 a 18, 20, 21, 32, 34, 35 e 36. (…)


No que concerne ao facto n.º 12, o mesmo resultou assente tendo em conta o documento n.º 3 junto com a contestação em conjugação com o depoimento da testemunha GG, que também não nega ter recebido documentação por parte do Réu. Outrossim, também o Réu e a testemunha HH referiram o envio de documentação solicitada pela Autora, nomeadamente, através de e-mail. Daí que tenha sido dado igualmente como não provado o facto da al. d).


Relativamente ao facto n.º 19, o mesmo foi dado como provado da conjugação entre o que foi dito pelo Réu com o que foi dito pela testemunha GG, porquanto este último fez referência que pediu e o Réu ficou de entregar, nomeadamente, o comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito, e este último afirmou ser sua a assinatura constante do documento n.º 4 (“de viabilidade de aprovação”) que juntou com a contestação, o qual assevera ter lido (já que afirmou que tudo o que assinou leu). Ora, se o Réu leu o documento e se ficou de entregar, nomeadamente, aquela documentação é porque estava informado e estava consciente que a mesma era necessária para aprovação do financiamento.


Quanto ao facto n.º 22, o legal representante da Autora não excluiu a possibilidade de os seus funcionários terem ligado ao Réu para levantar a viatura, até porque segundo o que declarou pese embora faltasse um documento houve efetivamente autorização para o Réu levantar a viatura. Por outro lado, ouvido o Réu, o legal representante da Autora, e as testemunhas GG, HH e EE resultou em uníssono que aquele efetivamente levantou a viatura, e quanto à data (facto n.º 23) a mesma resultou apurada pelas declarações do Réu e o depoimento da testemunha HH, que pese embora não se encontrem de acordo com alguns documentos juntos aos autos (ex. documentos n.ºs 6 e 7 juntos com a petição), encontra-se em consonância com outros (documento n.º 1, mais propriamente, acordo de garantia e carta de boas vindas, juntos com a contestação). (…)


Por sua vez, o facto n.º 39 resultou provado com apoio nos documentos n.ºs 8 a 10 juntos com a petição inicial em conjunto com as declarações do Réu e o depoimento da testemunha HH, que também não negaram que as interpelações ocorreram e que se recusaram a proceder à devolução por entenderem existir um contrato validamente celebrado. (…)


Os factos n.ºs 42, 43 e 44, por sua vez, depreendem-se da consulta dos documentos n.ºs 7 a 9 juntos aos autos pelo Réu no seu requerimento datado de 02.10.2020, e bem assim resultaram, quer do teor das declarações de parte do legal representante da Autora e do Réu, quer do depoimento da testemunha HH. (…)


Já o facto n.º 49 decorreu do depoimento da testemunha KK.


Quanto ao facto n.º 50, o mesmo foi considerado provado em virtude do que foi dito pelo Réu e pela testemunha HH, em conjunto com as regras da experiência comum e com o que resulta dos documentos n.º 6 junto com a petição e n.º 9 junto com o requerimento de 02.10.2020. Com efeito, embora não se descurando o interesse do Réu e da testemunha HH em afirmar a imobilização da viatura, a verdade é que não se afigura minimamente crível e conforme com as regras da experiência comum que aquele continuasse a circular com a mesma após ter caducado a declaração de autorização emitida pela Autora e após ter sido apresentada uma queixa crime contra si referente à mesma e um pedido de apreensão da mesma junto do IMT. No entanto, não se conseguiu descortinar qual destes factos em concreto determinou a paralisação da viatura (veja-se, por exemplo, que o Réu em sede de contestação fundamenta a paragem no pedido de apreensão de viatura formulado pela Autora junto do IMT e em audiência, quer ele, quer a sua esposa, fundamentam-no na caducidade da declaração de autorização e na sua não renovação pela Autora), daí que se tenha dado como não provado que foi a partir do inicio de outubro de 2019 que a circulação foi impedida considerando a ordem de apreensão junto do IMT (facto da al. q)]. Portanto, nenhuma prova produzida foi capaz de convencer o Tribunal sobre qual a data em concreto que a viatura ficou imobilizada. (…)


Por outro lado, do depoimento desta testemunha referida, LL, foi possível, pese embora o seu depoimento tenha sido claramente parcial, interessado e titubeante, confirmar o que já havia sido dito pelo Réu e pela sua companheira (não sendo minimamente credível que os três estivessem a mentir neste particular) no sentido de que este tem como atividade a venda de peixe e que possui uma carrinha para o transportar desde o local da recolha até ao ponto de venda. Ora, se o Réu possui esta carrinha então inelutavelmente não se pode concluir que o Volvo escolhido por si junto da Autora era o único carro que possuía, pelo que teve que se considerar provado o facto n.º 52 e não provado o facto da al. r). (…)


Outrossim, quanto ao facto da al. g) também não foi produzida qualquer prova capaz de o atestar. O Autor apenas referiu que GG lhe ligou para ir levantar a viatura; GG negou que tivesse informado o Réu que o crédito solicitado estava aprovado; e a testemunha HH afirmou que este ligou para levantar a viatura porque “estava tudo ok com o contrato e que o crédito tinha sido aprovado”. Ora, conforme já se constatou supra, pese embora estes três depoimentos tenham sido suficientes para a prova de outra factualidade, quer porque nesta parte estavam confirmados por prova documental ou em conformidade entre si e/ou com o depoimento de outras testemunhas, vistos aqueles isoladamente não é possível tender para uma das versões apresentadas em detrimento da outra, porque os três foram tendenciosos e relataram a versão que lhes era mais favorável. Portanto, na dúvida, decide-se contra a parte onerada com a prova.


Relativamente ao facto da al. h), o mesmo foi considerado não provado em face da apreciação que foi feita do que foi dito pelo Réu, pelo legal representante da Autora e pelas testemunhas GG, KK e HH. Pois bem, de um lado temos o Réu a afirmar que entregou à Autora até à data em que foi levantar a viatura todos os documentos que esta lhe solicitou e que no dia em que a levantou e assinou o contrato não lhe foi dito pelo vendedor GG que se encontrava algum documento em falta. Depois temos o legal representante da Autora a afirmar que na data em que o Réu foi levantar a viatura até presumiam que aquele fosse trazer o documento em falta, mas tal não aconteceu, vindo essa entrega a ocorrer apenas dias/semanas depois. Por sua vez, a testemunha GG referiu que após a assinatura do documento nº1 junto com a petição inicial, o cliente tem que enviar os documentos necessários e o Réu enviou tudo, só que depois da assinatura do contrato foi lhe pedido o comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito, e o Réu só satisfez este pedido tempos mais tarde. Já a testemunha KK referiu que foi aprovada pela Interveniente uma proposta, que a Autora consegue emitir através de um portal ao qual tem acesso, condicionada à apresentação pelo Réu do comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito. E que só depois da proposta ser ou não aprovada é que é emitido o contrato que tem essa proposta por base, sendo que no caso o contrato foi emitido e assinado ainda antes de a Interveniente ter em seu poder aqueles documentos, o que só veio a acontecer em outubro de 2019. Por fim, a testemunha HH referiu que quando foi assinado o contrato que todos os documentos solicitados estavam entregues e que lhe foi dito pelo vendedor da Autora que o crédito estava aprovado.


Ora, ouvida toda a prova temos, pois, sérias dúvidas de que de facto o contrato assinado pelo Réu a 27.09.2019 tivesse que ser remetido à Interveniente Santander Consumer, acompanhado da documentação referida em 17). Primeiro, porque como já constatado anteriormente o Réu foi enviando a documentação que lhe era solicitada pela Autora e tal resulta, desde logo, do teor de alguns e-mails por ele junto aos autos e alguma dessa documentação já tinha sido apreciada, inclusivamente, pela Interveniente, daí que tenha reavaliado a sua primeira decisão de não aprovação da proposta. Segundo, porque as condições presentes no documento “viabilidade de aprovação de proposta” não são totalmente coincidentes com as previstas no contrato assinado pelo Réu e datado de 23.09.2019, pelo que muito se dúvida que aquele documento seja a proposta que a testemunha KK referiu que tinha que estar na base de emissão de um contrato. Terceiro, porque não é minimamente crível que a Interveniente, atenta a sua experiência nesta área do mercado, colocasse à disposição da Autora um contrato previamente assinado por si sem que estivessem asseguradas as condições para o mesmo ser aprovado. Até porque se o referido documento de “viabilidade de aprovação de proposta” refere que para a emissão do contrato é necessário o envio da cópia da fatura do fornecedor, mais ainda se imporia que para a sua emissão a Interveniente já tivesse na sua posse todos os documentos necessários para apreciar a solvabilidade do cliente e da reunião por parte deste dos requisitos para ser aprovado o contrato com determinadas condições. Quarto, não obstante a oposição entre as declarações e os depoimentos supra sumariados, a verdade é que o vendedor da Autora, que foi o principal intermediário entre esta e o Réu/e a companheira deste, admitiu que só depois de o contrato estar assinado é que foram pedidos aqueles documentos, que o Réu depois acabou por enviar.


Portanto, pese embora se tivesse dado como provado que o Réu tinha conhecimento dos documentos necessários para aprovação do financiamento (no geral), porque leu e assinou inclusivamente o documento de “viabilidade de aprovação de proposta”, a verdade é que se acredita que quando aquele assinou o contrato já estava tudo entregue (ou pressuponham que estava) e nada mais havia para entregar. Na verdade, a emissão do contrato, inclusivamente já assinado pela legal representante da Interveniente, leva a crer que todos pensavam estar tudo correto e pronto para a sua conclusão.


Depreende-se isso mesmo do depoimento da testemunha KK, quando referiu que o contrato só era emitido depois da proposta ser aprovada (note-se que o documento n.º 5 junto com a petição não é a aprovação em si, mas apenas a “viabilidade de aprovação de proposta”; e só faz sentido a aprovação final da proposta e a emissão do contrato depois de estarem verificadas as condições que podem inviabilizar ou alterar aquela aprovação).


Destarte, para o Tribunal aquando da emissão do contrato já nenhum documento se encontrava em falta, mas, por erro, que se desconhece sobre quem recai a culpa (da Autora ou da Interveniente), mais tarde foi detetado que havia documentação em falta, motivo pelo qual foi pedida ao Réu (daí a testemunha GG referir que a mesma foi pedida após a assinatura do contrato).


Aqui chegados, conclui-se não se poder afirmar que o contrato referido em 20) devia ser remetido à Interveniente Santander Consumer, acompanhado da documentação referida em 17), isto porque todos agiram no momento da sua celebração como se toda a documentação necessária já tivesse sido entregue.


Outrossim, acredita-se que foi precisamente por pensar que tudo estava conforme e que nada mais havia a fazer, que a Autora autorizou o Réu a levantar a viatura. Não se afigura minimamente crível, nem conforme com a normalidade do acontecer que a autorização tenha sido dada como prova da boa vontade e confiança para com o Réu, tal como afirmou o legal representante da Autora, por aquele já ser um cliente seu (note-se que em causa estava um veículo cujo valor rondava aproximadamente os € 55.000,00). Até porque o que resultou da prova é que o Réu só tinha adquirido à Autora um outro veículo, e, por isso, não era um cliente antigo, bastante conhecido e de plena confiança. Por outro lado, todos os documentos entregues e assinados pelo Réu no dia em que foi levantar a viatura (por ele e pela testemunha GG confirmados em julgamento) demonstram que foi seguido o procedimento habitual e comum seguido em situações similares quando o financiamento já se encontra definitivamente aprovado. Ou seja, tudo aponta para que a Autora pensasse que de facto o financiamento estava aprovado, por isso, é que permitiu o levantamento da viatura. Que sentido faria, aliás, o Réu usar e fruir de um veículo pertencente a um terceiro, provocando–lhe desgaste e colocando–lhe kms, se não houvesse segurança e confiança que de facto ele seria para si. Desta feita, foram considerados também não provados os factos das als. i) e j).


Já constatamos supra que o Réu acabou por enviar os documentos que lhe foram solicitados, incluindo, o comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito. O legal representante da Autora confessou-o e as testemunhas GG e KK também o admitiram. Portanto, não foi porque o Réu não enviou os documentos que o pedido de financiamento não foi aprovado. Aliás, ouvidas as partes e as testemunhas (à exceção do depoimento das testemunhas EE e LL, que a este propósito nada referiram), o que se extrai é que o contrato não chegou a ser aprovado posteriormente pela Interveniente, porque as informações/pressupostos com base nas quais o mesmo foi elaborado vieram a demonstrar-se não ser as/os corretas/os após a apreciação dos comprovativos referentes a outra instituição de crédito. Com efeito, com base neste raciocínio foi dado como não provado o facto da al. k). (…)


Relativamente aos factos das als. n) e t) não incidiu sobre os mesmos qualquer prova, motivo pelo qual foram dados como não provados. (…)


Por seu turno, o facto da al. u) foi dado como não provado atenta a confissão do Réu de que não pagou à Interveniente qualquer prestação mensal das previstas no contrato.


Relativamente ao facto não provado em s), pese embora o Réu e a testemunha HH tivessem referido que tal aconteceu, a testemunha LL referiu que lhes emprestava o seu carro pessoal para poderem andar. Outrossim, o Réu que, tão bem se recordava de outras datas, nem por aproximação foi capaz de dizer quando adquiriu outro carro; e a sua companheira já referiu que conseguiram adquirir um outro veículo decorrido um ano após a situação.


Ora, se decorrido um ano conseguiram adquirir um carro e se anteriormente tinham sido ajudados por terceiros que lhes emprestavam carros (como também referiu a testemunha HH), então o que se afigura crível é que o Réu não precisou de efetuar o transporte da família na carrinha que transportava o peixe. Mas, se alguma vez o teve que fazer, afigura-se que tal também já ocorria anteriormente ao levantamento do veículo em causa nos autos. Na verdade, as regras da experiência apontam precisamente nesse sentido, não sendo crível que o Réu, mesmo anteriormente à situação dos autos, estivesse constantemente a mudar de veículo (profissional/pessoal) só para ir buscar a filha à escola. Com efeito, foi dado como não provado o facto da al. s).


Por fim, os factos das als. v) e w) foram dados como não provados, porquanto pese embora referidos, grosso modo, pelo Réu e pela sua companheira HH, não foram comprovados por mais nenhum outro meio de prova. E conforme já se deixou antever supra estes relataram sobre os factos a versão que lhes era mais favorável, tendo os seus depoimentos sido, no geral, artificiais, exagerados, omissos em determinados partes e amiúde até contraditórios entre si.


E não impõe conclusão diversa o que foi dito pela testemunha LL, cujo depoimento foi interessado e capcioso e se afigurou pré-preparado e, por isso, não permitiu corroborar a versão apresentada por aqueles. De notar, aliás, que esta testemunha, pese embora todo o conhecimento que demonstrou ter sobre os factos, quando instado a esclarecer os mesmos, tropeçava nas suas próprias palavras e não tinha explicação possível para apresentar ao Tribunal. Portanto, não apenas a versão do Réu e da sua companheira, não foi corroborada pelo depoimento da testemunha referida, como depois de ouvido o Réu e aquela e apreciado o seu comportamento em sala de audiências a impressão do Tribunal não foi a de estar diante de uma pessoa abalada, triste, ansiosa, envergonhada, humilhada e afetada com a situação em causa nos autos (aliás, nem ele, nem a companheira). Mas apenas e só de uma pessoa que quer que a Autora sofra represálias por ter apresentado contra si queixa crime.


Aqui chegados, e sem prejuízo de tudo quanto já foi dito, em particular quanto à motivação subjacente a cada facto, não temos dúvidas em concluir que, à exceção do depoimento das testemunhas EE e KK, todas as outras declarações/depoimentos se afiguraram parciais, interessados e comprometidos. Dir-se-á, pois, que cada um contou a história que era conveniente, não tendo nenhum deles, na convicção do Tribunal, sido totalmente sincero e espontâneo quando relatou os factos. Pois bem, perante este cenário, a única solução para o Tribunal para destrinçar o que era verdadeiro e o que era falso, foi dar como provados os factos que encontravam sustentação em outros meios de prova (ex. documental) ou que haviam sido confirmados por mais de que uma pessoa e estavam conformes com as regras da experiência, e como não provados os restantes.”


5. Passamos agora à apreciação dos factos questionados pelo Recorrente.


- Facto provado 12.: Pretende o R. que seja aditado a este facto um segmento contendo a afirmação de que o R. entregou no stand automóvel toda a documentação que lhe foi solicitada para o empréstimo, o que equivale a transpor para os factos provados o que se mostra consignado nos factos não provados sob d).


Porém, decorre da motivação da resposta ao facto provado sob 12. e ao facto não provado sob d) que aquilo de que aqui se cura não é saber se a documentação foi toda entregue pelo R., mas sim saber se foi entregue no próprio stand ou enviada por email.


Ora, as declarações do R. e os depoimentos transcritos nas alegações de recurso corroboram a conclusão do Tribunal a quo de que a documentação foi toda enviada por email.


Com efeito, ainda que de uma forma titubeante, a verdade é que o R. reconheceu que foi ajudado pela sua companheira e que foi a sua companheira quem procedeu ao envio da documentação, facto que esta confirmou, esclarecendo adicionalmente que foi tudo enviado por email e apontando até a razão para a adoção deste procedimento: o Sr. GG estava em ... e o casal estava em ....


A prova indicada pelo R. não implica, pois, decisão diversa quanto ao facto 12., que deve permanecer inalterado.


- Factos provados 16., 19. e 22.; facto não provado g): Pretende o R. acrescentar um segmento no facto 16. onde se declare que o R. desconhecia que o Banco Santander Consumer havia aprovado condicionalmente a proposta de financiamento.


Pretende ainda o R. que sejam introduzidos no facto 19. dois segmentos, sendo um com a afirmação de que o R. apenas foi informado da necessidade de documentos para a aprovação do financiamento após o levantamento da viatura, e outro no sentido de que o R. foi informado pela A. que o financiamento estava aprovado.


A alteração ao facto 22. pretendida pelo R. consubstancia-se na inserção de um segmento com a mesma afirmação acima referida de que o R. foi informado pela A. que o financiamento estava aprovado.


Importa assinalar que este segmento final corresponde ao facto não provado sob g).


Ora, o Tribunal a quo explica na motivação do facto g) que o R. não declarou em audiência que lhe tivesse sido transmitido pela A. que o financiamento estava aprovado, afirmando apenas que lhe foi dito que podia levantar a viatura (por lapso, diz-se na motivação que foi o “Autor” que produziu esta afirmação, mas é evidente que se trata de referência às declarações do R.) e é precisamente isso o que decorre dos excertos das declarações do R. transcritos nas alegações de recurso.


Na verdade, o R. respondeu à Mma. Juíza que o funcionário da A. “deve-me ter desejado boa sorte para a segunda nova viatura”, e quando a Mma. Juíza insiste “Não é deve…Eu quero saber se o senhor se recorda do que ele lhe disse ou não”, o R. responde “Não, não, 100% não”, e acaba por nada acrescentar a este respeito.


O Tribunal a quo também refere que foram apresentadas versões contraditórias em audiência e que as pessoas ouvidas foram parciais a este respeito, não lhe merecendo credibilidade qualquer das versões, pelo que decidiu o facto contra a parte onerada com a respetiva prova.


Com efeito, a testemunha GG, funcionário da A., asseverou que não transmitiu ao R. que o financiamento estava aprovado, e a companheira do R. afirmou o contrário.


Temos, assim, duas versões incompatíveis – ou bem que a A. disse que o financiamento estava ok, ou bem que não o fez -, e nenhuma razão sobressai para se afirmar a prevalência de uma sobre a outra, pois se o funcionário da A. possui o comprometimento decorrente da sua relação laboral, a companheira do R. possui o comprometimento derivado da sua relação pessoal com o R..


Afigura-se, deste modo, que a solução encontrada pelo Tribunal a quo é a mais razoável e encontra respaldo no artigo 414.º do Código de Processo Civil, não devendo, por isso, ser deferida a alteração à matéria de facto na parte relativa ao segundo segmento do facto 19. e ao facto 22..


No mais, tendo o R. reconhecido, nas suas declarações, que assinou aquele doc. 4 junto com a cont. aquando do levantamento da viatura e que o leu, resulta evidente que logo nessa data tomou conhecimento da necessidade de apresentação de mais documentos.


Com efeito, esse doc. 4 junto com a cont., a fls. 42-v, é uma carta do Banco Santander Consumer datada de 19.09.2019 e dirigida à A., onde se informa “da viabilidade de Aprovação da proposta/dossier preliminar para financiamento”, contendo “Notas”, entre as quais a de que “o pagamento do contrato fica condicionado à entrega da documentação necessária”, consignando-se a final a “Documentação de recolha obrigatória”.


Esta diretriz é a tónica dominante da carta, não se sobrepondo à indicação constante da carta do número de prestações e do respetivo valor, a qual deve necessariamente ser interpretada à luz de que se trata da comunicação de uma viabilidade.


Assim, conforme se julgou provado sob 18.:


“18. A proposta para financiamento referida em 16) era viável, mas ficou dependente da apresentação por parte do Réu de documentação, nomeadamente, do comprovativo do encargo mensal de outra instituição de crédito e do comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.”


Consequentemente, as alterações que o R. pretende inserir no facto 16. e no primeiro segmento do facto 19. não encontram apoio na prova produzida em audiência, não devendo, por isso, tal pretensão encontrar acolhimento.


Devem, pois, manter-se inalterados os factos 16., 19. e 22., bem como o facto g).


- Facto provado 23.: No que tange ao facto 23. pretende o R. que se inscreva o nome do vendedor da A. que lhe telefonou para ir buscar a viatura.


Ora, a prova produzida em audiência reflete o facto de que foi, efetivamente, GG quem telefonou ao R. para ir levantar a viatura – a testemunha confirmou este facto -, porém, as modificações da matéria de facto em sede de recurso devem cingir-se àquilo que for necessário para se obter a alteração da decisão final produzida nos autos, por ser essa a finalidade dos recursos (neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos), Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.2022 (Mário Belo Morgado), Processo n.º 4280/17.4T8MTS.P3.S1, ambos in http://www.dgsi.pt/).


Sendo, assim, pacífico que a viatura foi entregue e que essa entrega ocorreu na sequência de um contacto da A. com tal finalidade, é irrelevante para o desfecho da causa a aposição, na matéria de facto provada, do nome do funcionário da A. que fez esse contacto.


Deve, pois, manter-se inalterado o facto 23..


- Facto provado 39.: Pretende o R. que se acrescente a este facto a menção de que fez diversos pedidos de reunião com a A..


Ora, a questão das reuniões já se mostra vertida na matéria de facto provada, sob os factos 40. e 41., de onde consta a referência a duas cartas trocadas entre as partes a esse respeito, pelo que o segmento proposto pelo R. não revela utilidade para a decisão da causa.


Deve, pois, manter-se inalterado o facto 39..


- Facto provado 42.: Pretende o R. que seja introduzida na matéria de facto provada a menção de que o crime denunciado pela A. contra o R. foi o abuso de confiança, o que, efetivamente, decorre do teor do doc. 8 junto com a cont., a fls. 60-v.


Porém, como se disse acima com respeito ao facto 23., as modificações da matéria de facto em sede de recurso devem cingir-se àquilo que for necessário para se obter a alteração da decisão final produzida nos autos, por ser essa a finalidade dos recursos.


Ora, no caso dos autos é irrelevante a identificação do tipo de crime denunciado.


Deve, pois, manter-se inalterado o facto 42..


- Facto provado 44.: A redação proposta pelo R. para este facto é exatamente igual àquela que lhe foi dada pelo Tribunal a quo, pelo que nada há a apreciar a este respeito.


- Facto provado 49.: O R. propõe o aditamento ao facto 49. de uma explicação para aquilo que aí se julgou demonstrado, isto é, pretende o R. que se acrescente que o Banco Santander Consumer não transferiu o preço do veículo para a A. porque esta não enviou ao Banco todos os documentos necessários para a aprovação do financiamento.


Esta matéria é desenvolvida na motivação do Tribunal aduzida com respeito ao facto não provado sob k), de onde consta que o pedido de empréstimo não foi aprovado porque o R. não forneceu os documentos pedidos pelo Banco Santander Consumer.


Aliás, este facto não provado k) mostra-se coerente com o facto provado 34., onde precisamente se consignou que “Em data concretamente não apurada, mas posterior a 27 de setembro de 2019 e prévia a 16 de outubro de 2019, foi remetido à Interveniente Santander Consumer o comprovativo de liquidação de outra instituição de crédito.”


Segundo o Tribunal a quo, estando demonstrado que o R. enviou à A. todos os documentos que lhe foram pedidos, a rejeição do pedido de financiamento ficou a dever-se, não à falta de documentos necessários para o efeito, mas antes à circunstância das últimas informações fornecidas ao Banco Santander Consumer não convergirem com as primeiras indicações que o Banco recebeu a propósito da capacidade de endividamento do R. (taxa de esforço).


Esta asserção encontra eco no facto provado 35.: “O envio do comprovativo referido em 34) ditou, por parte da Interveniente Santander Consumer, uma alteração do plano financeiro por forma a respeitar os limites impostos pelo Banco de Portugal, tendo sido exigido o aumento da entrada inicial para € 8.650,00 e 83 rendas de € 498,38.”


Compulsados os excertos transcritos pelo R. nas suas alegações de recurso, verificamos que no seu depoimento a companheira do R. respondeu que “o Banco de Portugal recusou o crédito”, o que se mostra alinhado com o depoimento da testemunha CC, que aludiu, de igual modo, ao Banco de Portugal, assim suportando a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo.


Da prova indicada pelo R. nada se extrai, pois, que confirme a sua versão de que o financiamento foi recusado porque a A. não enviou ao Banco Santander Consumer todos os documentos necessários para o efeito.


Deve, em consequência, manter-se inalterado o facto 49..


- Facto provado 50.; facto não provado q): A alteração pretendida pelo R. ao facto 50. corresponde à integração neste do facto não provado sob q).


Ora, a propósito destes factos o Tribunal a quo referiu ter ficado na dúvida sobre a data concreta em que o R. deixou de utilizar o veículo, decorrente da circunstância do R. e da sua companheira terem apontado como facto determinante da imobilização a caducidade da declaração de autorização, ao contrário do que se mostra alegado na contestação, onde semelhante paralisação foi associada à ordem de apreensão.


A caducidade da declaração de autorização de circulação verificou-se a 27.10.2019, considerando que a duração da autorização foi de um mês e o documento foi entregue ao R. a 27.09.2019 (facto provado 28.), e a ordem de apreensão data de 14.11.2019 (doc. 9 junto com a cont., a fls. 61).


Ou seja, a afirmação contida no facto não provado sob q) de que o R. não mais pôde circular com a viatura desde o início de outubro de 2019, considerando a ordem de apreensão, não está, efetivamente, demonstrada.


Deve, em consequência, manter-se inalterado o facto 50..


- Factos provados 53. e 54.; factos não provados r), s), v) e w): Os factos provados 53. e 54. correspondem literalmente aos factos não provados sob v) e w), e os demais são factos que relevam para o juízo probatório encerrado naqueles factos v) e w).


A este propósito, o Tribunal a quo julgou que foi artificial e exagerada a descrição que fizeram o R. e a sua companheira do impacto da impossibilidade de utilização do veículo e das circunstâncias que rodearam esta impossibilidade, e mais entendeu que o depoimento da testemunha LL não foi espontâneo, aduzindo que não foi produzida qualquer outra prova sobre esta matéria.


Ora, desde logo, o R. nada alegou quanto ao depoimento de LL e apreciação do mesmo pelo Tribunal a quo.


No que tange depois às declarações do R. e ao depoimento da sua companheira, lidos os excertos que o R. transcreveu nas suas alegações de recurso verificamos que este aludiu em audiência ao facto de ter de transportar a sua filha para a escola na carrinha de peixe, por não ter outro transporte, mas a sua filha pedia-lhe para “parar longe da escola…para não ser chacota…a gente sabe que as crianças são cruéis…que cheirava mal”.


Refere ainda o R. nas suas declarações que se sentiu ofendido no seu bom nome e acrescenta “passei muitas noites sem dormir…ansiedade”.


A sua companheira falou, no respetivo depoimento, na necessidade de pedir carros emprestados e em discussões dentro de casa por causa desta situação.


Assim, as circunstâncias a que o R. e a sua companheira se atêm para fundar a ansiedade e as noites mal dormidas por parte do R., bem como o mal-estar dentro da família assentam no seguinte:

• O casal não tinha outra viatura para circular para além daquela cuja aquisição negociou com a A.;

• Por virtude dessa circunstância, a família tinha de se deslocar na carrinha de peixe.


Estes factos correspondem, respetivamente, aos não provados sob r) e s), relativamente aos quais expõe o Tribunal a quo que se o R. tinha uma carrinha de transporte de peixe, então não pode afirmar-se que não possuía outra viatura.


Adicionalmente, apesar do R. não se lembrar da data em que a família adquiriu uma nova viatura, a sua companheira localizou esse facto um ano após a situação em causa, e ambos referiram que andaram com carros emprestados, tendo a testemunha LL confirmado que emprestava o seu carro ao casal.


Acrescentou ainda o Tribunal a quo que sendo a carrinha de peixe o transporte profissional do R., não seria crível que o R. estivesse sempre a mudar de transporte para ir buscar ou levar a sua filha à escola.


Sublinhe-se, a este respeito, que nos excertos transcritos pelo R. nas alegações de recurso surge a resposta do R. à Mma. Juíza de que a sua companheira já tem uma viatura, ainda que o R. não se recorde há quanto tempo, apontando “desde há dois anos” de modo dubitativo, mas ouvido o depoimento da companheira do R. constata-se que esta assume esse facto e localiza-o um ano após o problema com a viatura dos autos.


Nessa audição verificámos ainda que a companheira do R. foi muito específica quanto aos empréstimos de viaturas, referindo que lhe foram emprestadas viaturas pelo irmão, a irmã e os pais, para além de lhes pedir que a fossem buscar e levar.


No mais, não colhe a alegação do R. de que a família passou a usar a carrinha de peixe para as suas deslocações, porque a única deslocação a que o R. alude nas suas declarações é a que se traduz em levar a sua filha à escola. Mas quanto a este aspeto o raciocínio do Tribunal a quo é inteiramente conforme com a normalidade da vida, isto é, habitualmente os pais levam os filhos à escola no caminho para o seu trabalho, pelo que não é de todo verosímil que, ainda que o R. tivesse a disponibilidade de uma viatura de lazer, quando levasse a filha à escola utilizasse a viatura de trabalho e fosse depois novamente a casa para trocar de carro.


Devem, pois, manter-se não provados os factos r) e s).


Aqui chegados, a questão reside, então, em saber se as declarações do R. e o depoimento da sua companheira nos segmentos apontados pelo R. são suficientes para julgar provados os factos v) e w).


Ora, os factos subjetivos, isto é, os estados de alma, os sentimentos, são demonstrados, para além das palavras que os expressem, sobretudo pelos comportamentos que os evidenciam – “A prova dos estados subjetivos é realizada, deste modo, com recurso a elementos objetivos, que indiciam a sua verificação” (Cláudia Sofia Alves Trindade, A Prova dos Estados Subjetivos no Processo Civil, Coimbra, 2016, pp. 54-55).


A avaliação da credibilidade dessa exteriorização envolve depois o ajuizamento da causa apontada para o estado subjetivo de que se cura, pelo que a menos que estejamos em presença de uma sensibilidade embotada ou, no polo posto, uma pessoa excessivamente sensível, há eventos que por regra produzem grande perturbação e outros que não têm essa aptidão.


No caso em apreço estão em causa vicissitudes atinentes a um contrato de compra e venda de um automóvel, sendo que o ricochete da frustração do negócio não foi, na realidade, tão intenso quanto poderia ser noutras circunstâncias, porquanto apesar do R. não possuir a inteira disponibilidade de outro veículo automóvel, a família beneficiou de empréstimos de veículos por parte de várias pessoas, que além do mais também colaboraram levando e indo buscar a companheira do R., e o R. não deixou de usar a sua viatura de trabalho para as suas necessidades diárias prementes, onde se integra o facto de levar e ir buscar a filha à escola.


É certo que o facto de se tratar de uma carrinha de peixe envolveu desconforto por parte da filha do R., mas como acima dissemos a normalidade da vida não descarta esse transporte para além desta concreta situação, por ser aquela carrinha a viatura de trabalho do R..


Por outro lado, as limitações decorrentes da impossibilidade de usar o veículo não duraram mais do que um ano, porquanto no fim deste período já a família tinha outra viatura de lazer, adquirida pela companheira do R..


Admite-se, no entanto, que o facto de ser formulado um pedido de apreensão da viatura e apresentada uma queixa crime contra o R. sejam perturbadores da sua paz de espírito, pois contribuem, adicionalmente, para conferir uma dimensão pública e de natureza sancionatória ao problema, assim ultrapassando a mera dinâmica contratual restrita às partes.


Todavia, ouvida a prova gravada para além do excerto que se mostra transcrito nas alegações de recurso constata-se que a companheira do R. respondeu que primeiro foram contactados pela A., referindo o Sr. GG e a chefe de oficina e especificando que “começaram-nos a ligar constantemente”, mas o R. insistia que lhe enviassem por email a explicação que já lhes havia dado verbalmente sobre o problema que surgiu, o que a A. não fez, e foi após esta sucessão de contactos (infrutífera) que receberam um telefonema do chefe da PSP de ....


O que se depreende do exposto é que o R. protelou a resolução do problema, pois a partir do momento em que foi informado que havia uma questão com o Banco de Portugal, o R. ficou ciente de qual era o obstáculo, pelo que o passo seguinte seria diligenciar a sua ultrapassagem.


Aliás, o R. respondeu reiteradamente à Mma. Juíza, quando confrontado com o facto de ter corrido mal a questão do financiamento, que não lhe tinha sido bem explicado o problema e que “o problema não era meu”.


E só depois de muita insistência por parte da Mma. Juíza o R. respondeu “Eu recordo-me de uma situação em que o Sr. GG falar de qualquer coisa do Banco de Portugal, que o Banco de Portugal tinha rejeitado o meu contrato ou qualquer coisa”, após o que a Mma. Juíza lhe diz “Ah, então já se lembra qual era o erro”, e o R. confirma “Tou-me a relembrar agora Dra.”.


Estamos, pois, em presença de declarações evasivas, onde o R. resiste a assumir que sabia qual era o problema e continua a negar que esse problema seja seu, declarações que prolongam a atitude assumida pelo R. desde o início da situação e nas quais assoma essencialmente a sua revolta, em particular, com o facto de ter sido “ameaçado telefonicamente” para entregar o carro.


A mesma menção às “ameaças” surgiu no depoimento da companheira do R., que, de igual modo, insistiu em afirmar o desconhecimento da causa desta situação, mas acabou por revelar que lhe foi transmitido o problema com o Banco de Portugal.


Ora, a inércia do R. não é compatível com alguém que se sinta verdadeiramente incomodado com a situação, sendo que semelhante inércia, além do mais, trouxe o R. ao Tribunal, confrontando-o com mais uma autoridade do Estado e prolongando ainda mais o problema no tempo.


Não vemos, deste modo, razões para alterar a decisão da matéria de facto, mantendo os factos não provados sob v) e w).


- Facto h): Pretende, então, o R. que seja julgado provado este facto, porém, da prova indicada pelo R. nas suas alegações de recurso nada consta a este respeito, pelo que deve este facto manter-se inalterado.


- Facto t): Com respeito a este facto aduz o Tribunal a quo que não foi produzida qualquer prova, e nas suas alegações de recurso não indica o R. quaisquer meios de prova que demonstrem o mesmo, pelo que deve manter-se inalterado este facto.


C) Da ampliação do objeto do recurso


Veio a A. ampliar o objeto do recurso, pretendendo a introdução, no elenco dos factos provados, de um conjunto de factos que não foram por si alegados, mas se extraem de documentos juntos aos autos e da prova produzida em audiência, visando a “confirmação da decisão recorrida”.


Trata-se da figura prevista no artigo 636.º do Código de Processo Civil, onde se estabelece que:


“1 - No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.


2 - Pode ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.”


Explica Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, pp. 148-149) em que consiste a ampliação do objeto do recurso em sede de matéria de facto: “apesar de a parte ter conseguido vencimento na ação, pode ter interesse em acautelar-se contra a eventual procedência das questões suscitadas pelo recorrente mediante a modificação da decisão da matéria de facto no sentido que lhe seja mais favorável, a fim de continuar a beneficiar do mesmo resultado que foi declarado na primeira decisão, na eventualidade de serem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente.”


Ora, os quatro novos factos propostos pela A. respeitam todos à dinâmica contratual atinente ao financiamento pedido ao Banco Santander Consumer.


Porém, quanto a esta matéria, a impugnação da decisão de facto por parte do R. foi julgada totalmente improcedente.


Entendemos, deste modo, que não revela qualquer utilidade a apreciação da ampliação do objeto do recurso, o que prejudica a sua apreciação.


D) Do enquadramento jurídico dos factos


1. A questão a apreciar no caso em apreço respeita a uma relação trilateral, envolvendo um stand de automóveis (a A.), o interessado na aquisição de uma viatura (o R.) e um Banco (o Interveniente).


O R. pretendia adquirir uma viatura nova, pelo que se dirigiu à A. e, tendo escolhido uma viatura, acordou com a A. que entregaria a sua viatura usada em retoma e pagaria uma parte do preço em numerário, sendo o remanescente pago através de um financiamento bancário.


Nessa ocasião foi assinado um documento intitulado “contrato de compra e venda”, que espelha este acordo (facto provado 8.), mas entendeu o Tribunal a quo que este acordo consubstanciou uma mera “reserva”, atendendo a que na respetiva data não foi entregue nem o veículo novo, nem o veículo de retoma, assim como não se encontrava ainda concedido qualquer financiamento bancário ao R., o que ambas as partes aceitavam que era necessário para que o R. pudesse concretizar a aquisição.


O financiamento bancário aludido veio a assumir a forma de um contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, nos termos do qual o Interveniente adquiria a viatura e, subsequentemente, cedia a sua utilização ao R., mediante o pagamento de prestações mensais.


Pese embora aquele Contrato tenha chegado a ser assinado, no dia em que foi levantada a viatura pelo R. no stand da A., as condições previstas em tal Contrato vieram a ser alteradas por força de documentação entretanto enviada ao Interveniente, sendo que dos termos do referido Contrato decorria que os efeitos do mesmo ficariam suspensos até que fosse comunicado, “por escrito, que todos os dados e informações se encontram devidamente confirmados e, consequentemente, definitivamente aprovado o pedido de crédito apresentado” (facto provado 25.).


Ora, não está provado que o R. tenha aceite as novas condições propostas e que tenha, nessa sequência, sido assinado um novo Contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, razão pela qual concluiu o Tribunal a quo que o contrato assinado não chegou a produzir efeitos, em virtude da falta de verificação da condição suspensiva nele aposta.


Não obstante, atenta a circunstância da A. ter entregue a viatura objeto do negócio ao R.; o qual, por sua vez, lhe entregou, em retoma, o veículo que possuía, e ainda € 4.000,00 em dinheiro, por conta do preço do veículo; da A. ter passado ao R. uma declaração de autorização de circulação e emitido o documento necessário para a contratação do seguro automóvel, o que o R. veio a concretizar; da A. ter pago a dívida que ainda subsistia quanto ao financiamento que o R. havia contratado para aquisição da viatura entregue em retoma, concluiu o Tribunal a quo ter sido celebrado nessa data um contrato de compra e venda entre A. e R..


Com efeito, o contrato de compra e venda de um veículo automóvel não se encontra sujeito a exigências formais (artigos 219.º e 875.º do Código Civil), ficando, assim, perfeito pela conjugação de vontades de A. e R. nesse sentido, circunstância de onde decorre que esse negócio operou a transmissão da propriedade do veículo para o R. (artigo 879.º, alínea a) do Código Civil).


Aqui chegados, cumpre acentuar que no seu recurso o R. pugna pela validade do contrato de compra e venda do veículo celebrado com a A., pelo que a decisão sindicada lhe é favorável nesta parte.


2. Explica-se depois na decisão recorrida que o pagamento do preço não é um elemento constitutivo do negócio, mas antes um efeito do mesmo, conforme previsto no artigo 879.º, alínea c) do Código Civil.


Deste modo, o acordo sobre o pagamento do preço mediante um financiamento bancário respeita apenas ao modo de cumprimento da obrigação a cargo do comprador.


Ora, não está provado que para além dos € 5.000,00 entregues a título de entrada o R. tenha pago qualquer outra quantia à A..


Advoga, porém, o R. que devia ter sido descontado ao preço da viatura o valor da retoma efetuada.


Compulsados os factos provados 8., 30. e 31. verificamos que as partes acordaram que o valor a descontar no preço da viatura nova, por conta da retoma, era de € 14.900,00, mas foi precisamente esse o valor que a A. despendeu para ficar com a viatura de retoma livre de ónus ou encargos, porquanto o financiamento contratado para aquisição dessa viatura não se mostrava ainda completamente pago.


Ou seja, a A. satisfez integralmente o valor comercial acordado para a viatura de retoma, facto de onde se extrai que nada havia, afinal, a descontar ao preço da viatura nova a esse título.


A falta de pagamento do preço representa, pois, o incumprimento do contrato, sendo que no âmbito da responsabilidade contratual se presume a culpa do devedor, nos termos do artigo 799.º do Código Civil.


É certo que esta culpa pode ser ilidida (artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil), competindo a prova dos factos correspondentes ao devedor (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil), mas da matéria de facto provada nada decorre que infirme o aludido juízo de censura associado ao incumprimento.


Com efeito, apesar de ter sido julgado não provado que o R. não tenha entregue todos os documentos necessários para a concessão do financiamento de que precisava para satisfazer o remanescente do preço, está provado que as condições de financiamento foram alteradas, não se retirando da matéria de facto provada que a causa dessa alteração radique em algum comportamento da A., pelo contrário, extrai-se do facto provado 34. que essa alteração se ficou a dever a circunstâncias atinentes à capacidade financeira do R..


Por outro lado, não está provado que o R. tenha pago qualquer renda ao Banco Santander Consumer (facto não provado u)).


Nesta sequência foi condenado o R. a pagar o preço do veículo à A., deduzido das quantias que o R. lhe entregou em numerário, ou seja, abatendo € 5.000,00 ao preço de € 54.900,00, pelo que liquidou o Tribunal a quo a dívida do R. para com a A. em € 49.900,00.


A oposição do R. a este segmento da decisão funda-se no seu entendimento de que firmou um Contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor com o Interveniente, pelo que competia a este cobrar-lhe a si as prestações mensais acordadas, e se não o fez, o R. não é responsável por esse facto.


Acompanhamos, porém, a posição do Tribunal a quo sobre a questão da ineficácia do Contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor celebrado pelo R. com o Interveniente Santander Consumer, já acima exposta, pelo que esta argumentação do R. não procede.


Aliás, esta linha de argumentação do R. é, em bom rigor, contraditória nos seus termos, porquanto se o R. entende que é o proprietário da viatura, porque a comprou à A., então não pode, em simultâneo, defender a validade do contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, na medida em que por força deste Contrato o proprietário do veículo seria o Banco Santander Consumer, ficando o R. apenas na posição de locatário.


Tudo visto, o R. não pagou nem o preço à A., nem rendas ao Banco Santander Consumer, apesar de se arrogar proprietário da viatura e, com esse fundamento, recusar a sua entrega à A., não se propondo também entregar a viatura ao Banco Santander Consumer.


Revemo-nos, pois, inteiramente nas considerações vertidas na fundamentação de direito da sentença sobre a falta de diligência do R. quanto ao pagamento do remanescente do preço, a qual é eticamente desvaliosa sob a perspetiva de que é do seu inteiro conhecimento que está em dívida a quase totalidade do preço da viatura.


Da matéria de facto provada não decorre que o R. tenha feito propostas concretas à A., designadamente, indicando uma mensalidade concreta que estivesse disposto a pagar, ou que tivesse consultado outros Bancos para indagar de eventuais condições de financiamento que lhe parecessem melhores do que as propostas pelo Banco Santander Consumer, antes consta apenas do facto provado 40. a alusão a reuniões que o R. pediu para resolver o problema, sem qualquer outra menção.


Perante um cenário em que se mostrava caducada a declaração de autorização de circulação do automóvel e havia sido recusado o financiamento proposto ao Banco Santander Consumer, por razões atinentes ao próprio R., não lhe bastava solicitar reuniões, era-lhe exigível que tomasse medidas para resolver o problema, uma vez que era um problema seu, no sentido de que o polo da discussão é a obrigação de pagamento do preço, a qual lhe incumbe a si.


A decisão de condenação do R. no pagamento do preço do veículo mostra-se, pois, acertada.


E) Do recurso subordinado


1. Apresentou a A. recurso subordinado para a eventualidade de vir a ser julgado procedente o recurso do R. e, neste contexto, ser julgado válido o contrato de ALD.


Pugna, então, a A. pela nulidade do referido contrato e pela nulidade do contrato de compra e venda, em virtude de serem contratos coligados, repercutindo-se as vicissitudes de um no outro.


Ora, preceitua o n.º 1 do artigo 633.º do Código de Processo Civil que “Se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, nesse caso, ser independente ou subordinado.”


Todavia, considerando o pedido formulado pela A., verificamos que a mesma logrou obter integral vencimento de causa, logo, inexiste fundamento para a dedução de recurso subordinado.


Aquilo de que se trata aqui é, assim, mais propriamente, da figura do “recurso subsidiário”: “Fora do campo do recurso subordinado está a questão da admissibilidade de recurso subsidiário, isto é, de recurso interposto a título principal, mas cuja apreciação, por manifestação de vontade do recorrente, fique dependente do resultado de outro recurso instaurado pela mesma parte ou pela parte contrária.


A resposta é afirmativa, podendo ser sustentada no argumento de maioria de razão, o qual encontra suficiente sustentação no princípio do dispositivo que domina em matéria de recursos e que, por exemplo, também aflora no art. 636.º, quando confere ao recorrido a possibilidade de ampliar o objeto do recurso interposto pelo recorrente, ainda que a título subsidiário.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 123-124).


Estamos, deste modo, no domínio da ampliação do objeto do recurso (Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, p. 397, e Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, p. 85, apud Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 124, nota 213).


A ampliação deve reportar-se a “fundamento em que a parte vencedora decaiu”, conforme expressamente previsto no n.º 1 do artigo 636.º do Código de Processo Civil, ou seja, devemos estar em presença de factos ou institutos jurídicos alegados pela parte com vista ao deferimento da sua pretensão.


Porém, compulsados os autos, verificamos que a nulidade do contrato de ALD e do contrato de compra e venda não foi alegada na petição inicial, tendo sido invocada apenas em sede de articulado superveniente a nulidade do contrato de compra e venda com financiamento, onde foi requerida a alteração do pedido e da causa de pedir com esse fundamento e finalidade, nos seguintes termos:


“c) Subsidiariamente, caso o contrato de compra e venda seja declarado nulo, à luz do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, deverá o Réu, para efeitos do artigo 289.º do CC, restituir à Autora o veículo automóvel objeto dos presentes autos [admissível à luz do artigo 265.º, n.º 2 do CPC, ou, caso assim não se entenda, à luz do n.º 6 do mesmo artigo]”.


Mas esse requerimento foi julgado legalmente inadmissível pelo Tribunal a quo, com a seguinte fundamentação:


“Quanto à alteração simultânea da causa de pedir e do pedido, esta circunscreve-se naturalmente aos casos do artigo 264.º ou desde que verificados os pressupostos referidos nos nºs 1 e 2 do artigo 265.º.


Ora, no caso, por um lado, inexiste qualquer acordo nessa alteração/modificação simultânea.


Por outro lado, ainda que se conjeturasse que a alteração/modificação simultânea tivesse por base a confissão do réu, a ampliação teria que ocorrer no prazo de 10 dias a contar da aceitação, o que não se verifica no caso. E, por fim, resulta evidente que as ampliações de pedido pretendidas não se contêm virtualmente no pedido inicial, o qual tinha por base um contrato de compra e venda que tinha sido validamente celebrado, mas incumprido pelo Réu (e não no enriquecimento sem causa ou na nulidade do contrato).


De qualquer modo, sempre se dirá a propósito desta alteração/modificação simultânea com base no enriquecimento sem causa ou na nulidade do contrato, que para a mesma teriam que ser alegados outros factos essenciais que não constam da petição inicial (conforme já se referiu supra, na petição inicial é alegada a celebração de um contrato de compra e venda e o não cumprimento pelo Réu das obrigações dele emergentes, sendo, por demais, indubitável que para a procedência do pedido de restituição com base em enriquecimento sem causa ou do pedido de nulidade do contrato de compra e venda coligado com o de financiamento, tal importaria a alegação de outros factos).


Ora, esses factos, sendo constitutivos do direito, só poderiam ser alegados se fossem supervenientes objetiva ou subjetivamente, o que não é claramente o caso, atenta, desde logo, a oposição da interveniente acessória e o que decorreu das anteriores sessões da audiência de julgamento.


Para além do mais, os novos factos teriam que constar de novo articulado oferecido na audiência final se aqueles ocorressem ou a parte deles tivesse conhecimento em data posterior à audiência prévia ou nos 10 dias posteriores à notificação da data para a realização da audiência final (artigo 588.º, n.º3, al. c), do Código de Processo Civil), o que não ocorreu de forma evidente no caso.


Com efeito, a ampliação da causa de pedir, com a concomitante ampliação do pedido, também não é possível por esta via, uma vez que não estão verificados os pressupostos estabelecidos no artigo 588.º do Código de Processo Civil.


Naturalmente que tal não pode pôr em causa o poder/dever de o tribunal conhecer de eventuais detetadas nulidades que resultem ser de natureza oficiosa pois estas, como é consabido, não dependem sequer da alegação das partes.


Com efeito, por inadmissibilidade legal, não se admite a modificação simultânea da causa de pedir e dos pedidos com aquela conexos.”


A pretendida ampliação do objeto do recurso não respeita, consequentemente, a fundamento relativamente ao qual a A. tenha decaído, porquanto se trata de instituto jurídico cuja apreciação foi rejeitada pelo Tribunal a quo por razões que se prendem com a admissibilidade legal da formulação dessa pretensão.


2. Nas suas alegações de recurso, contudo, pugnou a A. pela admissão do pedido de declaração de nulidade do contrato de ALD e do contrato de compra e venda, insurgindo-se contra aquele despacho.


Não obstante, a A. não interpôs recurso do referido despacho, circunstância de onde se extrai que o mesmo transitou em julgado.


Ainda assim, a A. aduz também que a aludida nulidade é de conhecimento oficioso, pelo que deve o Tribunal apreciá-la.


Ora, a apreciação de questões de conhecimento oficioso depende sempre da invocação dos factos pertinentes, atento o princípio dispositivo (artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


A temática tem sido abordada mais amiúde na jurisprudência a propósito da exceção perentória do abuso de direito, citando-se, por mais recentes, os seguintes arestos (todos in http://www.dgsi.pt/):


- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.11.2019 (Isabel Peixoto Imaginário), Processo n.º 7316/18.8T8STB.E1:


“O instituto do abuso do direito é de conhecimento oficioso;


Tal conhecimento, porém, apenas se impõe se do rol dos factos provados constarem factos relevantes para o efeito;


Não basta alegá-los em sede de alegações de recurso, desde logo atento o Princípio da concentração da defesa.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.02.2023 (Luís Cravo), Processo n.º 3311/21.8T8LRA.C1:


“O abuso do direito (cf. art. 334º do C.Civil) pode ser objeto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal ainda que a sua invocação constitua questão nova, mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso do direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.03.2023 (Elisabete Valente), Processo n.º 194/20.9T8RMR.E1:


“Embora o abuso de direito (artigo 334.º do CC) possa ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não esteja vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 608.º, n.º 2, do NCPC) esse conhecimento oficioso do abuso de direito não é ilimitado pois a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos e que constituem o objecto do processo pois é dentro dos limites traçados pelos articulados que se desenvolve a actividade cognitiva e decisória do tribunal, o que traduz aquilo a que podemos chamar uma espécie de “vinculação temática” decorrente da autonomia e auto responsabilidade das partes.”


Na situação vertente constata-se que a A. nada aduziu na petição inicial a respeito da nulidade do contrato de ALD e do contrato de compra e venda, tendo pretendido fazê-lo posteriormente, em sede de requerimento de alteração do pedido e da causa de pedir, onde peticionou a declaração de nulidade do contrato de compra e venda com financiamento.


Todavia, como se disse acima, tendo este requerimento sido rejeitado pelo Tribunal a quo por despacho do qual não foi interposto recurso, o despacho transitou em julgado, produzindo efeito de caso julgado formal, isto é, ganhando força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Daqui decorre que não pode o Tribunal da Relação, atuando oficiosamente, promover o alargamento da matéria de facto, com vista a providenciar o acervo factual habilitante do conhecimento da exceção de nulidade do contrato de ALD e do contrato de compra e venda.


Com efeito, o exercício de poderes oficiosos no âmbito dos recursos não pode pôr em crise a estabilidade da instância resultante do funcionamento das regras processuais, sendo que essa segurança jurídica é precisamente o escopo do instituto do caso julgado.


3. No entanto, pode ainda, por último, perguntar-se se a matéria de facto provada nos autos permite extrair alguma conclusão relevante para a apreciação da questão da alegada nulidade do contrato de ALD e do contrato de compra e venda.


A norma invocada pela A. nas suas alegações de recurso é o artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 13/2009, de 02.06, atinente ao “contrato de crédito coligado”, onde se estabelece que:


“1 - A invalidade ou a ineficácia do contrato de crédito coligado repercute-se, na mesma medida, no contrato de compra e venda.


2 - A invalidade ou a revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado.”


Sustenta, então, a A. que com base na norma citada o Tribunal a quo deveria ter concluído pela nulidade do contrato de compra e venda.


Ora, a A. alegou na petição inicial que celebrou um contrato de compra e venda de um automóvel com o R. e a prova produzida nos autos conduziu precisamente a essa conclusão.


A intervenção do Banco Santander Consumer ocorreu através da assinatura de um contrato de Aluguer de Longa Duração com o R., o qual foi enquadrado no regime legal enunciado na sentença recorrida, mas julgado ineficaz.


Assim, a compra e venda coligada com o contrato de crédito celebrado sob a forma de um contrato de Aluguer de Longa Duração tem como partes a A. e o Banco Santander Consumer, e não a A. e o R..


Com efeito, no contrato de Aluguer de Longa Duração quem compra o bem ao vendedor é o financiador, o qual depois cede o respetivo gozo ao interessado na compra do bem.


O n.º 4 da cláusula 3ª do contrato de Aluguer de Longa Duração é absolutamente inequívoco a este respeito: “O SC [Santander Consumer] é proprietário exclusivo do bem.” (facto provado 25.).


Trata-se, portanto, de uma situação diferente daquela que ocorre quando o financiador celebra um contrato de mútuo com o comprador, o qual, por sua vez, compra o bem ao vendedor.


Logo, a matéria de facto provada nos autos não permite concluir pela verificação da nulidade alegada pela A..


Tudo visto, deve ser confirmada a sentença recorrida no que respeita aos pedidos formulados pela A..


F) Da reconvenção


1. Quanto à reconvenção, julgou o Tribunal a quo ser a mesma totalmente improcedente.


Atenta a circunstância de não estar provado que o R. tenha pago qualquer prestação mensal atinente a um empréstimo bancário, inexistem razões que determinem a modificação da decisão de absolvição da A. quanto ao pedido de restituição das prestações mensais do empréstimo que teriam sido alegadamente pagas pelo R..


2. Os dois outros pedidos formulados pelo R. são por este apelidados de “indemnização por danos não patrimoniais”, sendo o primeiro assente na imobilização do automóvel e o segundo no stress, humilhação e vergonha sentidos pelo R. com a atuação da A..


Considerando esta nomenclatura, entendeu o Tribunal a quo não estar em causa no primeiro pedido um dano de privação de uso de veículo, acrescentando que de todo o modo não ficou provado que o R. tivesse sofrido danos psicológicos com a privação de uso do veículo e, por fim, não tendo o R. diligenciado pela resolução do problema, é-lhe imputável o dano sofrido, pelo que constitui abuso de direito a sua pretensão indemnizatória.


Ora, antes de mais, quanto ao dano de privação de uso de veículo tem vindo a consolidar-se na jurisprudência a orientação que o qualifica como um dano autónomo, de natureza patrimonial, consistindo numa limitação à plenitude inerente ao direito real de propriedade (artigo 1305.º do Código Civil).


Sem prejuízo, pode coexistir com esta dimensão patrimonial uma dimensão não patrimonial, relativa às consequências dessa privação na vida pessoal do lesado que se projetem para além das consequências diretas da impossibilidade de utilização do veículo.


Neste sentido pronunciaram-se os seguintes arestos (todos in http://www.dgsi.pt/):


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018 (Abrantes Geraldes) (Processo n.º 176/13.7T2AVR.P1.S1): “IV. Independentemente da resposta à questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso como dano autónomo de natureza patrimonial, o facto de o veículo sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano profissional e na sua vida particular não pode deixar de determinar a atribuição daquela indemnização respeitante ao período em que perdurou a privação do uso da viatura (in casu, até à aquisição de uma nova viatura pelo lesado).


V. Na determinação do valor dessa indemnização, por forma a obter uma aproximação relativamente ao objetivo da restauração natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo ou se acaso a Seguradora tivesse entregue ao lesado um veículo de substituição, cabe a ponderação do valor que esta suportaria com o aluguer de um veículo que desempenhasse uma funcionalidade semelhante àquela que desempenhava o veículo sinistrado, com recurso à equidade em face das demais circunstâncias.


VI. O facto de a privação do uso do veículo ter provocado ao lesado forte perturbação da sua vida e o de, por causa do acidente, ter ocorrido perturbação no gozo de férias do lesado e sua família que se encontrava agendado, são merecedores da tutela do direito a título de danos não patrimoniais.”


- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2005 (Henrique Araújo) (Processo n.º 0521132): “I - O Dano de Privação do uso de veículo pode manifestar-se no plano patrimonial e no plano não patrimonial do lesado.


II - No 1º caso abrange as despesas com aluguer de veículo substituto, transportes alternativos ou os benefícios não obtidos por causa de privação.


III - No 2º caso quando representa um conjunto de incómodos, inconvenientes, contrariedades e esforços do lesado, ditado pela impossibilidade de usar o veículo.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.03.2020 (Arlindo Crua) (Processo n.º 7289/16.1T8LRS.L1-2): “O dano de privação do uso do veículo, inibindo o dono de exercer sobre o mesmo os inerentes poderes, constitui uma efectiva perda, conferindo o sistema legal ao lesado o direito à reconstituição natural da situação;


- Todavia, quando esta faculdade não tenha sido utilizada, ou o responsável lesante não tenha procedido á devida substituição do veículo, então a única via de reparação ou reintegração possível do lesado é através da atribuição de um equivalente pecuniário, vulgo, através da competente indemnização;


- Não se vislumbra qualquer impossibilidade de cumulação do dano de privação do uso da viatura, que se configura como um dano de natureza patrimonial, pois traduz-se em efectiva lesão do correspondente direito real de propriedade, com os danos de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, nomeadamente os conexos com a privação de tal uso”.


- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.06.2021 (Lígia Venade) (Processo n.º 2125/18.7T8VNF.G2): “I A mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem, e esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.


II Não há impedimento à cumulação das indemnizações pelo dano patrimonial que se traduz em efetiva lesão do correspondente direito real de propriedade, e pelo dano de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, e que se traduz na sua afetação moral, desde que não sejam os mesmos factos a suportar ambas as indemnizações.”


Ou seja, a possibilidade de utilização de um bem possui conteúdo económico, sendo essa a valoração efetuada no âmbito da indemnização por dano de privação de uso, mas se por virtude dessa impossibilidade o lesado sofreu outros danos, decorrentes de se ver impedido de desenvolver as suas atividades, semelhantes danos devem ser enquadrados na categoria dos danos não patrimoniais.


Assim, tendo o R. aludido expressamente aos danos não patrimoniais decorrentes da impossibilidade de usar o veículo, deve entender-se que a pretensão do R. se enquadra no âmbito dos danos não patrimoniais e não no âmbito do dano de privação do uso.


Esta interpretação do pedido encontra corroboração no segundo pedido de indemnização por danos não patrimoniais que o R. se alicerçou em factos distintos dos que dizem respeito à impossibilidade de utilização do veículo.


Lidos os factos provados constata-se que o R. ficou efetivamente impossibilitado de usar o veículo automóvel adquirido à A., todavia, não estão demonstrados os danos não patrimoniais que o R. alegou terem daí decorrido.


Logo, também a absolvição da A. relativamente a este pedido reconvencional deve ser confirmada.


3. Por fim, no que tange ao segundo pedido de indemnização por danos não patrimoniais, uma vez que se mantêm não provados os factos aludidos sob r), s), v) e w), conclui-se que não estão demonstrados os factos constitutivos do direito invocado pelo R., o que determina que se confirme também a absolvição da A. quanto a este pedido reconvencional.


G) Custas


As custas são suportadas pelo Recorrente, que fica vencido (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


IV – Dispositivo


Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.


Custas pelo Recorrente.


Sónia Moura (Relatora)


Susana Ferrão da Costa Cabral (1ª Adjunta)


Filipe César Osório (2º Adjunto)