Sumário:
1. Na ação de divisão de coisa comum, havendo contestação, compete ao juiz decidir se as questões a apreciar são compatíveis com o prosseguimento dos autos sob a forma incidental, ou se deve ser seguida a tramitação da ação comum, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 926.º do Código de Processo Civil.
2. Esta opção não está sujeita à prévia audição das partes.
3. Prosseguindo os autos sob a forma incidental, não há lugar à realização de audiência prévia, por não se mostrar prevista a prática deste ato processual no regime contido nos artigos 294.º e 295.º do Código de Processo Civil.
4. Tendo ação anterior, com o mesmo objeto, terminado por deserção, não se verifica a exceção dilatória do caso julgado material, porquanto a deserção assume feição adjetiva, produzindo tão somente efeito de caso julgado formal.
(Sumário da responsabilidade do Relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)
Apelação n.º 74/23.6T8TVR.E1
(1ª Secção)
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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. AA e mulher, BB, intentaram ação especial de divisão de coisa comum contra CC, DD e EE, pedindo que, declarando-se a indivisibilidade da fração autónoma designada pela letra “A”, do prédio urbano sito na ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 572, daquela freguesia, se proceda à sua adjudicação ou venda, com repartição do valor na proporção dos direitos dos AA. e das RR..
Alegaram os Requerentes que por escritura de permuta e partilha foi adjudicado ao A. 10,5% da fração, à R. EE foi adjudicado 19,5% e a cada uma das restantes RR. foi adjudicado 35%, sendo tal fração indivisível.
2. Apenas a Requerida CC veio apresentar contestação, na qual invocou a exceção dilatória do caso julgado, e, bem assim, a exceção perentória da renúncia ao direito à presente ação, e, no restante, pugnou pela impossibilidade de adjudicação ou venda, alegando que o imóvel é parte comum do prédio, e concluindo pela sua absolvição.
3. Após o termo dos articulados, foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique os Autores para, em 10 dias, responderem à matéria de excepção invocada pela Ré na sua contestação - arts. 3º, e 6º, nº 1, do NCPC.
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Sem prejuízo, notifique a Ré CC para, em 10 dias, juntar:
- documento idóneo à prova de que a fracção cuja divisão vem pedida integra parte comum do prédio onde se insere; e
- cópia certificada do licenciamento do prédio e respectivas fracções para a actividade turísticas.
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Notifique ainda os Autores para, em 10 dias, juntarem:
a) cópia certificada do título constitutivo da propriedade horizontal, do prédio onde se insere a fracção cuja divisão vem peticionada, e bem assim, caso as haja, cópia certificada das respectivas alterações ao título; e
b) cópia certificada da respectiva licença de utilização da fracção cuja divisão vem peticionada, e cópia certificada da respectiva licença de utilização do prédio onde tal fracção se insere.”
4. Os Requerentes responderam às exceções invocadas na contestação, pugnando pela sua improcedência, assim como juntaram aos autos documentos.
Também a Requerida CC juntou aos autos documentos.
5. Após, foi proferida a seguinte decisão:
“Os Requerentes AA e mulher, BB, vieram intentar a presente acção especial de divisão de coisa comum contra as Requeridas CC, DD, e EE, todos com a id. que consta dos autos, visando o termo da indivisão do imóvel correspondente à fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano sito na ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 572, daquela freguesia, e pedindo que, declarando-se a indivisibilidade daquela fracção, se proceda à sua adjudicação ou venda, com repartição do valor na proporção dos direitos de A.A. e R.R.
Para tanto, alegaram os Requerentes, em síntese, que, o Autor e Rés são comproprietários daquela fracção, dado que, por escritura de permuta e partilha, foi adjudicado ao Autor 10,5% da mesma, à Ré EE foi adjudicado 19,5%, e a cada uma das restantes Rés foi adjudicado 35%, e tal fracção autónoma é indivisível.
Apenas a Requerida CC veio apresentar contestação, na qual invocou a excepção dilatória do caso julgado, e, bem assim, a excepção perentória da renúncia ao direito à presente acção, e, no restante, pugnou pela impossibilidade de adjudicação ou venda, alegando que o imóvel é parte comum do prédio, e concluindo pela absolvição da Requerida.
Facultou-se aos Requerentes o contraditório relativamente às excepções aduzidas, que estes exerceram, pugnando pela sua improcedência.
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Afigura-se que as questões suscitadas poderiam ser sumariamente decididas.
Assim, resultam provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
1. Na Conservatória do Registo Predial de ... encontra-se descrito sob o nº 572/20021106, da freguesia de ..., o prédio urbano denominado lote 40, situado em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o nº 2276 da freguesia de ..., composto de edifício de cave, rés-do-chão, 1º e 2º andares, com 81 fracções autónomas.
2. Pela Ap. 26 de 22/06/2005 foi inscrita na CRP de ..., a constituição da propriedade horizontal sobre o prédio urbano referido em 1, também com a menção à fracção autónoma A.
3. Na mesma Conservatória do Registo Predial de ... encontra-se descrita sob o nº 572/20021106-A a fracção autónoma, daquele prédio urbano, designada pela letra A, com a seguinte composição “cave - rés-do-chão - primeiro e segundo andares - espaço não habitacional destinado a apoio dos apartamentos turísticos”.
4. Pela Ap. 19 de 27/05/2008 encontra-se inscrita a favor do ora Requerente AA, casado com a ora Requerente BB no regime da comunhão de adquiridos, a aquisição, por partilha da herança de FF, da quota de 10,5% sobre a referida fracção autónoma designada pela letra A.
5. Pela Ap. 5 de 02/07/2008, encontra-se inscrita a favor da ora Requerida CC, casada no regime da separação de bens, a aquisição, por partilha da herança de FF, da quota de 35% sobre a referida fracção autónoma designada pela letra A.
6. Pela Ap. 8 de 02/07/2008, encontra-se inscrita a favor da ora Requerida DD, solteira e maior, a aquisição, por partilha da herança de FF, da quota de 35% sobre a referida fracção autónoma designada pela letra A.
7. A .../.../2008 foi celebrada, no Cartório Notarial em ..., escritura de “Rectificação, Concretização de Permuta e Partilha”, em que foram primeiros outorgantes o ora Requerente AA e mulher BB (estes identificados sob alínea d)), e as ora Requeridas CC, DD, e EE, e segundo outorgante GG, este na qualidade de procurador, em representação da sociedade HH, Limitada, e na qual os outorgantes declararam o seguinte:
“Que outorgaram no extinto Cartório Notarial de ..., no dia vinte e dois de Outubro de dois mil e dois, uma escritura de Permuta, exarada de folhas quarenta e quatro a folhas quarenta e sete, do livro de notas para escrituras diversas número duzentos e sessenta e quatro-A.
Que, pela presente, rectificam a mencionada escritura no sentido de que:
(…) Que, na dita escritura de permuta ficou erradamente dito que o lote de terreno, propriedade cios primeiros outorgantes, era dado à sociedade representada do segundo outorgante para nele ser construído um Aparthotel. quando deveria ter sido mencionado, tão somente, que ao lote de terreno seria construído um edifício em regime de propriedade horizontal, com oitenta e uma fracções autónomas, das quais o segundo outorgante, em nome da sociedade que representa, daria aos primeiros outorgantes vinte e duas fracções e não trinta e quatro, como por lapso foi referido, pelo que é alterada a cláusula primeira do documento complementar dá supra citada permuta, que passa a ter a seguinte descrição:
1- Espaço destinado a apoio dos apartamentos - Fracção “A”;
(…) Que em todo o mais se mantém o constante da escritura ora rectificada.
E pelos outorgantes mais foi dito;
Que pela escritura de permuta os primeiros outorgantes permutaram com a sociedade representada do segundo outorgante, o prédio urbano composto de terreno para construção urbana, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., designado por lote quarenta, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número quinhentos e setenta e dois, de seis de Novembro de dois mil e dois e ali registado ao tempo a favor dos primeiros outorgantes pela inscrição G-dois.
Que no mesmo foi construído um prédio urbano, destinado a habitação, constituído por cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares, inscrito na matriz sob o artigo 1567, afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F-trai e registado a aquisição a favor da representada do segundo outorgante pela inscrição G-três.
Que, pela presente escritura vêm os outorgantes concretizar a permuta, pelo que a representada do segundo outorgante entrega aos primeiros outorgantes, as seguintes fracções autónomas:
1- Fracção autónoma designada pela letra “A” destinada a apoio doa apartamentos, correspondente à cave, rés-do-chão, primeiro e segundos andares;
(…) Pelos primeiros outorgantes, foi dito:
Que aceitam as fracções autónomas que ora recebem, nada mais tendo a exigir da sociedade representada do segundo outorgante.
E pelos primeiros outorgantes, com excepção da mulher indicada na alínea d), foi dito:
Que no dia Vinte e um de Dezembro de mil novecentos e noventa e cinco, faleceu FF, no estado de divorciado, tendo-lhe sucedido como herdeiras legitimarias e testamentárias duas filhas, acima identificadas como primeiras outorgantes indicadas nas alíneas a) e b), CC e DD e como herdeiros testamentários a acima identificada, primeira outorgante indicada m alínea c) EE e o primeiro outorgante marido indicado na alínea d), AA.
Que se encontram habilitados como herdeiros (…)
Que pela presente escritura fazem a partilha dos bens deitados pelo falecida, as fracções autónomas acima referidas constantes da concretização da permuta, (…) integradas no prédio urbano sito em “..., freguesia de ..., concelho de ..., designado por lote número quarenta (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número quinhentos e setenta e dois, de seis de Novembro de dois mil e dois, afecto ao regime de propriedade horizontal (…)
(…) Que fazem as adjudicações pela forma seguinte:
À primeira outorgante indicada em b), DD, é-lhe adjudicado (…) trinta e cinco por cento da verba um (…)
À primeira outorgante indicada em a), CC, é-lhe adjudicado (…) trinta e cinco por cento da verba um (…)
À primeira outorgante indicada em c), EE, é-lhe adjudicado (…) dezanove e meio por cento da verba um (…)
Ao primeiro outorgante marido indicada em d), AA, é-lhe adjudicado (…) dez e meio por cento da verba um (…)”.
8. A escritura de “Constituição da Propriedade Horizontal” foi outorgada a 21 de Junho de 2005, no Cartório Notarial em ..., e na qual os outorgantes declararam o seguinte:
“Que a sua representada é dona e legítima possuidora do prédio urbano, composto por edifício de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com a superfície coberta de dois mil quinhentos e cinquenta e oito vírgula oitenta e sete metros quadrados e descoberta de mil duzentos e noventa e um vírgula treze metros quadrados, sito na ..., Lote número quarenta, freguesia de ..., concelho de ..., construído no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número quinhentos e setenta e dois, daquela freguesia, (…)
Que, pela presente escritura, constituem, em nome da sua representada, o regime de propriedade horizontal sobre o identificado prédio, composto por oitenta e uma fracções autónomas, a que atribuem as letras “A” (…), cuja identificação, com indicação dos correspondentes valores (…) constam de um documento complementar elaborado nos termos do número um do artigo sessenta e quarto do Código do Notariado, que fica anexo a esta escritura (…)
Que as fracções autónomas individualizadas no mencionado documento complementar constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio e desta para a via a pública.”.
9. Do documento complementar anexo a esta escritura ficou a constar, a respeito da referida fracção A:
“(…) Fracção A - Espaço não habitacional destinado a apoio dos apartamentos turísticos, composto; na cave por um compartimento destinado a depósito de lixo, um compartimento destinado a depósito de água e equipamentos mecânicos, uma zona técnica, dois monta cargas, uma escada de serviço, uma entrada de pessoal e saída de emergência do mesmo e uma zona de ligação/passagem de serviço; no rés-do-chão por dois monta cargas, duas copas de piso, uma copa de bar, uma zona de frio, uma zona de malas, uma escada de serviço, uma rouparia, uma instalação sanitária de pessoal feminino, uma instalação sanitária de pessoal masculino, uma instalação sanitária para deficientes, uma instalação sanitária para senhoras, uma instalação sanitária para homens e uma recepção; no primeiro andar por duas copas, uma escada de serviço e dois monta cargas; e no segundo andar por duas copas, uma escada de serviço e dois monta cargas; com a área encerrada na cave de duzentos e nove vírgula quarenta e um metros quadrados, com a área encerrada no rés-do-chão de cento e cinquenta e quatro vírgula cinquenta e cinco metros quadrados, com a área encerrada no primeiro andar de quarenta e um metros quadrados e com a área encerrada no segundo andar de quarenta e um metros quadrados; com permilagem de sessenta vírgula sessenta do valor total do prédio (…)”.
10. Do documento complementar anexo a esta escritura ficou a constar, a respeito das partes comuns:
“São partes comuns do prédio para além daquelas que a lei determina (estrutura, cobertura, electricidade, água e esgotos) as seguintes: na cave - a rampa de acesso à cave com a área encerrada de trinta e seis vírgula oitenta e sete metros quadrados, a zona de circulação com a área encerrada de oitocentos e sessenta e sete vírgula vinte e seis metros quadrados, uma escada de acesso ao piso superior com a área encerrada de treze vírgula noventa e dois metros quadrados, duas escadas de acesso à via pública com a área encerrada de dez vírgula vinte e oito metros quadrados, uma escada de saída de emergência com a área encerrada de seis vírgula cinquenta e dois metros quadrados e uma caixa de elevador com a área encerrada de dois vírgula noventa e cinco metros quadrados. No rés-do-chão - quatro canteiros com a área de quarenta e cinco vírgula sessenta e dois metros quadrados, uma entrada e sala de estar com a área encerrada de noventa vírgula cinquenta e nove metros quadrados, um escritório destinado às reuniões de condomínio com a área encerrada de doze vírgula oitenta e oito metros quadrados, duas caixas de elevador com a área encerrada de cinco vírgula noventa metros quadrados, duas zonas de circulação com a área encerrada de cento e quarenta e cinco vírgula noventa e quatro metros quadrados, uma escada de acesso aos pisos com a área encerrada de treze vírgula oitenta e nove metros quadrados, duas escadas de saída de emergência com a área encerrada de quarenta e dois vírgula dezasseis metros quadrados, um pátio com seis canteiros e um lago com a área de trezentos e setenta vírgula sessenta e nove metros quadrados e uma escada de acesso do pátio à via pública com a área de dezoito vírgula oitenta e cinco metros quadrados. No primeiro andar - duas caixas de elevador com a área encerrada de cinco vírgula noventa metros quadrados, uma zona de circulação com a área encerrada de cento e cinquenta e cinco vírgula trinta e dois metros quadrados, uma escada de acesso aos pisos com a área encerrada de treze vírgula oitenta e nove metros quadrados, duas escadas de saída de emergência com a área encerrada de vinte e nove vírgula noventa e seis metros quadrados e uma sala de estar com a área encerrada de dezasseis vírgula trinta e nove metros quadrados. No segundo andar - duas caixas de elevador com a área encerrada de cinco vírgula noventa metros quadrados, uma zona de circulação com a área encerrada de cento e trinta e seis metros quadrados, uma escada de acesso aos pisos com a área encerrada de treze vírgula oitenta e nove metros quadrados, duas escadas de saída de emergência com a área encerrada de vinte e oito vírgula oitenta metros quadrados e dois terraços com a área de quarenta vírgula quarenta e dois metros quadrados. São partes comuns mas de uso público todo o passeio exterior circundante ao edifício com a área de mil duzentos e setenta e dois vírgula zero quatro metros quadrados.”.
11. Ao referido prédio urbano foi emitido, a 22/11/2005, o Alvará de Utilização nº 412, de acordo com o qua foi autorizada a utilização do prédio para “Hotel - Apartamentos”.
12. A 28/11/2019 foi celebrada no Cartório Notarial em ... escritura de “Divisão e Cessão de Quotas”, em que outorgaram como primeiros outorgantes o ora Requerente AA e mulher, BB, como segunda outorgante a ora Requerida EE, como terceira outorgante a ora Requerida CC, e como quarta outorgante a ora Requerida DD, e na qual:
“(…) Disseram os OUTORGANTES, com exceção da primeira outorgante mulher:
- Que são os únicos e atuais sócios, sendo a terceira também gerente, da sociedade comercial por quotas com a firma “II - EXPLORAÇÃO HOTELEIRA, LDA”, (…) com o capital social de dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros noventa e dois cêntimos, dividido pelas quatro quotas que ora se identificam:
a) uma de dois mil novecentos e um euros e sessenta e dois cêntimos de valor nominal, pertencente ao primeiro outorgante;
b) outra de três mil setecentos e vinte e cinco euros e vinte e dois cêntimos de valor nominal, pertencente à segunda outorgante;
c) e duas iguais de seis mil seiscentos e sessenta e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos de valor nominal, uma pertencente à terceira outorgante e outra à quarta outorgante.
E pelos PRIMEIROS OUTORGANTES foi dito:
- Que, pela presente, DIVIDEM a quota de dois mil novecentos e um euros e sessenta e dois cêntimos de que o outorgante marido é titular, em duas novas quotas, uma de seiscentos e oitenta e dois euros e sessenta e três cêntimos (682,63 €) de valor nominal, e outra de dois mil duzentos e dezoito euros e noventa e nove cêntimos (2.218,99 €), que CEDEM do seguinte modo:
a) a quota de seiscentos e oitenta e dois euros e sessenta e três cêntimos (682,63 €) cedem à quarta outorgante, DD, pelo preço de vinte e oito mil e quinhentos euros (28.500,00 €);
b) e a quota de dois mil duzentos e dezoito euros e noventa e nove cêntimos (2.218,99 €) cedem à terceira outorgante, CC, pelo preço de noventa e dois mil seiscentos e quarenta e três euros e dezanove cêntimos (92.643,19 €).
O PRIMEIRO OUTORGANTE declara ainda que:
a) Nada mais tem a haver ou a reclamar da Sociedade ou das demais sócias, nessa qualidade de sócias, prescindindo de quaisquer outros valores a que tivesse direito;
b) Renuncia a qualquer ação judicial que tivesse havido ou que pudesse mover contra a Sociedade e as sócias da mesma, nessa condição de sócias, CC, DD e EE;
c) Se abstém de praticar qualquer ato lesivo à Sociedade e às sócias CC, DD e EE, nomeadamente queixas-crime ou denúncias para as Finanças, Segurança Social ou outros organismos;
d) Se abstém de ingerir na Sociedade, quer pessoalmente quer por intermédio de outros (terceiros);
e) Renuncia também ao direito de adquirir no futuro qualquer participação social na Sociedade, que seja posta no mercado;
f) Renuncia aos direitos especiais constantes do Pacto Social, na sua versão inicial, nomeadamente os constantes no artigo 4.°, n.° 6 do artigo 10.° e artigo 11.º, o que faz desde logo e de imediato;
(…) Declararam todos os OUTORGANTES:
(…) - Que todas as partes se obrigam a pôr fim aos processos judiciais que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo do Comércio de ..., sob os números 1087/16.0..., 945/17.9... e 560/19.2..., ficando as custas em dívida ajuízo a cargo do Cedente e da Sociedade, na proporção de metade para aquele e de metade para esta, prescindindo todos de custas de parte.
Pela SEGUNDA, TERCEIRA E QUARTA OUTORGANTES foi dito:
- Que aceitam as respetivas cessões de quotas nos termos exarados.
- Que em nome próprio e na qualidade de únicas sócias que ficaram sendo da Sociedade declaram que:
a) nem elas nem a Sociedade nada mais têm a haver ou a reclamar do Cedente, na condição de sócio ou ex-sócio, pelo que se obrigam a saldar as contas de sócios ou outras equivalentes, referente ao Sócio Cedente;
b) renunciam a qualquer ação judicial que tivesse havido ou que pudessem mover contra o Cedente, na condição de sócio ou ex-sócio. (…)”.
13. O referido prédio destina-se a fins turísticos, e a referida fracção A é a sua recepção.
14. Inexiste uma licença de utilização apenas para a referida fracção A, uma vez que se trata de um edifício com a utilização Hotel - Apartamentos.
A factualidade enunciada nos pontos 1 a 6 dos factos provados, decorre das certidões registrais juntas aos autos; a factualidade enunciada nos pontos 7 a 10 dos factos provados tem a sua base nas certidões das duas escrituras, juntas aos autos; a factualidade descrita no ponto 11 dos factos provados sustenta-se na certidão do alvará junta pela Ré CC; a factualidade vertida no ponto 12 dos factos provadas sustenta-se na cópia da escritura junta à contestação; e os factos enunciados nos pontos 13 e 14 dos factos provados encontram-se admitidos por acordo das partes.
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A Requerida CC invocou a excepção dilatória do caso julgado, estribando-se numa decisão judicial de extinção da instância por deserção numa alegada acção de divisão de coisa comum tendo por escopo a cessação da indivisão da mesma fracção. Ora, os fundamentos assim alegados pela Requerida nunca teriam a virtualidade de fazer operar a excepção do caso julgado, porquanto o trânsito em julgado de uma decisão de extinção da instância apenas atinge a relação processual constituída na acção em que é proferida, não extinguindo o direito substantivo a fazer cessar a contitularidade do respectivo direito real.
Pelo que, é improcedente a excepção do caso julgado invocada pela Requerida CC.
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A Requerida CC invocou renúncia ao direito à presente acção, por banda dos Requerente, com fundamento no que estes declararam na escritura de “Divisão e Cessão de Quotas” outorgada a 28/11/2019.
Sucede que, o que se apura é que em tal escritura o Requerente declarou que:
- “Renuncia a qualquer ação judicial que tivesse havido ou que pudesse mover contra a Sociedade e as sócias da mesma, nessa condição de sócias, CC, DD e EE”, e que
- “Se abstém de praticar qualquer ato lesivo à Sociedade e às sócias CC, DDe EE, nomeadamente queixas-crime ou denúncias para as Finanças, Segurança Social ou outros organismos”
Ora, o exercício do direito de acção, pelo Requerente, com vista à cessação da contitularidade da fracção autónoma, contra as Requeridas, não se pode configurar como uma “acção judicial (…) contra a Sociedade e as sócias da mesma, nessa condição de sócias, CC, DD e EE”, tanto mais que nem a sociedade é uma das contitulares do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra A, nem nada se apura ou foi alegado que evidencie que é na qualidade de sócias daquela sociedade que as Requeridas são contitulares do direito de propriedade sobre essa fracção autónoma.
Improcede, por isso, esta excepção perentória invocada pela Requerida CC.
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Por fim, a Requerida CC aduziu a impossibilidade de adjudicação ou venda, alegando que o imóvel é parte comum do prédio.
Ora, do título de constituição de propriedade horizontal que foi junto não resulta que a dita fracção autónoma designada pela letra A seja uma parte comum do prédio em que se insere, antes pelo contrário, e mesmo o facto de ser a recepção de um prédio destinado a fins turísticos não permite reconhecer que a sua descrita composição integra, sequer em parte, uma parte comum do mesmo prédio - cfr. art. 1424º, do Cód. Civil.
Constituindo mesmo uma contradição a coexistência de uma fracção autónoma com o atributo de parte comum do prédio em que se insere, tanto assim que sobre a mesma fracção foi transmitido, o direito de propriedade ao Requerente e às Requeridas, que neles radica.
Razões pelas quais improcede esta argumentação da Requerida.
A Requerida não impugnou a contitularidade do direito de propriedade e os respectivos quinhões, sobre o que é bastante a prova documental apresentada pelas partes.
Daí que, face ao que já se mostra provado por acordo das partes e pela documentação junta, o tribunal encontra-se já habilitado a proferir decisão conscienciosa, sendo irrelevante e desnecessária a audição da testemunha arrolada pela Requerida, a realização de perícia, ou a prestação dos requeridos depoimento ou declarações de parte, que por isso não terá lugar.
A acção de divisão de coisa comum tem como pressuposto a indivisão de coisa comum, portanto, de coisa sobre a qual se verifica, efectivamente, a comunhão do direito de propriedade, ou de quaisquer outros direitos a que sejam aplicáveis as regras da compropriedade por virtude do art. 1404º, do Cód. Civil - art. 925º, do NCPC.
A finalidade da mesma é a efectivação do direito à divisão, que o art. 1412º do Cód. Civil confere aos proprietários.
Tal direito à divisão é conferido nos seguintes termos:
- nos casos de divisibilidade material da coisa, mediante a fixação de quinhões e a sua adjudicação aos respectivos interessados – art. 929º, do NCPC;
- nos casos de indivisibilidade material, por adjudicação da coisa a algum ou a alguns dos consortes e preenchimento em dinheiro das quotas dos demais, mediante acordo de todos os interessados, ou, na falta deste acordo, por venda executiva e subsequente repartição do produto da venda na proporção das quotas dos comproprietários - art. 929º, do NCPC.
No caso, apura-se que o Requerente e as Requeridas são contitulares do direito real de propriedade sobre a referida fracção autónoma, que é a fracção autónoma designada pela letra A, correspondente a “cave - rés-do-chão - primeiro e segundo andares - espaço não habitacional destinado a apoio dos apartamentos turísticos”, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, denominado lote 40, situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 572/20021106, da freguesia de ....
Razão pela qual, verificando-se a comunhão de direitos, assiste ao Requerente o direito à divisão, que visa exercer nesta acção.
Quanto à fixação da quota de cada um, apura-se que ao Requerente foi transmitida a quota de 10,5%, à Requerida CC foi transmitida a quota de 35%, à Requerida DD foi transmitida a quota de 35%, e à Requerida EE foi transmitida a quota de 19,5%. Sendo essas, portanto, as quotas de cada um dos contitulares.
Tratando-se de um direito que incide sobre uma fracção autónoma, verifica-se assim a indivisibilidade do objecto desse direito, pelo que não é possível a sua divisão em substância – arts. 925º, e 926º, nº 4, do N. Cód. Civil.-, que aliás também não foi invocada.
O processo terá assim que prosseguir com vista à adjudicação do direito contitulado, ou à sua venda com repartição do respectivo valor – art. 925º, do N. Cód. Civil.
Não tendo sido impugnado o valor da causa indicado pelos Requerentes, deverá fixar-se nesse montante o valor da acção - art. 302º, nº 2, do NCPC.
Face a todo o exposto, com estes fundamentos:
a) Julga-se verificada a contitularidade do direito de propriedade, por parte do Requerente AA e das Requeridas CC, DD, e EE, sobre a sobredita fracção autónoma, que é a fracção autónoma designada pela letra A, correspondente a “cave - rés-do-chão - primeiro e segundo andares - espaço não habitacional destinado a apoio dos apartamentos turísticos”, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, denominado lote 40, situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 572/20021106, da freguesia de ...;
b) Fixa-se em 10,5% a quota de que o Requerente AA é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma;
c) Fixa-se em 35% a quota de que a Requerida CC é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma;
d) Fixa-se em 35% a quota de que a Requerida DD é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma, e
e) Fixa-se em 19,5% a quota de que a Requerida EE é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma;
f) Julga-se ainda verificada a indivisibilidade do objecto desse direito de propriedade de que o Requerente e as Requeridas são contitulares sobre o referida fracção autónoma;
g) Determinando, por isso, finalmente, que o processo prossiga para adjudicação ou venda do direito de propriedade assim contitulado.”
6. Inconformada com esta decisão, a Requerida apresentou recurso de apelação, que rematou com as seguintes conclusões:
“1. Por sentença datada de 08-05-2024 que julgou verificada a contitularidade do direito de propriedade, por parte do Requerente AA e das Requeridas CC, DD, e EE, sobre a sobredita fracção autónoma, que é a fracção autónoma designada pela letra A, correspondente a “cave - rés-do-chão - primeiro e segundo andares - espaço não habitacional destinado a apoio dos apartamentos turísticos”, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, denominado lote 40, situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 572/20021106, da freguesia de ...; fixou em 10,5% a quota de que o Requerente AA é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma; fixou em 35% a quota de que a Requerida CC é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma; fixou em 35% a quota de que a Requerida DD é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma, e fixou em 19,5% a quota de que a Requerida EE é titular no direito de propriedade sobre essa fracção autónoma; julgou aindaverificada a indivisibilidade do objecto desse direito de propriedade de que o Requerentee as Requeridas são contitulares sobre o referida fracção autónoma; tendo determinando, por isso, finalmente, que o processo prossiga para adjudicação ou venda do direito de propriedade assim contitulado e não se conformando com o teor da mesma.
2. A ora Recorrente não se conforma com a sentença de que ora se recorre.
3. Em primeiro lugar porquanto o tribunal “a quo” não poderia ter proferido decisão sem realizar audiência prévia.
4. No NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artigo 591.º do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (n.º1 b) Quando o Juiz tencionar conhecer, de imediato, do mérito da causa, a audiência prévia não pode ser dispensada (arts. 593/1, a contrario, e 591/1-b, ambos do CPC), sob pena de nulidade (art. 195/1 do CPC).
5. Motivos pelos quais deveria ter sido realizada audiência prévia, sendo certo que os presentes autos não se encontravam devidamente debatidos nos articulados e a matéria de facto é indubitavelmente controvertida e impunha a produção de prova.
6. Ao que acresce que a sentença recorrida é totalmente omissa quanto aos factos dados como não provados.
7. Evidentemente, a omissão de tal formalidade legal tem manifesta influência no exame e decisão da causa, quer para efeitos de impugnação, quer do seu julgamento, que in casu não se realizou.
8. Deste modo, com a omissão das formalidades referidas, previstas no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, cometeu-se uma nulidade processual prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
9. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil.
10. Devendo ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, seguindo os autos os seus termos ulteriores.
11. Sem prescindir e caso assim não se entenda sempre se dirá que a sentença recorrida viola os artigos 580.º e 581.º ambos do Código de Processo Civil.
12. O tribunal “a quo” decidiu julgar improcedente a invocada excepção por considerar que o de ter existido uma ação anterior não extingue o direito substantivo a fazer cessar a contitularidade do respetivo direito real.
13. A ora Recorrente não se conforma com a decisão de que se recorre porquanto é inegável que existe uma repetição da causa, sendo a presente ação idêntica ao processo n.º 710/09.7... quanto aos sujeitos, quanto ao pedido e quanto à causa de pedir.
14. E por sentença datada de 22-02-2019 o Juízo de Competência Genérica de ... declarou a presente ação extinta e julgou verificada a deserção da instância nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
15. O que significa que decorreram mais de 6 meses sem que nenhuma das partes tivesse tido impulso processual, inclusive os aqui autores.
16. Tendo-se formado caso julgado material em relação aos mesmos, o que os impede de intentarem nova ação em obediência aos princípios da segurança, certeza jurídica e da intangibilidade do caso julgado.
17. Motivo pelo qual não podem agora os Autores repetir a causa e intentarem ação idêntica à outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
18. Andou mal o tribunal “a quo” ao julgar que o trânsito em julgado de uma decisão de extinção da instância apenas atinge a relação processual constituída na ação em que é proferida, não extinguindo o direito substantivo a fazer cessar a contitularidade do respetivo direito real, pois se assim fosse a deserção da instância perderia a sua virtualidade, dado que os aí Autores pese embora tenham deixado a instância deserta sempre poderia voltar a intentar nova ação com o mesmo pedido e com a mesma causa de pedir.
19. Tendo o tribunal “a quo” violado o disposto nos artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º todos do Código de Processo Civil.
20. A sentença recorrida viola ainda o disposto no artigo 576.º do Código de Processo Civil e da excepção perentória da renúncia ao direito de propor a presente ação.
21. Andou mal o tribunal “a quo” ao interpretar que a renúncia ao direito de ação apenas diz respeito a ações contra a sociedade e contra as requeridas na qualidade de sócias, pois o que efetivamente acordaram as partes é que os Requerentes renunciavam ao direito de renúncia ao direito de ação contra a sociedade e contra as sócias, sendo que as renunciam a tal direito a favor das sócias em nome individual e não apenas na qualidade de sócias.
22. Ao arrepio do entendimento do tribunal “a quo” os Requerentes renunciaram ao direito de ação de propor ações contra as aqui Requeridas.
23. Termos em que deverá a sentença de que ora se recorre ser revogada e consequentemente deverá a presente ação ser declarada extinta, absolvendo-se a ora Recorrente.
24. Sem prescindir, estamos perante a impossibilidade de adjudicação de venda da fração A.
25. Em primeiro lugar porquanto após uma visita à fração autónoma é possível verificar que a mesma é um hall de entrada dos apartamentos da ... e que se trata da parte comum do prédio em apreço.
26. Sendo a receção comum a todos os apartamentos, como é o hall de entrada, as escadas, os elevadores, os tectos e as paredes exteriores.
27. Não sendo a fração A suscetível de divisão e de apropriação.
28. Em segundo lugar temos que à semelhança do que sucedeu no processo n.º 710/09.7... que correu termos no Juízo de Competência Genérica de ..., no qual várias imobiliárias tentaram vender a fração em apreço tal não foi possível, atento a que todos os possíveis interessados aquando da visita ao imóvel perdiam o interesse na compra por verificarem que o mesmo se trata de uma parte comum de prédio, composto por hall de entrada e duas arrecadações.
29. Termos em que deverá a sentença de que ora se recorre ser revogada por violação do disposto no artigo 1424.º do Código Civil e consequentemente deverá a presente ação ser declarada extinta, absolvendo-se a ora Recorrente.”
6. Não foram apresentadas contra-alegações.
7. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade da sentença arguida nas alegações nos seguintes termos:
“No recurso interposto foi arguida a nulidade da sentença por preterição da audiência prévia e omissão de pronúncia quanto aos factos não provados, impondo-se a sua apreciação, em conformidade com o disposto nos arts. 617º, nºs 1 e 2, e 641º, nº 1, do CPC.
As nulidades da sentença podem ser supridas, e/ou a sentença reformada, considerando-se a decisão como complemento e parte integrante da sentença – art. 617º, nº 2, do NCPC.
Ora, no caso, a tramitação prevista no âmbito do processo especial de divisão de coisa comum não prevê a realização da audiência prévia - art. 926º, nº 2, do NCPC -, e por outro lado, a recorrente não identifica quais os factos alegados pelas Rés (factos concretos, que não meros juízos conclusivos) sobre os quais o tribunal deveria ter-se pronunciado, e nem se afigura que tenham sido alegados pelas rés factos concretos relevantes sobre os quais o tribunal se deveria ter pronunciado e não se pronunciou.
Não se vislumbra verificado qualquer dos fundamentos invocados para tais vícios, por parte da decisão recorrida.
Fundamentos pelos quais indefiro a verificação das invocadas nulidades.”
8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Questões a Decidir
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
Assim, cumpre apreciar se:
a) a sentença é nula por falta de realização da audiência prévia e omissão de pronúncia quanto aos factos não provados;
b) caso assim se não entenda, se devem ser julgadas procedentes as exceções do caso julgado e da renúncia ao direito de ação;
c) caso assim não suceda, se é impossível a divisão, em virtude da fração constituir uma parte comum do prédio.
III – Fundamentação
A) Da nulidade da Sentença
1. No caso em apreço invocou a Requerente a nulidade da sentença, por falta de realização da audiência prévia.
O Tribunal a quo pronunciou-se no sentido de que no processo especial de divisão de coisa comum não é obrigatória a realização de audiência prévia.
Sustenta também a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter produzido a prova por si indicada, atenta a complexidade da causa.
Invoca ainda a Recorrente a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, alegando que o Tribunal a quo não declarou os factos não provados.
O Mmo. Juiz pronunciou-se sobre a nulidade, sustentando que não foram indicados no recurso os factos cuja apreciação teria sido omitida.
Invoca a Recorrente, assim, o disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil e o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, alegando ter sido violado o princípio do contraditório e proferida uma decisão surpresa.
2. Consta do citado artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que “É nula a sentença quando:
(…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”.
Ora, dos termos da sentença proferida decorre que o Mmo. Juiz entendeu que a questão a apreciar reveste simplicidade.
A tramitação da ação de divisão de coisa comum, quando seja apresentada contestação, é definida precisamente em função da simplicidade ou complexidade do objeto em discussão, seguindo-se o modelo incidental no primeiro caso e o modelo da ação comum no segundo caso (n.ºs 1 e 2 do artigo 926.º do Código de Processo Civil; Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3ª ed., Coimbra, 2023, p. 107).
O modelo incidental corresponde, assim, à regra, surgindo a opção pela tramitação da ação comum justificada pela impossibilidade de apreciar sumariamente as questões colocadas (Nuno Andrade Pisarra, Processos Especiais, vol. I, coord. Rui Pinto e Ana Alves Leal, AAFDL Editora, Lisboa, 2023, p. 178).
No modelo incidental, cujas regras estão plasmadas nos artigos 294.º e 295.º do Código de Processo Civil, não há lugar à realização de audiência prévia, e no modelo da ação comum, por aplicação do disposto nos artigos 591.º a 593.º do Código de Processo Civil, haverá que apreciar se deve ser convocada ou dispensada a audiência prévia (Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 107).
Compete ao juiz decidir o modelo a seguir, sendo a opção pelo modelo da ação comum suscetível de impugnação apenas com o recurso da decisão final, desde que esta seja recorrível (ibidem, p. 108).
Compulsadas as alegações de recurso verificamos que a Recorrente não aponta os factos que não foram apreciados pelo Tribunal a quo, nem refere os factos que pretendia demonstrar com os meios de prova que indicou.
Aliás, lida a sua contestação, não vislumbramos factos com relevo para a decisão da causa que se mostrem controvertidos e não tenham sido apreciados.
Ora, nos termos do artigo 410.º do Código de Processo Civil, a prova destina-se a demonstrar os factos relevantes para a decisão da causa que se mostrem controvertidos, isto é, “os factos necessitados de prova”.
É, aliás, essa a redação usada também no n.º 2 do artigo 926.º do Código de Processo Civil, onde se refere que o juiz profere decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão “produzidas as provas necessárias”.
Consequentemente, in casu não se justifica a produção de prova constituenda – os factos provados assentam em documentos e no acordo das partes, o que não se mostra questionado pela Recorrente, e inexistem outros factos que devam ser apreciados.
Assim, carece de fundamento a alegada complexidade da causa – que, como resulta do exposto, a Recorrente não justifica -, pelo que tendo o Tribunal a quo optado, e bem, pela decisão do caso segundo o modelo incidental, não há lugar à realização de audiência prévia.
Por último, no que tange à invocada violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, onde se consagra o princípio do contraditório, deve sublinhar-se que em obediência e no exercício desse princípio foi a Recorrente citada e apresentou contestação, tendo sido ouvida a parte contrária sobre as exceções invocadas na contestação.
Deste modo, era, de seguida, ao Tribunal que competia apreciar se as questões suscitadas no processo e sobre as quais as partes foram ouvidas podiam ser de imediato decididas ou careciam de produção de prova, e se os termos do processo incidental eram adequados para essa finalidade ou devia antes a ação prosseguir sob a forma comum, não estando o Tribunal vinculado a ouvir as partes previamente à prolação destas decisões.
Em conclusão, não ocorrem as apontadas nulidades.
B) Do mérito da causa
1. Do caso julgado material
Alega a Recorrente que é desacertada a decisão que julgou improcedente a exceção dilatória de caso julgado, na medida em que correu termos entre as partes uma ação com o mesmo objeto da presente, a qual terminou por deserção.
Decidiu, porém, o Tribunal a quo que a sentença que decreta extinta a instância, por deserção, não produz efeito de caso julgado material.
Ora, a questão de que se cura já foi apreciada na jurisprudência e de modo consensual (ambos in http://www.dgsi.pt/):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.11.2018 (Maria João Areias) (Processo n.º 38/16.6T8NZR.C1): “3. A extinção da instância por deserção, não produzindo caso julgado material, não impede a propositura de uma nova ação, ainda que nos exatos termos da anterior.”
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.12.2019 (Carlos Querido) (Processo n.º 21927/15.0T8PRT.P1): “III - A decisão de extinção da instância por deserção não faz caso julgado material, já que não houve qualquer decisão de mérito sobre a questão de natureza substantiva que se discutia nos autos, não precludindo qualquer direito que esteja em discussão na ação, podendo o direito invocado pela recorrente ser discutido noutro meio processual”.
Efetivamente, nos termos do artigo 619.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, adquire força de caso julgado material a sentença que “decida do mérito da causa”.
Excluem-se, portanto, desta eficácia as decisões que recaiam “sobre a relação processual”, as quais têm mera eficácia de caso julgado formal, isto é, têm força obrigatória apenas dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
A deserção consubstancia, claramente, uma questão de natureza adjetiva, traduzindo a extinção da instância em resultado da inércia da parte na promoção do seu andamento por um período de mais de 6 meses (artigo 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
A correspondente decisão não forma, assim, caso julgado material, porque não incide sobre o mérito da causa.
Logo, ao contrário do que se mostra alegado pela Recorrente, não se mostra violado o disposto nos artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º do Código de Processo Civil, na medida em que se fixa nestas normas que o caso julgado material e a litispendência consubstanciam exceções dilatórias, enunciando-se os respetivos pressupostos, porém, no caso em apreço não se verifica a exceção dilatória do caso julgado material, como se acabou de expor.
Bem andou, pois, o Tribunal a quo quando julgou improcedente esta exceção.
2. Da renúncia ao direito de ação
Sustenta a Recorrente que o Requerente renunciou ao direito de ação na declaração que subscreveu na escritura de “Divisão e Cessão de Quotas”, o que constitui uma exceção perentória, pelo que foi violado o disposto no artigo 576.º do Código de Processo Civil.
O Tribunal a quo assim não entendeu, tendo presente o teor daquela escritura, transcrito no facto provado sob 12., de onde se extraem os seguintes excertos atinentes à declaração do Requerente aí consignada:
“a) Nada mais tem a haver ou a reclamar da Sociedade ou das demais sócias, nessa qualidade de sócias, prescindindo de quaisquer outros valores a que tivesse direito;
b) Renuncia a qualquer ação judicial que tivesse havido ou que pudesse mover contra a Sociedade e as sócias da mesma, nessa condição de sócias, CC, JJ A. Broeckaert e EE;
c) Se abstém de praticar qualquer ato lesivo à Sociedade e às sócias CC, JJ A. Broeckaert e EE, nomeadamente queixas-crime ou denúncias para as Finanças, Segurança Social ou outros organismos;
d) Se abstém de ingerir na Sociedade, quer pessoalmente quer por intermédio de outros (terceiros);
e) Renuncia também ao direito de adquirir no futuro qualquer participação social na Sociedade, que seja posta no mercado;
f) Renuncia aos direitos especiais constantes do Pacto Social, na sua versão inicial, nomeadamente os constantes no artigo 4.°, n.° 6 do artigo 10.° e artigo 11.º, o que faz desde logo e de imediato”.
Ora, o texto transcrito é inequívoco na alusão à “qualidade de sócias” (alínea a)) e à “condição de sócias” (alínea b)), a que acresce a circunstância do contexto da declaração ser todo ele atinente à vida societária, abrangendo a prática de “ato lesivo à Sociedade e às sócias” (alínea c)), ingerência (alínea d)), aquisição de participação social na sociedade (alínea e)) e “renúncia aos direitos especiais constantes do Pacto Social” (alínea f)).
Aliás, esse contexto é conforme com o objeto do ato, que se consubstancia precisamente na “Divisão e Cessão de Quotas”.
A esta luz, a afirmação da Recorrente de que a renúncia a favor das sócias é “em nome individual” colide frontalmente com a literalidade da cláusula, onde semelhante leitura não encontra o menor eco.
Ora, a interpretação da cláusula deve seguir a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil: “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
Bem andou, pois, o Tribunal a quo quando julgou improcedente esta exceção.
3. Da impossibilidade de divisão
Advoga a Recorrente que é impossível proceder à adjudicação e venda da fração, na medida em que na realidade constitui uma parte comum do prédio.
O Tribunal a quo entendeu diversamente, louvando-se no título constitutivo da propriedade horizontal e sustentando que mesmo o facto da fração constituir a receção de um prédio destinado a fins turísticos não permite reconhecer que a mesma integra, sequer em parte, uma parte comum do prédio, após o que referencia o artigo 1424.º do Código Civil.
Nas alegações de recurso é invocada a violação do disposto nesse artigo 1424.º do Código Civil.
Ora, a norma legal evidenciada respeita aos encargos de conservação e fruição das partes comuns no âmbito da propriedade horizontal, pelo que em nada contende com a decisão proferida, onde não está em discussão qualquer questão a esse nível.
A indicação dessa norma pelo Tribunal a quo só pode, assim, ser devida a lapso, aliás evidente.
Com efeito, a disposição que regula a definição das partes comuns do prédio em propriedade horizontal é o artigo 1421.º do Código Civil.
De todo o modo, o Tribunal a quo fundamentou o seu despacho, indicando as razões em que se alicerçou para a conclusão alcançada, pelo que aquele lapso não influiu no conhecimento da motivação da decisão.
Por outro lado, a Recorrente nada adiantou relativamente ao que havia já alegado na sua contestação a este propósito e que foi apreciado na decisão recorrida, sendo que na contestação nada foi requerido acerca da qualificação das partes comuns e frações autónomas vertida no título constitutivo, e por força do princípio da preclusão está vedado à Recorrente fazê-lo agora (artigo 573.º do Código de Processo Civil). Acresce o facto de estarmos em presença de questões que não são de conhecimento oficioso.
Ou seja, mostrando-se que o espaço em causa foi qualificado como fração autónoma na escritura de constituição de propriedade horizontal, a qual não objeto de qualquer decisão atinente à sua validade, e não estando, de igual modo, esta questão em apreciação nos presentes autos, por nada ter sido requerido nesse sentido, cumpre confirmar a decisão recorrida.
C) Custas
As custas são suportadas pela Recorrente, que fica vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
IV – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Sónia Moura (Relatora)
António Fernando Marques da Silva (1º Adjunto)
Filipe Aveiro Marques (2º Adjunto)