Sumário:
1. São pressupostos do direito de regresso da seguradora contra o condutor que tenha abandonado o sinistrado: a) que o condutor tenha de algum modo dado causa ao acidente (requisito de que depende a obrigação de indemnizar o lesado por parte da seguradora); b) que o condutor se tenha retirado do local do acidente, sem ter prestado o auxílio que lhe era exigível, segundo as circunstâncias; c) que o condutor tenha atuado censuravelmente na prática da falta de assistência, em termos de nela se reconhecer o dolo, em qualquer uma das suas formas; d) que não ocorra qualquer falta de adequação e proporcionalidade entre as consequências do exercício do direito de regresso, por parte da seguradora, e a gravidade da infração presente na conduta do condutor abandonante.
2. O dolo pode revestir a forma de dolo direto, necessário ou eventual.
3. Agiu com dolo eventual o condutor que abandonou imediatamente o local do acidente, sem sair do carro e sem se certificar do estado das vítimas, desinteressando-se por completo da sorte daquelas pessoas, sem sequer ter providenciando pela ajuda de terceiros.
Tribunal recorrido: TJ Comarca de ..., Juízo Local Cível de ... – j1
Apelante: AA
Apelada: Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA
I – RELATÓRIO
Ação
Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Autora
COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL, S.A.
Réu
AA
Pedido
Condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de €25.827,85, acrescida de juros legais devidos desde a primeira interpelação extrajudicial até efetivo e integral pagamento.
Causa de pedir
Direito de regresso da Autora com base no disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08.
No dia 04-01-2020, pelas 00h30, na Avenida ..., em ..., na rotunda do ..., ocorreu um acidente de viação que consistiu numa colisão entre o veículo segurado (..-OC-..) conduzido pelo Réu, que ia a entrar na rotunda, e o veículo (..-VP-..), conduzido por BB, onde seguiam dois passageiros, que já se encontrava dentro da rotunda a contorná-la.
O embate ocorreu entre a parte frontal do veículo OC e parte lateral direita do VP.
Por força do embate, o veículo VP foi projetado vindo a embater contra a porta do Talho ..., causando-lhe danos.
O condutor do veículo OC abandonou o local do acidente sem prestar assistência aos ocupantes do veículo VP.
A Autora suportou o valor dos danos decorrentes do acidente.
Contestação
O Réu impugnou os factos referentes à dinâmica do acidente, alegando que já se encontrava a circular na rotunda quando o veículo VP entrou na mesma, em excesso de velocidade.
Alegou ainda que só abandonou o local porque o condutor do veículo VP falou consigo de forma agressiva, tendo-lhe causado receio pela sua integridade física.
Sentença
Julgou a ação parcialmente procedente e condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de € 25.772,50, mais juros de mora, à taxa legal civil, desde a citação até integral e efetivo pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Recurso
Apelou o Réu pugnando pela revogação da sentença, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Por sentença datada de 07-08-2024 o tribunal “a quo” julgou a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência decidiu condenar o réu AA a pagar à autora COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL, S.A. a quantia de €25.772,50 (vinte e cinco mil, setecentos e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos) e os correspondentes juros de mora à taxa legal civil desde a citação até integral e efetivo pagamento e absolver o réu do demais peticionado pela autora.
2. O Réu ora Recorrente não se conforma com a sentença de que ora se recorre.
3. Em primeiro lugar porquanto entende que os factos dados como provados n.º 12, 13, 14, 38, 39 encontram-se mal julgados e incorretamente apreciados.
4. Não tendo sido produzida qualquer prova nesse sentido, nem testemunhal, nem documental.
5. Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não podemos concluir como concluiu o tribunal “a quo”.
6. Devendo os factos dados como provados n.º 12, 13, 14, 38, 39 ser julgados como não provados e consequentemente deverá ser decidido que o Réu não tem culpa no acidente em apreço.
7. Da mesma forma que deverão ser julgados como não provados os factos relativos ao abandono do local do acidente por parte do réu e da falta de prestação de auxílio, pois não foi produzida qualquer prova nesse sentido.
8. O que sucedeu foi que o Réu ora Recorrente ficou muito assustado com o embate, sem perceber de imediato o que haveria sucedido.
9. E quando atordoado saiu do carro já o condutor do veículo VP se encontrava fora da viatura aos gritos, a esbracejar e a ameaçar o Réu, ora Recorrente, dirigindo-se na sua direção.
10. E devido à fúria do condutor do veículo VP o réu ficou com muito medo, motivo pelo qual não se quedou no local a aguardar a chegada das autoridades.
11. Do depoimento prestado pela testemunha BB foi possível verificar-se o temperamento e a própria revolta que a testemunha sentia em face do sucedido.
12. Chegando mesmo a afirmar que não recebeu quaisquer valores da seguradora.
13. E que não sabia se haviam recebido alguns valores.
14. Sendo certo que o Réu ora Recorrente em face do acidente ainda hoje sofre cada vez que o recorda, sofrendo de stress pós traumático.
15. Desde a data do acidente que o Réu ora Recorrente se sente mais nervoso, ansioso e agitado, tendo dificuldades em dormir à noite.
16. Em resultado do acidente o Réu ora Recorrente sofreu dores na zona lombar, vertigens, formigueiro nas mãos e pé, dor numa das pernas e ficou com os pés inchados.
17. Encontrando-se inclusive de baixa médica, motivo pelo qual não compareceu na audiência de discussão e julgamento.
18. No mais e da prova produzida também não se verifica nenhuma violação do dever de cuidado por parte do réu.
19. Face ao supra exposto deverão os factos dados como provados n.º 12, 13, 14, 38, 39 serem julgados como não provados.
20. Sem prescindir e caso assim não se entenda sempre se dirá que andou mal o tribunal “a quo” ao julgar que a conduta do Réu ora Recorrente é ilícita.
21. Não se verificando assim os pressupostos da responsabilidade extracontratual do Réu ora recorrente.
22. Como tal também não assiste direito de regresso à Autora, dado que o Réu ora Recorrente não abandonou o local do acidente, nem causou o acidente em apreço.
23. Os acidentes dolosamente provocados pelo causador do acidente a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 27º do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel são aqueles cujo resultado o segurado quis ou previu, sendo que a previsão da norma que estipula o direito de regresso abrange os acidentes de viação dolosos, cometidos com dolo directo ou eventual, o que não se verifica in casu.
24. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 467/22.7T8LRA.C1, datado de 09-04-2024, disponível em www.dgsi.pt.
25. A sentença recorrida viola assim o disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 291/2007 de agosto.
26. Termos em que e face ao supra exposto deverá a sentença recorrida ser revogada por violação do supra mencionado preceito legal e consequentemente deverá a presente acção ser julgada totalmente improcedente por não provada, absolvendo-se o Réu ora Recorrente.»
Resposta ao recurso
A Recorrida defendeu a improcedência da apelação e a confirmação da sentença.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
«I - DO CONTRATO DE SEGURO
1. No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a Autora celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela Apólice n.º .... [artigo 1.º da PI]
2. Em virtude da celebração do contrato de seguro, a autora assumiu a responsabilidade civil pelos danos corporais ou materiais, causados a terceiros, resultantes da circulação do veículo ligeiro de mercadorias, marca Volkswagen, modelo Passat Variant Diesel, Classe Turismo, com a matrícula ..-OC-.. (doravante designado por veículo ‘OC’). [artigo 2.º da PI]
II – DA DINÂMICA DO ACIDENTE
3. Em 04/01/2020, entre a 00h30 e a 01h00, na Avenida ...), em ..., ocorreu uma colisão entre o veículo OC, conduzido pelo réu AA e o veículo Marca KIA, Modelo Karens, matrícula ..-VP-.. (doravante designado por veículo ‘VP’), conduzido por CC, e onde se faziam transportar os passageiros DD e EE. [artigos 3.º a 7.º da PI]
4. A Avenida ... em ... é composta por uma faixa de rodagem com uma via de circulação em cada sentido de trânsito, separada por um largo espaço central em jardim. [artigo 10.º da PI]
5. A ladear a faixa de rodagem e as vias referidas, encontram-se lugares de estacionamento de veículos, devidamente demarcados no pavimento, dispostos lateralmente à via de circulação e junto ao limite desta. [artigo 11.º da PI]
6. No local onde ocorreu a colisão, na Avenida ..., existe uma rotunda, denominada ‘Rotunda do ...’. [artigos 8.º e 9.º da PI]
7. Na data e hora mencionadas no ponto 3., era de noite. [artigo 12.º da PI]
8. No momento da colisão, o trânsito rodoviário era reduzido. [artigo 13.º da PI]
9. O Réu, condutor do veículo OC, circulava na Avenida ..., no sentido Nascente/Poente, e propunha-se entrar na rotunda mencionada no ponto 6.. [artigo 14.º da PI]
10. O veículo VP, que provinha da Rua ..., e já se encontrava dentro da Rotunda do ... a contorná-la, foi, súbita e repentinamente, embatido na sua lateral direita, pela frente esquerda do veículo OC. [artigo 15.º da PI]
11. Por conta do embate, o veículo VP perdeu o controlo e foi projetado contra a porta do Talho ..., nº 115, Fração C do R/C da Avenida ... em ..., que se situa no passeio que circunda a ..., tendo-se imobilizado nesse local. [artigos 16.º e 17.º da PI]
III – DO ABANDONO DOS SINISTRADOS
12. Após o embate, o réu, condutor do veículo OC, decidiu pôr-se, de imediato, em fuga deixando uma parte da matrícula caída no chão. [artigos 18.º e 19.º da PI e instrução da causa]
13. O réu decidiu não sair do veículo após o embate e não prestar auxílio ao condutor e passageiros do veículo VP. [artigos 20.º e 21.º da PI e instrução da causa]
14. Tendo em consideração os factos descritos nos pontos 3. a 11. e a violência do embate, era previsível que o condutor e/ ou passageiros do veículo VP tivessem ficado feridos e que seria necessário prestar-lhes auxílio, resultado que se veio a verificar. [artigo 105.º da PI]
IV – DOS DANOS CAUSADOS
15. Em consequência da colisão entre veículos/ na porta do talho, DD, irmã do condutor do veículo VP, que era passageira deste, sofreu uma contratura muscular, ligeiros hematomas no corpo e um hematoma no crânio, e partiu os óculos. [artigo 23.º da PI]
16. Após a colisão, DD, passageira do veículo VP, foi encaminhada e assistida no CHUA - Unidade de Faro. [artigo 24.º da PI]
17. Em 16/03/2020, a Autora procedeu ao pagamento do valor de € 51,00 ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EP. [artigo 70.º da PI]
18. Com a força do embate, a lesada acabou por embater com a cabeça no interior do veículo, acabando por partir os óculos que transportava na cara. [artigo 71.º da PI]
19. Em consequência do referido no ponto 18., foram apresentados à autora dois orçamentos e a prescrição médica referente às lentes e armação de óculos reclamados por aquela. [artigo 72.º da PI]
20. Em 13/03/2020, através de transferência bancária para o IBAN ..., do BANCO BPI, SA., a autora procedeu ao pagamento a DD da quantia de € 414,00. [artigos 73.º e 74.º da PI]
21. Na data da colisão, o veículo VP era propriedade da empresa Strateginauta Lda.. [artigo 40.º da PI]
22. Após a colisão, a autora teve de proceder à peritagem do veículo VP de forma a apurar os danos efetivos neste veículo. [artigo 42.º da PI]
23. A peritagem foi levada a cabo pela RNP - Rede Nacional de Peritagens e foi executada na oficina MSCAR - Comercio de Automóveis S A. e importou um custo para a autora no valor de € 55,35. [artigos 43.º e 44.º da PI]
24. Em consequência da colisão entre veículos/ na porta do talho, seria necessário proceder à substituição de: radiador, vários sensores, airbag, porta da frente esquerda, porta da frente direita, dobradiças, cablagem, pilares, revestimentos, farolins, tablier completo, filtros, tampa do motor, interruptor multifunções, resguardos, molas, carroçaria da frente, do lado direito, grelhas, rodas, painéis, para-choques, guarda-lamas, pinturas, aplicação de primários e vernizes na carroçaria, chapa da matrícula, capot, entre outros (vide orçamento de reparação – documento 9 da PI que se dá aqui por integralmente reproduzido). [artigos 45.º, 46.º, 47.º da PI]
25. O custo de reparação do veículo VP foi orçamentado em € 31 693,73. [artigo 48.º da PI]
26. À data da colisão o veículo VP tinha um valor comercial de cerca de € 25 872,00, correspondendo o salvado ao valor de € 3 033,00, razão pela qual a autora considerou o veículo como perda total. [artigos 50.º a 52.º da PI]
27. Tendo em consideração o referido nos pontos 25. e 26., a autora apresentou à Strateginauta Lda.. uma proposta de indemnização de € 24 000,00: 23.000,00€ (vinte e três mil euros) a título de indemnização pela perda total do veículo e € 1 000,00 (mil euros) a título de privação de uso. [artigos 60.º a 64.º da PI]
28. A empresa Strateginauta Lda.. aceitou o valor proposto a título de indemnização. [artigo 61.º da PI]
29. Em 13/03/2020, através de transferência bancária para o IBAN ..., do BANCO BPI, SA a Autora procedeu ao pagamento do valor de € 24 000,00 à lesada. [artigo 65.º da PI]
30. Em consequência da colisão entre veículos, o veículo VP veio a embater na porta do talho, causando danos nesta porta de entrada em alumínio, nas dobradiças e na fechadura. [artigos 76.º e 77.º da PI]
31. Na noite em que ocorreu a colisão, o Talho ficou desprovido de segurança, pelo que foi necessário levar a cabo uma reparação urgente e provisória, nessa mesma noite.
32. A reparação mencionada no ponto 31. teve um custo de € 175,00. [artigos 78.º e 79.º da PI]
33. Após a colisão, foi necessário substituir-se a porta (no valor de 750,00€), as dobradiças e a fechadura (ambas no valor de 75,00€). [artigo 81.º da PI]
34. A averiguação dos danos no talho foi levada a cabo pela empresa MCBAP, Averiguações e Peritagens e teve um custo de € 98,40. [artigo 83.º da PI]
35. Em consequência da colisão entre os veículos/ na porta do talho, a autora e o proprietário do Talho da ... acordaram no valor de € 1 000,00 (mil euros) a título de indemnização pelos danos causados na mencionada porta. [artigo 85.º da PI]
36. Em 13/03/2020, através de transferência bancária para o IBAN ..., da Caixa Crédito Agrícola Mútuo, a autora procedeu ao pagamento, a favor dos Herdeiros de Cristóvão Pinto Leal, da quantia de € 1 000,00. [artigo 86.º da PI]
37. A averiguação do sinistro que foi levada a cabo pela empresa MCBAP importou um custo para a autora no valor de € 153,75. [artigo 41.º da PI]
V – DO DEVER DE CUIDADO E DO NEXO DE CAUSALIDADE
38. O Réu podia e devia ter adotado outra conduta, de modo a evitar um resultado que não previu, mas devia prever, dando causa às lesões na passageira FF e aos prejuízos no veículo VP. [artigos 32.º e 33.º da PI]
39. Os danos supramencionados ficaram-se a dever à circunstância de o réu conduzir de forma desatenta e ao desrespeitar a cedência de passagem ao veículo VP que já circulava no interior da rotunda, a contorná-la. [artigos 33.º e 34.º da PI]
VI – PROPOSITURA DA AÇÃO
40. A presente ação foi instaurada pela autora em 16/12/2021.»
FACTOS NÃO PROVADOS
«A) Ao aproximar-se da rotunda, o réu foi surpreendido pelo veículo VP que entrou na rotunda a uma velocidade superior ao limite legal, não permitindo ao réu imobilizar o seu veículo. [artigo 10.º da Contestação]
B) Foi devido ao excesso de velocidade em que circulava o veículo VP que o condutor deste veículo perdeu o controlo da viatura e foi embater contra a porta do talho [artigo 11.º da Contestação]
C) O réu ficou muito assustado com o embate, sem perceber de imediato o que havia sucedido. [artigo 14.º da Contestação]
D) E quando atordoado saiu do carro já o condutor do veículo VP se encontrava fora da viatura aos gritos, a esbracejar e a ameaçar o réu, dirigindo-se na sua direção. [artigo 15.º da Contestação]
E) Ao olhar para o veículo VP, o réu verificou que havia mais passageiros no carro e devido à fúria do condutor do veículo VP o réu ficou com muito medo, motivo pelo qual não se quedou no local a aguardar a chegada das autoridades. [artigo 16.º da Contestação]
F) O Réu ficou muito nervoso e agitado com o sucedido, receando pela sua integridade física. [artigo 17.º da Contestação]
G) O réu verificou que todos os passageiros se encontravam plenamente conscientes e sem lesões aparentes. [artigo 18.º da Contestação]
H) Em face do acidente sofrido ainda hoje o réu sofre cada vez que o recorda, sofrendo de stress pós-traumático. [artigo 19.º da Contestação]
I) Desde a data da colisão entre os veículos, o réu se sente mais nervoso, ansioso e agitado, tendo dificuldades em dormir à noite. [artigo 20.º da Contestação]
J) Em resultado da colisão entre veículos, o réu sofreu dores na zona lombar, vertigens, formigueiro nas mãos e pé, dor numa das pernas e ficou com os pés inchados. [artigo 21.º da Contestação]
K) O réu não se deslocou de imediato ao posto da GNR devido às lesões por si sofridas, nomeadamente dores lombares, dores numa perna e pés inchados o que o impediram de se deslocar pelo seu próprio pé. [artigo 24.º da Contestação]
L) A autora despendeu a quantia de € 55,35 com peritagens e averiguações levadas a cabo
com o sinistro, sem prejuízo das quantias elencadas nos factos dados como provados.
M) O réu foi interpelado pela autora, através de cartas datadas de 09/04/2020 e 27/07/2020 para proceder ao pagamento das quantias suportadas pela autora em decorrência da colisão entre os veículos supramencionados [artigo 37.º da PI].»
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso
O objeto do recurso que é delimitado pelas Conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões: - Impugnação da decisão de facto;
- Dos pressupostos do direito de regresso invocado pela Autora.
2. Conhecimento das questões suscitadas no recurso
2.1. Impugnação da decisão de facto
O Apelante vem impugnar a decisão de facto em relação aos factos provados 12, 13, 14, 38 e 39 pretendendo que sejam dados como não provados, alegando para o efeito que se encontram «mal julgados» porque não foi produzida «nenhuma prova, nem testemunhal, nem documental», acrescentado que o doc. 2 (Declaração Amigável de Acidentes Automóvel) não pode ser valorado por se «desconhecer» quem o elaborou e por a «declaração não se encontrar assinada pelo Réu»; que da «experiência comum» resulta que se o veículo VP seguisse a 20/30 km/h o embate não teria ocorrido da forma que ocorreu nem causado os danos que causou; que os «peritos avaliadores» não conseguiram apurar a velocidade a que seguiam os veículos.
Analisando.
Os requisitos da impugnação da decisão de facto correspondem a ónus a cargo do Recorrente impugnante, determinando a falta de acatamento dos mesmos a rejeição da impugnação na parte afetada, sendo que a jurisprudência tem vindo a proclamar em diversos arestos que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento quanto ao cumprimento destes ónus.1
Assim, decorre deste normativo que o ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que constem dos autos ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que, o seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões impugnadas, e, finalmente, a indicação das exatas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira (artigo 640.º, n.º 1, alíneas a, b), e c) , e n.º 2, alínea a), do CPC).
No caso, a impugnação da decisão de facto no que concerne ao ponto 39, refere-se ao que ficou provado sobre o modo como o Réu ia a conduzir no momento do acidente (desatento e sem respeitar a cedência de passagem do VP que já circulava no interior da rotunda, a contorná-la); no que concerne ao pontos 12, 13, 14 e 38 referem-se à matéria do abandono dos sinistrados e ao nexo de causalidade entre a conduta do Réu e os danos verificados.
Ora, em relação ao todos estes pontos, o tribunal a quo baseou-se nos depoimentos do condutor do veículo VP e dos dois passageiros que seguiam no veículo, e no depoimento da testemunha GG, que se encontrava perto do local. A referência ao doc. 2 serviu tão só para evidenciar que os depoimentos estavam em sintonia com o teor do documento. Não se pode, pois, concluir que foi com base no doc. 2 que se formou a convicção do tribunal sobre esta matéria, ou pelo menos, que o foi de forma exclusiva. Se o tivesse sido, tratando-se de um documento não assinado, justificava-se a reserva que o Apelante apôs ao mesmo em termos probatórios. Mas não é esse o caso.
Tendo sido produzida prova sobre a factualidade em apuramento por via testemunhal, impendia sobre o Recorrente a sua impugnação nos termos previstos no artigo 640.º, n.º1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC. Desde logo, teria de indicar as concretas passagens dos depoimentos em que se baseia para infirmar o valor probatório que o tribunal deu aos mesmos.
Ora, o Apelante limita-se a dizer que não foi feita prova testemunhal (ou documental), o que, naturalmente, significa que não cumpriu o referido ónus e a impugnação deduzida não tem qualquer viabilidade de ser julgada procedente.
Ademais, também se refere aos peritos avaliadores no sentido destes não terem conseguido apurar a velocidade a que seguiam os veículos.
Sucede que também em relação a estes depoimentos era ónus do Recorrente indicar as concretas passagens da gravação em que se baseia, o que também não cumpriu.
Por outro lado, menciona as «regras da experiência» para daí inferir que o veículo VP circularia a uma velocidade não compaginável com 20/30 Km/h.
Todavia, dos factos provados nada consta sobre a velocidade dos veículos.
A referência à velocidade consta dos factos não provados (cfr. alíneas A e B), as quais se reportam à alegação do Réu, mas este no recurso não vem impugnar a decisão de facto em relação à matéria dada como não provada.
De qualquer modo, o apelo às regras da experiência é insuficiente para infirmar a prova produzida nos autos com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal e que serviram para o tribunal a quo formar a sua convicção em relação à dinâmica do acidente e ao abandono dos sinistrados por parte do Réu.
Não tendo o Apelante, no recurso, cumprido o ónus de concretização das concretas passagens dos testemunhos prestados em audiência donde resulte a existência de erro de julgamento ao nível dos factos, como já supra assinalado, não vemos como não corroborar a decisão de facto proferida.
De qualquer modo, sempre se dirá que a fundamentação da decisão de facto se apresentada escorreita, minuciosa e muito clara, tendo apreciado as provas (todas as provas) de modo que se tem por correto, pois não se vislumbra que tenha havido qualquer violação das regras de direito probatório material e dos ónus de prova.
Veja-se que em relação aos pontos impugnados, a decisão de facto é bastante pormenorizada na análise crítica da prova produzida sobre essa factualidade. Mencionando os depoimentos testemunhais (do condutor do veículo VP, das tripulantes que seguiam no mesmo e da testemunha GG se encontrava perto do local).
Nestes termos, seja porque o Recorrente não cumpriu de forma cabal os requisitos da impugnação, mormente no que concerne à indicação das concretas passagens em que se baseia para discordar da valoração da prova testemunhal, seja porque o doc. 2 apenas serviu para consolidar a convicção formada pelo julgador em face desses depoimentos, seja porque o apelo às regras da experiência, só por si, não é adequado nem suficiente para se concluir que ocorreu «excesso de velocidade» (sendo que, no contexto de um litígio de um acidente de viação onde se discute a dinâmica do acidente e a responsabilidade por um sinistro, sempre seria uma alegação conclusiva), impõe-se que a impugnação da decisão de facto seja julgada improcedente.
Em suma, mantêm-se inalterada a decisão de facto saída do julgamento.
2.2. Dos pressupostos do direito de regresso invocado pela Autora
O Recorrente discorda da sentença no que diz respeito ao seu mérito, invocando, em suma, a não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e questiona a verificação dos requisitos do direito de regresso da seguradora por entender que não se verifica a previsão do artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 2007/21, de 21-08.
Analisemos pois.
Começando por sublinhar que consta da sentença a análise fático-jurídica de todos os pressupostos da responsabilidade extracontratual previstos no artigo 483.º do CC, concatenados com as normas do Código da Estada infringidas pelo Réu (artigos 14.º-AA, n.º 1, 31.º e 29.º, n.º 1), donde decorre que o Réu com a sua conduta violou de forma voluntária, ilícita e culposa o direito de outrem, verificando-se a existência de nexo de causalidade entre a conduta e os danos provados.
Basta ler a sentença para tal se constatar pelo que não se justificam mais considerações sobre esta alegação.
Por outro lado, encontra-se estabilizado o quadro factual referente à dinâmica do acidente e ao abandono do local do sinistro por parte do Réu sem que se tenha apurado qualquer motivo ou razão razoável para tal comportamento.
Donde o que está em causa é tão só a aferição dos pressupostos do alegado direito de regresso, ou seja, da previsão do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 2007/21, de 21-08 (Regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel).
Resulta deste preceito que, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor quando haja «abandonado o sinistrado».
Este normativo (sendo que já antes estipulava o revogado artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31-12 no mesmo sentido, tendo o STJ proferido no âmbito da sua vigência, em 02-07-2015, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 11/2015, que fixou jurisprudência no sentido de que, o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja dolosamente abandonado o sinistrado não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente) tem sido interpretado de forma consensual pela jurisprudência no sentido de prever e sancionar uma sanção patrimonial civil, envolvendo o apagamento da normal garantia do seguro de responsabilidade civil, e determinando, ao invés, que o segurado assuma o sacrifício patrimonial do pagamento da indemnização à vítima do acidente, o que, simultaneamente, redunda numa censura e desincentiva fortemente um comportamento estradal reprovável.
A natureza civil desta sanção patrimonial prossegue, assim, fins distintos da tutela penal ou contraordenacional, uma vez que os bens jurídicos tutelados pelas diferentes vias são diferentes.
Todavia, também como também tem sido decidido pela jurisprudência de forma consensual, a aplicação desta sanção de natureza patrimonial no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente subjetivos ou automáticos, ou seja, pela mera verificação da factualidade objetiva resultante do mencionado artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007.
Como ficou clarificado no AUJ supracitado, o conceito de abandono de sinistrado, numa interpretação restritiva, pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência, isto é, a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.
Assim, e para que se reconheça o direito de regresso da seguradora contra o condutor por abandono de sinistrado tem de se encontrar provado:
a) que o condutor tenha de algum modo dado causa ao acidente (requisito de que depende a obrigação de indemnizar o lesado por parte da seguradora);
b) que o condutor se tenha retirado do local do acidente, sem ter prestado o auxílio que lhe era exigível, segundo as circunstâncias;
c) que o condutor tenha atuado censuravelmente na prática da falta de assistência, em termos de nela se reconhecer o dolo, em qualquer uma das suas formas;
d) que não ocorra qualquer falta de adequação e proporcionalidade entre as consequências do exercício do direito de regresso, por parte da seguradora, e a gravidade da infração presente na conduta do condutor abandonante.
A exigência do dolo é necessária para preencher a previsão normativa, como se faz notar no Acórdão da Relação do Porto de 27-04-20172, proferido ainda no domínio do Decreto-Lei n.º 522/85, mas igualmente aplicável à luz do Decreto-Lei n.º 291/2007, onde se mencionou: «(…) embora o referido art.º 27.º do RSSORCA não referencie expressamente que, para fundar o direito de regresso da seguradora, a conduta do abandonante deve ser dolosa (…), entende-se que a mera referência ao abandono já transporta essa intencionalidade do condutor de não acompanhar nem prestar assistência às vítimas, criando um risco acrescido para os danos das vítimas ou o seu agravamento».
Aliás, e como também neste aresto se observa, «(…) o abandono encerra a presunção natural ou judicial de que o abandonante quis diretamente realizar o facto ilícito – dolo direto –, ou previu-o como uma consequência necessária, segura, da sua conduta – dolo necessário – ou, ainda, previu a produção do facto ilícito como uma consequência possível, eventual, da sua conduta – dolo eventual», sendo esta última forma a mais leve de dolo, ainda, assim, merecedora de forte censura, dada a insensibilidade do agente pelos deveres que violou.
No caso em apreço, em face dos factos provados que constam dos pontos 3 a 11 (dinâmica do acidente) e pontos 38 e 39 (quanto ao abandono do sinistrado), encontram-se provados todos os requisitos supra referidos no artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, tendo-se provado, ademais, que o Recorrente agiu, pelo menos, com dolo eventual (cfr. noção do artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal), ou seja, representou o resultado como consequência possível da sua conduta e atuou conformando-se com tal representação.
Efetivamente, apesar da violência do embate (o veículo VP ficou de tal forma danificado que foi dado como perdido) e do embate ter ocorrido com a parte frontal do veículo conduzido pelo Réu, tendo o veículo VP sido projetado contra a porta de um edifício junto ao passeio que circunda a rotunda, o Réu pôs-se de imediato em fuga, deixando uma parte da matrícula do veículo que conduzia caída no local, sem ter saído do carro, nem prestado auxílio ao condutor e aos passageiros do VP, desinteressando-se por completo da sorte daquelas pessoas, sem sequer ter providenciando pela ajuda de terceiros.
Por outro lado, não logrou fazer prova de quaisquer dos factos que alegou no sentido de afastar a ilicitude da sua conduta (que ficou muito assustado com o embate sem perceber o que tinha sucedido; que saiu do carro atordoado e o condutor do VP já se estava fora da viatura a gritar, a esbracejar e a ameaça-lo, dirigindo-se ao mesmo, o que o levou a sair do local pro receio de ser agredido; que verificou que todos os passageiros se encontram conscientes e sem lesões, etc. – cfr. alíneas c) a g) dos factos não provados).
Assim, atento os factos provados, e tal como decidido na sentença recorrida, estão verificados os pressupostos do direito de regresso, o que confere à Autora o direito a haver do Réu as quantias despendidas para reparação dos danos sofridos pelos lesados em consequência do acidente dos autos peticionadas nesta ação.
Nestes termos, improcede a apelação.
3. Responsabilidade tributária
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 27-02-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José António Moita (1.º Adjunto)
Maria José Sousa e Faro (2.ª Adjunta)
1. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 14-02-2023, proc. n.º 1680/19.9T8BGC.G1.S1 (Jorge Dias); Ac. STJ, de 02-02-2022, proc. n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1 (Fernando Samões), em www.dgdi.pt↩︎
2. Proferido no proc. n.º 10127/15.9T8VNG.P1(Rel. …), em www.dgsi.pt↩︎