Sumário:
Tendo os Réus ilidido a presunção de culpa que decorre do artigo 799.º, n.º 1, do CC, e tendo ficado provado que a Autora incumpriu a sua prestação, não assiste à mesma o direito de resolver o contrato celebrado pelas partes.
Tribunal recorrido: T J Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível de Setúbal – J3
Apelante: JMV- AA, S.A.
Apelados: BB e CC
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
JMV- AA, S.A. intentou ação declarativa condenatória, sob a forma comum, contra BB e CC, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia global de €15.832,95 (€1.464,52 + € 6.655,00 + € 7.084,80 + € 628,63), acrescida de juros de mora à taxa legal de juros comerciais desde a citação até efetivo e integral pagamento, discriminado os respetivos pedidos nos seguintes termos:
a) Seja reconhecida a resolução do contrato, e consequentemente os Réus condenados a:
b) Proceder ao pagamento dos bens vendidos no valor de € 1.815,52, reduzido do valor da bonificação prometida (€ 351,00), sendo o valor em dívida de € 1.464,52 (290 kg × €1.815,52/ 1.500 kg = € 351,00) (€ 1.815,52 - € 351,00 = € 1.464,52);
c) Pagar o montante indemnizatório de (1.500 kg – 290 kg) x € 27,50 x 20% = € 6.655,00;
d) Proceder à devolução dos bens emprestados e ainda não devolvidos (“1 termos de Leite Torrié 6 litros” (Refª. 17951) e “1 Máquina Café New EP 2 Grupos” (Refª. 800341)), assim como, ao pagamento de uma indemnização à Autora, respetivamente, à razão mensal de € 6,03 e € 33,33, contada da data da interpelação para a devolução dos bens (setembro de 2008) e até à sua data de entrega efetiva, nesta data computadas em (€ 6,03 × 180 meses =) € 1.085,40 e (€ 33,33 × 180 meses =) € 5.999,4, cujo total ascende a € 7.084,80;
e) Proceder ao pagamento das faturas vencidas e acima identificadas, ambas pelo valor de € 256,12, acrescidos dos juros de mora entretanto vencidos até esta data, respetivamente € 341,90 e € 30,61, tudo no total de € 628,63.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que celebrou um contrato de fornecimento de café com os Réus, com destino ao estabelecimento comercial pelos mesmos então explorado, tendo-se estes obrigado a comprar quantidades mínimas mensais de uma determinada qualidade de café. Em contrapartida, e atingidos esses valores e em função dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano, foi-lhes prometida uma bonificação no valor de €1.815,52.
Na data da celebração do aludido acordo, vendeu aos Réus 100kg da qualidade de café em causa, obrigando-se estes a pagar tal fornecimento por via de compensação com as quantias liquidadas a favor da Autora anualmente e a título de desconto/bonificação.
Mais previa o contrato o empréstimo gratuito, pelo prazo de vigência do acordo, de um termos de leite, no valor de €361,63.
Posteriormente, foi ainda emprestada, pela duração do contrato inicialmente celebrado, uma máquina de café e um moinho de café, no valor de €2.000,00.
Os Réus incumpriram o contrato, porquanto não adquiriram as quantidades de café prometidas comprar, tendo-lhe sido endereçadas cartas de interpelação para o cumprimento, no seguimento das quais estes apenas devolveram o moinho de café, não tendo pago as quantias devidas e reclamadas.
Contestaram os Réus por exceção (prescrição, que foi julgada improcedente no despacho saneador) e por impugnação, alegaram que encerraram o seu estabelecimento comercial ao fim de cerca de dois ou três anos da celebração do contrato com a Autora, tendo informado a Autora através do distribuidor/fornecedor, o qual nunca mais os contatou, fosse para entregar o café ou para levantar a máquina de café e o termos de leite.
Negaram, ainda, terem recebido qualquer carta ou interpelação da Autora até à data em que foram citados no âmbito da presente ação. Por outro lado, referiram que não procederam à aquisição onerosa de qualquer equipamento, tendo, sim, assinado empréstimos gratuitos da máquina de café, do moinho de café e do termos de leite, pelo que não lhes pode ser exigida qualquer quantia pecuniária como compensação pelo tempo em que tais equipamentos se encontraram à sua disposição.
Após realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente,
Inconformada, apelou a Autora, defendendo a revogação da sentença, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES (após aperfeiçoamento):
I. O Tribunal a quo julgou a ação não provada e, em consequência absolve os Réus do pedido.
II. Ora, entende a Autora/Recorrente que a decisão do Tribunal a quo padece que erro notório na apreciação da prova por se extrair dela uma conclusão ilógica e irracional; Por os meios probatórios existentes nos autos, e bem como a prova testemunhal produzida em sede de Audiência Final, impor decisão diversa; por ter havido uma incorreta subsunção dos factos provados ao direito em causa, por errada interpretação e aplicação das disposições e princípios legais e por violação do preceituado nos arts. 342º, 406º, 874º e 879º, todos do Código Civil (CC), e arts. 6º, 7º, 411º, 607º, nºs 1 e 4 todos do CPC.
III. Salvo o devido respeito, que é muito, não pode a Autora concordar com a apreciação da prova por parte do Tribunal a quo e pela convicção formada a partir de tal apreciação.
IV. Desde logo porque, a Meritíssima juiz a quo aprecia e bem a prova para enquadrar juridicamente o contrato de fornecimento de café e os pressupostos que considera reunidos para conferir à Autora o direito potestativo de resolver o contrato.
V. Quanto a esse ponto específico do enquadramento jurídico diz o Tribunal a quo o seguinte: O contrato celebrado entre as partes traduz-se num contrato misto, que, ao abrigo do art. 405.º, n.º 2, do Código Civil, comporta «elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e de compra e venda de café» (cf. Acórdão doTribunal da Relação de Évora de 11-01-2024, processo n.º1095/22.1..., e, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-07-2019, processo n.º 999/16.5..., ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt). Através deste, obriga-se uma das partes (no caso, a Autora) a fornecer café, a ceder equipamentos (leia-se, máquinas tipicamente utilizadas na exploração de estabelecimentos de restauração), mediante a promessa (neste caso, por parte dos Réus) da aquisição de determinadas quantidades de café. Trata-se, assim, de um contrato inominado, atípico e sinalagmático (tratando-se de obrigações recíprocas, as que recaem sobre as partes, e correspectivas entre si).
VI. Tendo em conta o supra exposto e a matéria de facto provada, dúvidas não restam de que Autora e Réus celebraram um contrato de fornecimento, do qual resultaram para cada uma das partes as referidas obrigações principais: para a Autora a de ceder à 1ª Ré, a título de empréstimo, os equipamentos já aludidos, a vender-lhes determinados bens para garantir a exclusividade do uso de uma determinada marca de café e a de lhe fornecer o café e, para a 1ª Ré, a de lhe adquirir esse café nas quantidades mínimas previstas no contrato, para consumo no seu estabelecimento, pelo período e valor total acordados, daí, sem dúvida, o ter a autora o direito de resolver o contrato, pois os Réus violaram de forma grave a sua obrigação de lhe comprar café, mensalmente.
VII. Com efeito, para o enquadramento jurídico supra referenciado, o Tribunal a quo considerou e bem, como provados os temas de prova n.º 1, 2, 3, 4 e 5, 6, 7, 8 e 9 selecionados em sede de base instrutória, após a apreciação dos meios de prova disponíveis, atendendo aos dados objectivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise dos depoimentos prestados.
VIII. Por outro lado, do ponto de vista da Autora, o Tribunal errou na apreciação dos meios de prova disponíveis, quer documental, quer testemunhal o que, consequentemente levou a errada conclusão quanto à ineficácia da resolução contratual, ou seja, tendo assente a matéria de facto dada como provada, fez uma incorreta subsunção dos factos ao Direito.
IX. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter considerado que os efeitos da resolução produziram-se nos presentes autos no ato da citação.
X. Os pressupostos da responsabilidade civil encontram-se preenchidos, contrariamente, ao decidido na Sentença recorrida.
XI. A conduta dos Recorridos assentou numa conduta omissiva, e intencional, violando o direito da Recorrente.
XII. A adquisição de apenas 290 Kgs, dos 1500 Kgs prometidos em compra, o não pagamento dos bens vendidos, nem restituído os bens emprestados, e ficando ainda, em débito, duas faturas, consubstanciam uma ação voluntária, consciente. Os Recorridos, ao assim procederem bem sabiam que violavam os direitos da aqui Recorrente, lesando-a no seu direito de crédito.
XIII. No contrato celebrado entre as partes ficou convencionado que os bens destinavam-se ao estabelecimento comercial “Café Snack Bar ...”, sito na Rua ..., ....
XIV. Como resulta da praxis, neste tipo de contrato, o local de entrega seria também o estabelecimento comercial supra mencionado.
XV. Por esse motivo, entende a aqui Recorrente, não ter obrigação de fazer qualquer desvio numa rota da qual não efetua fornecimentos.
XVI. Uma conclusão contrária acarretaria uma enorme insegurança, incerteza e insegurança jurídica, na medida em que a Recorrente ficaria a obrigada a efetuar entregas em qualquer local, ainda que bastante distante.
XVII. Nesse desiderato, não poderá encontrar-se afastada a presunção de culpa prevista no art. 799, no 1 do Código Civil, agindo os Réus com culpa, na modalidade de dolo, bem sabendo que não cumpriram as obrigações para com a Recorrente, pois, na verdade, os Recorridos sempre se poderiam deslocar junto da Recorrente, a fim de o cumprir!
XVIII. Os Recorridos provocaram, danos patrimoniais, emergentes e lucros cessantes, pois além de não cumprirem com o contrato, devolverem os bens emprestados, pagarem as faturas não pagas, e pagarem os bens vendidos, não permitiram a utilização pelo Recorrente dos equipamentos para outros clientes.
XIX. O nexo de causalidade encontra-se verificado, pois a conduta lesiva dos Recorridos é causa adequada e única, para os danos verificados.
XX. No que contende com o montante indemnizatório, a obrigação de indemnizar deve reconstituir a esfera lesada, repondo-a no estado em que se encontraria se os compromissos contratuais não tivessem sido preteridos.
XXI. Com vista a facilitar esta tarefa, a lei concede às partes a faculdade de, antecipadamente, poderem definir os contornos, que tenham por ajustados, de um dano concreto, o qual será, em caso de ser acionado o dever de reparação, o seu modelo específico e concreto.
XXII. À possibilidade de fixarem as partes, por acordo, o montante da indemnização exigível é atribuível a designação de configuração antecipada do dano, ou, a tecnicamente designada de cláusula penal – conforme n.º 1 do artigo 810.º do Código Civil.
XXIII. No presente caso, as partes convencionaram então, que caso os Recorridos não adquirissem café durante dois meses, não efetuando em dois trimestres um mínimo semestral de compra de 75 Kg de café, seguida ou interpoladamente, ou não pagando duas faturas vencidas no prazo máximo de oito dias a contar dos seus vencimentos, sendo-lhes tais factos imutáveis, a Recorrente teria o direito de resolver o contrato, e exigir uma indemnização correspondente a 20% do valor prometido em compra e não adquirido, a restituição do bem emprestado, o pagamento dos bens vendidos, e uma indemnização à razão de 6,03€ por cada mês decorrido, desde a data da resolução do contrato até efetiva entrega do equipamento.
XIV. Para além disso, a doutrina entende (Galvão Telles – Direito das Obrigações. 7.ª ed. Pág. 454 e 461) que o contrato bilateral torna-se resolúvel desde que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento e o contrato considera-se resolvido a partir do momento em que o credor leve essa vontade ao conhecimento da outra parte, isto é, lhe comunique a sua decisão de resolver o contrato, considerando-se o mesmo resolvido a partir do momento em que a comunicação for recebida pelo destinatário ainda que tal se considere ocorrida com a citação para os termos da acção.
XV. Em face de tudo quanto foi exposto, salvo o devido respeito, não poderão restar dúvidas para os Venerandos Juízes Desembargadores que deverá a sentença recorrida julgar totalmente procedente, por provado, o pedido formulado pela Autora sendo, consequentemente, alterada a decisão quanto à eficácia da resolução contratual tal como peticionada pela Autora e concludentemente serem os Réus condenados nos exatos termos peticionados.
Na resposta ao recurso, os Recorrido defenderam a confirmação da sentença recorrida.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar se os Réus incumpriram o contrato em causa nos autos o que determinou a resolução do mesmo, incorrendo na obrigação de indemnizarem a Autora nos termos peticionados.
B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
Factos Não Provados
«1. A Autora, no exercício do seu comércio de venda, por grosso, de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos, no dia 28 de Maio de 2002, celebrou com os Réus um acordo pelo qual se obrigou a vender e os Réus a comprar, quantidades mínimas mensais não inferiores a 25 kg de café Torrié – Lote Moinho Real, até ao montante de 1.500 kg, que os Réus prometeram adquirir.
2. O acordo referido em 1. vigorava até que a totalidade do café prometido em venda tivesse sido integralmente adquirida e paga nos moldes acordados entre as partes.
3. Tal mercadoria destinava-se ao estabelecimento comercial sob a designação “Café Snack Bar ...”, sito na Rua ..., ..., então explorado pelos Réus.
4. No acto, a Autora prometeu conceder uma bonificação de €1.815,52 (mil, oitocentos e quinze euros e cinquenta e dois cêntimos), quando, cumulativamente, a totalidade do café prometido em venda se mostrasse integralmente adquirida e paga e em função dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano.
5. A Autora entregou aos Réus 100 kg (cem quilogramas) de café Torrié – Lote Moinho Real, no valor de €1.815,52 (mil, oitocentos e quinze euros e cinquenta e dois cêntimos).
6. A obrigação de pagamento dos produtos identificados em 5. seria cumprida através de compensação com as quantias que fossem liquidadas a favor da Autora anualmente e a título de desconto/bonificação.
7. Ainda na mesma data, Autora e Réus celebraram um acordo pelo qual a primeira entregou aos segundos, a título temporário e gratuito, “1 termos de Leite Torrié 6 litros”, no valor de €361,63 (trezentos e sessenta e um euros e sessenta e três cêntimos).
8. O equipamento referido em 7. era destinado ao uso no estabelecimento comercial dos Réus.
1. 9. Nessa sequência, acordaram as partes que, não adquirindo os Réus café durante dois meses, não efectuando em dois trimestres um mínimo semestral de compra de 75 kg de café, seguida ou interpoladamente, ou não pagando duas facturas vencidas no prazo máximo de 8 (oito) dias a contar dos seus vencimentos, sendo tais factos imputáveis aos primeiros, teria a Autora o direito de anular/resolver o acordo referido em 1. e, consequentemente, de exigir: a. Uma indemnização correspondente a 20% do valor do café prometido em venda e não adquirido;
b. A restituição imediata do bem identificado em 7.,
c. Uma indemnização à razão de €6,03 (seis euros e três cêntimos) por cada mês decorrido, desde a data da resolução do contrato até efectiva entrega do equipamento referido em 7.;
d. O pagamento imediato de todos os bens vendidos.
10. Cerca de dois anos após a data referida em 1., em data não concretamente apurada, os Réus encerraram o estabelecimento identificado em 3. e adquiriam uma roulotte, na qual instalaram o seu negócio.
11. A 14 de Julho de 2004, após o evento referido em 10., Autora e Réus celebraram um acordo pelo qual a primeira entregou aos segundos, a título temporário e gratuito, “1 Máquina Café New EP 2 Grupos” e “1 Moinho Café Obel Penta”, bens avaliados em €2.000,00 (dois mil euros).
12. Foi estipulada a duração das cedências referidas em 7. e 11. pelo período de duração do acordo aludido em 1..
13. Foi determinado que os equipamentos referidos em 11. eram destinados a uso exclusivo em cafés de marca Torrié – Lote Moinho Real, em fracções mínimas mensais de 25Kg.
14. Sendo conferida uma utilização distinta da indicada em 13., a Autora poderia reclamar a devolução dos bens, obrigando-se os Réus a pagar uma indemnização à Autora à razão mensal de €33,33 (trinta e três euros e trinta e três cêntimos), desde a data da interpelação para a devolução dos bens e até à data da sua entrega efectiva.
15. Até Junho de 2005, os Réus adquiriram 290kg de café.
16. Após a data referida em 15., os Réus não adquiriram mais café.
17. Foram emitidas as seguintes facturas:
a. Fatura n.º 116200627/05, emitida a 01-06-2005, com data de vencimento a 01-07-2005, pelo valor de €235,06 (duzentos e trinta e cinco euros e seis cêntimos);
b. Fatura n.º 111600846/06, emitida a 02-06-2005, com data de vencimento a 02-07-2005, pelo valor de €21,06 (vinte e um euros e seis cêntimos).
18. Em data não concretamente apurada, todavia, posteriormente à data referida em 15. e antes das datas referidas em 22. e 23., os Réus alteraram a sua residência para a Rua ..., onde ainda hoje residem.
19. Os Réus informaram a Autora das alterações referidas em 10. e 18., através de contacto telefónico com o vendedor com quem contactavam desde o início da celebração do contrato descrito em 1..
20. Nessa sequência, o vendedor em questão informou os Réus de que não existia rota que incluísse a zona do ..., nunca mais tendo aparecido para proceder à entrega do café contratado ou ao levantamento dos equipamentos referidos em 7. e 11..
21. A Ré tentou, sem sucesso e em mais do que uma ocasião, contactar telefonicamente o vendedor referido em 19. e 20..
22. A 21-11-2007, a Autora endereçou aos Réus uma comunicação mediante carta registada com aviso de recepção, para a morada «..., 2955 ...», nos termos da qual referia, entre o mais, o seguinte:
«ASSUNTO: CONTRATOS NÚMERO 064/LX02/62 e 115/LX04/62 (…)
Infelizmente V. Exas. não vêm adquirindo café, facto que viola frontalmente o acordado e nos permite pôr fim ao contrato e reclamar-lhes indemnização em montante correspondente a 20% do preço do café não adquirido, bem como o pagamento dos bens vendidos e restituição dos bens emprestados.
Assim cumpre-nos informar que os contratos 064/LX02/62 e 115/LX04/62 , celebrados entre as nossas duas firmas, acusam um débito de compras de café de 1.210 Kgs. de café Lote Moinho real, o que de acordo com o clausulado contratual representa, de V/ parte, as seguintes responsabilidades:
1. Pagamento dos bens vendidos (café), no valor de 1.815,62 € (mil oitocentos e quinze Euro e sessenta e dois cêntimos);
2. Indemnização correspondente a 20% do café prometido em venda e ainda não adquirido, no valor de 4.803,70 € (quatro mil oitocentos e três Euro e setenta cêntimos).
Num total em débito de 6.619,32 € (seis mil seiscentos e dezanove Euro e trinta e dois cêntimos).
3. Restituição imediata dos bens emprestado ou pagamento de uma renda mensal de 35,19 Eur + IVA (21%).
Ficamos pois a aguardar liquidação dos valores mencionados no prazo máximo de 15 dias, findo esse prazo recorreremos aos meios judiciais competentes. (…)»
23. A 04-09-2008, a Autora endereçou aos Réus uma comunicação mediante carta registada com aviso de recepção, para a morada «..., 2955 ...», nos termos da qual referia, entre o mais, o seguinte:
«Assunto: resolução dos contratos de fornecimento de café n.º 064/LX02/62, de 28 de Maio de 2022(…)
Exmos. Srs.,,
Vimos por esta via, em relação ao contrato de fornecimento de café supra referenciado, notificá-los de que o resolvemos/anulamos nos termos do disposto no seu número 10, com base no facto de, desde pelo menos Julho de 2005, não mais ter efectuado compras de café Torrié.
(…)
O total em dívida ascende, portanto, actualmente a € 6.604,91, valor que agradecemos que seja liquidado no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da presente data, sob pena de intentarmos a correspondente acção judicial.
Queiram também V. Excas., consequentemente, proceder à restituição dos equipamentos que foram objecto de empréstimo gratuito, avaliado no montante de € 361,63.
Adverte-se que, nos termos do n.º 10 do contrato 064/LX02/62, reclamamos uma indemnização de € 6,03, por cada mês que passar entre a recepção da presente missiva e a entrega efectiva dos equipamentos. (…)»
24. Os avisos de recepção das cartas referidas em 22. e 23. não foram assinados pelos Réus, tendo o referente à comunicação indicada em 23. sido devolvido com a menção «Mudou-se».
25. Em data não concretamente apurada, os Réus devolveram o seguinte equipamento: “1 Moinho Café Obel Penta”.»
Factos Não Provados
a. «a) Que, por referência ao facto provado 8., o equipamento referido em 7. fosse destinado a uso exclusivo em cafés de marca Torrié – Lote Moinho Real, em frações mínimas mensais de 25 Kg.
1. b) Que, por referência aos factos provados 22. a 24., as comunicações endereçadas pela Autora aos Réus tenham chegado ao conhecimento destes últimos.»
C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
Como supra referido, a questão essencial que o objeto do recurso coloca é a de saber se os Réus incumpriram o contrato em causa nos autos o que determinou a resolução do mesmo, incorrendo na obrigação de indemnizarem a Autora nos termos peticionados.
Porém, impõe-se previamente a esta análise esclarecer que o quadro fático saído do julgamento se encontra estabilizado por a decisão de facto não ter sido impugnada, apesar do que a Apelante fez inscrever ex novo nas Conclusões do recurso aperfeiçoadas e que constituem referências a erros na apreciação da prova carreada para os autos e ao seu inconformismo com a apreciação da prova. O que, se bem percebemos da leitura das Conclusões inicialmente apresentadas, não ocorria. Aliás, foi assim que foram interpretadas as Conclusões inicialmente apresentadas, o que se deixou consignado no primeiro parágrafo do despacho proferido em 04-11-2024 (convite ao aperfeiçoamento) ao dizer-se que a Apelante impugnou a sentença «apenas em termos de direito.»
Naturalmente, que o convite ao aperfeiçoamento não podia determinar uma alteração (modificação ou ampliação) do objeto do recurso.
De qualquer modo, de uma leitura atenta das Conclusões aperfeiçoadas também se extrai que a invocação de erros na apreciação da prova acaba por se direcionar apenas e tão só à discordância com o modo como foi aplicado o direito aos factos provados, ou seja, tudo afinal se reconduz à discordância com o mérito da sentença.
Sendo assim, analisemos então as questões que o recurso submente à apreciação desta Relação.
Sem que haja discordância da Apelante, e como é decidido na sentença recorrida, ao abrigo da liberdade contratual (artigo 405.º do CC), as partes celebraram um contrato misto que comporta «elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e de compra e venda de café» (…). Através deste, obriga-se uma das partes (no caso, a Autora) a fornecer café, a ceder equipamentos (leia-se, máquinas tipicamente utilizadas na exploração de estabelecimentos de restauração), mediante a promessa (neste caso, por parte dos Réus) da aquisição de determinadas quantidades de café. Trata-se, assim, de um contrato inominado, atípico e sinalagmático (tratando-se de obrigações recíprocas, as que recaem sobre as partes, e correspectivas entre si).»
Também não subsistem dúvidas em face do que ficou provado sob os pontos 1, 2, 15 e 16, que o contrato foi celebrado em 28-05-2002, vigorava até ser adquirida a totalidade (1.500Kg) do café prometido vender e pago nos moldes acordados pelas partes, e que até junho de 2003, os Réus adquiriram 290Kg de café, nada mais tendo adquirido após essa data.
Estamos, pois, no domínio da responsabilidade civil contratual.
A responsabilidade contratual ou obrigacional tem como pressupostos (artigos 798.º e ss do CC) a verificação de um facto voluntário, objetivamente ilícito que consiste na inexecução da obrigação, a culpa (que se presume) na produção do facto, a existência de prejuízo para o credor e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
Estando provado que os Réus deixaram de adquirir o café nos termos convencionados, resta apurar se incumpriram a sua prestação de forma culposa.
Antecipa-se, desde já, que, em face do teor do contrato e dos factos provados, não pode se imputável aos Réus o incumprimento culposo do contrato.
Encontra-se provado que o café a fornecer pela Autora, bem como os demais objetos referidos na decisão de facto, se destinavam ao estabelecimento comercial «Café Snack Bar ...» sito em ..., que os Réus à data do contrato exploravam.
Também resulta do contrato junto aos autos que as partes não convencionaram o local de cumprimento da prestação da Autora, estipulando apenas que o «café adquirindo será fornecido sob encomenda prévia dos SO [segundo outorgantes, ora Réus], sendo os pagamentos devidos no acto da entrega das mercadorias (…)» (Cláusula 03).
Assim, o lugar da prestação decorre do princípio geral previsto no artigo 772.º, n.º 1, do CC, ou seja, a prestação deve efetuada no domicílio do devedor, no caso, dos Réus.
Está também provado que os Réus deixaram de explorar o dito esmaecimento e adquiram uma roulotte na qual instalaram o negócio. Porém, como consta do facto provado 11, as partes acordaram verbalmente em alterações ao inicialmente contratado (cfr. factos provados 11 a 13), mas nada disseram, mais uma vez, quanto ao lugar do cumprimento da prestação da Autora. O que significa que, nos termos do artigo 772.º, n.º 2, do CC, o local da prestação passou a ser a do novo local de exploração, uma vez que também nada estipularam no sentido de tal mudança acarretar prejuízo para a Autora.
Está também provado que os Réus posteriormente alteraram a sua residência para o ... e que informaram a Autora através do seu vendedor com quem contactavam desde o início do contrato, tendo o mesmo informado os Réus que «não existia rota que incluísse a zona do ...», nunca mais tendo aparecido para proceder à entrega do café contratado ou ao levantamento dos equipamentos entregues aos Réus, tendo a Ré ainda tentado, mas sem sucesso, contatar telefonicamente com o vendedor (cfr. factos provados 18 a 21).
Desta factualidade decorre que a Autora deixou de cumprir a sua obrigação ao não entregar o café aos Réus no local do cumprimento da obrigação. E, mais, também decorre que o fez de forma consciente e deliberada por o local para onde os Réus mudaram não estar abrangido pela rota de distribuição.
Deste modo, lograram os Réus ilidir a presunção de culpa prevista no artigo 799.º, n.º 1, do CC, por terem provado que não procede de culpa a falta de cumprimento do dever contratual que assumiram, pois a razão radica no incumprimento contratual da prestação da Autora.
Concluindo-se, consequentemente, que não se encontram reunidos os pressupostos da responsabilidade previstos nos artigos 798.º, 804.º a 806.º, 817.º, 562.º a 566.º do CC, por não se ter provado que os Réus incumpriram de forma culposa a sua obrigação contratual.
O que afasta o direito da Autora resolver o contrato com base no incumprimento dos Réus, seja por via extrajudicial ou judicial (como agora invocam no recurso).
Como é sabido, o direito de resolução, enquanto direito potestativo extintivo que se exerce por mera declaração à parte contrária (artigo 436.º, n.º 1, do CC), depende sempre de um fundamento que se traduz no incumprimento definitivo do contrato. A mora (retardamento da prestação), como decorre dos artigos 801.º, n.º 2,, 808.º, n.º 2, ex vi do artigo 808.º, do CC, é apenas fundamento de resolução quando se converta num não cumprimento definitivo derivado da perda do interesse na prestação, ou conservando o credor esse interesse, ou mesmo independentemente dele, da falta de realização da prestação no prazo razoável fixado (pelo credor) para esse efeito antecedida da correspondente notificação admonitória.
No caso, não se tendo provado o incumprimento contratual dos Réus, fica prejudicada a apreciação da questão da validade da resolução extrajudicial através do envio da cartas referidas nos factos provados 22 a 24 ou da operacionalidade da resolução através da citação dos Réus para a presente ação (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Improcede, assim, a apelação.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora,
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Susana Ferrão (1.ª Adjunta)
Ricardo Miranda Pereira (2.º Adjunto)