Sumário:
O contrato de arrendamento para fins não habitacionais (destinado a armazém) celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 275/95, de 30-09, por via das normas transitórias previstas no NRAU (artigos 26.º, 27.º e 28.º), continua a ser um contrato de duração ilimitada/indeterminada não podendo ser denunciado ad nutum pelo senhorio através de comunicação ao arrendatário com determinada antecedência como previsto no artigo 1101.º, alínea c), do Código Civil.
Tribunal recorrido: TJ Comarca de ..., Juízo Local de ... – J1
Apelante: AA, Ld.ª
Apelado: BB
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
AA LDA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB formulando os seguintes pedidos:
1) Deve o Réu ser condenado a reconhecer que a Autora é titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na ..., com o edifício no pátio ..., com as letras G, H, I e J de um só pavimento para armazém, em ..., inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de...) sob o artigo 2183 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 00215/160289 da freguesia de ... e, em consequência:
a) Deve o Réu ser condenado a restituir à Autora o armazém identificado pela letra H do indicado prédio, inteiramente livre e desocupado, de pessoas e bens;
b) Deve o Réu ser condenado a ressarcir a Autora pela ocupação e utilização indevida do armazém, calculada desde Maio de 2018 até à sua efetiva entrega, à razão de €300,00 mensais o que, até 30 de Setembro de 2022 perfaz €15.900,00;
2) Ou, quando menos, mas sem conceder, subsidiariamente, caso o Réu alegue e prove ser titular de direito ao arrendamento do indicado armazém,
a) Deve ser decretada a resolução do contrato de arrendamento relativo ao mesmo armazém, com fundamento na falta de pagamento da renda e o Réu condenado a restituí-lo à Autora, inteiramente livre e desocupado, de pessoas e bens;
b) Deve o Réu ser condenado a pagar à Autora as rendas vencidas e em dívida, que totalizam, até 30 de Setembro de 2022, €1.210,00, a que acrescem juros de mora, e as rendas vincendas, até efetiva entrega do armazém e, se esta não ocorrer imediatamente após o trânsito em julgado da sentença que decretar o despejo, ou no prazo nela fixado, o dobro da renda então em vigor, por cada mês de mora, até à efetiva restituição do mesmo livre e devoluto de pessoas e bens (número 2 do artigo 1045.º do Código Civil);
3) E, sempre sem conceder, subsidiariamente, caso o Réu inutilize a resolução do arrendamento com o pagamento das rendas em dívida e acrescido, a Autora declara pôr termo ao contrato para o termo do mês de calendário subsequente ao mês em que o Réu for citado nos autos, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, al. e) do RAU e 1026.º do Código Civil ou, quando menos,
4) Também sem conceder, a entender-se aplicável o Regime do Arrendamento Urbano, nos termos dos artigos 27.º, 28.º e 26.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2006 e da al. c) do artigo 1101.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 13/2019, de 12.02, a Autora declara pôr termo ao contrato para o termo do mês em que se completem cinco anos sobre a data em que o Réu for citado nos autos.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que adquiriu o armazém em causa nos autos, sendo que à data, tal como hoje, o Réu ocupava o mesmo, desconhecendo a existência de um contrato de arrendamento, uma vez que não lhe entregou qualquer quantia como contrapartida pela ocupação que faz, facto que lhe causa um prejuízo no montante de €300,00/mês.
Ainda, invoca que caso o Réu tenha direito a ocupar o armazém, é devedor da quantia de €1.210,00, correspondente às rendas vencidas desde 01-03-2018, no montante mensal de €22,00, devendo ser resolvido o contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas.
Por fim, invoca a aplicação dos artigos 1022.º e seguintes do Código Civil, mais concretamente o artigo 1026.º, pelo que declara pôr termo ao contrato para o termo do mês de calendário subsequente mês em que o Réu for citado nos autos.
Porém, a entender-se aplicável ao contrato dos autos o Regime do Arrendamento Urbano, nos termos dos artigos 27.º, 28.º e 26.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2006 e da al. c) do artigo 1101.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 13/2019, de 12-02, a Autora declara pôr termo ao contrato para o termo do mês em que se completem cinco anos sobre a data em que o Réu for citado nos autos.
Contestou o Réu deduzindo a sua defesa por impugnação, alegando que assumiu a posição contratual do progenitor, primitivo arrendatário no contrato de arrendamento celebrado com os anteriores proprietários, tendo continuado a efetuar o pagamento da renda, pelo que inexiste ocupação ilegítima. Alega ainda que desconhecia o modo de efetuar o pagamento das rendas, tendo procedido ao seu depósito e da indemnização devida, após a citação e antes do termo do prazo para contestar.
Deduziu reconvenção subsidiária, alegando terem efetuado benfeitorias necessárias e úteis no imóvel que não são passiveis de ser levantadas, peticionando a condenação da Autora no pagamento da quantia de €18.488,22, bem como a permitir o levantamento das benfeitorias úteis e voluptuárias.
Na réplica, a Autora invocou que com a morte do primitivo arrendatário, pai do Réu, ocorreu a extinção do contrato de arrendamento e, ainda que, das obras descritas algumas delas não se destinaram a manter a integridade do prédio, outras são futuras e, por fim, que inexiste qualquer locupletamento por sua parte uma vez que pretende demolir o imóvel, devendo assim ser absolvida do pedido reconvencional.
Julgada a causa foi proferida sentença que decidiu do seguinte modo:
«Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
1) Reconheço a Autora proprietária do armazém identificado pela letra H, que faz parte do prédio urbano sito na ... este último de serventia para o ..., o edifício no ... com as letras G, H, I, e J de um só pavimento para armazém, em ..., inscrito na matriz predial urbana da ... (...) sob o artigo 2183 e descrito na CRP sob o nº 00215/16/0289 da ....
2) Absolvo o Réu de tudo o mais que foi peticionado.
3) Absolvo a Autora do pedido reconvencional deduzido.»
Inconformada, apelou a Autora, pugnando pela revogação da sentença e pela sua substituição por outra que considere «denunciado o contrato de arrendamento do armazém para o termo do mês de calendário subsequente ao mês em que o R., aqui recorrido, foi citado nos autos, nos termos do regime da locação civil, da alínea e) do nº. 2 do artigo 5º. do RAU e artigo 1026º do Código Civil», apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«A. Resulta dos Factos Provados da douta sentença que o imóvel objecto dos presentes dos
autos é um armazém.
B. A douta sentença julgou improcedente a denúncia do contrato dos autos porque “resultou da factualidade que o contrato de locação foi celebrado há pelo menos 50 anos, isto é, (atendendo à data da propositura da acção, em 05/10/2022), pelo menos em 1972. Deste modo, fácil é concluir que o referido contrato não foi celebrado sob a égide do RAU, mas anteriormente a este. Deste modo, não lhe será aplicável o citado artigo 5º, nº. 2, al. e) do RAU”. Porém,
C. Este entendimento pressupõe que as relações contratuais se regem pelas normas em vigor à data em que se constituíram, o que certamente não se pretendeu afirmar. Com efeito,
D. As questões suscitadas pela entrada em vigor de lei que estatui sobre relações contratuais constituídas no passado, ou são directamente resolvidas por disposições dessa lei ou, na falta destas, pelo artigo 12º do Código Civil, que constitui norma geral.
E. Na vigência do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei Nº. 321-B/90, de 15.10, o contrato dos autos estava sujeito ao regime geral da locação civil, por força da al. e) do nº. 2 do seu artigo 5º e não às suas outras disposições, nem às do Decreto-Lei Nº. 257/95, de 30.09.
Ou seja,
F. Ao contrato dos autos não são aplicáveis os artigos 26º nem 28º da Lei Nº. 6/2006, de 27.02, que apenas dispõem sobre contratos de arrendamento sujeitos ao regime do arrendamento urbano (neste sentido, por exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-04-2001, Garcia Marques, Proc. 01A405, disponível em www.dgsi.pt e também, na doutrina, a Conselheira Maria Olinda Garcia).
G. Sendo o local arrendado um armazém o mesmo não tem conexão com a actividade habitacional, comercial ou industrial, não lhe sendo assim aplicáveis as normas constantes do Capítulo II da Lei nº. 6/2006, de 27.02, (NRAU), concretamente as normas dos artigos 27º e 28º daquele diploma legal, ao contrário do invocado e decidido na douta sentença.
H. Ao contrato de arrendamento dos autos, que não é um arrendamento vinculístico, é-lhe aplicável o regime geral da locação civil, sendo um contrato de duração limitada e livremente denunciável pelo senhorio desde a vigência do RAU, porque estava sujeito à al. e) do nº. 2 do artigo 5º do RAU.
I. A. peticionou a denúncia do contrato de arrendamento do armazém no termo do mês de calendário subsequente ao mês em que o R. fosse citado nos autos, nos termos do artigo 5º, nº. 2, al. e) do RAU e 1026º do Código Civil, pois o contrato em apreço está abrangido pelo regime geral da locação civil.
J. O disposto na alínea e) do nº. 2 do artigo 5º. do Decreto-Lei nº. 321-B/90, de 15.10, não obstante o seu carácter inovador, como o caracteriza a doutrina e a jurisprudência, é imediatamente aplicável às relações jurídicas já constituídas nos termos do nº. 2 do artigo 12º. do Código Civil.
K. O contrato de arrendamento objecto dos autos, é assim livremente denunciável pela A., aqui senhoria, e a denúncia foi efectuada de forma válida e tempestiva, nos termos dos artigos 1026º, 1054º e 1055º todos do Código Civil (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-04-2001, Garcia Marques, Proc. 01A405, acima invocado).
L. Nos termos do artigo 12º do Código Civil, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Melhor dizendo, o contrato em apreço é desde a vigência do RAU regulado pelo regime da locação civil, é de duração limitada e é livremente denunciável pelo senhorio, por acto unilateral, antes da entrada em vigor do NRAU, não tendo o NRAU alterado este regime ou lhe retirado eficácia.
M. As normas invocadas na douta sentença para julgar improcedente a cessação do contrato de arrendamento do armazém por denúncia da A. não têm aplicação, pelo que se verifica erro de julgamento na análise da questão em apreço nos autos, e consequentemente, erro na determinação das normas legais aplicáveis.»
Na resposta ao recurso, o Recorrido defendeu a confirmação da sentença recorrida.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar se o contrato de arrendamento em causa nos autos pode ser denunciado nos termos pretendidos pela Autora.
B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
Factos Provados
«1) Pela Ap. 2014 de 2018/03/01, encontra-se registada a favor da Autora a aquisição do prédio urbano sito na ..., com o edifício no pátio CC, com as letras G, H, I e J de um só pavimento para armazém, em ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 00215/19890216, da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de ...) sob o artigo 2183.
2) A Autora adquiriu o identificado prédio, por compra realizada por escritura pública lavrada a fls. 7 e seguintes, do Livro 330-A, do Cartório Notarial de ..., a cargo da Notária, Dra. DD, no dia 20/02/2018.
3) À data da aquisição do prédio pela Autora, o mesmo era objeto da acção de divisão de coisa comum que, sob o número 3222/14.3..., correu termos pelo Juízo Local Cível de ... – Juiz 2.
4) Na data da aquisição, assim como hoje, o Réu ocupava o armazém identificado pela letra H, situado no prédio.
5) Após a aquisição, a Autora remeteu ao Réu uma carta datada de 18/11/2019, com o seguinte teor:
6) Em resposta, o Réu remeteu uma carta datada de 27/11/2019, com o seguinte teor:
7) O armazém designado pela letra H foi dado de arrendamento por um elemento da família CC, na qualidade de respetivo proprietário, ao pai do Réu, EE, há mais de 50 anos, em data que não se consegue precisar.
8) O contrato não foi reduzido a escrito e ficou então acordado que pelo uso do imóvel era devido o pagamento da quantia mensal correspondente a € 22,00, a entregar no domicílio do então proprietário no fim de cada mês.
9) Em 24 de novembro de 2006, por acordo com os anteriores proprietários, o Réu assume a posição contratual do pai, após o falecimento deste.
10) Após o falecimento do pai do Réu, este efectuou o pagamento das rendas aos anteriores proprietários, tendo sido emitidos os respetivos recibos.
11) O Réu solicitou aos anteriores proprietários que fosse emitido um recibo através do Portal das Finanças ou mediante programa certificado pela Autoridade Tributária, tendo sido informado que assim não pretendiam proceder.
12) Em consequência, o Réu, desde Março de 2017, que não efectuou o pagamento das rendas aos anteriores proprietários.
13) O Réu desconhecia o modo como a Autora pretendia receber as rendas.
14) Consequentemente, não pagou à Autora as rendas vencidas no dia 1 de Março de 2018, referente a Abril seguinte, nem nenhuma das vencidas em igual dia dos meses subsequentes.
15) O prédio de que faz parte o armazém fica muito próximo do centro de ..., em zona bem servida de transportes e acessos rodoviários e próxima de todo o tipo de comércio.
16) O armazém dispõe de uma divisão assoalhada e tem a área de 25,8640 m2, tendo o valor patrimonial de 12.963,09 Euros.
17) O Réu foi chamado aos autos de Divisão de Coisa Comum para exercer o direito de preferência na aquisição da propriedade do prédio onde situa o locado.
18) Com a citação da instauração da presente acção, o Réu tomou conhecimento da vontade da Autora em cessar o contrato de arrendamento, não tendo recebido qualquer notificação judicial avulsa nesse sentido.
19) O Réu, após a citação da instauração da presente acção e antes do término do prazo de 1 mês, com o intuito de fazer cessar a mora, procedeu ao depósito junto de uma agência de instituição de crédito das rendas peticionadas acrescidas da indemnização de devida pela mora, no valor de € 1.579,60.
20) Durante o uso do locado, tanto o Réu, como o respetivo pai, foram providenciando por obras necessárias à manutenção da estrutura, visto que os senhorios nunca promoveram quaisquer obras de conservação do imóvel.
21) Por forma a habilitar o locado das condições de uso para o desempenho de uma actividade profissional, o Réu promoveu obras no locado.
22) As obras efectuadas foram objecto de uma avaliação por parte de um Engenheiro Civil, em Dezembro de 2022, que foi efectuada com recurso a tabelas com os preços actualmente em vigor, no montante de € 18.488,21.
23) Foi efectuada uma laje e respectivas vigas e pilares, com um custo estimado actual de € 4.103,67.
24) O portão de entrada no locado foi substituído, devido ao avançado estado de degradação, com o custo estimado actual de € 850,00.
25) O Réu providenciou pela limpeza do telhado, removendo detritos que se deixados sobre o telhado promoveriam a deterioração da estrutura, e bem assim, substituindo, ocasionalmente, telhas que se iam danificando em razão da queda de pedras provenientes da muralha antiga de ..., bem como, substituindo o isolamento existente no telhado, com o custo actual por ano de € 300,00.
26) Foi efectuada a construção de uma instalação sanitária, a qual implicou:
i. execução de paredes em alvenaria, com o custo estimado actual de € 300,00;
ii. fornecimento e montagem da porta da instalação sanitária, com o custo estimado actual de € 243,00;
iii. execução de rebocos, com o custo estimado actual de € 324,00;
iv. fornecimento e colocação de mosaico cerâmico, com o custo estimado actual de € 60,00;
v. pintura, com o custo estimado actual de € 144,00;
vi. fornecimento e montagem de louças sanitárias e torneiras com o custo estimado actual de € 586,00;
vii. fornecimento e montagem de canalização de águas em tubo inox, respetiva ligação ao equipamento sanitário e demais material de segurança exigido legalmente, com o custo estimado actual de € 650,00;
viii. fornecimento e montagem de esgotos, com o custo estimado actual de € 400,00;
ix. ligação de ramal de água, com o custo estimado actual de € 350,00;
x. ligação de ramal de esgoto, com custo estimado actual de € 350,00.
27) Foi instalado um sistema eléctrico, atento a que inexistia energia eléctrica no locado, nomeadamente:
i. fornecimento de equipamento elétrico e respetiva montagem, com o custo estimado actual de € 1.500,00;
ii. ligação de ramal de EDP, com o custo estimado actual de € 400,00.
28) Foi efectuada a instalação de soalho:
i. pavimento flutuante sobre uma área de 9,9 m2, com o custo estimado actual de € 198,03;
ii. pavimento cerâmico sobre uma área de 17,65 m2, com o custo estimado actual de € 529,52.
29) Se dispusesse do armazém em Maio de 2018, a Autora poderia ceder o seu uso a terceiros em regime de arrendamento, o que lhe proporcionaria, nas condições do mercado, um rendimento mensal nunca inferior a 300,00 Euros.»
Factos Não Provados
«a) Desde há mais de vinte anos que a Autora e os anteriores proprietários do prédio, a quem o adquiriu e a quem estes o adquiriram, usam e fruem do prédio, ininterruptamente, à vista de todos, sem oposição de ninguém, com exclusão de quem quer que seja e na convicção de ser coisa sua, nomeadamente, cedendo o seu uso mediante remuneração, cobrando e fazendo suas as rendas pagas, procedendo às reparações necessárias e pagando as contribuições, impostos e taxas que sobre ele recaem.
b) Não há contrato de abastecimento de energia eléctrica no armazém.
c) O Réu sabe que usa o armazém contra a vontade da Autora e sem causa justificativa.
d) O Réu promoveu as obras referidas com autorização do anterior proprietário.
e) Nunca os senhorios se opuseram a qualquer intervenção promovida pelo pai do Réu e este no imóvel.
f) O Réu e respetivo pai perante o risco de ruína da estrutura do locado promoveram às necessárias intervenções para evitar que assim ocorresse, atendendo à falta de actuação do senhorio.
g) Anteriormente, à obra referida em 27) inexistia energia eléctrica no locado.»
C. Do Conhecimento da questão suscitada no recurso
O presente recurso coloca a questão de saber se o contrato de arrendamento para fins não habitacionais referido nos autos, existente sobre um armazém, celebrado pelo já falecido pai do Réu, há mais de 50 anos, é denunciável.
A sentença recorrida decidiu que estava vedada a denúncia ad nutum deste contrato, lendo-se sua fundamentação:
«Resultou da factualidade que o contrato de locação foi celebrado há pelo menos 50 anos, isto é, (atendendo à data da propositura da acção, em 05/10/2022) pelo menos em 1972. Deste modo, fácil é concluir que o referido contrato não foi celebrado sob a égide do RAU, mas anteriormente a este. Deste modo, não lhe será aplicável o citado artigo 5.º, n.º 2, alínea e), do RAU.
In casu, teremos de atender ao capítulo II da Lei n.º 6/2006, de fevereiro (NRAU), que dispõe, quanto aos contratos celebrados antes da vigência do RAU, que se aplicam aos mesmos o NRAU com a especificidades constantes dos artigos 50.º a 54.º uma vez que está em causa um contrato não habitacional (cfr. artigo 28.º, n.º1, do NRAU).
Com relevância dispõe o n.º 2, do artigo 28.º, do NRAU (aqui aplicável) que aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.
Deste modo, não pode a Autora, como pretende, recorrer à citada disposição legal para colocar termo ao contrato com a antecedência de cinco anos, por denúncia a efectuar por via desta acção.»
Por sua vez, a Autora, ora Recorrente, discorda, defendendo que não está em causa um arrendamento vinculístico, sendo-lhe aplicável o regime geral da locação. E sendo um contrato de duração limitada e livremente denunciável pelo senhorio desde a vigência do RAU (Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10), porque sujeito à alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do RAU, não se lhe aplica o Decreto-Lei n.º 257/95, de 30-09, nem os artigos 26.º a 28.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02 (NRAU).
Vejamos.
Adiantando, desde já, que a razão não está do lado da Recorrente.
Efetivamente, não subsistem dúvidas que o contrato em causa é um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, pois o objeto do mesmo é um armazém, sem que se tenha provado que tenha qualquer ligação a alguma fração habitacional ou a atividade comercial, industrial ou profissão liberal.
Também não há dúvida que foi celebrado pelo primitivo arrendatário, em data não concretamente apurada, mas que vigora, pelo menos, desde 1972, e que o ora Recorrido, seu filho, continuou a usar o armazém após a morte do pai.
À data da celebração, os contratos de arrendamento para outros fins não eram livremente denunciáveis pelo senhorio, ressalvadas as exceções previstas na lei (que não vêm ao caso), encontrando-se sujeitos ao que se chamou regime vinculístico.
Como se refere no Acórdão desta Relação de Évora proferido em 15-01-20151:
«Por força do disposto no primitivo artº 1095º do C.Civil, nos arrendamentos a que se referia a secção em que se integrava essa norma (respeitante aos arrendamentos de prédios urbanos para qualquer fim lícito – fosse a habitação, o comércio ou a indústria, o exercício de profissão liberal ou qualquer outro fim – e aos arrendamentos não rurais de prédios rústicos, como decorria da epígrafe da Secção VIII e da classificação inserta no artº 1086º), não gozava o senhorio do direito de denúncia, sem prejuízo das excepções do artº 1096º, operando a renovação automática desses contratos. Por sua vez, o nº 1 do artº 1083º estabelecia que a esses arrendamentos apenas se aplicariam as normas das secções I a VI “no que não esteja em oposição com as desta” secção VIII – o que afastava a aplicação do limite máximo de 30 anos previsto em geral para a locação (no artº 1025º). A esse regime convencionou-se designar de “vinculístico”, assim significando a impossibilidade, em regra, de o senhorio pôr termo ao contrato, por sua livre disposição (proibição de denúncia ad nutum pelo senhorio) – e que se aplicava indistintamente aos contratos habitacionais e não habitacionais. Só com o RAU de 1990 e o Decreto-Lei nº 257/95 é que passou a ser possível a celebração de “contratos de duração limitada” (na expressão do RAU – v. artº 98º) ou “com prazo certo” (na expressão do NRAU – v. novos artºs 1094º e 1095º do C.Civil), pelo que os contratos subsistentes anteriores (pré-RAU e pré-Decreto-Lei nº 257/95) são “contratos vinculísticos” e caem na categoria de “contratos sem duração limitada” (na expressão do NRAU).»
Resultando dos autos que contrato de arrendamento do armazém foi celebrado antes da entrada em vigor do RAU (que entrou em vigor em 15-10-1990 – cfr. artigo 2.º), importa ter em conta o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea e), do RAU, que excetuava da sua aplicação os «arrendamentos de espaços não habitáveis para (…) armazenagem (…) especificados no contrato, salvo quando realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício de comércio.»
Se a legislação sobre arrendamento tivesse cristalizado após a entrada vigor do RAU, a Recorrente podia defender o que vem defender no recurso com base neste normativo.
Sucede que a legislação sobre arrendamento foi sendo posteriormente alterada abrangendo as relações de arrendamento coberta pelo chamado regime vinculístico.
Sendo, pois, imperioso considerar as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 257/95, de 30-09 (em vigor desde 30-06-1995), que procedeu à revisão do arrendamento urbano para o exercício de comércio, indústria, profissões liberais e outros fins não habitacionais), bem como o regime do NRAU, que revogou o RAU (e entrou em vigor em 27-06-2006).
Assim, e com o refere Pinto Furtado2, em relação ao regimes básicos do arrendamento urbano (utilizando-se este termos em sentido amplo), importa ter em conta os contratos «não habitacionais realizados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, ocorrida em 6 de Outubro seguinte (…) que se encontram sujeitos às chamadas normas transitórias, constantes dos arts. 27-60 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (…)» e pelos «preceitos do CC relativos aos arrendamentos de duração indeterminada (novos arts. 1009-1107 CC)».
Acrescentando, em explicitação do assim afirmado, confrontando o regime transitório aplicável aos contratos habitacionais anteriores à entrada em vigor do RAU (15-11-1990) e aos contratos não habitacionais anteriores à vigência do Decreto-Lei n.º 275/95, de 30-09, isto é, a 06-10-1995:
«A diferença dos dois regimes explica-se pela intenção de englobar todos os contratos que se encontravam onerados com o vínculo da prorrogação forçada.
Em 15 de Novembro de 1990, com a entrada em vigor do RAU, passou a ser admitida a celebração de arrendamentos para habitação ditos de duração limitada, isto é, em que, ultimado o prazo por que foram celebrados, podia o senhorio (embora com um aviso prévio de 1 ano) livremente não prorrogar o contrato, mas fazê-lo cessar.
Esta faculdade só veio a ser permitida relativamente aos arrendamentos não habitacionais (para comércio ou indústria, para exercício de profissão liberal ou para outro fim não habitacional) com a publicação do Decreto-Lei n.º 275/95.
É isto que justifica a referência a estes diplomas e às respectivas entradas em vigor. É a tais arrendamentos que se referem os arts. 27 e ss da Lei 6/2006.»
Analisando a aplicação dos referidos artigos 27.º e ss do NRAU, continua este I. Autor a explicar o referido regime:
«I- Logo no art. 28, manda-se aplicar-se-lhes o disposto no art. 26 “com as devidas adaptações”.
Regem assim, à cabeça, os n.ºs 4 a 6 deste artigo, pois são os números que se referem aos arrendamentos sem duração limitada – mas são-lhe ainda aplicáveis o disposto no n.º 2 do mesmo artigo e, por remissão, também os arts. 57 e 58.
II- Nestes termos, serão basicamente disciplinados, como se estabelece no corpo do n.º 4 do art. 26, pelas novas normas do CC porque se regem os contratos de duração indeterminada, ou seja, pelos arts. 1099 a 1107 – mas com algumas particularidades e adaptações.
A. Assim, também a estes contractos, visto que são imperativamente de duração ilimitada e como tal persistem, não é aplicável a denúncia/revogação unilateral prevista na al. c) do novo art. 1101 CC para os novos arrendamentos de duração indeterminada (al. c) do art. 26 da Lei, ex vi do seu art. 28.»
Resulta assim bem claro, que, em face das normas transitórias supra referidas (que afastam a aplicação do regime geral previsto no artigo 12.º do CC), os contratos de arrendamento para fins não habitacionais anteriores à vigência do Decreto-Lei n.º 275/95, de 30-09, isto é, a 06-10-1995, como sucede com o contrato dos autos, por via das normas transitórias previstas no NRAU (artigos 26.º a 59.º), continuam a ser contratos de duração ilimitada/indeterminada não podendo ser denunciados ad nutum pelo senhorio através de comunicação ao arrendatário com determinada antecedência como previsto no artigo 1101.º, alínea c), do CC.
Prevê-se, contudo, a possibilidade de denúncia dos contratos de arrendamento não habitacionais anteriores à vigência do Decreto-Lei n.º 275/95, se tiver ocorrido trespasse do estabelecimento ou cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal e quando o arrendatário seja uma sociedade, ocorra a transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50% face à situação existente aquando da entrada em vigor do NRAU (artigo 26.º, n.º 6, alíneas a) e b), da Lei 6/2006.
Ademais, também este regime foi mantido com as alterações ao regime do arrendamento introduzidas pela Lei n.º 31/2014, de 14-08, como decorre do seu artigo 28.º, n.º e, alíneas a) e b) e da redação alterada do artigo 1101.º, alínea c), do Código Civil (sendo que a diferença reporta-se apenas ao prazo do aviso prévio).
Ora, no caso dos autos, não se verificando a situação de trespasse do estabelecimento ou cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal, nem sendo o arrendatário uma pessoa coletiva, verificando-se, antes, que o contrato de arrendamento transitou para o ora Réu, filho do primitivo arrendatário, por falecimento deste, o contrato de arrendamento continua a não ser livremente denunciável pelo senhorio (cfr. artigos 57.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, ex vi dos seus artigos 26.º, 27.º e 28) e artigo 28.º, n.º 3, alíneas a) e b), da Lei n.º 3172012, de 14-08).
Esta conclusão corresponde, aliás, à interpretação que também foi acolhida noutros arestos que decidiram situações de arrendamentos urbanos não habitacionais, v.g., Ac. RE, de 20-12-2018, Ac. RL, 18-03-2010.3
Nestes termos, improcede apelação sendo de confirmar a sentença recorria.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 27-02-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Ana Pessoa (1.ª Adjunta)
José António Moita (2.º Adjunto)
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1. Proferido no proc. n.º 557/14.9YLPRT.E1 (Rel. Mário Serrano), disponível em www.dgsi.pt como todos os demais citados sem outra menção quanto ao local da publicação.↩︎
2. Manual de Arrendamento Urbano, Vol. I, Almedina, 4.ª ed. act., p. 113-114.↩︎
3. Proferido no proc. n.º 1862/07.6TBCSC.L1-6 (Rel. José Eduardo Sapateiro).↩︎