CONTRATO DE EMPREITADA
PERDA DO INTERESSE DO CREDOR
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
Sumário

Sumário:
I - De acordo com o entendimento consolidado da jurisprudência do STJ é necessário que a verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no artigo 640º do CPC, seja realizada em função dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspetos de ordem material do que meramente formal.

II - O contrato de empreitada, enquanto modalidade autónoma de prestação de serviço, pressupõe a vinculação do empreiteiro a realizar certa obra, a obter um resultado, mediante o pagamento de um preço.

III - Quando o legislador se refere a uma perda objetiva do interesse na prestação em mora, tem em vista aqueles casos em que, pela natureza da própria obrigação, o retardamento no cumprimento destrói o objetivo do negócio.

IV - Não tendo o dono da obra pago uma fatura correspondente a trabalhos realizados pelo empreiteiro, nos termos acordados, e não autorizando este último que aquele concluísse os trabalhos, o que não pode deixar de ser entendido como desinteresse pela sua realização, mostra-se justificada a retirada de equipamento e trabalhadores da obra pelo empreiteiro.

Texto Integral

Proc. nº 66665/22.2YIPRT.E2

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I - RELATÓRIO


Batucasul – Construções, Lda., apresentou requerimento de injunção contra Leopor – Imobiliária, Lda., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 8.078,19, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, excluído o montante correspondente à taxa de justiça inicial.


Alegou, em síntese, que no âmbito de um contrato de empreitada celebrado com a ré, realizou para esta a construção de um telhado que orçamentou pelo valor de € 25.000,00, como tendo uma área de 155 m2, por indicação da ré, tendo as partes acordado, como condições de pagamento, metade do valor com a adjudicação, mais 25% com a conclusão do assentamento das vigas e os restantes 25% com a conclusão dos trabalhos, tendo a ré, com a adjudicação, pago metade daquele valor.


Mais alegou que durante a execução dos trabalhos, a autora verificou e a ré confirmou, que o telhado tinha afinal 280 m2, tendo a ré aceitado pagar o preço devido pela área não prevista inicialmente, conforme fatura que lhe fosse apresentada.


Alegou, por último, que em 08.10.2021, apresentou à ré uma fatura referente à finalização do assentamento das vigas, que aquela não pagou.


A ré deduziu oposição, reconhecendo a existência de um contrato de empreitada com a autora, mas invocou o seu incumprimento por parte desta.


Alegou, em suma, que a responsabilidade pela medição dos trabalhos era da autora, que estava na posse das plantas e se deslocou diversas vezes ao local. Não obstante, aceitou pagar pela diferença de áreas o valor de € 3.500,00, mas foi-lhe exigido o dobro, o que não aceita, sendo que a obra não foi concluída, estando a autora em incumprimento contratual.


Por despacho de 08.05.2023 foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre o eventual uso indevido do procedimento de injunção, porque o montante pedido é “relativo a trabalhos de construção de um telhado de uma moradia”.


A ré, em síntese, pugnou pela verificação da exceção dilatória de uso indevido do processo, ao passo que a autora pugnou pela sua não verificação.


Em 16/05/2023, foi proferida decisão, lendo-se na parte dispositiva:


“Em face do exposto, julga-se verificada a exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção e, em consequência, absolve-se a ré da instância.”


Inconformada com tal decisão, recorreu a autora, com êxito, diga-se, já que este Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 12.10.23, revogou a decisão recorrida e ordenou que os autos prosseguissem a sua normal tramitação.


Baixados os autos à 1.ª instância, teve lugar a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:


«Em consonância com os fundamentos de facto e de direito acima expostos, o tribunal decide julgar a ação procedente e, por conseguinte:


I- Condenar a ré Leopor- Imobiliária, Lda. a pagar à autora Batucasul- Construções, Lda. a quantia de 7.687,50€, acrescida de juros de mora comerciais à taxa legal supletiva contados a partir de 08.11.2021 até integral pagamento.


II- Condenar a ré nas custas processuais.


III- Julgar o incidente de litigância de má fé suscitado pela autora totalmente improcedente, por não provado e, em consequência, absolver a ré dos respetivos pedidos de condenação.


IV- Custas dos incidentes de litigância de má fé a cargo da requerente.»


Inconformada, a ré apelou do assim decidido, tendo finalizado as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:


«a) A sentença ora recorrida enferma de uma contradição, inicial, no que concerne entre primeira e segunda fase da obra em apreço nos presentes autos;


b) Não podendo, face à prova produzida nos autos ter dado como provado que os trabalhos correspondentes à segunda fase da obra tivessem sido executados em toda a sua extensão.


c) Conforme resulta provado, os trabalhos efetuados correspondem à primeira fase da obra, os quais, não foram executados pela Recorrida conforme acordado com a Recorrente;


d) O primeiro pagamento/adiantamento acordado entre recorrente e recorrida, correspondente a 50% do valor total da obra, destinava-se a dar início à execução da primeira fase da obra;


e) Sendo que, com a conclusão desta fase seria efetuado novo pagamento para início da segunda fase da obra;


f) A fatura em causa nos autos corresponde ao segundo pagamento/adiantamento acordado, destinando-se o mesmo a dar início à segunda fase da ora;


g) A fatura em causa não corresponde a quaisquer dos trabalhos efetuados pela Recorrida, porquanto, como resulta demonstrado nos autos, a segunda fase da obra nunca foi iniciada;


h) A Recorrida sabia que a obra em causa abrangia todo o telhado e não apenas parte, aceitando a execução da empreitada nestes exatos termos.


i) Estando já a execução da empreitada em curso, o gerente da Recorrida, fez depender a prossecução da mesma de um acerto do preço da empreitada, invocando que a área total do telhado era superior à que inicialmente julgava ter.


j) Tendo o gerente da Recorrida informado o gerente da Recorrente que, para continuar os trabalhos não seria suficiente o pagamento da fatura em apreço nos autos, tendo de ser revisto o preço.


k) Sem que a isso estivesse vinculada a Recorrente tento tentado negociar um pagamento adicional, propondo o pagamento de €3.500,00;


l) A Recorrida não aceitou a contraproposta exigindo um pagamento adicional de € 7.000,00,


m) Tendo a Recorrente recusado tal pagamento, a Recorrida retirou os seus trabalhadores da obra e resolveu o contrato, invocando, infundadamente, perda de interesse.


n) Não poderá, assim, ser imputada à Recorrente qualquer mora no pagamento da fatura em causa;


o) Contrariamente ao defendido pela sentença recorrida, foi a Recorrida que entrou em incumprimento, tendo tentado introduzir unilateralmente alterações ao contrato de empreitada, fazendo depender a prossecução da sua prestação da aceitação pela Recorrente dessas alterações.


p) Tendo, sem qualquer fundamento, posto termo ao contrato de empreitada;


q) Tal, traduziu uma mera mudança de vontade do credor, que tentou impor à Recorrente, já com a execução do contrato avançada, uma alteração unilateral dos termos acordados, a qual esta recusou;


r) Inexistindo, assim, qualquer fundamentação para a perda de interesse na prestação pela Recorrida e consequentemente para a resolução do contrato;


s) A fatura em apreço nos autos não é assim devida pela recorrente;


t) Com a decisão proferida a sentença ora recorrida viola o disposto nos art.ºs 804.º, 808.º e 1208.º do Código Civil;


Nestes termos e nos demais de direito deverão V. Exas. Julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a douta sentença do Tribunal a quo e, nessa medida, substituir por outra que absolva a recorrente do pagamento a que foi condenado pelo tribunal a quo


A autora contra-alegou, defendendo a rejeição do recurso por incumprimento dos ónus de alegação a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto e, em todo o caso, porque a sentença recorrida se encontra devidamente fundamentada de facto e de direito, deve ser mantida.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:


- impugnação da matéria de facto;


- mora da ré e resolução do contrato de empreitada.


Como questão prévia, considerando também a resposta ao recurso, importa apreciar se a impugnação da matéria de facto pela recorrente observou os ónus impostos pelo art. 640º do CPC.


III – FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS


Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:


1. A autora dedica-se à atividade da construção civil, nomeadamente construção de telhados.


2. A ré tem como atividade a promoção imobiliária e a construção civil.


3. No âmbito da atividade das partes, a ré solicitou à autora um orçamento para a construção de um telhado de uma moradia em ....


4. Naquele pedido de orçamento a ré indicou que o telhado tinha 155m2.


5. A autora apresentou o orçamento à ré, no valor total de € 25.000 mais IVA e como condições de pagamento, metade do valor com a adjudicação, mais 25% com a conclusão do assentamento das vigas e os restantes 25% com a conclusão dos trabalhos.


6. A ré adjudicou os trabalhos de construção à autora e pagou a adjudicação.


7. A autora iniciou os trabalhos.


8. Durante a execução dos trabalhos, os trabalhadores da autora chamaram a atenção do gerente que o telhado não tinha 155 m2, mas era maior.


9. A autora realizou os trabalhos referente ao assentamento das vigas para os 280 m2 de telhado e em 8.10.2021 emitiu a fatura n.º FAC BS/152 referente à finalização do assentamento das vigas.


10. O gerente da autora disse que para continuar os trabalhos tinham que rever o preço porque o telhado não tinha os 155m2 indicados no orçamento, mas 280 m2 e o preço teria que ser em função da verdadeira dimensão do telhado.


11. Os gerentes das partes com o irmão da autora foram ao telhado medir a sua dimensão, tendo verificado que o telhado tinha uma área de 280 m2.


12. Acordaram as partes que as faturas deviam ser pagas na data da sua apresentação.


13. A ré não pagou o valor constante da fatura indicada em 9., nem quis pagar o excedente para a continuação dos trabalhos.


14. O mandatário da autora enviou uma carta à ré a solicitar o pagamento da fatura, bem como a alertar que a segunda tinha que pagar a empreitada em função da área correta.


15. Os trabalhos referentes à fatura mencionada em 9. encontram-se executados, em toda a extensão do telhado.


16. A autora, em face da falta de pagamento da fatura e da resposta para continuar os trabalhos, retirou os seus trabalhadores e equipamento da obra.


17. O gerente da ré, ao procurar fazer um estudo de preços para telhados, contactou via email a empresa Batucasul-Blue Roof, solicitando informações sobre orçamento para instalação de um telhado com cerca de 155m2 na zona de ..., no Algarve.


18. A ré foi contactada telefonicamente pelo responsável da BlueRoof Unipessoal, Lda. tendo, por este, sido informado que a autora seria mais indicada para o trabalho em causa tendo fornecido o respetivo contacto telefónico.


19. A ré telefonou a AA e solicitou o orçamento para o trabalho em causa.


20. A fim de poder elaborar o orçamento solicitado, foi agendado encontro na casa do gerente da ré em ..., no dia 22.06.2021, no qual compareceu o responsável da autora.


21. Os gerentes das partes visitaram o local onde a obra seria realizada, sito em ..., no lugar da ..., freguesia de ....


22. Uma vez no local, foi identificado o trabalho a executar: a estrutura da vivenda era encimada por uma placa em betão, em cima da qual seria montado o telhado.


23. Sem ter feito qualquer medição, o gerente da autora AA afirmou ter muita experiência de obra de telhados, de cerca de 47 anos, nesse mesmo momento, informou o gerente da ré que o orçamento para a obra em causa seria de €25.000.


24. Perante tal, o gerente da ré solicitou o orçamento por escrito, tendo o responsável da autora logo ali elaborado à mão um documento, em papel comum, do qual constava o preço, forma de pagamento e o NIB para depósito do primeiro pagamento, o qual foi assinado pelo próprio.


25. AA reiterou perante o gerente da ré a sua experiência de muitos anos, tendo apontado várias obras realizadas na mesma zona.


26. Entre as partes foi acordado realizar o telhado novo em que seriam colocadas subtelhas e telhas canudo tipo Santa Catarina sobre uma estrutura de alvenaria e vigotas; seriam levantados dois tijolos de 30x20x20 em redor da placa de betão e colocadas duas cimalhas (sem revestimento exterior) e construídas duas chaminés. Após o que subiriam os panos de tijolo. Na cobertura seriam usadas chapas tipo Lusalite como subtelha e as telhas seriam de canudo tipo Santa Catarina, bem como os telhões.


27. Foram sendo trocadas mensagens por SMS, por telefone e email, sendo que as respostas tanto vinham por parte do responsável da autora como da Blue Roof Lda., empresa do seu filho, BB.


28. A ré fez o depósito do primeiro pagamento acordado em 28.06.2021, em nome da Batucasul Construções Lda.


29. Os materiais para a execução da obra foram adquiridos à empresa de materiais para a construção civil Paviséqua – Materiais de Construção e Decoração Lda.


30. Não foi comunicado à ré por AA qualquer engano nas medições da área do telhado.


31. A autora sabia que a obra em causa abrangia todo o telhado e não apenas parte.


32. Com a obra avançada, AA informou o gerente da ré que, afinal, a área total do telhado era maior que do que inicialmente julgava ter, pelo que teria de haver um acerto do preço da empreitada.


33. A ré respondeu a AA que não poderia aceitar tal situação, uma vez que o orçamento por este realizado teve por base a planta do imóvel e várias visitas ao local, bem como se baseava na invocada experiência de 47 anos.


34. Por documento manuscrito manualmente, AA disse que inicialmente calculou que a área da obra fosse de 180/ 200 m2, mas que, afinal, tinha cerca de 300 m2, tendo solicitado à ré mais €4.000,00


35. Face à diferença que cerca de 25 m2 a mais entre a medição por planta e a medição real, e perante a necessidade de finalização com brevidade da obra, a ré contrapôs à autora um pagamento extra de €3.500.00 para a finalização da obra.


36. Por email datado de 18.10.2021 a autora solicitou à ré o montante adicional de €7.000 para finalização da obra.


37. Perante tal, a ré recusou tal pagamento invocando que os erros nas medições não lhe poderiam ser imputados, sempre tendo assumido que o orçamento originalmente proposto, e aceite, tinha por base as medidas corretas do telhado em apreço.


38. É o filho do gerente da autora que abre e responde a emails, colabora com o seu pai.


39. A autora fez uma cimalha em redor da moradia.


E foram considerados não provados os seguintes factos:


a) A autora colocou o material na obra para 155m2.


b) No dia 22.06.2021 o irmão do legal representante da autora estava presente.


c) O gerente da ré forneceu a planta do telhado aquando da visita ao local da obra.


d) A ré só forneceu as plantas à autora quando esta iniciou os trabalhos e quando o material já tinha sido comprado.


e) Na reunião realizada no local em 21.06.2021, foi acordado não haver processo de remates, rebocos ou cimalhas.


f) Os materiais em causa foram adquiridos pelo responsável da autora, estando este na posse da planta do telhado em causa, após várias deslocações ao local da obra e em conformidade com as medidas que por este foram realizadas.


g) A obra apenas foi executada em parte do telhado.


h) O gerente da ré retorquiu à carta mencionada em 34. dizendo que a autora tivera todo o tempo, mas como todas as condições e elementos necessários para elaborar um orçamento de acordo com as áreas reais do telhado em causa.


i) A fatura foi emitida antes de completar a 1.ª fase dos trabalhos acordados, cuja quantia não está contemplada no orçamento inicialmente proposto e aceite para a execução da obra.


j) No encontro mencionado em 20. o gerente da ré disse que o telhado a construir tinha 155 m2.


k) A ré pediu que enviasse um orçamento detalhado com os trabalhos a realizar.


l) A planta foi entregue depois de ter sido suscitado o problema de o telhado ser superior a 155m2.


Questão prévia: do (in)cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto


Diz a autora/recorrida que a ré/recorrente não cumpriu o ónus de impugnação a que está obrigado o recorrente que impugna a matéria de facto, limitando-se a dizer que não poderia ter-se dado como provado o ponto 15, “não referindo os concretos meios probatórios que impõem uma decisão diversa da tomada e o que deveria ter sido julgado provado em vez daquele facto”.


Dispõe o art. 640º, nº1, CPC:


“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


“a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


“b) - Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas”.


Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, e o mesmo sucede quanto à exigência da decisão alternativa, conforme fixação de jurisprudência, através do AUJ nº 12/2023, de 17.10.2023, publicado no DR 1ª Série de 14.11.2023.


Para além deste ónus primário, a lei impõe ainda um ónus secundário [art.640º, nº 2, al. a), CPC], pois quando os meios de prova tenham sido gravados «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».


A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que «[n]a verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade»1, ou que «a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no artº 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco»2.


No caso em apreço, resulta do corpo alegatório e das conclusões o inconformismo da recorrente quanto à decisão de dar como provada a matéria do ponto 15 dos factos provados3. E também se percebe que a recorrente funda esse seu entendimento nas declarações de parte do gerente da recorrida, de que, aliás, transcreve alguns excertos.


Mas será que também daí se retira qual a decisão, que no entender da recorrente, deve ser proferida sobre aquele concreto ponto de facto?


Prima facie seríamos levados a dizer que não, mas lendo com atenção as alegações/conclusões, consegue perceber-se que a recorrente considera não poder dar-se como provado «que os trabalhos correspondentes à segunda fase da obra tivessem sido executados em toda a sua extensão» [conclusão b)], e, mais incisivamente, que «[a] fatura em causa não corresponde a quaisquer dos trabalhos efetuados pela Recorrida, porquanto, como resulta demonstrado nos autos, a segunda fase da obra nunca foi iniciada» [conclusão g)].


Ora, sabendo-se que a referida fatura foi emitida para pagamento de trabalhos referentes ao assentamento das vigas para os 280 m2 de telhado, trabalhos que a recorrente afirma não terem sido realizados, pode concluir-se com segurança que a decisão sobre o ponto 15 dos factos provados, segundo a recorrente, deve ser a de considerar tal facto como não provado.


Assim, ainda que com as deficiências referidas na concretização dos respetivos ónus, considerando que a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640º do CPC «deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco”, entendemos que não deve haver lugar à rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, passando de imediato a conhecer-se da mesma.


Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.


Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, depoimento e declarações de parte do legal representante da autora, declarações de parte do legal representante da ré e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.


No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.


Como resulta do exposto supra, está em causa apenas o ponto 15 dos factos provados, cuja matéria a recorrente entende que devia ser considerada não provada.


Está dado como assente, no referido ponto 15, que «[o]s trabalhos referentes à fatura mencionada em 9. encontram-se executados, em toda a extensão do telhado», e no ponto 9 está dado como provado que «[a] autora realizou os trabalhos referentes ao assentamento das vigas para os 280 m2 de telhado e em 8.10.2021 emitiu a fatura n.º FAC BS/152 referente à finalização do assentamento das vigas».


Nas suas alegações/conclusões, a recorrente parece confundir fases da obra, com as tranches de pagamento acordadas no contrato de empreitada, já que divide a obra em duas fases, sendo a primeira a que vai desde o início dos trabalhos e termina no assentamento das vigas, e a segunda que vai desde o assentamento das vigas até à conclusão dos trabalhos, pelo que só teria que pagar em duas fases, com a adjudicação e no fim da empreitada4.


Contudo, o que a recorrente e a recorrida acordaram para a construção do telhado e respetivo pagamento, foi, com a adjudicação, o pagamento de € 12.500, 00 mais IVA, com o assentamento das vigas € 6.250,00 mais IVA, e com a conclusão dos trabalhos € 6.250, 00 mais IVA, o que está dado como assente nos pontos 5 a 9 dos factos provados.


Ademais, a recorrente não põe em causa que a recorrida tenha concluído o assentamento das vigas em toda a extensão do telhado, ou seja, não apenas nos 155 m2 orçamentados, mas sim nos 280 m2 que é a área real do telhado. E tão pouco coloca em causa o acordado no orçamento que com a conclusão do assentamento das vigas daria lugar ao segundo pagamento.


Para dar como provada a factualidade constante do ponto 15, ou seja, que o assentamento das vigas se encontrava concluído em toda a extensão do telhado, a sentença recorrida teve em consideração as declarações das partes e os depoimentos das testemunhas CC e DD, que confrontadas com as fotografias juntas aos autos que constituem os docs. 5 e 8 do requerimento probatório de 13. 09.2024 (ref.ª 12838006), confirmaram que a obra se encontrava naquele estado aquando da sua paragem e emissão da fatura referente ao assentamento das vigas.


Afigura-se inteiramente correta a apreciação da prova feita na sentença recorrida, pois é o que resulta das declarações de parte do legal representante da autora, AA, e dos depoimentos das testemunhas CC, pedreiro, irmão do referido legal representante da autora, o qual depôs com conhecimento direto dos factos por ter estado a trabalhar na obra, e DD, trabalhador da construção civil, designadamente na construção de telhados, que trabalha para a autora desde 2001, advindo o seu conhecimento do facto de ter trabalhado na obra dos autos.


Por último dir-se-á que não basta à recorrentes transcrever pequenos excertos – descontextualizados – das declarações de parte do legal representante da autora, e com isso, sem mais, pretender uma alteração da decisão sobre a matéria de facto, pois as declarações de parte e os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.


Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.


Do incumprimento do contrato de empreitada pela ré/recorrente


Não oferece dúvida que as partes celebraram um contrato de empreitada, tipificado no artigo 1207° do Código Civil, obrigando-se a autora a realizar determinada obra, designadamente, a montagem de um telhado sobre a estrutura da vivenda da recorrente, encimada por uma placa de betão, mediante o pagamento de um preço, que foi fixado em € 25.000$00 mais IVA, a pagar pela ré, metade com a adjudicação, mais 25% com a conclusão do assentamento das vigas e os restantes 25% com a conclusão dos trabalhos.


O contrato de empreitada, enquanto modalidade autónoma de prestação de serviço, pressupõe a vinculação do empreiteiro a realizar certa obra, a obter um resultado, mediante o pagamento de um preço.


Defende a recorrente que foi a autora que entrou em incumprimento, tentando “introduzir unilateralmente alterações ao contrato de empreitada, fazendo depender a prossecução da sua prestação da aceitação pela Recorrente dessas alterações”, tendo posto ao contrato sem qualquer fundamento, traduzindo o seu comportamento “uma mera mudança de vontade do credor”, que a recorrente recusou, inexistindo desse modo fundamento para a perda de interesse na prestação pela autora e, consequentemente, para a resolução do contrato.


Está provado que durante a execução dos trabalhos se constatou que o telhado que a autora se obrigou a montar na vivenda da ré, era maior do que aquele constante do orçamento5, pois em vez de 155 m2 tinha uma área de 280 m2, o que foi confirmado pelos gerentes das partes, tendo o gerente da autora dito que para continuar os trabalhos era necessário rever o preço em função da maior dimensão do telhado.


Nessa sequência, a autora realizou trabalhos referentes ao assentamento das vigas tendo em conta a área de 280 m2 de telhado e, em 08.10.2021, emitiu uma fatura referente à finalização do assentamento das vigas, sendo que as partes acordaram que as faturas deviam ser pagas na data da sua apresentação, não tendo, porém, a ré pago o valor constante da sobredita fatura, no valor de € 7.687,506, e também não quis pagar o excedente para a continuação dos trabalhos, sendo que os trabalhos referentes àquela fatura se encontram executados, em toda a extensão do telhado.


Mais se apurou que o mandatário da autora enviou uma carta7 à ré a solicitar o pagamento da fatura, bem como a alertar que a mesma teria de pagar a empreitada em função da área correta, e que a autora, perante a falta de pagamento da fatura e da resposta para continuar os trabalhos, retirou os seus trabalhadores e equipamento da obra.


Sendo este o filme da execução do contrato de empreitada que as partes alegaram e que se provou, a questão que se coloca é a de saber quem incumpriu o contrato.


Vimos já, a propósito da impugnação da matéria de facto, não assistir razão à recorrente quanto à não execução dos trabalhos mencionados na fatura em causa, pois tais trabalhos foram executados em toda a extensão do telhado.


Dispõe o nº 2 do artigo 804º do Código Civil8, que «[o] devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido».


E, por sua vez, reza o nº 1 do artigo 805ºdo CC que «[o] devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir».


São assim pressupostos da mora, a culpa do devedor e a ilicitude do retardamento da prestação, sendo ainda necessário que esta seja ou se tenha tornado certa, líquida e exigível (nº 3 do artigo 805º do CC).


No contrato de empreitada, não existindo cláusula em contrário, o preço deve ser pago no ato da aceitação da obra (art. 1211º, nº 2, do CC). Não se demonstrando estar a obra concluída e aceite aquando da suspensão e retirada da obra pela autora (empreiteira), não seria exigível, na altura, o pagamento da fatura em causa.


Sucede, porém, que por foça do acordado pelas partes, as faturas deviam ser pagas na data da sua apresentação [ponto 12 dos factos provados], pelo que não sofre dúvida que a ré se constituiu em mora quando lhe foi apresentada a fatura em discussão, estando ademais demonstrado que os trabalhos respeitantes a tal fatura foram executados pela autora.


Para além das situações de não observância de prazo fixo absoluto, contratualmente estipulado, o carácter definitivo do incumprimento do contrato consuma-se se, em consequência de mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação. É a lição do nº 1, primeira parte, do artigo 808º do CC, segundo o qual, «[s]e o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação (...), considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação».


Nesse caso, a perda do interesse não pode resultar de um simples capricho do credor.


Lê-se no acórdão do STJ de 16.03.19999: «a superveniente falta de utilidade da prestação, ou até eventual prejuízo, para o accipiens terá que resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio - (artigo 808º, nº 2), bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, inscrevendo-se no contexto daquilo que Calvão da Silva chama o respectivo “programa obrigacional”. (…).


Assim, «em termos gerais, deverá, em princípio, ser considerada grave e, como tal, susceptível de fundamentar o direito de resolução toda aquela inexecução.... que impossibilite o credor de o aplicar ao uso especial que ele tinha em mira»10.


Mas, «além disso, a perda do interesse que o credor tinha na prestação, que há-de resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância, tem que ser efectiva, não relevando uma simples diminuição de tal interesse»11.


Por sua vez, no dizer de Antunes Varela, «é uma perda absoluta, completa, de interesse na prestação (kein Interesse), traduzida por via de regra no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer»12.


Com efeito, «quando o legislador se refere a uma perda objectiva do interesse na prestação em mora, tem em vista aqueles casos em que, pela natureza da própria obrigação, o retardamento no cumprimento destrói o objectivo do negócio»13.


Acrescentar-se-á, por último, que, em qualquer caso, é àquele que se prevalece da faculdade de resolver o contrato que incumbe provar a perda do interesse suscetível de caracterizar o comportamento do inadimplente como equiparável à impossibilidade de cumprir por já lhe não interessar o cumprimento.


Na verdade, não obstante a referência do nº 2 do artigo 808º do CC à apreciação objetiva da perda do interesse do credor na prestação, é indubitável que tal apreciação terá que ser feita em face dos factos alegados e provados por aquele que pretende prevalecer-se do mencionado desinteresse.


Ora, além de não ter pago o montante da fatura, a ré não respondeu ao email de 12.11.2021, enviado pelo mandatário da autora, no qual propunha solucionar o problema resultante da divergência das áreas do telhado - a inicialmente considerada no orçamento e a efetivamente existente - mediante uma de duas hipóteses deixadas à escolha da ré:


«1.ª O pagamento da factura 152, factura esta que se encontra em dívida porque os trabalhos que a mesma comtempla já estão realizados, pagamento de mais € 7 000,00 e a m/cliente compra as telhas, chapas e vai para a obra acabá-la, ocorrendo no fim dos trabalhos o pagamento dos restantes € 6 250, 00 mais IVA, os quais contemplam o orçamento dado para os 155 m2.


2.ª V. Ex.as pagam a factura 152, compram as chapas e as telhas referentes à área que ultrapassa os 155 m2 orçamentados, a minha cliente custeia a mão de obra dessa área e no fim dos trabalhos serão pagos os restantes € 6 250, 00 mais IV A referentes ao orçamento dado.»


A ré nada pagou e também não respondeu à proposta da continuação dos trabalhos, o que não pode deixar de ser entendido como desinteresse pela sua realização, pelo que a retirada de equipamento e trabalhadores da obra se considera justificada.


Na verdade, a superveniente falta de utilidade da prestação para a autora resulta objetivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio (artigo 808º, nº 2, do CC), bem como das que, posteriormente, vieram condicionar a sua execução - a referida alteração da área do telhado a colocar - inscrevendo-se no contexto do referido «programa obrigacional».


Com efeito, não é razoável exigir à autora que permaneça indefinidamente à espera que a ré pague uma fatura que assumidamente não quer pagar, e que, ainda assim, prossiga com a conclusão da obra nos termos propostos e que encontram a sua justificação no facto de a área do telhado ser de 280 m2 e não 155 m2, o que não é questionado pela recorrente.


Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas pela recorrente ou quaisquer outras.


Vencida no recurso, suportará s ré/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.





IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Custas pela recorrente.


*


Évora, 27 de fevereiro de 2025


Manuel Bargado (Relator)


Filipe Aveiro Marques


Elisabete Valente


(documento com assinaturas eletrónicas)

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1. Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 28.04.2016, proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1, de 21.03.2019, proc. 3683/16.6T8CBR.C1.S2 e de 14.09.2023, proc. 11175/20.2T8SNT.L1.S1, disponíveis, como os demais adiante citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.↩︎

2. Acórdão do STJ de 09.12.2021, proc. 9296/18.0T8SNT.L1.S1.↩︎

3. Ainda que nas conclusões não se refira expressamente o ponto 15, retira-se perfeitamente da conclusão b) que assim é: «b) Não podendo, face à prova produzida nos autos ter dado como provado que os trabalhos correspondentes à segunda fase da obra tivessem sido executados em toda a sua extensão↩︎

4. É o que parece decorrer dos nºs 60 a 83 do corpo alegatório.↩︎

5. Embora não conste do ponto 5 dos factos provados que a autora apresentou orçamento para a construção de um telhado com 155 m2, pois aí apenas é referido que a autora apresentou um orçamento, no valor de € 25 000,00 mais IVA e as condições de pagamento, tal facto decorre do “Doc. 1” junto com o articulado de oposição apresentado pela autora (ref.ª 10758982).↩︎

6. Cfr. “Doc. 2” junto com o mesmo articulado.↩︎

7. Trata-se da carta datada de 22.10.2021, junta como “Doc. 9” com o já referido articulado de resposta à oposição.↩︎

8. Doravante abreviadamente designado CC.↩︎

9. Proferido no proc. 99A142, in www.dgsi.pt.↩︎

10. Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in Obras Dispersas, vol. I, Braga, 1991, p. 146, citado no acórdão do STJ de 18.12.2003, proc. 03B3697, in www.dgsi.pt.↩︎

11. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, 1991, p. 898.↩︎

12. Em anotação ao acórdão do STJ de 03.12.81, in RLJ, Ano 118º, p. 55.↩︎

13. Acórdão do STJ de 12.05.83, in BMJ nº 327, p. 642.↩︎