Sumário:
1. A prescrição do direito de indemnização por responsabilidade civil não acarreta, por si só, a prescrição do direito à restituição com base no enriquecimento sem causa.
2. O prazo de prescrição de três anos que se conta a partir do momento em que o empobrecido sabe que ocorreu um enriquecimento à sua custa e da pessoa do responsável, não tem início durante o período em que, com boa fé, o empobrecido utilize sem êxito outro meio de ser indemnizado ou restituído.
3. No entanto, a prescrição do direito indemnizatório tem imediatos reflexos na possibilidade de se terem por preenchidos todos os requisitos necessários para se operar o instituto do enriquecimento sem causa
4. Um enriquecimento que seja derivado de uma prescrição tem uma causa justificativa e legal.
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.ª Adjunta: Sónia Moura
2.º Adjunto: Fernando Marques da Silva
***
*
I. RELATÓRIO:
I.A.
American International Group UK Limited, autora na acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum que intentou contra Portway, Handling de Portugal, S.A. e XL Insurance Company, SE (Sucursal Francesa), interpôs recurso do saneador/sentença proferido pelo Juízo Central Cível de Faro - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que terminou com o seguinte dispositivo:
“decido julgar verificada a exceção de prescrição e, consequentemente, absolvo as rés do pedido”.
Na sua petição inicial a autora/apelante peticionou que as rés sejam condenadas a pagar-lhe o montante de 2.461.810,88 USD, à taxa de câmbio do dia, totalizando 2.121.530,00€, acrescido de juros de mora à taxa legal, contabilizados desde 20/10/2014, vencidos até à data da entrada da acção em juízo (28/10/2021) que computa na quantia de 596.353,36€ e os vincendos até integral pagamento.
Para tanto, a autora/apelante invoca ter celebrado, na sua qualidade de seguradora, com a “International Jet Club Limited” (IJC/segurada), um contrato de seguro titulado pela apólice n.º AVNRW110004, consigo como líder e com outras seguradoras.
O referido contrato garantia, além do mais, a totalidade dos danos ocorridos com a aeronave Gulfstream, modelo Jet G450 com o número de série 4137 e Matrícula M‑YGLK, nomeadamente o casco, incluindo perda total deste e perdas directas e indirectas decorrentes de acidentes ocorridos com a aeronave.
A aeronave sofreu danos que foram integralmente pagos pela IJC/segurada e que foram integralmente reembolsados pela autora/apelante, referentes ao sinistro (deslocação do tapete de carga) ocorrido em 24/10/2011, no aeroporto de Faro, cuja responsabilidade ficou a dever-se, não apenas à acção do vento forte que se fez sentir no local mas, principalmente, ao facto deste equipamento não se encontrar imobilizado de forma segura, devidamente travado e calçado e com o tapete rolante propriamente dito, devidamente descido, actuação que é diretamente imputável à Ré Portway, na qualidade de proprietária do referido tapete.
A Autora/apelante e JIC/segurada propuseram a ação judicial que correu termos pelo Juízo Central de Faro com o n.º 3061/17.0T8FAR, com vista ao exercício do seu direito a ser indemnizadas por danos causados pela Ré Portway. Nessa acção, quanto à seguradora, a autora/apelada com outra designação, foi procedente a excepção da prescrição (decisão confirmada por Acórdão da Relação de Évora de 2/05/2019). Quanto à segurada a acção culminou na absolvição dos pedidos com fundamento na confissão feita pelo legal representante da International Jet Club Limited de que não tinha qualquer prejuízo que não tivesse sido pago pela seguradora “AIG Europe Limited”, que segurava os riscos da aeronave.
Na presente acção a autora/apelante pretende fazer operar o instituto do enriquecimento sem causa com vista a obter os montantes por si reembolsados à sua segurada/JIC, pelos quais a Ré Portway é responsável (devido à omissão culposa dos deveres de vigilância e manutenção do equipamento que se encontrava no local). Entende que as rés, ao se eximirem ao pagamento da indemnização pelos danos que causaram à segurada da autora/apelante e pelas quais eram responsáveis tiveram um enriquecimento ilegítimo à sua custa.
Contestaram as rés.
A Ré XL Insurance Company invocou a ilegitimidade da autora para acção e mais invocou que, por força do decidido no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 3061, a obrigação foi declarada prescrita.
A Ré Portway, por sua vez, sustentou, para além da prescrição da obrigação, verificar-se a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da Autora para a acção, que não é a seguradora na apólice em causa, nem esclareceu, por qualquer meio ou forma, a existência de qualquer relação com a seguradora líder aí identificada.
Foi proferida decisão de absolvição das Rés do pedido com fundamento na ilegitimidade material activa, que foi revogada por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9/05/2024.
Designada data para realização de audiência prévia, auscultaram-se as partes sobre a possibilidade de se proferir decisão julgando procedente a excepção de prescrição, ao que as partes logo se pronunciaram, mantendo as posições anteriormente assumidas nos articulados.
Foi, então, proferida a decisão recorrida
I.B.
A autora/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“i) A sentença recorrida enferma de vício violação de Lei ao pronunciar-se sobre a excepção de prescrição do direito da autora considerando prescrito o mesmo,
ii) Não se aceita a posição do tribunal relativamente à excepção de prescrição devendo considerar-se que o direito da autora não se encontra prescrito.
Da violação de Lei:
Proferindo sentença contendo a decisão de que ora se apela e que determinou a absolvição das Rés do pedido, violou o tribunal A Quo o disposto nos artigos 473.º e 482.º Ambos do código Civil.
Nestes termos: Deverá a sentença, objecto do presente recurso, ser revogada e substituída por outra que determine a improcedência da invocada excepção de prescrição do direito ordenando o prosseguimento dos Autos para julgamento, fazendo-se assim JUSTIÇA.”
I.C.
As Rés/apeladas apresentaram resposta e defenderam a manutenção do decidido.
I.D.
O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.
Já neste Tribunal da Relação foi proferido despacho a convidar as partes a pronunciar-se sobre a questão do reflexo da prescrição do direito indemnizatório (previamente declarada em anterior acção) no direito invocado pela autora nesta acção, prevenindo a hipótese de se considerar o uso do mecanismo previsto no artigo 665.º, n.º 2, do Código de Processo Civil para se conhecer dessa questão, tudo ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, do mesmo diploma.
Apenas a autora se veio pronunciar (requerimento de 20/01/2025, referência Citius 51069704) e concluiu que “não ocorre a prescrição e tal não se pode reflectir qualquer efeito do direito da Recorrente, que a bem dizer ainda nem sequer chegou a ser provado ou estabelecido nos autos”.
Após os vistos, cumpre decidir.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso, impõe-se apreciar:
- o eventual erro de julgamento, apreciando-se a prescrição do invocado direito de restituição com base no enriquecimento sem causa;
- caso não se possa afirmar pela prescrição do direito, será de verificar se, com os factos alegados, poderia proceder a pretensão da autora em face da prescrição do direito indemnizatório já declarada por sentença transitada.
III.A. Fundamentação de facto:
Apesar do alertado no Acórdão deste Tribunal da Relação proferido a 9/05/2024 nestes autos, a nova decisão recorrida proferida em 1.ª Instância volta a não contemplar a enunciação de factos provados para fundamentar o conhecimento da excepção.
No entanto, tal questão não foi invocada no recurso e, de resto, não inviabilizaria o conhecimento da apelação (atento o disposto no artigo 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Pode, assim, retirar-se dos autos a seguinte factualidade de natureza processual (ou seja, que não pressupõe uma livre apreciação que, a ocorrer, teria de ser feita pelo Tribunal de 1.ª Instância):
1. No processo judicial n.º 3061/17.0T8FAR instaurado a 16/10/2017, que correu termos no Juízo Central Cível de Faro – Juiz 4 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, a International Jet Club Limited e a AIG Europe Limited vieram peticionar a condenação das rés Portway e Axa Corporate Solutions, no pagamento de danos incorridos pela AIG Europe Limited referentes ao reembolso da IJC de custos de reparação da aeronave Gulfstream, modelo Jet G450, por força de um contrato de seguro correspondente à apólice n.º AVNRW1100042 e no reembolso de danos incorridos pela IJC referentes a despesas de fretamento adicionais incorridas, tudo no valor global de € 2.108.564,85, acrescido de juros de mora contabilizados desde 20/10/2014.
2. As ali autoras alegaram que os danos na Aeronave decorreram de uma colisão, ocorrida em 24/10/2011 entre um tapete de carga de propriedade da Portway e a Aeronave que se encontrava sob a gerência da IJC, e as despesas adicionais de fretamento decorreram da impossibilidade de uso da referida Aeronave para cumprir contratos existentes durante o período em que a mesma esteve paralisada para ser reparada.
3. Nessa acção a IJC e AIG Europe Limited invocaram a existência de responsabilidade civil da Portway por facto ilícito e a transferência da referida responsabilidade para a agora ré XL Insurance por via de contrato de seguro.
4. Alegaram, também, que por acordo de 19/07/2012 a IJC recebeu da seguradora autora AIG uma determinada quantia, dando-lhe quitação e sub‑rogando-a nos seus direitos.
5. O direito invocado pela AIG Europe Limited nessa acção contra as duas rés foi julgado prescrito, por decisão transitada em 12/06/2020.
6. A pretensão da IJC nessa acção contra as duas rés foi julgada improcedente, por decisão transitada em 19/04/2021.
7. A presente acção foi instaurada em 28/10/2021 e, nela, a autora alega ser a mesma seguradora que celebrou com a IJC o contrato de seguro titulado pela apólice n.º AVNRW110004.
8. E, com fundamento na verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa, veio pedir que as rés PORTWAY e XL sejam condenadas nos montantes por si reembolsados à sua segurada/JIC, pelos quais a ré PORTWAY é responsável (devido à omissão culposa dos deveres de vigilância e manutenção do equipamento que se encontrava no local), sob pena de se verificar um enriquecimento ilegítimo daquelas, à sua custa
A. A autora baseia a sua pretensão num alegado enriquecimento sem causa por parte das rés que, por sua vez, invocaram a prescrição desse direito da autora.
Ao contrário do instituto da responsabilidade civil, onde o que está em causa é a perda ou a diminuição verificada no património do lesado (o foco, nesse caso, estará no dano), no enriquecimento sem causa visa remover-se o enriquecimento injustificado do interventor (e não compensar danos sofridos) – neste sentido ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/06/2002, processo n.º 02A1305[1] e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2010, processo n.º 5124/06.8TVLSB.L1.S1[2].
Existem, por isso, diferenças entre os dois institutos, sendo uma delas a ligeira diferença no que toca ao regime de prescrição.
Nos termos do artigo 482.º do Código Processo Civil “o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento”.
O prazo de três anos conta-se do momento em que o empobrecido (ou invocado empobrecido) tem conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, ou seja, conta-se o prazo desde o momento em que o autor sabe que ocorreu um enriquecimento à sua custa e quem se encontra enriquecido.
Estabeleceu o legislador para o direito à restituição por enriquecimento sem causa um regime de prescrição distinto do regime aplicável quando está em causa uma obrigação de indemnização.
Na verdade, como se retira do artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, o prazo de 3 anos que ali se prevê para a prescrição da obrigação de indemnização inicia-se mesmo que o lesado desconheça a pessoa do responsável. Nesse caso, o prazo começa a correr a contar da data em que o lesado tem conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos.
Assim, pode bem acontecer que esteja prescrito o direito com base na responsabilidade civil mas ainda tal prescrição não se tenha completado com base no enriquecimento sem causa.
De resto, resulta claramente do artigo 498.º, n.º 4, do Código Civil (ao estabelecer: “A prescrição do direito de indemnização não importa prescrição da acção de reivindicação nem da acção de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra”) que a prescrição do direito com base na responsabilidade civil não prejudica o recurso à acção de enriquecimento.
Como ensina Vaz Serra[3], “o empobrecido pode ter conhecimento dos elementos constitutivos do seu direito e não ter, todavia, conhecimento do direito à restituição; ora, é a este e não aqueles que a lei se refere”.
Também Antunes Varela[4], ensina que “como o direito à indemnização prescreve, contando‑se o prazo de prescrição a partir do conhecimento do direito que cabe ao lesado, independentemente do conhecimento da pessoa do responsável (art. 498.º, 1), enquanto a prescrição do direito à restituição (fundamentada no enriquecimento sem causa) só corre a partir do conhecimento da pessoa do responsável (art. 482.º), pode acontecer que o direito à indemnização tenha prescrito e que o único meio de se ressarcir, facultado ao lesado, seja precisamente a acção de restituição”.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/10/1983[5] já se havia decidido nestes termos: “fixou-se o prazo de três anos, a contar do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, ou seja, a partir da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização”.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/2004 (processo n.º 03B3798[6]), decidiu-se que: “O prazo de três anos (que é o que aqui se discute) conta‑se do momento em que o empobrecido tem conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, ou seja, conta-se o prazo desde que aquele sabe que ocorreu um enriquecimento à sua custa e quem se encontra enriquecido. Este regime representa um prazo de prescrição mais dilatado da restituição por enriquecimento sem causa em relação à obrigação de indemnização, já que na responsabilidade civil o prazo de três anos inicia‑se sem que o lesado conheça a pessoa do responsável (art. 498º nº 1 do CC) enquanto na restituição por enriquecimento exige-se esse conhecimento para início do prazo.”
E seguindo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2012 (processo n.º 200/08.5TCGMR.S1[7]), pode dizer-se que: “Como critério para a prescrição do direito à restituição por enriquecimento o legislador adotou o do conhecimento do direito”; “o que se trata aqui é, pois, do conhecimento do direito e não propriamente do dano”; “aquele conhecimento do direito equivale à consciência da possibilidade legal de ressarcimento dos danos”; “para que ocorra esse conhecimento para o efeito daquela prescrição necessário é que o empobrecido tenha consciência da existência cumulativa dos três requisitos para aquela restituição: um enriquecimento, a carência da causa justificativa do mesmo e que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição”; “o conhecimento do direito a que alude o artigo 482.º do Código Civil tem que ser pessoal por parte dos empobrecidos e não apenas dos seus mandatários”.
No caso, não só existe grande divergência de posição entre as partes relativamente ao momento a partir do qual se começa a contar o prazo de prescrição do direito invocado nesta acção (para a ré “XL Insurance” o prazo conta-se a partir de 24/11/2014, ou seja do momento em que o direito indemnizatório prescreveu, conforme artigo 38.º da sua contestação; para a ré “Portway” o prazo iniciou-se em 24/10/2011 data do alegado incidente e com o conhecimento do direito à restituição nessa data, conforme artigo 32.º da sua contestação; a autora invoca que o prazo de prescrição para caso do enriquecimento sem causa deve ser contado da data do trânsito em julgado que declara a prescrição da anterior acção que intentou, conforme artigo 14.º da sua resposta) como, na verdade, não se sabe (porque não existe consenso das partes nem existiu instrução da causa com fixação de factos provados) qual o momento exacto em que se pode começar a contar (e em relação a cada uma das rés) o prazo de prescrição neste caso: ou seja, não se sabe qual o momento em que a ora autora teve conhecimento do direito que invocou e da pessoa do responsável (ou das pessoas responsáveis).
Não estando assentes nesta fase processual os factos de onde se retire a data em que a autora soube ter direito à restituição (e de quem), estava vedada a possibilidade de se conhecer em despacho saneador da excepção de prescrição do direito que foi invocado nesta acção.
B. Por outro lado, ainda que se pudesse retirar essa data dos articulados (o que, reafirma-se, não ocorre no caso dos autos – nem mesmo se pode retirar do alegado no artigo 40.º da PI[8]), sempre haveria que contar com a posição largamente maioritária da jurisprudência que entende que o prazo de três anos previsto no artigo 482.º do Código Civil se reporta ao conhecimento do próprio direito e não apenas dos seus elementos constitutivos.
Seguindo o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/2023 (processo n.º 4415/19.2T8MAI.P1-A.S1[9]), pode dizer-se que “se o empobrecido elegeu outra via, ainda que sem sucesso, não pode recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa enquanto essa via não estiver esgotada, sob pena de lhe ser oposto o princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa (que, como exceção perentória de direito material, neutralizaria o exercício do direito que, por essa via, se pretendia fazer valer). Não faria, pois, sentido que, nestas situações, o prazo, aliás curto, da prescrição começasse a correr”.
E, ainda: “Isso mesmo resulta do disposto no artigo 306º, nº 1, do Cód. Civil, de acordo com o qual o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, razão pela qual o prazo de prescrição não se inicia enquanto o empobrecido utilizou, de boa fé, outro meio para ser restituído ou indemnizado. Nessa conformidade, somente após o trânsito em julgado da decisão proferida em processo a que o empobrecido recorreu em primeira linha é que se inicia o prazo prescricional relativamente ao direito de restituição baseado no enriquecimento indevido. Em suma: a prescrição estabelecida no artigo 482º do Código Civil (prescrição do direito à restituição fundada em enriquecimento sem causa) só é atendível a partir do momento em que o empobrecido viu judicialmente frustradas as suas tentativas de ser patrimonialmente reintegrado ao abrigo de outro meio legal”.
Neste mesmo sentido, entre outros, podem consultar-se os seguintes Acórdãos: do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/1999 (processo n.º 98B1201[10]); do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/2003 (processo n.º 03B3091[11]); do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/2004, (processo n.º 03B3798[12]); do Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/2004 (processo n.º 04B3828[13]); do Tribunal da Relação de Évora de 30/11/2006 (processo n.º 2404/06‑3[14]); do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/12/2009 (processo n.º 3189/08.7TVLSB-A.L1-6[15]); do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011 (processo n.º 754/10.6TBMTA.L1.S1[16]); do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/05/2014 (processo n.º 169/13.4TCGMR-A.G1[17]); do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/04/2017 (processo n.º 1/15.4T8ALQ.L1-2[18]); do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2019 (processo n.º 1448/15.1T8STB.E1.S1[19]); do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/05/2021 (processo n.º 6269/20.7T8PRT-A.G1[20]); do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/2023 (processo n.º 4415/19.2T8MAI.P1-A.S1[21]); do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/09/2023 (processo n.º 30/21.9T8LRA-A.C1[22]); do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2024 (processo n.º 17289/18.1T8PRT.P2.S1[23]); e do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 3119/23.6T8STR-A.E1[24]).
Assim, sem prejuízo do prazo da prescrição ordinária de 20 anos contado desde a data do enriquecimento, a contagem do prazo de 3 anos previsto no artigo 482.º do Código Civil, não tem início durante o período em que, com boa fé, o empobrecido utilize sem êxito outro meio de ser indemnizado ou restituído.
Não existindo factos que pudessem apontar para que o uso da anterior acção tivesse sido feita de má fé, também não se pode afirmar, nesta fase do processo, que o direito invocado pela autora já esteja prescrito.
C. Questão diferente é a relevância da prescrição anteriormente decretada não para a prescrição do direito de restituição, mas para o conteúdo desse direito agora invocado pela autora.
É verdade que essa questão, apesar de referida na decisão recorrida e amplamente referida nas contra-alegações, não faz parte do objecto do recurso, pois não foi usado o mecanismo do artigo 636.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
No entanto, deve ser conhecida por força do que se dispõe no artigo 665.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (tendo sido cumprido o contraditório), já que estão disponíveis todos os elementos necessários: ainda que o processo prosseguisse para se apurar se a aqui autora é a mesma seguradora que foi autora no processo anterior (esse facto continua controvertido) e mesmo que se provassem todos os factos alegados na PI sempre se estaria perante dados objectivos que negam, em todas as soluções plausíveis, o direito invocado.
A opção de se prosseguir o processo para se apurar se a seguradora coincide (já que, se não coincidir também não assiste à ora autora o direito que se arroga) e se estão verificados os fundamentos da responsabilidade civil das rés seria absolutamente inútil.
Na verdade, a prescrição do direito tem imediatos reflexos na possibilidade de se terem por preenchidos todos os requisitos necessários para se operar o instituto do enriquecimento sem causa.
Dispõe o artigo 474.º do Código Civil que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Como ensina Antunes Varela[25], “a lei nega, de facto, o direito à restituição nos casos de prescrição”.
E, como ensina Mário Júlio de Almeida Costa[26], “determina-se que não haverá lugar à restituição por enriquecimento quando a lei recuse esse direito. Tal dispositivo inclui situações em que não se verifica a falta de pressuposto da causa do enriquecimento, ou seja, não existe contrariedade ou fraude ao modo como a lei ordena as atribuições patrimoniais. Pensemos, por exemplo, nas hipóteses de prescrição (arts. 300.º e sgs)”.
Nas palavras de José Carlos Brandão Proença[27] “o decurso do prazo de caducidade, de prescrição ou, mesmo, a invocação do caso julgado já não tem a ver, em rigor, com essa primeira parte do art. 474.º, pela razão de, nesses casos, o enriquecimento parecer dotado de causa, sendo chamada, para primeiro plano, a parte final do preceito (“[…] negar o direito à restituição […]”)”. Defende, ainda, este autor que a norma do artigo 498.º, n.º 4, do Código Civil, pressupõe uma acção ilícita e culposa em património alheio, conducente: nuns casos à verificação simultânea de um enriquecimento ou lucro de intervenção e de um dano; noutros casos, a uma posse ou detenção ilegítimas de uma coisa, causadoras de um prejuízo para o titular do direito real[28]. Continua este autor a defender que o artigo 498.º, n.º 4, do Código Civil, abarca as situações em que, para lá do dano patrimonial, subsistem vantagens, quantitativas ou qualitativas, ligadas à actuação lesiva e que não tenham sido atingidas pelo efeito da prescrição indemnizatória, como sejam os bens apropriados, os frutos desses bens ou outras vantagens obtidas pelo interventor[29].
Seguindo o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/2015 (processo n.º 169/13.4TCGMR.G2.S1[30]), “sempre que outro meio judicial for suficiente para restabelecer o equilíbrio da situação não haverá lugar, por não verificada a subsidiariedade, à acção de enriquecimento sem causa, sob pena de ela ser admitida em praticamente todas as hipóteses de pedido condenatório, como verdadeira panaceia para decisões judiciais transitadas em julgado (e eventualmente, injustas ou apenas incompreendidas) ou até para eventuais negligências das partes na condução das respectivas posições jurídicas no processo”.
O sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/07/1992 (processo n.º 9210176[31]) é, também, esclarecedor: “segundo o artigo 473, do Código Civil, são requisitos do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém, o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre o primeiro e o segundo e a falta justificativa do enriquecimento; Se prescreve o direito à indemnização, verifica-se, de facto, empobrecimento de um e enriquecimento de outro, mas tal situação é sancionada pelo direito, como sucede na usucapião ou na prescrição, inexistindo, assim, um dos pressupostos do enriquecimento sem causa e que é a falta de causa justificativa”.
Mesmo que se provasse que o acidente foi provocado por uma das rés e que a autora é a mesma seguradora que pagou os danos provocados, o alegado enriquecimento das rés nunca poderia, no caso concreto, levar à procedência da acção intentada pela autora.
É que um enriquecimento que seja derivado de uma prescrição (o mesmo se dizendo do que seja derivado de uma usucapião ou decurso de um prazo de caducidade) tem uma causa justificativa e legal. E não se vislumbra qualquer actuação lesiva que não tenha sido atingida pelo efeito da prescrição indemnizatória.
Na verdade, a inércia da credora e a necessidade de segurança jurídica justificam que as ora rés se tenham de considerar libertas de qualquer obrigação.
A pretensão da autora terá, forçosamente, de se considerar improcedente, o que acarreta necessariamente a absolvição das rés do pedido formulado.
D. Não pode, por isso, afirmar-se estar prescrito o direito invocado pela autora na presente acção. No entanto, deverá manter-se, com fundamentação distinta, a decisão de absolvição das rés do pedido.
E. Custas:
Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida. E havendo uma parte vencida não se passa ao critério subsidiário que é o da condenação em custas de quem tira proveito do recurso.
Vencida na acção e no recurso é a ré.
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, mantém-se a decisão, por fundamentação diversa, de absolvição das rés do pedido formulado.
Condena-se a autora/apelada nas custas da acção e do recurso.
Notifique-se.
Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Filipe Aveiro Marques
Sónia Moura
Fernando Marques da Silva
______________________________________________
1. Acessível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/963806aff341e3a480256c30004fe7cc.↩︎
2. Acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/5124-2010-89689075 e https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/AFF63A3752050E79802577B40034F1BD.↩︎
3. Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107, pág. 299 e 300.↩︎
4. Das Obrigações em Geral, Vol.I, 10.ª Edição, Almedina, pág. 504 e 505.↩︎
5. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 330, pág. 496.↩︎
6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/47d8ae2f89cff23d80256e7e005cc03b.↩︎
7. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6a68ca7511cffa6e80257ad3004fffd1.↩︎
8. A alegação é do seguinte teor: “foi pelos mandatários da Segurada e da Autora remetida à ora primeira Ré uma carta, datada de 21.12.2012, na qual se procede à interpelação para pagamento dos danos”.↩︎
9. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/76dc4feb0ec218a08025898300556552.↩︎
10. Acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/98b1201-1999-85037175 e https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/02921CDFEE49F7E08025697400524E26.↩︎
11. Acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/03b3091-2003-88728875 e https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/680E0C563D224B4080256E12003D7C6F.↩︎
12. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/47d8ae2f89cff23d80256e7e005cc03b.↩︎
13. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/4F45E4749730642380256F85002D3E35.↩︎
14. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/A6AA7368160C876680257DE100574B30.↩︎
15. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e5dac95128b09727802576f1006124e4.↩︎
16. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a3242f1a25b287448025796500346816.↩︎
17. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/7C2BF732E1AE211480257D020051DD0A.↩︎
18. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/55d325170baa501980258123002b501d.↩︎
19. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c95ebf047700e8ee802584cd00550a3a.↩︎
20. Acessível em http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/21ebbc70bfedd18e802586f40051e558.↩︎
21. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/76dc4feb0ec218a08025898300556552.↩︎
22. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/74331c1729dc1bf980258a3c0046c349.↩︎
23. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0340b3173be61bc280258afc00462c09.↩︎
24. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8626fa9dbce266cb80258bbf0055b202.↩︎
25. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, pág. 500 e, também, com Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 460.↩︎
26. Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Almedina, pág. 403 e 404.↩︎
27. “À volta da natureza subsidiária da obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa”, Cadernos de Direito Privado, n.º 50 – Abril/Junho 2015, pág. 5.↩︎
28. Op. Cit., pág. 12.↩︎
29. Op. Cit., pág. 15 e 16.↩︎
30. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/A0EF3EDF827B2B5F80257E51003D1A02.↩︎
31. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/af8bd39f00f346cf8025686b00662c37.↩︎