1. - A posse, adequada a fazer operar o instituto da usucapião, tem de traduzir-se num corpus – prática de atos materiais, sobre a coisa, correspondentes ao exercício do direito – e num animus – intenção e convencimento do exercício de um poder, sobre a coisa, correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, devendo ser exercida por certo lapso temporal e revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade.
2. - O simples passar/circular por uma determinada faixa de terreno não é expressivo, sem mais, da prática de atos materiais de posse em termos de aquisição por usucapião do direito de compropriedade sobre esse espaço de passagem.
3. - Na ação para reconhecimento do direito de servidão de passagem adquirido por usucapião é factualidade essencial (nuclear/principal), que, por isso, tem de ser alegada (pelo demandante, no âmbito da sua causa de pedir), a tendente a demonstrar o animus.
4. - A não alegação dessa factualidade essencial (constitutiva do direito) para demonstração da usucapião não pode ser suprida pelo tribunal, por sujeita ao princípio do dispositivo, impedindo a procedência da ação/pedido, por não preenchimento de um dos elementos/requisitos da posse.
5. - Em tal caso, não alegado o facto, não pode suprir-se a falta através de uma presunção de direito substantivo, não podendo presumir-se o animus a partir da existência de atos materiais sobre a coisa (art.º 1252.º, n.º 1, do CCiv.), não se tratando de um caso de dúvida sobre a posse, mas da não alegação de factualidade essencial à demonstração dessa posse (facto constitutivo da causa de pedir do direito invocado).
(Sumário elaborado pelo Relator)
AA e mulher, BB, com os sinais dos autos,
instauraram a presente ação declarativa condenatória, com processo comum, contra
CC e marido, DD, também com os sinais dos autos,
pedindo:
a) Que sejam os RR. condenados «a reconhecer a existência de um caminho de “consortes” de terra batida, de forma continua e indivisível, com comprimento não inferior a 200 m e largura de 3,25 metros, cuja propriedade pertence a vários comproprietários, inclusivamente os aqui AA.»;
b) Bem como «a restabelecer o caminho de “consortes” nas condições existentes antes da sua destruição (caminho de terra batida, de forma continua e indivisível, com comprimento não inferior a 200 m e largura de 3,25 metros)»;
c) Que seja «arbitrada sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º A, n.º 1 do CC, no montante de € 50,00 euros, por cada dia de atraso na reposição do caminho de consortes»;
d) Que sejam os RR. condenados no «pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pelos AA. (aumento dos custos de transporte, destruição (desvalorização) de frutos e, resolução do contrato promessa), em consequência da destruição e não restabelecimento do caminho e, impossibilidade de aceder através do mesmo ao respectivo prédio»;
Subsidiariamente (“caso assim não se entenda”):
e) Que sejam os RR. condenados «a reconhecer que o seu prédio (misto sito/denominado Quinta ..., ou ... e ..., com parte urbana composta por Edifício destinado a armazém. Área coberta: 6.200,00 m2; Logradouro: 2.000,00 m2, parte rústica composta por Pinhal, vinha, cultura arvense de regadio, mato, oliveiras e árvores de pomar, com área de 268.605, 00 m2, respectivamente inscritos na matriz predial da Freguesias de ..., concelho ... sob o art.º ...14 e ...40, secção B, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71), se encontra onerado com uma servidão de passagem aparente, constituída por usucapião, a favor do terreno dos AA. (prédio rústico denominado “... e ...”, com a área de 415.929,00 m2, composto por mato, cultura arvense, vinha, cultura arvense de regadio, oliveiras e árvores de pomar, inscrito na matriz predial da Freguesia ..., concelho ..., sob o art.º ...62, secção B, e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...92), correspondente a um caminho de terra batida, de forma continua e indivisível, com comprimento não inferior a 200 m e largura de 3,25 metros»;
f) A «restabelecer as condições (caminho de terra batida, de forma continua e indivisível, com comprimento não inferior a 200 m e largura de 3,25 metros) da servidão de passagem, existentes antes da sua destruição»;
g) Sendo «arbitrada sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º A, n.º 1 do CC, no montante de € 50,00 euros, por cada dia de atraso na reposição da servidão»;
h) E sendo condenados «os RR. ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pelos AA. (aumento dos custos de transporte, destruição (desvalorização) de frutos e, resolução do contrato promessa), em consequência da destruição e não restabelecimento do caminho e, impossibilidade de aceder através do mesmo ao respectivo prédio».
Para tanto, alegaram, em síntese ([1]):
- serem donos do prédio identificado, sendo os RR. donos do outro imóvel aludido, sobre o qual, há pelo menos 50 anos, se realiza um dos acessos ao prédio dos AA. – um caminho de consortes com comprimento não inferior a 200 metros e 3,25 metros de largura –, que é utilizado por estes e por outros, incluindo os RR., e outrora pelos antigos proprietários do seu prédio, sem que fosse necessária qualquer autorização;
- mesmo que assim não se entendesse, os AA., por si e antecessores, há mais de 50 anos, ininterruptamente, sem limitações, de forma pública e pacífica, vêm passando no dito caminho, pelo que o prédio dos RR. se encontra onerado com uma servidão de passagem a favor do imóvel dos AA.;
- acresce que, no mês de janeiro de 2015, a anterior proprietária do prédio dos RR. procedeu ao saibramento do prédio que agora lhes pertence, cortando e desfazendo o caminho de consortes, impedindo os AA. de ao mesmo aceder, sendo esse o acesso mais favorável ao transporte das frutas produzidas, motivo pelo qual, desde que se encontram impedidos de o utilizar, tiveram custos acrescidos com o transporte da produção e colheitas e inerentes prejuízos, mais se tendo frustrado a concretização de negócio de compra e venda do seu prédio a terceiro em virtude da falta de reposição do caminho.
Os RR. contestaram, concluindo pela improcedência da ação, opondo-se, no essencial, para tanto, à versão alegada pelos AA.:
- afirmaram que o caminho em causa não é pertença de nenhum dos indicados consortes, somente ali havendo passagem de determinadas pessoas por tolerância (o Município) e por amizade (as pessoas que tratavam de parte do prédio dos AA.);
- referiram que os AA. têm outros acessos pelo interior do seu prédio, que poderão ser melhorados e utilizados, pelo que, a reposição do caminho aludido configuraria abuso de direito, por força dos prejuízos que acarretaria para os RR.;
- invocaram que quando foi celebrado o contrato de promessa de compra e venda já o caminho estava surribado e que inexiste o mencionado prejuízo para a produção, já que, além do mais, sempre a retirada da fruta teria que ser realizada com recurso a tratores.
Após convite aos AA. a articular os factos correspondentes aos danos já verificados alegadamente sofridos, a que aqueles acederam, com observância do contraditório, foi dispensada a realização da audiência prévia, sendo proferido despacho saneador e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova, sem reclamações.
Realizada a audiência final, foi proferida absolutória sentença ([2]), com o seguinte dispositivo: «Face ao exposto, decide-se julgar a ação improcedente e, em consequência, ABSOLVER os réus (…) dos pedidos formulados (…)».
De tal sentença vieram os AA., inconformados, interpor o presente recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes
Conclusões ([3]):
«i. A douta sentença, que julgou, a ação, improcedente, e em consequência absolveu os Réus, não pode manter-se, pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e dos princípios jurídicos competentes.
ii. Esperam, pois, os Recorrentes e assim, com o presente recurso, ver revogada a decisão proferida nos presentes autos, pois que, a manutenção da decisão recorrida configura uma decisão injusta.
iii. A Meritíssima Juiz decidiu por sentença: “Face ao exposto, decide-se julgar a ação improcedente e, em consequência, ABSOLVER os réus, CC e EE, dos pedidos formulados pelos autores, AA e BB.”
iv. No seu petitório inicial os Autores - Recorrentes - pediram o seguinte, em síntese o reconhecimento de um caminho de consortes e a sua reposição. A título subsidiário, o reconhecimento de uma servidão de passagem a favor do prédios dos AA.
v. O presente recurso tem assim por base, a reformulação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou a ação totalmente improcedente.
vi. Ora a causa petendi neste recurso é assim a reformulação da sentença recorrida, pretendendo-se assim que o pedido formulado na petição inicial seja julgado procedente.
vii. Para o efeito, o presente recurso visa a reapreciação da matéria de facto e de direito a aplicar.
viii. - Da Reapreciação da Matéria de Facto;
ix. Na douta sentença, foram assim determinados factos dados como provados, e outros, como não provados.
x. Volvendo ao objeto do nosso recurso.
xi. Uma vez que se impugna matéria de facto, deve assim ser dado provimento ao artigo 640.º do CPC.
xii. Assim e em cumprimento com o plasmado pelo artigo supra transcrito cumpre concretizar os concretos pontos que se consideram incorretamente julgados.
xiii. Desde logo, o facto a) dos dados como não provados.
xiv. Ora, tal facto tem suporte documental, mormente no documento 2, junto com a petição inicial. O referido artigo 220.º deixou de existir, porquanto parte dele foi autonomizado e passou para terceiros.
xv. Deve nesta medida o facto constante da alínea a) ser dado como provado.
xvi. O facto b) dos factos dado como não provados, também foi erroneamente julgado.
xvii. Veja-se a esta título as declarações de parte do Autor (gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 45 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 20 minutos, do dia 10/04/2024 - Minutos 07:34 a 08:04)
xviii. Deve, também, nesta medida, face às declarações do Autor transcritas, o facto constante da alínea b) ser dado como provado.
xix. A alínea c) dos factos dados como não provados, também merece censura, no âmbito do presente recurso.
xx. Ao longo de todo o julgamento foram várias os momentos em que ficou patente que os Autores, aqui Recorrentes, passavam no aludido caminho, como comproprietários, e assim, ao abrigo do direito real da propriedade.
xxi. Aliás, a testemunha, FF (gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 36 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 31 minutos, do dia 04/03/2024 - Minutos 09:55 a 10:37) veio corroborar, que os Autores, por intermédios dos seus arrendatário lá passavam “porque tinham esse direito.”.
xxii. Claro está que a testemunha não indicou que o direito de que se arroga é o direito da propriedade (compropriedade), mas essa é uma conclusão que deve inferida da prova produzida pelo julgador.
xxiii. Também releva para motivar que o facto dado como não provado, e ínsito na alínea c), como erroneamente valorado, as declarações de parte do Autor.
xxiv. Estas declarações do Autor encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 45 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 20 minutos, do dia 10/04/2024 - Minutos 19:33 a 20:00, e Minutos 20:29 a 22:13.
xxv. Articulada a prova testemunhal com as declarações do Autor manifesta-se claro e cristalino que o Autor e demais comproprietários passam, bem como utilizam o aludido caminho, na convicção de serem todos comproprietários, e assim, à luz de um direito real.
xxvi. Destarte, deve nesta sede, ser julgada a alínea c) dos factos não provados, como um facto provado.
xxvii. Quantos às alíneas p) a w), foram estes factos mal valorados e dados como não provados.
xxviii. Veja-se a esta título o depoimento da testemunha GG, (gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 12 horas e oito minutos e o seu termo pelas 12 horas e 32 minutos, do dia 04/03/2024- Minuto 02:13 a 06:12).
xxix. Tudo sopesado, a testemunha indicou com clareza que havia celebrado um contrato promessa com os Autores, e como estes haviam deixado de ter acesso ao referido caminho, perdeu interesse no negócio. Mais confirmou que recebeu uma compensação, pela falta de realização do contrato. O seu depoimento foi conciso e direto.
xxx. Ainda assim, a Mm.ª Juiz na sua atividade judicatória de valoração dos depoimentos, nem teve em conta que o referido pela testemunha vem corroborado por prova documental.
xxxi. Ora, a carta de resolução do contrato, encontra-se junta sob o documento cinco (5) da petição inicial (apesar de constar no documento 13 da plataforma citius) Por sua vez, o contrato promessa de compra e venda; o acordo almejado; bem como o comprovativo dos cheques foram juntos aos autos, em requerimento autónomo, datado de 08/06/2021 (sob ref. 4723764).
xxxii. Assim, andou (muito) mal o Tribunal Recorrido, aos considerar estes factos como não provados, quando a par de prova testemunhal, existe prova documental, que atesta a veracidade desta factualidade. Face ao exposto devem as alíneas supra identificadas ( p, q, r, s, t , u, v, w), serem, com o presente recurso, considerados factos dados como provados., pelo que, devem as alíneas supra identificadas ( p, q, r, s, t , u, v, w), serem, com o presente recurso, considerados factos dados como provados.
xxxiii. Da contradição entre os factos dados como provados e a decisão proferida
xxxiv. Afigura-se aos Recorrentes existir erro notório na apreciação e decisão da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sendo manifesta a desconformidade dos factos dados como provados - com os meios de prova disponibilizados nos autos - e a valoração jurídica das normas legais aplicáveis ao caso sub judice.
xxxv. Salvo o devido respeito cremos que a Mm.ª Juiz a quo não extrai uma conclusão formalmente válida face aos factos enunciados como provados.
xxxvi. Pelo que, o tribunal a quo decidiu incorretamente, face à prova produzida, factos essenciais à boa decisão do mérito da causa e, que impunham decisão diversa da recorrida.
xxxvii. A Mmª. juíza deu como provado, para o que nos interessa, os seguintes factos: pontos 10; 13; 15; 18; 19; 20; dos factos dados como provados.
xxxviii. Um dos primeiros pedidos dos Autores consistiu, em suma, ao reconhecimento pelos Réus que o caminho em litígio nos presentes autos, é da propriedade de vários comproprietários, entre os quais, os Autores, aqui Recorrentes.
xxxix. Resultou assim, cabalmente esclarecido, não só pelas testemunhas indicadas pelos Autores, como pela prova documental junta, tais como, quer nas cartas militares, quer no cadastro geográfico, a existência do referido caminho há mais de 50 anos, que era utilizado pelos Autores através dos seus arrendatários, que os Autores sempre lá passaram sem pedir autorização a quem quer que seja.
xl. Assim, os Recorrentes/Autores, conseguiram demonstrar – e repita-se tal até teve respaldo na sentença, pois é efetivamente reconhecido pela Mm.ª Juiz a quo – que através dos arrendatários do seu prédio, utilizavam o caminho em litígio, há mais de 50 anos, ininterruptamente, utilizando-o sem quaisquer limitações, à vista de toda a gente, pública e pacificamente, sem oposição de quem quer que seja - mormente, da anterior proprietária, A... S.A.
xli. Está em causa o direito de propriedade dos Recorrentes., sobre o referido caminho, que atendendo ao regime da compropriedade é igual ao dos Recorridos.
xlii. O direito em análise, sempre teria sido adquirido por usucapião, atendendo à posse que os Recorrentes exerceram por si e seus antepossuidores.
xliii. Estão assim, salvo melhor entendimento, e sem mais delongas estão preenchidos os caracteres da posse do art.º 1258.º a 1262.º e, o prazo do art.º 1296.º do CC.
xliv. Assim, resulta dos factos provados da sentença – artigos 18, 19, e 20 - os requisitos da posse, mais concretamente o “corpus”, dos Autores /Recorrentes.
xlv. Dúvidas não subsistiram, face a todas as provas acarreadas nos autos quanto a este elemento da posse, o “corpus”.
xlvi. Todavia, mesmo após se terem demonstrado cabalmente preenchidos os pressupostos da posse fundamentadores da usucapião invocada, veio Mm.ª Juiz do tribunal de 1.ª Instância referir que: “Os autores provaram efetivamente que há mais de 50 anos, através do seu arrendatário ali passavam, de forma pública, ininterrupta, pacífica e sem oposição, mas não se logrou apurar com que convicção, ou seja, com que intenção é que o faziam e para o caso.”
xlvii. Sucintamente, o tribunal a quo RECONHECE que os Recorrentes provaram o elemento material da posse, o domínio de facto sobre a coisa (“corpus”), pese embora não se tenha almejado provar o “animus possidendi”, o elemento psicológico, volitivo da posse.
xlviii. Ou seja, que não lograram os Autores/Recorrentes provar a intenção com que passavam/utilizavam no dito caminho.
xlix. Porém, não se pode concordar com este (im) perceção, por duas ordens de razões.
l. Numa primeira linha, e uma vez que, se o que foi colocado em cise na sentença recorrida, foi o “animus possidendi”, a intenção com que passavam lá os Autores, ou seja, o elemento volitivo da posse, sempre teria a Mm.ª Juiz a quo de valorar as declarações de parte do Autor – que foram muito claras neste aspeto, tal como já referido precedentemente - veja-se as declarações de parte do Autor (gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 45 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 20 minutos, do dia 10/04/2024 - Minutos 19:33 a 20:00;e Minutos 20:29 a 22:13).
li. Resulta assim do depoimento prestado pelo Autor/Recorrente, que ele sempre passou no famigerado caminho na qualidade de proprietário.
lii. Vejamos, no decurso das suas declarações, o Recorrente afirma que os prédios atualmente da propriedade dos Autores e Réus, eram um só prédio pertencente – Quinta ... - a um único proprietário, o qual era da sua família. Nesse sentido, o dito caminho já existia, e sempre lá passou, com a intenção de ser proprietário: “(2:35) Este prédio da B... foi toda a vida da minha família, exceto no período, a seguir ao 25 de Abril, (2:41) que foi vendida às C.... (2:48) Mais tarde, as C..., foram vendidas no seu todo à D..., (2:54) apresentada em Portugal pela E.... (2:58) Havia uma parte da propriedade que foi vendida ao Sr. HH uns anos atrás, ainda pela minha família.” – (minuto 02:35 a 02:58 das declarações do Autor, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 45 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 20 minutos, do dia 10/04/2024):
liii. Ou seja, se inicialmente, o Autor passava no aluído caminho com a intenção de ser proprietário, quando responde à Mm.ª Juiz “Nós, no fundo, continuámos a passar como sempre passávamos(... )ter-se-á de entender, que a intenção com que passava continuou a ser como proprietário, mas agora a par de outros comproprietários.
liv. Salvo o devido respeito, não se apreende, em razão destas declarações do Autor/Recorrente, como pode a Mm.ª Juiz a quo, afirmar que não se logrou apurar a convicção, ou seja, a intenção com que os Autores passam no aludido camimnho.
lv. Até porque, não pode o tribunal recorrido – e se assim é merece total censura – esperar que as partes, sem qualquer formação jurídica, digam taxativamente, que lá passavam com o “animus possidendi”.
lvi. Esta conclusão de direito, terá de ser retirada pelos magistrados que julgam o caso, e face às declarações do Recorrente (Autor), dúvidas não restam que ele mencionou exatamente isso.
iii. Numa segunda linha, cremos que, mais uma vez, o Tribunal a quo faz uma errónea interpretação da matéria de direito aplicável.
iv. Perante este quadro factual, que se compagina com a atuação dos Autores/Recorrentes, como donos fossem - ainda que em regime de compropriedade -, relativamente às ditas parcelas, à vista de toda a gente e com o conhecimento e sem oposição de ninguém por mais de 20 anos, entendemos estar demonstrada a prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito sobre as ditas parcelas.
v. Ora, in casu, resulta dos factos provados – artigos 18, 19, e 20 4- os requisitos da posse, dos Autores /Recorrentes.
vi. Nesta senda, presume-se , atento o disposto no n.º2 do art.º 1252º do CC., o animus possidendi dos Autores sobre as parcelas em apreço.
vii. Logo, face aos factos provados pelo Tribunal a quo, que tal com mencionado supra, corroborados por todas as testemunhas dos Autores, a par das declarações de parte do Autor - atento o elemento volitivo da posse - claro estão demonstrados os requisitos da posse.
Tendo a Mm.ª Juiz que proferiu sentença, reconhecido estes factos, deveria ter presumido o animus, ou seja, a intenção dos Autores ao passar aludido caminho.
Neste sentido, já se pronunciou a nossa mais Ilustre Jurisprudência - até com um acórdão de uniformização: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15/11/2018, no âmbito do processo 247/13.0TBCCH.E1.S1; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13/10/2020, no âmbito do processo 439/18.5T8FAF.G1.S1.
Não lograram, assim, os Réus/Recorridos ilidir esta presunção, logo, deveria a Mm.ª juiz a quo, tendo provado os atos de posse dos Autores, e como tal ter presumido o animus, que é como quem diz, a intenção com que lá passavam.
lvii. Por sua vez, e em jeito subsidiário, caso o primeiro pedido viesse a improceder, os Autores/Recorrentes, vieram peticionar que se reconheça que que os prédios dos Réus, Recorridos, se encontra onerado com uma passagem aparente, constituída por usucapião, a favor do seu prédio, conforme permite o art. 1547.º do CC.
lviii. Limitou-se assim, o Tribunal Recorrido, a julgar improcedente o aludido pedido subsidiário, sob o fundamento que, mais uma vez, não provamos o animus da posse.
lix. Ora, por uma questão de celeridade processual, não repetiremos o alegado supra, no entanto tal tem total aplicabilidade, também à constituição por usucapião de uma passagem aparente.
lx. Assim, demonstrados os pressupostos corpóreos da posse, ou seja, o elemento material, deveria a Mm.ª Juiz a quo ter presumido o animus da sua atuação.
lxi. Para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício – tal como se verifica nos presentes autos. - tal como já mencionado supra.
lxii. Considerando a dificuldade de ser demonstrada uma dada posse em nome próprio, ou seja, do “animus “ , a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum ) da dita posse a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o “corpus “ também tem o “ animus “ – vide assento do STJ de 14/5/96 .
TERMOS EM QUE O PRESENTE RECURSO DEVE MERECER PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA, A DECISÃO RECORRIDA, CONDENANDO-SE OS RÉUS NOS TERMOS PETICIONADOS NA PETIÇÃO INICIAL.
Assim se fará, inteira, J U S T I Ç A!».
Os RR. contra-alegaram, pugnando pelo bem fundado da decisão em crise e pela improcedência do recurso.
Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, cabe saber ([5]):
a) Se ocorre erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, obrigando à alteração do decidido [al.ªs a), b), c) e “p, q, r, s, t, u, v, w” do quadro dado como não provado, a merecerem resposta positiva];
b) Se ocorre erro de julgamento de direito, por estarem verificados os pressupostos da aquisição do pretendido direito em termos de compropriedade ou, subsidiariamente, sempre mediante constituição por usucapião, do direito de servidão de passagem e, bem assim, decorrente pretensão indemnizatória.
A) Da impugnação da decisão de facto
1. - Os Apelantes, no âmago da sua alegação recursória, começam por manifestar inconformismo com a decisão da matéria de facto, pretendendo, desde logo, que, diversamente do decidido na 1.ª instância, seja julgada como provada a matéria constante das referidas al.ªs “p, q, r, s, t , u, v, w” do quadro dado como não provado.
É a seguinte a redação dessas al.ªs impugnadas:
«a) A matriz referida em 1., através do processo de cadastro 85/2004, passou a englobar o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ..., concelho ..., sob o artigo 220.º, secção B, que foi suprimido.
b) Os autores, desde a data referida em 3. pagam os impostos do prédio identificado em 1..
c) As pessoas identificadas em 13. praticavam os atos referidos em 16., convictos de serem comproprietários.
(…)
p) Antes da destruição do caminho referenciado, os autores celebraram um contrato promessa de compra e venda do prédio rústico identificado em 1..
q) No aludido contrato fixou-se o prazo de 60 dias para a celebração da escritura pública e uma cláusula indemnizatória de € 150.000,00, caso não fosse celebrada a escritura de compra e venda por causa imputável aos autores.
r) Os autores alertaram o promitente comprador para a destruição do caminho de acesso e da necessidade de intentar a competente ação judicial para o restabelecer.
s) Os autores não conseguiram até à presente data restabelecer o caminho em causa, pelo que o promitente comprador resolveu o contrato através de carta registada datada de 22/05/2017, alegando o término do prazo de 60 dias e o não restabelecimento do caminho que desvalorizaria o prédio.
t) Exigiu ainda o promitente comprador aos autores, o pagamento de uma indemnização no valor de € 150.000,00, por incumprimento contratual.
u) Os autores celebraram um acordo de cessação do contrato promessa e, acordaram uma indemnização no valor de € 55.000,00 já liquidada.
v) Antes da celebração do contrato referido em p), os autores mostraram o prédio ao promitente comprador, abordando, nos atos preparatórios do contrato, as diversas características do prédio, inclusivamente os acessos à via pública onde se englobava o caminho objeto de discussão nos autos.
w) O promitente comprador celebrou o contrato promessa acreditando que as características do prédio manter-se-iam incólumes».
Na fundamentação da sentença exarou-se:
«(…) refira-se que nem o autor, nem as testemunhas inquiridas concretizaram o pagamento de impostos relativos ao prédio em causa pelos autores, motivo pelo qual se deu como não provado o facto da alínea b).
(…)
O facto da alínea a) não se deu como provado porque não foi produzida qualquer prova para o efeito.
O facto da alínea c) foi considerando não provado atenta a insuficiência da prova produzida que nos permitisse concluir nesse sentido.
O facto em apreço reporta-se à convicção dos utilizadores do caminho aqui em discussão, pelo que, na falta dos restantes, se deu especial destaque à já referida testemunha FF, única de entre as pessoas que passavam naquele acesso que veio a tribunal prestar depoimento.
Como já se disse, a testemunha reportou-se a um caminho que era utilizado quase por toda a gente, referindo que a própria «tinha lá caminho» e que II tinha a chave do portão de acesso porque «seria um direito», mas em momento algum referiu-se como proprietário, a par dos restantes, daquele caminho, ora dando a entender que era utilizado por quem quisesse, ora que, e em especial, comprou parte deste caminho porque achava que não tinha dono, assumindo a responsabilidade caso se considere que aquela parcela pertence a mais pessoas.
A par desta, as testemunhas que frequentaram o lugar, mormente pela intervenção que tiveram nos reservatórios da água, não referiram que aquilo seria um caminho do Município, sendo patente a confusão – no geral – entre se seria propriedade privada, um caminho público ou o que denominavam (no caso da testemunha JJ) de consortes, sem que ninguém asseverasse tratar tal caminho como sendo (com)propriedade do Município.
De resto, só aquele KK referiu que consideravam aquele caminho como de consortes, explicando que assim o era porque «era de todos e não era de ninguém», era «utilizado pelos proprietários» e que nunca tiveram convicção que o caminho era deles, no que e crê referir-se, também, ao anterior proprietário, HH.
No entanto, com apenas este depoimento que, além do mais, não se nos afigurou absolutamente seguro ou inequívoco, pelo facto de dizer que era de todos, mas não de ninguém, de mencionar passarem ali diversas pessoas para além dos por si indicados proprietários sem explicitar o motivo; pelo facto de não se poder, obviamente, substituir-se àquele proprietário HH, nem transmitir, afinal, que este alguma vez lhe expressou tal conclusão, não se adquiriu, com a certeza e segurança necessárias e nesta sede exigíveis que, este concreto caminho era utilizado nos moldes referidos com aquela mesma convicção.
A isto acresce que, ainda que em declarações de parte o autor o tenha referido, certo é que não se pode olvidar o facto de se tratarem de declarações da própria parte, sujeito naturalmente interessado no desfecho da lide, considerando-se que, sem mais – e porque outro tipo de prova poderia ser feito nesse sentido a corroborar aquelas declarações, como a prova testemunhal – não foi suficiente para, no seu caso em específico, se dizer que ali passava convicto de ser comproprietário do caminho.
No que respeita ao facto não provado da alínea d), no seguimento do que já se deixou dito, não se logrou apurar a que título o Município, através dos seus funcionários, passava no dito caminho, mormente, se o era por mera tolerância.
(…)
No que respeita aos factos das alíneas p) a x), impõe-se uma análise mais pormenorizada.
Os autores juntaram aos autos, a convite do tribunal, por requerimento datado de 08/06/2021, documento intitulado contrato promessa de compra e venda celebrado entre estes e GG, datado de 02/12/2014, um acordo celebrado entre ambos datado de 19/06/2017 e duas fotografias de dois cheques emitidos pelo autor à ordem de GG, um no montante de € 5.000,00, outro no montante de € 50.000,00 e, ainda, com a petição inicial, cópia da carta remetida por este aos autores, datada de 22/05/2017.
Foi ainda ouvido o referido GG, cujo pai é amigo do autor, que afirmou estar interessado na compra de terreno para projeto agrícola, tendo conferenciado com o autor nesse sentido e celebrado contrato promessa com o mesmo em 2014 ou 2015 (por intermédio dos advogados). Mais referiu que o autor lhe pediu mais uns dias para celebrar a escritura do contrato prometido em virtude da discussão de um caminho no tribunal, e que só teve interesse no negócio por causa do dito caminho.
Ora, em primeiro lugar, analisado o contrato promessa vemos que o mesmo tem por objeto (cláusula primeira) o prédio inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ... sob o artigo 220.º, secção B, quando o prédio ora em causa está inscrito na matriz sob o artigo ...62.º, secção B (de relevo, remete-se para o facto não provado da alínea a) e motivação subjacente).
Em segundo lugar, as partes convencionaram (cláusula 8.º) que o contrato não estaria sujeito a formalismos e, portanto, sem embargo da sua validade e oponibilidade a terceiros, estamos em face de um documento particular (artigo 363.º, do Código Civil), impugnado pelos réus, livremente apreciável pelo tribunal (veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/03/2022, proc. 1807/15.0T8BRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Se atentarmos na carta dirigida pela testemunha GG aos autores, certo é que na mesma vem mencionada a celebração do contrato promessa a 02/12/2015 (quando, nos termos já profusamente analisados, o caminho em causa havia sido destruído). Os autores alegam que terá sido lapso de escrita, mas não estamos convictos que o tenha sido. A data mostra-se aposta por extenso, não havendo qualquer coincidência no mês, dia ou ano, não sendo uma carta de conteúdo genérico que se pudesse referir a um qualquer outro contrato do mesmo tipo, assistindo-nos, assim, francas dúvidas quanto à sua efetiva celebração do negócio na data que no mesmo vem aposta, que, ademais, o depoimento daquela testemunha não dirimiu.
Ainda que assim não fosse, mantém-se a menção a um artigo matricial distinto do alusivo ao prédio pretendido comprar o que, em todo o caso, também poderia ser um lapso de escrita.
E se se tratassem de dois lapsos de escrita ou se o objeto fosse mesmo o prédio dos autores descrito em 1., ou parte dele, sempre o depoimento da testemunha interessada na sua compra se nos revelou um tanto ou quanto incoerente, ao que se soma a forma alheada com que depôs.
A mesma não conhecia efetivamente as características do prédio que queria comprar, apesar de o ter vindo conhecer, afirmando sem explicação lógica o interesse em que este tivesse o caminho de acesso ora em causa, referindo-o fundamental e sem o qual perdeu o interesse no negócio.
Temos que conceder que, como referem os réus, atendendo ao objeto do contrato, a extensão do prédio e os acessos que o mesmo tem, que não há grande equivalência entre a preponderância deste acesso para a concretização do negócio face aos demais fatores.
Donde se conclui que, quanto à celebração de um contrato de promessa entre os autores e este terceiro, a mesma poderá, porventura, ter ocorrido, sem que se conseguisse apurar sem dúvidas, com que objeto, em que data e a essencialidade daquele fator (caminho).
Tudo conjugado e considerando a regra ínsita no artigo 414.º, do Código de Processo Civil, com todas as dúvidas expostas, teve que se dar como não provados os factos respetivos.
Em concreto, quanto ao facto alusivo ao acordo de pagamento e pagamento (alínea u)), a prova produzida assomou-se insuficiente para o dar como provado.
Não só não se atribuiu credibilidade à testemunha GG, como as meras cópias (fotografias) da parte frontal dos cheques não chegam para se comprovar a liquidação do valor ali indicado pelos autores.
Na falta de cópia dos títulos emitida pelo Banco, donde conste a certificação desse mesmo depósito e em que conta o mesmo foi feito, dia e hora do desconto por depósito ou extrato a demonstrar que aquele n.º de cheque foi depositado em determinada conta, não podemos senão, com base no mesmo princípio legal, dar aquela matéria como não provada.
(...)
Finalmente, quanto às testemunhas LL e MM, que trabalharam nos prédios em causa durante um curto período temporal (seis anos no caso da primeira e quatro no caso da segunda), ainda não abordadas, os seus depoimentos em pouco contribuíram para a prova dos factos, sendo que, saliente-se, ambas as testemunhas negaram a existência de um caminho da quinta dos réus para a quinta dos autores (com a nota de que a primeira destas testemunhas o esteve a surribar, referindo que só aí se apercebeu do mesmo), quando da restante prova produzida resultou precisamente o contrário, pelo que, ainda que o seu testemunho fosse abstratamente preponderante, sempre se lhes apontaria a sua falta de credibilidade ou desconhecimento na matéria.» ([6]).
Apreciando.
Quanto à impugnada al.ª a) – se a matriz referida em 1. (art.º 262.º, secção B), através do processo de cadastro 85/2004, passou a englobar o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 220.º, secção B, que, por isso, foi suprimido –, relativamente à qual o Tribunal entendeu não se ter produzido qualquer prova para o efeito, defendem os AA./Recorrentes que existe prova documental bastante, o “documento 2, junto com a petição”, mostrando que o dito art.º 220.º deixou de existir, porque “parte dele foi autonomizada e passou para terceiros” (conclusões xiv e xv).
A contraparte esgrime assim, ex adverso:
«O documento 2, tratando-se de uma mera cópia, impugnada pelos recorridos, além de não constituir meio de prova pleno (antes sujeito à livre apreciação do tribunal) não faz qualquer referência ao processo de cadastro 85/2004. Nem dele resulta que a matriz do artigo 262-B tenha passado a englobar o artigo 220-B. // Não se percebe como pode conduzir o mesmo a uma decisão diversa da recorrida.».
Ora, cabe dizer que o aludido “documento 2” constitui uma simples cópia de escritura de compra e venda, outorgada a 02/07/1997, que a contraparte deixou impugnado em sede de articulados (cfr. art.ºs 1.º 2.º da contestação), pelo que deveriam os AA. providenciar pela junção da respetiva certidão, a dotada da necessária força probatória.
Para além disso, não se vislumbra, como referem os RR., desse documento (escritura de compra e venda), qualquer referência relevante/concludente ao dito “processo de cadastro 85/2004” ou ao pretendido englobamento e supressão, matéria de haveria de ser provada através de documento com força probatória qualificada e inequívoca a respeito.
Donde que, salvo o respeito devido, deva improceder esta parcela impugnatória.
Passando à impugnada al.ª b), invocam os impugnantes prova pessoal, traduzida nas declarações de parte do A., apresentando segmento/transcrição da gravação oral das respetivas declarações, com o seguinte teor:
«Minutos 07:34 a 08:04
Mm.ª Juiz: (7:27) São os senhores que pagam os impostos, o Sr. é o Sr. que paga os impostos daquele prédio?
AA.: (7:34) É. É a minha diretora financeira que todos os anos faz o pagamento dos imposto[s] quer daqueles quer de outros bens.
Mm.ª Juiz: (7:40) Muito bem. E pergunto se estão lá, na convicção de que é vosso? Esse prédio, de que é vosso, vocês têm a convicção de que são os proprietários?
AA: (7:53) Claro. Claro. Nós não temos a convicção, nós temos a certeza absoluta.
Mm.ª Juiz: (7:59) Pronto, muito bem.
AA: (8:00) Tanto é que está registada no nosso nome.».
Contrapõem os Recorridos que se trata de declarações de parte interessada e que poderiam ser juntos elementos probatórios documentais demonstrativos do efetivo pagamento daqueles impostos.
Porém, não deve olvidar-se que está provado que o prédio em causa foi objeto de aquisição pelos AA. em 02/07/1997 (factos 1. a 3.).
Por isso, não surpreende que, como é normal e comum, tenham sido eles quem, a partir dessa data (a data da aquisição), passou a suportar o pagamento dos respetivos impostos, já que se tratava de imóvel que lhes pertencia e que, doutro modo, se expunham às inerentes consequências perante a Administração Tributária.
É certo que poderia ter sido junta prova documental e inequívoca do pagamento desses impostos e por quem.
Mas, atendendo aos dados da normalidade e da experiência comum, as declarações aludidas do A., embora constituindo prova por declarações de parte, e sem outra corroboração (que não deixaria de ser útil/conveniente), mostram-se credíveis, ainda assim, atento até o modo perentório como foram prestadas, perante a Exm.ª Juiz, sem que fossem abaladas.
Termos em que esta Relação, formando a sua autónoma convicção, e apesar da falta de uma total imediação perante a prova pessoal, mas na conjugação do caráter perentório e credível das ditas declarações de parte com os dados da normalidade e da experiência comum, chega à convicção de que tal pagamento de tributos ocorreu por parte dos AA., enquanto adquirentes, com registo de aquisição a seu favor (de prédio registado e matriciado).
Por isso, o facto da al.ª b) passará a provado – com inerentes supressão e aditamento – nos seguintes termos:
«3.1. - Os autores, desde a data referida em 3., pagam os impostos do prédio identificado em 1.».
Quanto à impugnada al.ª c) – “As pessoas identificadas em 13. praticavam os atos referidos em 16., convictos de serem comproprietários” (destaque aditado) –, estando em causa a utilização do caminho, no respeitante à intenção/convicção de tal uso, invocam os AA./impugnantes que passavam no caminho como comproprietários (ao abrigo, pois, do direito real de compropriedade).
Para tanto, asseveram, no seu acervo conclusivo, que a testemunha FF (enquanto pessoa que também “lá possuía um terreno”) disse:
«Minutos 09:55 a 10:37
“(...)
Adv. RR (9:55) Foi por isso que lhe deram uma chave.
Test: (9:56) Sim, é.
Adv. RR: (9:57) E porquê terão dado a chave ao senhor II?
Test.(10:00) Porque ele é que grangeava aquela quinta que era do NN, que é aquele espaço grande que faz parte da quinta de ...,..e ele era, não sei por que condições,... seria condições para os primeiros donos de toda aquela faixa, e depois venderam e ficaram com aquela parcela, não faço ideia, e foi, portanto, por esta razão.
Ad. RR. (10:35) Mas seria porque eram amigos?
Test.(10:37) Não, não era por serem amigos, eu acho que era porque seria um direito, como eu tive um direito, porque aquilo eu tinha ali, era o meu acesso.(...)”.
Ora, analisando criticamente, deve dizer-se que a testemunha alude a um “direito”, um direito de passar no caminho, mas sem pormenorização, sem indicação quanto a poder inferir-se se queria referir-se a um mero direito de passagem (em termos de servidão de passagem) ou, diversamente, assumir-se (com outros) como um dos donos do espaço/leito de passagem, em termos, pois, de compropriedade.
Aliás, perante tal falta de pormenorização, sem quaisquer elementos ilustrativos, nada pode concluir-se quanto a esse invocado “direito” (de passagem ou de compropriedade), desconhecendo-se, por não relatado, como surgiu tal direito, qual a sua causa – e modo de aquisição – e qual a convicção fundante da passagem (se na convicção de dono ou, diversamente, de pessoa com direito de servidão de passagem para um seu prédio dominante).
Invocadas são ainda as declarações do A. marido, nos seguintes termos:
«Minutos 19:33 a 20:00:
- Mm.ª Juiz: (19:33) Então, o Sr., há quantos anos é que passavam ali naquele caminho? O Sr... o....não sei se passava mais alguém para além destas pessoas que aqui referiu...?
- AA: (19:44) Ó Dra. Eu lembro-me de passar lá no caminho desde que eu...sempre passei lá neste caminho. E mais tarde, como adulto, e já então como proprietário da dita propriedade, eu passei lá “n” vezes. (20:00)
(....)
Minutos 20:29 a 22:13:
- Mm.ª Juiz: (20:29) E qual é a convicção, quando lá passam? O que é aquilo? Que estão a passar em terreno alheio? Aquilo já deixou de ser vossa, entretanto, não é? O que é que foi vendido?
- AA.: (20:41) A tal quinta.
- Mm.ª Juiz: A tal quinta, exatamente. .... Continuaram antes? O que é que pensavam ao passar naquele caminho? O que é que pensam depois?
- AA.:(20:51) (...)Nós passávamos naquele caminho, o que sempre passamos no tempo em que aquilo era do dito OO não é?
- Mm.º Juiz: Sim.
- AA.: (20:57) Depois, entretanto, de OO, morre o pai, entra alí num turbilhão em termos financeiros e quem adquire aquilo é o Banco 1.... Depois, o Banco 2..., e depois vendeu aquilo a quem muito bem, entendeu não?
- Mm.ª Juiz: (21:14) Sim. Mas, diga-me, passavam ali a saber que aquilo era de outra pessoa, passavam por especial favor?
- AA: (21:22)No caminho? Nós sempre passámos .... o de sempre
- MM.ª Juiz: (21:26) O que eu estou a perguntar é o que é que passavam lá e o que é que pensavam? Estavam a passar por favor? Porque tinham uma servidão? Porque aquilo era vosso? É a propriedade de todos? Como é que é?
- AA.:(21:38) Nós, no fundo, continuámos a passar como sempre passávamos, tendo em conta que o OO, ao adquirir a outra parte da propriedade, também teria direito a passar lá a passar lá, não é? O dito fogueteiro, da mesma maneira, uma vez que sempre lá tinha passado, penso que, segundo ele diz, até desde o tempo do pai dele... sempre passávamos, não é? Dessa forma, não é? Sem nunca ninguém nos ter impedido de passar, não é?
- Mm.ª Juiz: (22:13) Muito bem.”».
Consabida a fragilidade comummente conatural à prova por declarações de parte – a parte surge a reiterar a sua versão dos factos, a matéria já alegada/defendida em sede de articulados –, perante o interesse do declarante no desfecho do processo, é comum entender-se carecer tal prova, para superar essa fraqueza, de outros elementos de prova, que sejam corroborantes e credíveis.
Ora, o convocado depoimento testemunhal, não assume, pelos motivos aludidos, força probatória corroborante bastante, termos em que, conjugadamente, esses dois meios de prova não logram convencer este Tribunal da Relação, mormente tendo em conta o que está em causa, traduzido no reconhecimento de um pretendido do direito dominial (direito de compropriedade, sem que se mostre relatado/evidenciado qual o modo de aquisição respetivo).
Aliás, o próprio depoimento de parte convocado não vai além de um «continuámos a passar como sempre passávamos», «sem nunca ninguém ter impedido de passar», não afirmando a convicção de comproprietário, posto o continuar a passar, como sempre se passou, sem impedimento/oposição, em si, ser compatível com uma convicção de exercício de um direito de servidão de passagem ou no quadro do direito de compropriedade, se não também no âmbito de uma mera situação de tolerância/consentimento de outrem.
Em suma, não se mostra – e cabia aos Recorrentes mostrá-lo – qualquer erro de julgamento de facto nesta parte, por os dois elementos de prova convocados – vistos de per se ou conjugadamente – em nada inculcarem a ideia de que tais provas impusessem decisão diversa (cfr. art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).
Improcede, pois, esta vertente da impugnação da decisão de facto.
Passando às al.ªs p) a w) – referentes ao invocado contrato-promessa, seu conteúdo/clausulado/obrigações, sua cessação e indemnização, esta num elevado montante alegado de “€ 55.000,00 já liquidado” (fruto de ulterior negociação, posto o valor contratual fixado ser significativamente superior) –, apresentam os AA./Recorrentes extensa transcrição do depoimento testemunhal de GG, que afirmou a celebração do contrato-promessa (entre si, enquanto promitente comprador, e os AA., como promitentes vendedores), a cessação do mesmo e os inerentes motivos e, bem assim, a compensação monetária pela quebra de tal contrato (total de € 55.000,00, pagos em “dois” cheques, “Um de cinco, numa primeira data, e uma data posterior, mais 50”, o que, na conjugação com a prova documental junta, deveria fazer agora inverter o juízo probatório negativo do Tribunal recorrido.
Ora, começando pela prova documental, é certo estar junto aos autos (junção em 08/06/2021) um intitulado “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, datado de “2 de Dezembro de 2014”, referente ao prédio rústico matriciado sob o art.º ...20, secção B, da Freguesia ..., concelho ..., em que figuram como promitentes vendedores os aqui AA./Recorrentes e promitente comprador aquele GG, com um preço acordado de “300.000,00 euros”.
Ocorre que, não obstante tal elevado valor da venda, não foi convencionado qualquer sinal e foi dispensado qualquer formalismo com referência à celebração de um contrato promessa de venda de imóvel, designadamente qualquer reconhecimento de assinaturas.
Ou seja, do dito contrato apenas constam as assinaturas das partes em singelo, sem, pois, qualquer reconhecimento ([7]) ou elemento que demonstrasse que o contrato foi efetivamente outorgado nessa data e não em qualquer outra.
Assim sendo, por dispensa das partes identificadas em tal contrato, inexiste qualquer autenticação ou reconhecimento, faltado, pois, uma atestação no âmbito notarial ou por qualquer entidade terceira, termos em que a data aposta, de 02/12/2014, não obtém qualquer comprovação por entidade notarial ou outra. É matéria que ficou na pura órbita das partes e do contrato.
Para além da ausência de convenção de sinal, na cláusula 4.ª refere-se comprometerem-se “os promitentes compradores a manterem as características do prédio” (destaques aditados), clausulado que não se entende, por não contemplada traditio (veja-se a cláusula 6.ª, estipulando que a entrega/tradição do imóvel apenas teria lugar aquando da escritura pública de compra e venda, o “contrato definitivo”), tanto mais que ficou convencionado que o preço (in totum) só seria “efectuado aquando da realização da competente escritura” (cláusula 3.ª). Ou seja, o imóvel ficou na disponibilidade dos promitentes vendedores e não do (único) promitente-comprador.
Também se estranha que, dispensada a prestação de qualquer sinal (tal como de quaisquer formalidades legais de celebração da promessa), só os “promitentes vendedores” – e apesar dessa ausência de recebimento de sinal – ficassem obrigados, em caso de incumprimento, a ressarcir a contraparte (o promitente comprador, que nada desembolsou), como resulta da cláusula 5.ª.
E ressarcimento no elevado montante de € 150.000,00, enquanto os “promitentes vendedores” nada fizeram contemplar para o caso de incumprimento da contraparte.
Quer dizer, se fosse o “promitentes comprador” a incumprir, nenhum mal lhe aconteceria e os aqui AA. nada receberiam, enquanto que, se fossem eles a incumprir, teriam de indemnizar em € 150.000,00, mesmo sem recebimento de sinal.
Ou seja, uma tal disciplina contratual, não acautelando, à partida, os interesses dos ditos “promitentes vendedores”, mostra-se desequilibrada e incomum – até algo estranha –, quando é sabido que, em contratos-promessa bilaterais (como é o caso deste, o que logo se retira da cláusula 1.ª, contemplando a promessa de “vender”, mas também a promessa de “comprar”), ambas as partes se preocupam em acautelar as consequências do incumprimento pela contraparte, em vez de apenas ficar salvaguardada, perante situação de incumprimento, uma das partes.
No caso, os AA./promitentes vendedores não ficaram salvaguardados para a hipótese de incumprimento do outro contraente, mas aceitaram obrigar-se a pagar indemnização de € 150.000,00 a este se fossem eles a incumprir.
O que, na falta de outros elementos, se mostra totalmente ilógico e incredível.
Também não se compreende que os AA. tenham, “de bom grado”, assumido, sem mais, ocorrer incumprimento imputável (a si próprios), determinante da não “realização do contrato prometido” (cfr. intitulado “ACORDO”, cláusula 2.ª, datado de 19/06/2017, também com singela aposição de data e assinatura, logo, sem nada que demonstre ser essa data conforme).
A experiência mostra que não é comum uma tal pronta e voluntária assunção de responsabilidade e decorrente pagamento (o comum, em casos de incumprimento de contratos-promessa, é as partes confrontarem-se durante anos nos tribunais, deixando para decisão judicial a matéria do incumprimento e da sanção/reparação).
Acresce, como bem nota o Tribunal recorrido, que das simples fotocópias de rosto dos dois cheques aludidos (um de € 5.000,00 e outro de 50.000,00), nada resulta (por só o rosto ser exibido) que algo tenha sido pago, que alguma transferência de fundos tenha ocorrido e quem fosse o respetivo destinatário.
Falta, na verdade, o verso desses dois cheques, cujos documentos logo foram impugnados pela contraparte, que, simultaneamente, pediu que os AA. fossem notificados para juntar o original do “contrato-promessa” e do “acordo” aludido, tal como devia ser junta reprodução do verso dos dois aludidos cheques.
Tal, porém, não ocorreu quanto a esses dois cheques, pelo que tem de concordar-se com o Tribunal recorrido quando afirma (para além do mais):
«(…) assistindo-nos, assim, francas dúvidas quanto à sua efetiva celebração do negócio na data que no mesmo vem aposta, que, ademais, o depoimento daquela testemunha não dirimiu.
(…)
Donde se conclui que, quanto à celebração de um contrato de promessa entre os autores e este terceiro, a mesma poderá, porventura, ter ocorrido, sem que se conseguisse apurar sem dúvidas, com que objeto, em que data e a essencialidade daquele fator (caminho).
(…) quanto ao facto alusivo ao acordo de pagamento e pagamento (alínea u)), a prova produzida assomou-se insuficiente para o dar como provado.
Não só não se atribuiu credibilidade à testemunha GG, como as meras cópias (fotografias) da parte frontal dos cheques não chegam para se comprovar a liquidação do valor ali indicado pelos autores.
Na falta de cópia dos títulos emitida pelo Banco, donde conste a certificação desse mesmo depósito e em que conta o mesmo foi feito, dia e hora do desconto por depósito ou extrato a demonstrar que aquele n.º de cheque foi depositado em determinada conta, não podemos senão, com base no mesmo princípio legal, dar aquela matéria como não provada.
(...)».
Em suma, não se mostra, em autónoma convicção da Relação, que as provas convocadas imponham decisão diversa, não se vendo que tenha ocorrido erro de julgamento por parte do Tribunal recorrido neste particular, termos em que permanece inalterada toda esta factualidade impugnada pertencente ao elenco dos factos não provados.
No mais estamos já, no âmbito do acervo conclusivos dos Apelantes, perante matéria de direito, mesmo quando estes aludem a “contradição entre os factos dados como provados e a decisão proferida” (conclusão xxxiii), razão pela qual de tal não cabe aqui cuidar, por apenas em sede de subsequente fundamentação jurídica a matéria dever ser considerada.
Procede, pois, apenas parcialmente a impugnação da decisão de facto, com as inerentes alterações no local próprio.
B) Da Matéria de facto
Atenta a alteração operada pela Relação, é a seguinte a factualidade provada a considerar para a decisão:
«1. Encontra-se inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...62.º, secção B, o prédio rústico localizado em ... e ..., com a área de 415.929,00 m2, composto por mato, cultura arvense, vinha, cultura arvense de regadio, oliveiras e árvores de pomar, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...92.
2. Através da ap. ...4 de 24/11/1997, encontra-se registada a aquisição do prédio identificado em 1. a favor de AA, e BB (autores), tendo com causa de aquisição «compra».
3. Os autores adquiriram o prédio aludido em 1. na data de 02/07/1997.».
«3.1. - Os autores, desde a data referida em 3., pagam os impostos do prédio identificado em 1.» [ADITADO].
«4. Os autores, desde aquela data, plantam e recolhem os frutos do aludido prédio, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, inclusive dos réus, na convicção de serem seus únicos e legítimos proprietários.
5. Os autores, por si e seus ante possuidores, praticam aqueles atos, naqueles termos, há mais de 50 anos, ininterrupta e pacificamente.
6. No prédio aludido em 1. os autores produzem fruta.
7. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da Freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...14.º, o prédio urbano localizado na Quinta ..., ..., composto por edifício destinado a armazém, área coberta de 6.200,00 m2, área de logradouro de 2.000,00 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71.
8. Encontra-se inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...40.º, secção B., o prédio rústico localizado na Quinta ..., ..., composto por pinhal, vinha, cultura arvense de regadio, mato, oliveiras e árvores de pomar, com área de 262.282,00 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71.
9. Através da ap. ...60 de 28/06/2016, encontra-se registada a aquisição do prédio identificado em 7. e 8. a favor de CC e EE (réus), tendo como causa de aquisição «compra» e sujeito passivo «A..., S.A.».
10. Desde tempos imemoriais, há pelo menos 50 anos, um dos acessos ao prédio referido em 1., faz-se por um caminho de terra batida, de forma continua e indivisível, com comprimento não inferior a 200 m e largura de 3,25 metros.
11. O aludido caminho tem o seu início num portão de ferro, situado ao lado dos antigos armazéns da empresa F... e passa, também, pelo prédio identificado em 7. e 8..
12. O caminho aludido em 10. é visível, quer nas cartas militares, quer no cadastro geográfico.
13. O caminho era utilizado pelos autores através dos arrendatários do seu prédio, pelos réus (outrora, pelos antigos proprietários, mormente, a sociedade A..., S.A. e F...) e por FF, para acederem aos respetivos prédios.
14. O Município ... também utilizava o caminho referido em 10., único acesso para chegar aos reservatórios de água pública e tanques, para proceder à sua manutenção, mais procedendo o Município, muitas vezes, à manutenção do caminho para melhorar o acesso ao local.
15. As pessoas identificadas em 13., nos termos aí referidos, sempre passaram no caminho sem pedir a quem quer que seja.
16. O portão referido em 11. foi colocado por iniciativa do anterior proprietário do prédio dos réus, a expensas suas, sem pedir autorização ou consentimento a quem quer que fosse para o fazer.
17. As pessoas indicadas em 13., com exceção dos autores, têm uma chave do portão de entrada que dá acesso primeiramente ao caminho e, posteriormente, aos respetivos prédios.
18. O caminho referido em 10. configura o único acesso ao prédio dos autores, em segurança, através de camião superior ou igual a 5 toneladas.
19. Os autores, através dos arrendatários do seu prédio, utilizavam o citado caminho, pelo prédio dos réus, há mais de 50 anos, ininterruptamente, utilizando-o sem quaisquer limitações.
20. Tal, à vista de toda a gente, pública e pacificamente, sem oposição de quem quer que seja, mormente, da anterior proprietária, A... S.A..
21. Quem há várias décadas tem vindo a plantar e a colher os frutos do prédio dos autores é o Sr. II e seus familiares, e antes deste, seu pai.
22. FF é dono de um prédio a poente do prédio dos réus identificado em 7. e 8..
23. O referido FF e a anterior proprietária do prédio dos réus celebraram, em 20/01/2015, um contrato promessa de compra e venda cujo objeto foi uma parcela de terreno com a área de 6.323 m2, que abrange uma parte do leito da passagem de que o prédio do mesmo beneficiava e, por conseguinte, parte do caminho referido em 10., numa extensão de cerca de 60 metros.
24. Na sequência do referido em 23., FF procedeu à vedação daquela faixa de terreno e remoção do caminho.
25. No decorrer do mês de janeiro de 2015, a anterior proprietária do prédio dos réus, A..., S.A., procedeu ao saibramento do mesmo e cortou e desfez o referido caminho.
26. Os autores intentaram contra a dita sociedade um procedimento cautelar, que correu termos no Juízo Local Cível ... sob o n.º 103/15...., tendo sido decretada a providência e, ordenada a reposição do referido caminho, decisão que veio a ser revogada.
27. Desde o momento temporal aludido em 25. e até ao dia de hoje, os autores encontram-se impedidos de aceder ao seu prédio através do referido caminho, por forma a rapidamente transportar as frutas colhidas para os intermediários de distribuição.
28. Os réus não lograram restabelecer o caminho existente impedindo os autores, pelo menos desde 2016, de a este acederem.
29. Sem o acesso identificado em 10., a retirada da fruta do prédio dos autores só é possível através tratores, que a transportam atravessando a demais propriedade até chegar à via publica, onde a carregam num camião.
30. Existe um caminho denominado ... que faz a ligação entre ... e a povoação de ... e que passa junto à cofinancia sul/norte do prédio dos réus com o prédio dos autores.
31. Esse caminho desde tempos imemoriais está afeto ao uso indiscriminado de quem por ele pretende passar, quer para acesso aos prédios que o ladeiam quer para acesso de ... à povoação de ... e vice-versa.
32. Tem esse caminho a largura «de carro de bois» sendo utilizado essencialmente, em tempo idos, para circulação a pé e com veículos de tração animal.
33. Os autores têm acesso ao seu prédio diretamente a partir do caminho público/estrada pública, com entradas já abertas para caminhos que se prolongam pelo interior de todo o prédio e que permitem o acesso a pé, de carro, de trator, de camioneta, e até de camião.
34. O prédio dos autores é também atravessado pelo seu interior, desde a estrada municipal de ... à estrada municipal de ..., por um estradão particular de pelo menos 5 metros de largura, a partir do qual foram criados vários caminhos para uso exclusivo dos autores.
35. Sendo que desse estradão particular dos autores parte um caminho com pelo menos 2 a 3 metros de largura que atravessa transversalmente toda a parte sul do prédio dos mesmos até à zona de confluência com o caminho da ..., estando também constituídos ainda outros caminhos particulares a partir deste.
36. O prédio dos autores, na parte que era agricultada pelo referido II, é, atualmente, um prédio com árvores velhas.
37. Circulando pelo prédio dos réus, dado que a largura entre as fileiras das árvores é inferior à largura dos camiões e das camionetas, sempre os autores teriam de usar tratores para conduzir a fruta do interior do pomar até ao camião.
38. Com a reposição do caminho identificado em 10., os réus têm de arrancar mais de 300 cerejeiras, custear a mão de obra para a realização de tal trabalho e o serviço de caterpílar para execução e compactação do leito do caminho, implicando também a alteração ao projeto de rega da plantação, tudo com custos superiores a € 6.000,00.
39. Com a reposição das cerejeiras estas deixariam de produzir, o que implicaria que os réus deixassem de auferir € 18.000,00 – (300 cerejeiras x 30 kg cada uma) x 2€/Kg (valor líquido depois de descontado o custo de produção) = €18.000,00.».
E resulta julgado não provado:
«a) A matriz referida em 1., através do processo de cadastro 85/2004, passou a englobar o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ..., concelho ..., sob o artigo 220.º, secção B, que foi suprimido.
b) [SUPRIMIDO]
c) As pessoas identificadas em 13. praticavam os atos referidos em 16., convictos de serem comproprietários.
d) O Município ... passou durante alguns anos pelo caminho por mera tolerância.
e) Os autores tinham a chave de acesso referida em 17..
f) Os autores nunca se opuseram à destruição do caminho operada pelo referido FF.
g) Em virtude do aludido em 28. e para os efeitos referidos em 29., são necessários 2 empilhadores, um para carregar a fruta para o trator e outro para a retirar daí para o camião.
h) São necessárias 20 deslocações do referido terreno até ao camião, para que o mesmo fique com a carga pronta para seguir viagem até ao entreposto que recebe a fruta.
i) Quanto à mão de obra, são necessárias mais duas pessoas, uma para o empilhador e, outra para o trator.
j) Quanto aos combustíveis, há mais 2 veículos a serem abastecidos regularmente (trator e empilhador).
k) Até à presente data, para fazer face a esses custos, despenderam os autores a quantia de € 10.000,00.
l) O procedimento descrito em g) e h) causa disformidade na fruta que apresenta manchas.
m) Até à presente data, 15.000 kg de fruta ficou no estado referido em l).
n) A circunstância referida em l) implica uma desvalorização, por quilograma, na ordem dos € 0,30.
o) Em consequência da disformidade das frutas, os autores deixaram de auferir na sua comercialização o montante de € 4.500,00 (15.000 Kg x € 0,30).
p) Antes da destruição do caminho referenciado, os autores celebraram um contrato promessa de compra e venda do prédio rústico identificado em 1..
q) No aludido contrato fixou-se o prazo de 60 dias para a celebração da escritura pública e uma cláusula indemnizatória de € 150.000,00, caso não fosse celebrada a escritura de compra e venda por causa imputável aos autores.
r) Os autores alertaram o promitente comprador para a destruição do caminho de acesso e da necessidade de intentar a competente ação judicial para o restabelecer.
s) Os autores não conseguiram até à presente data restabelecer o caminho em causa, pelo que o promitente comprador resolveu o contrato através de carta registada datada de 22/05/2017, alegando o término do prazo de 60 dias e o não restabelecimento do caminho que desvalorizaria o prédio.
t) Exigiu ainda o promitente comprador aos autores, o pagamento de uma indemnização no valor de € 150.000,00, por incumprimento contratual.
u) Os autores celebraram um acordo de cessação do contrato promessa e, acordaram uma indemnização no valor de € 55.000,00 já liquidada.
v) Antes da celebração do contrato referido em p), os autores mostraram o prédio ao promitente comprador, abordando, nos atos preparatórios do contrato, as diversas características do prédio, inclusivamente os acessos à via pública onde se englobava o caminho objeto de discussão nos autos.
w) O promitente comprador celebrou o contrato promessa acreditando que as características do prédio manter-se-iam incólumes.
x) Os autores apenas cultivam uma parcela de vinha integrante do mesmo prédio na sua estrema poente e uma outra parcela do prédio do lado norte do caminho público que faz a ligação de ... à povoação denominada ..., ambas confinantes com arruamentos públicos em toda a sua extensão.
y) A Junta de Freguesia ... sempre limpou e fez a manutenção do caminho da ..., tendo deixado de o fazer.
z) Substituídos que foram os veículos de tração animal por tratores e camionetas, o caminho da ... perdeu parte dos seus utilizadores.
aa) O caminho da ... era o que, naqueles tempos, permitia um acesso mais curto e rápido da parte sul do prédio dos autores, à povoação de ... e por sua vez à Estrada Nacional que faz a ligação a ....
bb) O pai do Sr. II, o próprio II e os seus familiares, utilizavam o caminho de granjeio do prédio dos autores e deste prosseguiam para o caminho da ... para remoção das colheitas.
cc) Como o caminho da ... não permitia a circulação de camionetas, o Sr. II começou a pedir ao anterior proprietário do prédio dos réus, o favor de deixar passar as camionetas pelo caminho de granjeio no sentido sul/norte, que atravessava toda a propriedade daqueles, desde a estrada nacional até ao caminho público da ..., o que foi autorizado pelo anterior proprietário do prédio dos réus.
dd) Com a degradação do caminho da ... vários proprietários de prédios sitos a norte do prédio dos réus deixaram de cultivar esses prédios por não disporem de acesso aos mesmos.
ee) A autorização mencionada em cc) foi concedida atenta a especial amizade que o anterior proprietário do prédio dos réus detinha com o referido II.
ff) Nos últimos anos, II foi usando cada vez menos o dito caminho em virtude de ter ele mesmo criado acessos ao prédio dos autores pelos lados norte/nascente do mesmo.
gg) Os autores não granjeiam o seu prédio desde a cessação do contrato de arrendamento com o referido II.
hh) Para que os autores conduzissem a fruta pelo prédio dos réus sempre teriam de passar previamente pelos caminhos existentes no interior do seu prédio.».
1. - Do direito de compropriedade sobre o terreno/leito da passagem
Pretendiam, a título principal, os Apelantes, baseando-se na factualidade que esgrimiam ficasse julgada provada (pretendida transferência de factualidade essencial para o elenco dos factos provados, retirando-a dos “não provados”), que o Tribunal a quo incorreu numa errada aplicação em sede de matéria de direito, tornando injusta a sentença proferida.
Assim, na lógica dos Recorrentes, alterando-se a decisão de facto, haveria de alterar-se também a decisão de direito, no sentido do reconhecimento do seu pretendido/peticionado direito dominial de compropriedade, sobre faixa de terreno afeta a passagem rural, intitulada “caminho de consortes”.
Ora, só pode agora dizer-se, como visto, que não logrou obter-se qualquer alteração relevante – para o efeito em consideração – da decisão de facto, pelo que persistem provados todos os factos julgados provados na sentença apelada e não provados, no essencial, os que a 1.ª instância julgara não provados quanto ao terreno da disputa.
Ao contrário, pois, do pretendido pelos AA./Recorrentes persistem provados os factos em que a 1.ª instância fundou a sua absolvição, na parte objeto de impugnação recursória, tendo em conta o pedido de reconhecimento do direito dominial (de compropriedade).
O que, manifestamente, deixa prejudicada a argumentação de direito dos Recorrentes.
Vejamos, atentando (novamente) nos factos provados:
10. Desde tempos imemoriais, há pelo menos 50 anos, um dos acessos ao prédio referido em 1. [o dos AA.], faz-se por um caminho de terra batida, de forma continua e indivisível, com comprimento não inferior a 200 m e largura de 3,25 metros;
11. O aludido caminho tem o seu início num portão de ferro, situado ao lado dos antigos armazéns da empresa F... e passa, também, pelo prédio identificado em 7. e 8. [o dos RR.];
12. Esse caminho [aludido em 10.] é visível, quer nas cartas militares, quer no cadastro geográfico;
13. O caminho era utilizado pelos autores através dos arrendatários do seu prédio, pelos réus (outrora, pelos antigos proprietários, mormente, a sociedade A..., S.A. e F...) e por FF, para acederem aos respetivos prédios;
14. O Município ... também utilizava o caminho referido em 10., único acesso para chegar aos reservatórios de água pública e tanques, para proceder à sua manutenção, mais procedendo o Município, muitas vezes, à manutenção do caminho para melhorar o acesso ao local;
15. As pessoas identificadas em 13., nos termos aí referidos, sempre passaram no caminho sem pedir a quem quer que seja.
16. O portão referido em 11. foi colocado por iniciativa do anterior proprietário do prédio dos réus, a expensas suas, sem pedir autorização ou consentimento a quem quer que fosse para o fazer.
17. As pessoas indicadas em 13., com exceção dos autores, têm uma chave do portão de entrada que dá acesso primeiramente ao caminho e, posteriormente, aos respetivos prédios.
18. O caminho referido em 10. configura o único acesso ao prédio dos autores, em segurança, através de camião superior ou igual a 5 toneladas.
19. Os autores, através dos arrendatários do seu prédio, utilizavam o citado caminho, pelo prédio dos réus, há mais de 50 anos, ininterruptamente, utilizando-o sem quaisquer limitações.
20. Tal, à vista de toda a gente, pública e pacificamente, sem oposição de quem quer que seja, mormente, da anterior proprietária, A... S.A..
E pondere-se que resulta, todavia, não provado que:
As pessoas identificadas em 13. [incluindo os AA.] praticavam os atos referidos de passagem convictos de serem comproprietários [al.ª c) do factos não provados].
Ou seja, nada nos diz que quem passava o fazia na convicção de se tratar de coisa comum (de que se é dono), de passar sobre coisa comum: o simples passar/circular por uma determinada faixa de terreno não é expressivo, sem mais, da prática de atos materiais de posse em termos de aquisição por usucapião do direito de compropriedade sobre esse espaço de passagem.
É que pode-se passar por mera condescendência ou autorização (de outrem, o dono), caso em que não há uma posse imobiliária (mas uma atuação sem posse, mais próxima da mera detenção, ou detenção em nome de outrem, se uma detenção chegasse a haver para quem se limita a circular/“passar” por determinado local) – cfr. art.º 1253.º do CCiv..
Pode-se passar no exercício de um direito de servidão de passagem, na convicção, pois, de se ser beneficiário desse direito, designadamente por se ser titular de um prédio dominante (perante o prédio serviente) – cfr. art.º 1534.º do CCiv.. Nesse caso, haverá uma posse em termos de direito de servidão de passagem.
E pode-se passar no exercício de um direito de compropriedade, na aceção do disposto no art.º 1403.º do CCiv., segundo o qual existe compropriedade, ou propriedade em comum, “quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, sendo cada consorte titular da sua “quota” (n.º 2 do mesmo art.º) e exercendo os comproprietários em conjunto todos os direitos que pertencem ao proprietário singular (art.º 1405.º, n.º 1, do mesmo Cód.). Nesse caso, haverá uma posse em termos de direito dominial de compropriedade.
De há muito vem sendo entendido que «Um caminho de “consortes” é o que pertence a mais do que um proprietário ou que está afecto ao uso de certos e determinados proprietários, sendo um caminho privado» – Ac. TRP de 30/10/2000, Proc. 0051214 (Rel. Narciso Machado), em www.dgsi.pt.
Ou, dito de outro modo:
«1º Um caminho de consortes traduz apenas uma situação de comunhão de direitos, que tanto pode reportar-se a direitos relativos como a direitos absolutos de eficácia erga omnes. // 2º Por regra, um caminho de servidão define uma situação de servidão de passagem que onera um ou mais prédios em benefício de outros prédios rústicos.» – Ac. TRG de 15/02/2018, Proc. 159/12.4TBSBR.G1 (Rel. Heitor Gonçalves), em www.dgsi.pt.
Como visto, pretendido o reconhecimento do direito de compropriedade, falta a prova do animus respetivo: não se prova que os AA. (e outros) praticassem os atos referidos de passagem convictos de serem comproprietários.
Poderia pensar-se que o animus da posse devesse presumir-se perante a existência do corpus (cfr. art.º 1252.º, n.º 2, do CCiv.), visto este último como a prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito, no caso o exercício do direito de compropriedade.
É também sabido que a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito real, no caso, o direito de compropriedade (art.º 1251.º do CCiv.).
Ora, na perspetiva da aquisição originária do domínio, para além de faltar o animus da posse, em termos de direito de compropriedade, também não se nota, quanto ao próprio corpus da posse, a prática de atos materiais inequívocos correspondentes a esse direito dominial (atuação como comproprietários, e não simples passantes por condescendência ou beneficiários de um direito de servidão de passagem).
É que não se prova – nem tal foi devidamente alegado – a prática de quaisquer atos correspondentes aos que usualmente pratica o proprietário singular (art.º 1405.º, n.º 1, do CCiv.), seja quanto à administração da coisa, seja quanto à sua manutenção ou conservação (cfr. art.ºs 1407.º e 1411.º).
Na verdade, não se mostra que os AA. alguma vez tenham feito mais do que passar/circular, apenas se apurando que procedeu o Município – não outrem –, muitas vezes, à manutenção do caminho para melhorar o acesso ao local.
Ou seja, não se prova sequer factualidade demonstrativa de um verdadeiro corpus de uma posse dos AA. em termos de direito de compropriedade, donde que não pudesse presumir-se o respetivo animus ([8]).
Improcede, pois, a argumentação dos Apelantes em contrário, devendo ser mantida a sentença nesta parte.
2. - Da aquisição por via de usucapião do direito de servidão de passagem
Como visto, os Apelantes pretendem, subsidiariamente, o reconhecimento e respeito quanto à existência, a seu favor, de um direito de servidão de passagem, adquirido por via de usucapião.
Na sentença considerou-se assim:
«(…) apenas de provou a existência de um caminho, utilizado pelos rendeiros dos autores há mais de 50 anos, para aceder ao seu prédio, de forma pública, pacífica e ininterrupta, sem oposição de ninguém.
E mais uma vez não se provou que o faziam na convicção de que lhes assistia tal direito de passagem (o animus), o que teria que ser alegado – e não o foi – e provado.
Ainda que se entenda que a alegação da factualidade atinente ao elemento psicológico configura matéria concretizadora e não essencial, sempre se dirá que, em todo o caso, da prova produzida não se pôde concluir naquele mesmo sentido e presumir pelo corpus a existência do animus, porquanto aquele é insuficiente para o efeito.
Do que já se referiu aquando da motivação da matéria factual, veja-se que nem se dá o caso de este ser o único acesso da via pública que os autores têm ao seu prédio, o que poderia contribuir para aquela presunção, ao que se soma o facto de os autores não terem a chave (nem lha ter sido facultada) para aceder ao caminho.
O facto de os atos de posse invocados serem exercidos por terceiro, também não auxilia nesta mesma matéria.
Tudo o que nos leva a duvidar quanto a que título ali passavam os autores na pessoa destes terceiros.
Ainda, salvo melhor opinião, não é por não se ter provado que os autores, através daqueles arrendatários, passavam no caminho naqueles moldes com a convicção de que eram comproprietários do mesmo, que se pode inferir, sem mais, que o seria por estarem convictos de ali terem um direito a passar.
E acrescenta-se, por fim, que, sem prejuízo de aquele ser o acesso mais seguro para a pretendida passagem de camiões, nada se provou no sentido de os autores não terem condições que lhes permitam estabelecer uma comunicação sem excessivo incómodo ou dispêndio de meios que, no limite, nos poderia levar a concluir que poderia estar em uma servidão legal de passagem em benefício de prédio encravado (artigo 1550.º, do Código Civil).
Pelo que, mais uma vez e quanto à invocada forma de constituição da servidão de passagem, não estão reunidos todos os elementos que nos permitem, com certeza e segurança, afirmar que ali existia uma servidão de passagem e que os autores, naquelas circunstâncias, passavam no dito caminho com convicção que tinham direito a lá passar.
Os factos provados, só por si, não são suscetíveis de demonstrar que os autores adquiriram o direito de servidão de passagem pelo prédio dos réus, por usucapião.
Perante o exposto, a pretensão dos autores de ser reconhecida a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus terá que improceder e, consequentemente, a pretensão da reposição dessa mesma servidão.».
Ora, é certo que os AA./Recorrentes não alegaram, na sua petição, os factos referentes ao animus da posse em termos de direito de servidão de passagem.
Com efeito, em parte alguma da petição afirmaram que a sua passagem – ou de outrem a seu mando o com a sua autorização (cfr. 1252.º, n.º 1, do CCiv.) – ocorreu na convicção de exercerem um direito próprio de passagem através do prédio dos RR. (serviente) para o seu prédio (dominante).
Assim, é certo, como referido na sentença, que a factualidade tendente a demonstrar o animus (integrante da posse em termos de direito de servidão de passagem, posto ser disso que agora se trata) teria que ser alegada, e não o foi, embora, uma vez que estivesse demonstrada a existência do corpus, o animus, se alegado, fosse legalmente de presumir (dito art.º 1252.º, n.º 2, do CCiv.).
É que tal factualidade tendente a demonstrar o animus – enquanto elemento essencial/imprescindível, integrante da posse em termos de direito de servidão de passagem ([9]) – não pode, salvo o devido respeito, no horizonte da aquisição de direitos reais sobre imóveis por via de usucapião (cfr., com relevo para o caso, os art.ºs 1287.º, 1293.º e segs. e 1547.º, todos do CCiv.), deixar de ser vista como “factos essenciais que constituem a causa de pedir” (cfr. art.º 5.º, n.º 1, do CPCiv.).
Que este elemento da posse – composta esta por um corpus e um animus ([10]) – não colheu alegação pelos AA./Apelantes resulta dos art.ºs 25.º a 29.º da petição, onde os demandantes até aludem a que os anteriores proprietários “sempre permitiram a passagem” (art.º 26.º, com itálico aditado), inculcando, assim, a ideia de “permissão”, em vez de uma (resoluta) “intenção e convencimento de exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica”.
O que foi alegado foi o animus em termos de direito de compropriedade – agindo convictos de serem comproprietários –, mas, como visto, não resultou provado ([11]).
Assim sendo, parece verificar-se nesta parte a anomalia apontada, já que o segmento fáctico aludido – referente ao animus da posse em termos de direito de servidão de passagem, embora do mundo dos factos interiores ou psicológicos – teria de resultar alegado, enquanto facto essencial (nuclear ou principal) e não o foi, não podendo dizer-se que estejamos perante alegação fáctica implícita ou no mundo dos factos meramente complementares ou concretizadores.
É certo que o julgador, no âmbito do elenco dos factos essenciais, “pode e deve correlacioná-los, fazer a interpretação factual que considerar mais adequada e concluir com as respostas que daí resultem” ([12]).
Aliás, como refere Abrantes Geraldes ([13]), «importa reflectir nas modificações operadas em sede de delimitação dos “temas da prova”, por contraposição com o anterior sistema assente em “pontos de facto da base instrutória” ou com o anacrónico sistema dos “quesitos”, impondo-se agora se atenuem os efeitos de um determinado e frequentemente excessivo rigorismo formal, já criticável perante o sistema anterior», determinando o novo sistema «que a produção de prova em audiência tenha por objecto “temas da prova”(art. 596.º) enunciados na audiência prévia, em vez de incidir sobre “factos” sincopados, tendo-se optado por inscrever a decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença (art. 607.º, n.º 3)», perante o que será de admitir «uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais que deixem a justiça à porta do tribunal» ([14]).
E o próprio CPCiv. revogado – já desde a redação dada pela Lei n.º 180/96, de 25-09 – previa a “consideração, mesmo oficiosa, de factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” (respectivo art.º 264.º, n.º 2), bem como dos “factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório” (n.º 3 do mesmo normativo).
Como vem entendendo o STJ ([15]):
«Com as últimas reformas do processo civil, porém, as partes, por um lado, perderam o quase monopólio que detinham sobre a lide, e, por outro, o Tribunal passa a assumir uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material, ou seja, a alcançar a justa composição do litígio que é, em derradeira análise o fim último de todo o processo.
(…) Reconhece-se, agora, ao Juiz a “possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, os factos meramente instrumentais e [d]os utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa”».
No mesmo sentido se chama a atenção para a necessidade de «considerar de uma forma inovadora em face do NCPC que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto. Para o efeito já não valem, como valiam em face do art. 646º, nº 4, do anterior CPC (…), os argumentos de pendor formalista. Mais do que nunca, é possível agora o juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5º, nº 2.
O modelo processual introduzido pela reforma é o da prevalência do fundo sobre a forma, de acordo com uma nova filosofia que vê no processo um instrumento, um meio de alcançar a justa composição do litígio, de chegar à verdade material pela aplicação do direito substantivo.
Atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório» ([16]).
In casu, todavia, parece-nos incontornável – salvo sempre o devido respeito – que não foi alegado um facto essencial constitutivo da causa de pedir, que cabia aos AA. – e só a eles – alegar, trazendo-o aos autos ([17]), facto esse que, por não alegado, não pode ser suprido, nem presumido (art.º 5.º do NCPCiv.) ([18]).
Donde que, não alegado o factualismo referente ao animus aludido, não possa o mesmo ter-se como presumido à luz do disposto no art.º 1252.º, n.º 2, do CCiv.. Não alegado o animus, não é de presumir a posse, nem o caso é de “dúvida” (não superada), mas de omissão de alegação de obrigatória factualidade essencial/nuclear, de que a parte não se poderia demitir ([19]).
Caso assim não se entendesse, seria de concordar com a sentença, ao enfatizar que este não será o único acesso dos AA. desde a via pública até ao seu prédio, o que poderia contribuir para aquela presunção, ao que se soma o facto de os demandantes não terem a chave (nem lha ter sido facultada) para aceder ao caminho, tudo levando a duvidar quanto ao título por que ali passavam os AA., na pessoa do ditos terceiros.
De reiterar que não são confundíveis a convicção de se passar/circular na veste de comproprietário (titular do domínio) ou na de atuante do direito de servidão: como dito na sentença, não é por não se ter provado que os autores, através daqueles arrendatários, passavam no caminho naqueles moldes com a convicção de que eram comproprietários do mesmo, que se pode inferir, sem mais, que o seria por estarem convictos de ali terem um direito a passar.
Em suma, improcedendo as conclusões dos Apelantes em contrário, é de manter a decisão recorrida, não se vislumbrando, no acervo decisório, qualquer violação de lei e ficando prejudicada a demais matéria de oposição dos Recorrentes à sentença (incluindo a pretensão indemnizatória).
Vencidos, cabe aos Recorrentes suportar as custas da apelação (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).
***
IV – Sumário ([20]): (…).
***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a sentença impugnada.
Custas da ação e da apelação pelos AA./Recorrentes (vencidos).
Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.
Coimbra, 25/02/2025
Vítor Amaral (relator)
Luís Cravo
Fonte Ramos
([1]) Segue-se, no essencial, por economia de meios, o teor do relatório da decisão recorrida.
([2]) Datada de 19/05/2024.
([3]) Destaques retirados.
([4]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([6]) Itálico aditado.
([7]) Ao invés, em contraste notório, de um outro contrato-promessa junto aos autos – o celebrado em 20/01/2015, em que é segunda outorgante vendedora a sociedade “A..., S. A.”, referente ao prédio ...24 da Conservatória do Registo Predial ... –, de que consta datado reconhecimento de assinaturas (em Cartório Notarial, em 28/01/2015), data esta atestada no âmbito notarial.
([8]) Quem se limita a passar/circular não pode ver-se – nem ser visto –, sem mais, como (com)proprietário do local por onde passa, posto essa exposição à coisa não ser significativa, por deficitária, de que se exerce o poder de facto ou detenção em termos dominiais, uma atuação como “titular” de um “direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela” (cfr. Pires de Lime a Antunes Varela, Código Civil Anot.,Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, ps. 5 e 8).
([9]) Como é bem consabido, o instituto da usucapião postula, no âmbito dos seus elementos integrantes/indispensáveis, uma posse (art.º 1251.º do CCiv.), já em termos do dito direito de servidão, a qual se traduz, indubitavelmente, num “corpus” e num “animus”, a dever ser exercida por um certo lapso de tempo e que deve revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade.
([10]) Assim, não há posse sem um corpus – consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito – e um animus – intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica.
([11]) A alegação traduz uma declaração de existência (ou inexistência) de um facto (de que se pretende aproveitar na lide), donde o entender-se que, como tal, poderá ser expressa ou tácita/implícita, podendo, pois, deduzir-se um facto não expressamente articulado de factos alegados que, com toda a probabilidade, o revelem (cfr., mutatis mutandis, art.º 217.º, n.º 1, do CCiv.). Assim, se o ónus de alegação em sede de articulados se basta com os factos essenciais (cfr. art.ºs 552.º, n.º 1, al.ª d), e 572.º, al.ª c), ambos do NCPCiv.), parece, se bem se vê, que nada impede que da alegação dos factos essenciais nucleares possa deduzir-se factualidade complementar ou concretizadora, desde que esta resulte, com toda a probabilidade, revelada por aqueles.
([12]) Vide Ac. STJ, de 10/09/2015, Proc. 819/11.7TBPRD.P1.S1 (Cons. João Trindade), disponível em www.dgsi.pt.
([13]) Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 238.
([14]) O Autor aludido reporta-se diretamente à questão da admissibilidade de integração na decisão fáctica de asserções que sejam mais do que puras “questões de facto”, o que é questão diferente da que agora nos ocupa.
([15]) Cfr. Ac. de 07/05/2015, Proc. 4572/09.6YYPRT-A.P2.S1 (Cons. Orlando Afonso), em www.dgsi.pt.
([16]) Assim o aludido Ac. STJ de 10/09/2015.
([17]) Cfr., sobre o tema, Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anot., vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 23 e segs..
([18]) Parece claro, pois, que na ação para reconhecimento do direito de servidão de passagem adquirido por usucapião é factualidade essencial (nuclear/principal), que, por isso, tem de ser alegada (pelo demandante, no âmbito da sua causa de pedir), a tendente a demonstrar o animus.
([19]) A não alegação dessa factualidade essencial (constitutiva do direito) para demonstração da usucapião não pode ser suprida pelo tribunal, por sujeita ao princípio do dispositivo, impedindo a procedência da ação/pedido, por não preenchimento de um dos elementos/requisitos da posse. Em tal caso, não alegado o facto, não pode suprir-se a falta através de uma presunção de direito substantivo, não podendo presumir-se o animus a partir da existência de alguns parcos atos materiais sobre a coisa (dito art.º 1252.º, n.º 2), não se tratando de um caso de dúvida sobre a posse, mas da não alegação, ab initio, de factualidade essencial à demonstração dessa posse (facto constitutivo do direito invocado).
([20]) Da responsabilidade do relator, nos termos do disposto no art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv..