IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ADITAMENTO DE FACTO NÃO JULGADO EM 1.ª INSTÂNCIA
CONTRATO DE MANDATO CIVIL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
DEVERES DE INFORMAÇÃO
PAGAMENTO DE DESPESAS
DESTRUIÇÃO DE DOCUMENTOS
ABUSO DE DIREITO
Sumário

1. - Não cabe à Relação, perante impugnação da decisão de facto, proceder ao aditamento à matéria assente de factos que (embora articulados) não tenham sido objeto de pronúncia/julgamento pela 1.ª instância, exceto se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada plenamente por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
2. - No contrato de mandato civil, mesmo que de natureza gratuita – sem retribuição –, cabe ao mandante reembolsar o mandatário das despesas realizadas que este fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais desde que foram efetuadas (e, se for o caso, indemnizá-lo do prejuízo sofrido em consequência do mandato).
3. - Ao mandatário cabe, para além do mais, prestar contas ao mandante, findo o contrato ou quando este as exigir, e entregar ao mandante o recebido – e não despendido – no âmbito da relação de mandato.
4. - A prestação de contas é vista como um modo/obrigação específico do dever geral de informação, assumindo-se na vertente de informação pormenorizada, com discriminação de receitas (e sua proveniência) e despesas (e sua aplicação), enunciação do respetivo saldo e apresentação da respetiva documentação (justificativa).
5. - Apurando-se que o mandatário apresentou à contraparte as despesas por si efetuadas para realização da acordada venda de um imóvel e, após a explicação das contas àquela, pretendeu deixar-lhe a documentação comprovativa dessas despesas, âmbito em que contou com o desinteresse e indiferença da contraparte, que a não recebeu, acabando tal mandatário, por isso, por destruiu esses documentos, deve ter-se por cumprida, no plano exigível, a obrigação de informação inerente à prestação de contas.
6. - Num tal contexto, não é censurável a destruição dos documentos, sendo até contraditório que a contraparte, depois do seu desinteresse/indiferença, viesse invocar superveniente impossibilidade culposa do mandatário – uma tal conduta pecaria por abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium.
7. - Provando-se que, após recebimento de documentos referentes à execução do mandato, os mandantes entregaram quantia monetária ao mandatário, a título de gratificação, inculcando a ideia de fecho de contas e atribuição de prémio/gratificação final, é de concluir, ao menos implicitamente, por um derradeiro acertamento/harmonização das relações patrimoniais decorrentes da execução do contrato.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*


Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA e BB, casada com CC, com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa de condenação, com processo comum, contra

DD, também com os sinais dos autos,

pedindo, na procedência da ação:

«1) Reconhecer-se e declarar-se o incumprimento contratual do Réu;

2) Ser o Réu condenado a pagar aos Autores a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (…) a quantia de €15.966,66 (…), a que caberá o montante de €7.983,33 (…) a cada um dos mesmos.

3) Ser ainda o Réu condenado no pagamento de sanção pecuniária compulsória, a ser decretada nos presentes autos ao abrigo no disposto do artigo 829.º-A n.º 4 do Código Civil, sendo devidos juros à taxa de 5% ao ano desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado e os quais acrescerão também juros de mora desde a citação até ao momento do integral e efectivo pagamento.».

Para tanto, alegaram, em síntese:

- os AA., irmãos entre si, são emigrantes no Canadá, tendo outorgado procuração a favor do R., conferindo-lhe, entre outros, poderes para partilhar e/ou vender os bens da herança por óbito de EE e de FF, âmbito em que logo entregaram ao R., em 2017, o montante de € 3.000,00, para fazer face a quaisquer despesas e honorários;

- também a solicitação do R., outorgaram procuração a favor da Dr.ª GG, advogada, conferindo-lhe poderes para os representar na partilha dos bens por óbito de seus pais;

- em fevereiro de 2018, o R. transferiu para a conta bancária de cada um dos AA. a quantia de € 15.000,00;

- em agosto de 2018, os AA. receberam do R. cópia não certificada da escritura de partilha, não lhes tendo sido entregue qualquer outro documento, seja de despesas ou de notas de honorários e respetivos recibos;

- nessa altura, entregaram ao R. a quantia de € 1.000,00, a título de gratificação;

- após leitura da escritura de partilhas, os AA. tomaram conhecimento de que cada um deles teria direito a receber a quantia de € 23.333,33 a título de tornas;

- segundo a advogada, após o desconto do valor de € 2.500,00, a título de honorários, esta transferiu o remanescente, no montante de € 44.166,66, para a conta do R.;

- ao transferir apenas a soma de € 30.000,00 para as contas bancárias dos AA., o R. apoderou-se da quantia de € 14.166,66, cabendo a cada um daqueles o montante de € 7.083,33;

- os AA., em consequência do ocorrido, clamam pela reparação também do dano não patrimonial respetivo.

O R. contestou, defendendo-se por exceção, âmbito em que invocou ser a A. BB parte ilegítima, e por impugnação, para além de deduzir reconvenção, concluindo dever ser:

«1 - Procedente e provada a excepção da ilegitimidade da A, e o Réu absolvido da instância, com todas as legais consequências, e,

sempre,

2 - Improcedente por não provada a presente acção, e por consequência o Réu absolvido do pedido com todas as legais consequências, ou caso assim se não entenda,

3 - Sempre, julgada procedente e provada a presente reconvenção, e assim os A.A, condenados a reconhecerem a existência do valor das despesas e prejuízos sofridos pelo Réu no montante de € 14.166,66 (…) e assim este o valor do crédito do Réu sobre os A.A, compensado com o crédito do Réu, e nessa medida, por consequência, também o Réu absolvido do pedido.».

Na réplica, os AA./Reconvindos pugnaram pela improcedência da reconvenção e pela condenação do R. como litigante de má-fé.

Realizada a audiência prévia, foi admitida a reconvenção e foi proferido despacho saneador, julgando improcedente a exceção de ilegitimidade e enunciando o objeto do litígio e os temas da prova.

Por despacho de 23/11/2022, foi decidido:

“Requerimento de 27/10/2022 (Ref.ª 9148557):

(…) veio o Réu DD, novamente, «impugnar» a procuração e ratificação junta aos autos pelos Autores em 17/10/2022 (ref.ª9109589), invocando que apenas AA e BB intervém como outorgantes, sendo que «CC, apesar da necessidade da sua intervenção, nestes autos para os efeitos do previsto nos artº 35 e 36 do C.P.C, não emite expressa e individualmente qualquer declaração de transmissão de poderes ao mandatário, para efeitos da sua intervenção nos mesmos».

(…)

Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a pretensão do Réu/Requerente DD, declarando como validamente constituído o mandatário forense do Autor CC.”.

O R., inconformado, interpôs recurso de apelação autónoma – tendo por objeto este despacho –, o qual não lhe foi admitido (cfr. despacho de 28/01/2023).

Tendo falecido a A. BB, foi proferida decisão de habilitação de herdeiros, declarando-se CC (marido) habilitado como seu sucessor para prosseguimento dos autos.

Procedeu-se depois à audiência final, com produção de provas, após o que foi proferida sentença (datada de 05/07/2024), decidindo assim:

«(…) julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência decido:

A. Condenar o Réu DD, a pagar aos Autores AA e CC, por si, e na qualidade de habilitado de BB a quantia de 3.339,26€ (…), na proporção de 1.669,63€ para cada um dos Autores, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a data da citação do Réu (18/03/2022), até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo da sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil.

B. Absolver o Réu DD do demais peticionado.

C. Julgar a reconvenção subsidiária improcedente.

D. Condenar Autores e Réu nas custas processuais, na proporção do respectivo decaimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).» ([1]).

Da sentença vieram os AA. interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([2]):

«Impugnação da Matéria de Facto

1) Factos indevidamente dados como provados

1.1.) Ponto 24 dos Factos Provados

1) A douta sentença deveria dar como não provado o ponto 24 dos Factos Provados, porquanto fez uma interpretação errónea da prova produzida;

2) Em sede da queixa-crime n.º 308/18.... que correu termos contra o Réu antes da presente demanda, o mesmo disse “que na altura que entregou a escritura à Sra. BB, não entregou os recibos das despesas, por não os ter na sua posse, mostrando só na altura o recibo da imobiliária.”;

3) Ao invés, no seu depoimento prestado em audiência, confirmou que no dia em que entregou a documentação atinente à escritura de partilha, também prestou as contas do exercício do seu Mandato. Disse o Réu ao minuto 00:57:14 do seu depoimento: «Não, ela não disse nada disso, ela só insistiu para ficar com a escritura porque ela assistiu à entrega das contas todas, tudo ali esclarecidinho e ela só insistiu para ficar com a escritura (…)»;

4) O Digníssimo Tribunal a quo ao ficar com a ideia de que as contas não foram prestadas de forma pormenorizada, não devia dar como provado tal prestação;

5) Dos depoimentos dos Autores, das testemunhas e da prova documental (em sede de inquérito criminal), resulta claro que não foram prestadas quaisquer contas;

6) Diz o Autor CC, ao minuto 00:30:32 das suas declarações: «Nunca, nunca me entregou um só, um só documento», rematando ao minuto 00:49:45, «não, o senhor DD veio sozinho entregar a escritura.»

7) Também o Autor AA corrobora a versão do Autor CC quando questionado nas suas declarações: [00:40:51] Sr. Doutor: «Portanto o seu cunhado não lhe disse que as contas tinham sido prestadas?» [00:40:56] AA: «Não.» [00:40:57] Sr. Doutor: «Então o que lhe disse sobre as contas?» [00:41:01] AA: «Nada, o meu cunhado não sabia e menos sabia eu.»

8) Também a testemunha HH refere que os Autores CC e BB lhe confidenciaram que não tinham sido prestadas quaisquer contas ou explicação para a diferença de valores. Disse a mesma no seu depoimento, ao minuto 00:31:47: «Não, eu perguntei se tinham para chegarmos a essa diferença perguntei se havia despesas, se tinham papéis mais as despesas, para haver a diferença que estava, eles não tinham, não sabiam.» [00:32:04] Sr. Doutor 2: «Não sabe se tinha havido uma reunião onde essas despesas foram explicadas?» [00:32:07] HH: «Eu perguntei-lhes eles disseram que não.»

9) No âmbito da prova documental e do inquérito n.º 308/18.... juntos aos autos, em sede de despacho de arquivamento, são referidas também as declarações da Autora BB, falecida na pendência dos autos, e onde afirmou que “não foram apresentados os comprovativos de despesas”.

10) A versão do Réu apenas é secundada pelo testemunho de II, esposa do mesmo, que diz ter estado presente na prestação de contas, o que desde logo nos merece reticências ao nível da credibilidade processual, pois tal informação não é corroborada com nenhum outro elemento probatório digno de registo.

11) As próprias regras da experiências, lógica e normalidade social prevalente apontam no sentido de que é inverosímil que alguém que no exercício de um Mandato, tenha ou não prestado contas, queime os seus documentos escassos meses depois de findar o seu labor.

12) Assim, em face dos depoimentos dos Autores e da testemunha HH, em consonância com as declarações absolutamente contraditórias do Réu, deveria o Digníssimo Tribunal a quo ter dado como não provado o ponto 24 dos factos provados, pois fez uma interpretação errónea dos meios probatórios já elencados.

13) Como consequência, ao não ter prestado contas, deve o Réu restituir o montante total do valor de tornas a que os Autores e herdeiros tinham direito, e que o mesmo indevidamente se apoderou, in casu, a quantia de €14.166,66 (catorze mil cento e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), cabendo a cada um daqueles o montante de €7.083,33 (sete mil oitenta e três euros e trinta e trinta e três cêntimos).

Sem prescindir,

1.2) Pontos 9, 10, 11 e 29 dos Factos Provados

14) A douta Sentença deveria dar como não provado o ponto 9, 10 e 11 dos Factos Provados, porquanto fez uma interpretação errónea da prova produzida;

15) As despesas apresentadas pelo Réu ou não existiram ou são uma grosseira violação das regras da experiência, bem como resultam de um deficiente exercício do Mandato por parte do mesmo, com prejuízo para os Autores.

16) Os Pontos 9 e 10 devem ser dados como não provados, porquanto ofendem de forma grosseira o normal acontecer;

17) A despesas de 23 deslocações a ..., no valor de 1583,55€ foram absolutamente escusadas, se é que existiram, dado que logo no início de Agosto o Réu outorgou contrato de promessa de compra e venda do único bem das heranças e recebe sinal, pelo que não se percebe quais os contactos que eram necessário fazer com os herdeiros;

18) Ademais, em 30 de Agosto de 2017, é intentado inventário notarial por Mandatário Forense, a Dra. GG, pelo que não eram necessárias mais viagens do Réu;

19) Em favor do Réu, a testemunha Dra. GG tentou justificar todas as idas daquele a ..., mas as mesmas não se confirmam;

20) Disse esta testemunha, no seu depoimento a partir do minuto 00:27:47, quando questionada sobre se o Réu esteve sempre presente nos actos processuais do inventários, que «esteve sempre presente nunca estive sozinha»;

21) Ora, não consta do processo de inventário e suas actas (docs. 9 a 18 da Contestação, estando ainda os autos munidos com o referido processo de partilhas) qualquer participação ou intervenção do Réu no referido processo;

22) Disse também esta testemunha, no seu depoimento a partir do minuto 00:28:02 (…) «portanto a primeira vez que veio ao escritório com os senhor CC e com o senhor AA, depois disso foi ter comigo, eu já estava de férias, isto foi em Agosto, estava com os meus 3 filhos, foi ter à casa de férias, fomos ali na zona de ..., foi nessa altura foi entregar os cheques com as provisões para as despesas e para os honorários (…) ele veio ter comigo também pessoalmente não houve cá emails, depois tivemos outra reunião no escritório, veio trazer os originais das procurações, veio trazer algumas certidões que o senhor DD tinha obtido, e estivemos a ver a ata (....)»;

23) É absolutamente displicente que um Mandatário se desloque 400 km para enviar documentos, quando o pode fazer perfeitamente por correio, com um gasto muitíssimo menor.

24) Conforme nota de honorários e despesas (doc. 22 da Contestação), a Mandatária Forense cobrou o valor das certidões, bem como o trabalho que teve a obtê-las, sendo que aquando da entrada do processo de inventário em Agosto, o mesmo estava instruído com documentos e identificação dos herdeiros, o que desde logo contraria as idas do Réu a ... até Fevereiro do ano seguinte para obter documentos;

25) O Réu não se deslocou à casa de férias da Mandatária, na zona de ..., para entregar os cheques com as provisões para as despesas e para os honorários, pois os cheques das provisões estavam endereçados ao mesmo e não poderiam ser depositados pela Mandatária Forense (docs. 2 e 3 da Contestação), sendo que conforme documento n.º 4 da Contestação, os valores foram depositados na conta da Dra. GG sim, mas através de depósito bancário feito pelo Réu;

26) Disse também a mesma testemunha, ao minuto 00:30:15, «portanto o processo entrou estou aqui a ver a 30 do 8 de 2017, 30 do 8, entretanto o senhor DD depois de eu entrar com o processo veio ter comigo dia 28/08/2017, que é a data da assinatura da procuração, veio cá por causa do aditamento ao contrato promessa, e depois veio submeter à minha análise e depois veio fazer a adenda a esse contrato promessa também em setembro de 2017», o que não corresponde aos factos, uma vez que a procuração forense data de 27 de Setembro de 2017, e a adenda ou aditamento do contrato-promessa foi realizada em 5 de Setembro de 2017;

27) O Réu nunca conseguiu explicar a utilidade das suas viagens, tanto dizendo que as deslocações foram até ao fim do processo de inventário, como quando confrontado que com a casa vendida e com o processo instaurado, as deslocações já tinham sido antes;

28) Disse também que tentou vender a casa para não haver partilhas, mas com o processo já instaurado ainda fez um adenda ao contrato promessa e recebeu um sinal no valor de 10 mil euros (cf. doc. 7 e 8 da Contestação);

29) E, portanto, parece-nos claro que o Réu não fez ou não tinha que fazer as viagens que diz fazer a ..., sendo também desprovidas as refeições efectuadas;

30) O Réu não logrou explicar de forma lógica e cabal para que serviram as chamadas telefónicas nacionais e internacionais para o Canadá, no valor de cerca 733,85€, limitando-se a afirmar no seu depoimento ao minuto 01:32:06 que era para «contar o que é que se passava, a contar o que se passava», o que é ofensivo das regras da experiência;

31) Também não logrou explicar as despesas apresentadas no ponto 42.º al. f) da Contestação, ou seja, €260,00 de despesas de correio, o que ao preço à época de uma carta com registo simples, daria mais de 100 missivas, o que mais uma vez é injustificável e grosseiro;

32) Mais uma vez o Réu que não conseguiu explicitar o valor de 640€ de certidões e que certidões eram essas, quando sobretudo as mesmas estão computadas e pagas a quem de direito, in casu, a Dra. GG, que as especificou na sua nota de honorários e despesas (cf. doc. 22 da Contestação);

33) Disse a este respeito no seu depoimento a partir do minuto 01:35:21, quando confrontado, o seguinte: Sr. Doutor 2: «Em que certidões, senhor DD?» [01:35:23] DD: «Ai isso... várias». [01:35:27] Sr. Doutor 2: «Várias, que certidões?» [01:35:29] DD: «As certidões que me pediam.» [01:35:30] Sr. Doutor 2: «De quê?» [01:35:31] DD: «Para o processo.» [01:35:33] Sr. Doutor 2: «Mas a doutora GG, foi ela que as tirou, ela cobrou os honorários disso (…)».

34) Pelo que não há quaisquer dúvidas que tais despesas não existiram e que foram duplamente pagas pelos Autores;

35) É contra os usos e costumes o Réu ter decidido por motu próprio dar gratificações sem que para isso estive Mandatado, pelo que não devem proceder os valores de 500€ entregues à Mandatária Judicial e de igual valor às testemunhas;

36) As despesas com almoços de testemunhas, outras deslocações, nomeadamente as feitas na Zona de ..., no valor de cerca de 1.000,00€, vêm alegadas no montante peticionado em 43.º da Contestação (3.048,41€), que foram dadas como facto não provado (alínea E) dos factos não provados), pelo que a douta Sentença deveria ter considerando as referidas despesas não provadas;

37) Contraria as regras da experiência que estando supostamente presente pelo menos um interessado directo (AA) não fosse o mesmo a assinar o contrato com a imobiliária;

38) Ademais, nas procurações outorgadas, os Autores não passaram qualquer poder para o Réu outorgar contratos com imobiliárias e pagar o respectivo preço – logo nulo-, pelo que desde logo cremos que tal contrato foi feito à revelia daqueles e sem o seu conhecimento;

39) Os Autores não tiveram conhecimento do contrato com a imobiliária: «[00:20:24] Meritíssima Juíza: Olhe, mas chegou a ser feito um contrato com a imobiliária? [00:20:31] AA: Não que eu tenha conhecimento.»

40) Decorrente de um contrato-promessa assinado pelo Réu, os Autores pagaram também uma comissão à Imobiliária de €3.610,00 (cf. doc. 5 da Contestação), tendo ainda pago a título de juros ao promitente-comprador a quantia de €400,00, sem que tivessem qualquer responsabilidade nessa despesa;

41) Além de ser um contrato nulo, a não realização do negócio foi da responsabilidade do Mandatários dos Autores (Réu), ou no limite tal despesa teria de ser divida pelos demais herdeiros, de acordo com o seu quinhão, o que nunca foi feito;

42) Os Autores nem sequer figuram como outorgantes do contrato-promessa, e o mesmo é outorgado em nome de pessoas falecidas à época há 7 anos, como é o caso de JJ (cf. escritura de partilha – doc. 7 da petição inicial), tendo o Réu assinado como procurador dos vários herdeiros;

43) O Réu enreda-se em contradições, ora dizendo que pensa que assinou o contrato promessa por todos, ora dizendo que apenas tinha poderes mandatados pelos Autores: «[01:21:13] Sr. Doutor 2: Eles meteram água, então diga-me uma coisa, quem é que assinou o contrato de promessa compra e venda? [01:21:17] DD: Eu. [01:21:19] Sr. Doutor 2: Isso em representação dos mesmos ou em representação de outros herdeiros? [01:21:23] DD: Ali penso que fosse por todos»;

44) Diz também que tanto havia acordo de todos os herdeiros como já não havia; que a culpa foi da Agência; não sabe explicar porque faz um contrato-promessa e depois intenta uma acção de inventário;

45) Acaba até a dizer que o problema foi que os outros herdeiros não quiseram pagar a comissão e que foi coisa entre os advogados «[01:27:29] Sr. Doutor 2: Se todos deram a aprovação, então deveriam todos pagar a comissão da imobiliária? [01:27:33] DD: Mas eles não quiseram pagar, aí é que está não quiseram pagar.»

46) Pelo que deve a despesa da Imobiliária e juros ao promitente-comprador ser dado como não provada ou que seja da responsabilidade dos Autores;

47) Pelo que deve o Réu restituir o montante total do valor de tornas a que os Autores e herdeiros tinham direito, e que o mesmo indevidamente se apoderou, in casu, a quantia de €14.166,66;

2) Da deficiência da decisão de facto: a falta de apreciação e de inclusão, na matéria de facto provada ou não provada, de facto essencial alegado pelos Autores – “da prestação de contas ao Autor AA”

48) O Digníssimo Tribunal a quo não inclui nem apreciou devidamente na sua fundamentação da matéria de facto, um facto essencial alegado pelos Autores e que se quedou, aliás, como cristalinamente provado;

49) Referimo-nos à circunstância de o Réu nunca ter prestado contas ao Autor AA;

50) Tal facto resultou não só das declarações dos Autores e Réu em audiência de julgamento, como foi confessado por este na sua contestação (ponto 41.º, mutatis mutandis).

51) Com efeito, o Réu quando confrontado com a prestação de contas ao Autor AA disse o seguinte: «[00:55:36] Meritíssima Juíza: Olhe ao senhor AA apresentou alguma conta? [00:55:38] DD: Não, a quem apresentei foi ao senhor CC, ao senhor CC.»

52) Pelo que deve o Venerando Tribunal ad quem suprir a referida deficiência, sendo incluído e aditado aos factos dados como provados que «o Réu não realizou a prestação de contas do exercício do Mandato conferido pelo Autor AA».

Sem prescindir,

B) Impugnação da Matéria de Direito:

1) Da Falta de prestação de contas ao Autor AA

53) Ao não prestar contas ao Autor AA, deveria o Tribunal a quo dar como não provado as despesas eventualmente efectuadas em nome deste pelo Réu;

54) O Réu confirmou aliás que não prestou contas ao mandante AA nem lhe endereçou qualquer comunicação de execução ou inexecução do Mandato;

55) Os Autores apresentam queixa-crime contra o Réu a 17 de Dezembro de 2018;

56) O Réu disse em audiência de julgamento e também na sua contestação - ponto 58.º - que no final de 2018 destrui todos os documentos;

57) O Réu colocou-se objectivamente e por culpa exclusivamente sua, na impossibilidade de vir a prestar quaisquer contas e esclarecimentos da exercício do seu Mandato após o final de 2018, quando volvidos apenas 4 meses após a suposta prestação de contas a alguns dos mandantes, destrói documento que titulavam, aparentemente, mais de 10 mil euros de despesas;

58) Não poderia também sequer presumir que o silencia do mandante AA valeria como aceitação tácita, na medida em que nem sequer lhe tinha comunicado o que quer que fosse, nem os demais Autores representavam este (as procurações eram distintas);

59) Não resulta alegado nem provado nos autos que tenha existido qualquer comunicação por parte do Réu ao mandante AA;

60) Neste sentido, cremos que a douta Sentença, ao decidir como decidiu, violou o consagrado nos artigos 1161.º, als. c) e d) e 1163.º do Código Civil.

61) Deverá assim considerar-se a não prestação de contas do Réu ao Autor AA, ser a Sentença revogada nesta parte e condenar aquele a restituir a este a quantia de 5413,70€ (cinco mil e quatrocentos e treze euros e setenta cêntimos), atenta a quantia já computada em sede condenatória - 1669,63€ - tudo num total de 7 083,33€ (sete mil e oitenta e três euros e trinta e três cêntimos).

Termos em que:

E nos melhores de Direito que Vossa Excelência doutamente suprirá, deve o presente recurso proceder, por provado, e consequentemente:

a) Revogar-se a douta decisão recorrida e condenar o Réu a devolver aos Autores a quantia de 14.166,66€

b) Ou caso assim se não entenda, considerar-se a não prestação de contas do Réu ao Autor AA, ser a Sentença revogada nesta parte e condenar aquele a restituir a este a quantia de 5 413,70€ (cinco mil e quatrocentos e treze euros e setenta cêntimos), atenta a quantia já computada em sede condenatória - 1669,63€ - tudo num total de 7 083,33€ (sete mil e oitenta e três euros e trinta e três cêntimos).» ([3]).


***

O R./Apelado contra-alegou, pugnando pela rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto e pela improcedência da apelação dos AA., e interpôs, por seu lado, recurso subordinado – do aludido “despacho de 23-11-2022 – Refº 101976060 que julgou como validamente constituído o mandatário forense de CC (…)” –, apresentando a respetiva alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([4]):

«I – DO RECURSO INDEPENDENTE

1 – Os recorrentes quanto ao recurso não cumprem o ónus imposto pelo nº 2 alínea a) do artº 640 do C.P.C, devendo, por isso ser imediatamente rejeitado o recurso. Mas se assim se não entender,

2 – A motivação da aliás douta sentença nenhum reparo merece.

3 - A matéria constante dos pontos 9, 10, 11, 24 e 29 dos factos provados, deve manter-se inalterada, e assim nesta parte a sentença manter-se com as legais consequências.

Mas ainda assim, e apesar da sentença, deve sempre ser julgado procedente o recurso subordinado, e nessa medida, sempre o A. absolvido da instância com as legais consequências pois que:

II – CONCLUSÕES DO RECURSO SUBORDINADO

4 – A Procuração Forense é o meio próprio através do qual o mandante, confere poderes ao mandatário (mandato), Advogado, sendo que no conteúdo desse mandato deve constar a declaração, de que o respetivo outorgante dá poderes forenses, ou para ser representado em tal, e se for caso disso os poderes para confessar, transigir ou desistir. (artigo 43º e 45º do C.P.C.).

5 – No caso da procuração, outorgada em 14 de Outubro de 2022, no Consulado de Vancouver, não consta tal declaração de vontade (artigo 236º do C.C.), nem qualquer declaratário normalmente colocado e mediamente instruído para interpretar tal documento, assim o pode entender, até porque no caso o mesmo na sua autenticação teve a intervenção dos Serviços Notarias do Consulado, omitindo expressamente tal declaração do mesmo CC, confirmando-se apenas em relação os outorgantes AA e BB.

6 – É assim claro que a mesma procuração não cumpre a ordem constante do despacho de 03-10-2022 – Refª 101 387 781, para efeitos do artigo 48º nº 2 do C.P.C., não existindo assim uma Procuração nem ratificação, para os efeitos do artigo 268º, nº 2 do C.C., por parte do referenciado CC, cônjuge da A. BB, casado com a mesma no regime de comunhão geral de bens (artigo 1733º do C.C.).

7 – Aliás nem na petição inicial do presente processo, o mesmo A. CC, ocupou a posição de A., nem subscreveu a procuração inicialmente junta com a mesma petição inicial, apesar de uma inscrição como tal, no formulário do processo eletrónico.

8 – Nos termos da autenticação junta, bem como na procuração, apenas consta como outorgantes os referidos A.A. referidos, AA e BB, que expressamente conferiram poderes de ratificação do processado, e constituíram de novo mandatário o mesmo, Dr. KK.

9 – Há, assim, que respeitar a vontade do referido CC, e a mesma não pode ser substituída por meras interpretações, que não podem substituir tal vontade, quando a mesma declaração não consta do instrumento que a suporta, e mais quando o mesmo foi autenticado e presencialmente outorgado perante uma autoridade pública, constituindo documento autêntico, fazendo o mesmo prova plena do que do mesmo consta apenas e só, nos precisos termos do disposto no artigo 369º nº 1 do 371º, nº 1 do C.C..

10 – Deve, assim, o aliás douto despacho ser revogado com as legais consequências, nomeadamente a de o R. ser absolvido da instância com as legais consequências.

11 – Assim, o aliás douto despacho, violou, além do mais, o disposto no artigo 236º, 238º, 268º, 1157º e 1732º, todos do C.C. e Dec. Lei 267/92, 48º e 49º do C. Notariado e 33º, nº 2, 43º 44º, todos do C.P.C... Mas se assim se não entender,

12 – A aliás douta sentença nenhum reparo merece

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho de 23-11-2022, e seja o mesmo substituído por outro, que declare a não existência de procuração a favor do mandatário de CC, nem da determinada ratificação do processado, absolvendo-se, consequentemente, o Recorrente DD da instância, com todas as legais consequências, face ao litisconsórcio necessário que se impõe nos autos (artigo 33º do C.P.C.).

E caso assim se não entenda, negado provimento ao recurso deduzido pelos recorrentes, e, assim manter-se sempre a decisão da 1ª instância com todas as mesmas consequências, pois tal de mostra ser de

JUSTIÇA E DE DIREITO».

Os AA. não responderam em matéria de recurso subordinado.


***

O Tribunal a quo admitiu os recursos (principal e subordinado) como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito dos recursos, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pelas partes recorrentes – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito dos recursos ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, incidindo a impugnação recursiva sobre a decisão da matéria de facto e de direito, cabe saber ([6]):

a) Se, em matéria de recurso subordinado, ocorre erro de julgamento quanto ao despacho recorrido de 23/11/2022;

b) Se, em matéria de recurso principal, deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto;

c) Se, a ter sido devidamente impugnada a decisão de facto, a mesma merece procedência, com as inerentes alterações ao quadro fáctico da sentença;

d) Se, por força da procedência da impugnação da decisão de facto ou por razões de pendor jurídico, ocorreu erro de julgamento em matéria de direito e suas consequências (quanto à ação).


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III – Fundamentação

A) Recurso subordinado

Do erro de julgamento quanto ao despacho de 23/11/2022

Como resulta das suas conclusões do recurso subordinado – agora interposto, por anteriormente ter sido rejeitada formulada apelação autónoma –, o R./Apelante vem infirmar a existência de procuração forense que houvesse sido emitida por CC, por faltar declaração de vontade deste nesse sentido.

É a seguinte a fundamentação da decisão interlocutória assim impugnada:

“Com o requerimento que apresentou, pretende o Réu DD sustentar que o Autor CC não constituiu, pela procuração forense junta aos autos em 17/10/2022 (ref.ª9109589).

O mandato forense é um mandato especial e envolve a atribuição de específicos poderes ao mandatário para representar o mandante em todos os actos e termos de qualquer processo e respectivos incidentes, mesmo perante tribunais superiores (cfr. artigo 44.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sendo, assim, um mandato representativo típico, que se traduz na atribuição de um poder geral para representação em juízo, realizando, em nome da parte, todos os actos compreendidos na tramitação de processos judiciais.

É a procuração que é o meio através do qual é conferido esse mandato, devendo conter a declaração de que o respectivo outorgante dá poderes forenses ou para ser representado em tal e, se for caso disso, dos poderes para confessar, transigir ou desistir (cf. artigos 43.º, e 45 do Código de Processo Civil).

Coloca o Réu em causa precisamente não ter existido tal declaração de vontade, manifestada na procuração junta, por parte do Autor CC.

(…) [([7])].

Atento o supra exposto, da análise da procuração colocada em causa, verifica-se que a mesma foi outorgada com termo de autenticação, no Consulado-Geral de Portugal em Vancouver, Canadá, no qual se verificou a identidade dos outorgantes e se confirmou a sua vontade em subscrever o documento.

Mais se diga que o Autor CC já anteriormente havia outorgado procuração forense a favor do mandatário agora constituído (conforme procuração junta aos autos em 11/07/2022 (ref.ª 8876254), apenas padecendo a mesma de vício de forma, sanável, e cuja sanação ocorreu precisamente pela junção aos autos da procuração forense aqui em análise.

É assim manifesto, não sobrando qualquer dúvida, que o Autor CC, ao assinar a procuração forense, tendo para tal se deslocado ao Consulado-Geral, aposto a sua assinatura, tendo-lhe sido ainda lido e confirmado o conteúdo do instrumento que assinou, pretendeu constituir como mandatário forense, com tudo o que tal implica, o advogado KK.

Destarte, apenas poderá improceder a pretensão do Réu DD. (…).”.

Apreciando.

Do primeiro dos documentos em causa (juntos em 17/10/2022) consta o seguinte:

E do segundo deles consta:

Assim sendo, o que se constata é que o aludido CC foi interveniente/outorgante na procuração forense e no respetivo termo de autenticação, ambos por si assinados (como outorgante e não a qualquer outro título).

Doutro modo, não se compreenderia que a sua assinatura – para além da sua identificação – constasse de ambos os documentos (procuração e autenticação), no mesmo plano dos demais outorgantes.

Se se tratasse de pessoa estranha – à procuração e à respetiva autenticação –, não se compreenderia que figurasse como interveniente e apusesse – como apôs – a sua assinatura (como outorgante).

Assim sendo, haverá de concluir-se que também ele constituiu mandatário o causídico identificado naquela procuração, existindo, pois, declaração de vontade deste nesse sentido.

Em suma, improcede o recurso subordinado, inexistindo qualquer invocada violação de lei.

B) Recurso principal

1. – Do fundamento para rejeição da impugnação da decisão de facto

Defende o R./Apelado que os AA./Recorrentes, faltando à necessária análise crítica das provas convocadas, “não cumprem o ónus imposto pelo n.º 2 alínea a) do art.º 640 do C.P.C, devendo, por isso ser imediatamente rejeitado o recurso”.

Vejamos se tem razão.

É certo que, também em sede de impugnação da decisão de facto, o recorrente deve indicar as razões da sua discordância, o que o obriga a começar por indicar/especificar (i) os factos que considera erradamente julgados, (ii) os concretos meios de prova que impõem decisão diversa e (iii) a decisão que deve ser proferida sobre cada um dos pontos de facto objeto de impugnação [art.º 640.º, n.º 1, al.ªs a) a c), do NCPCiv.].

Ademais, convocando prova pessoal – objeto de gravação áudio –, cabe ao impugnante, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” [al.ª a) do n.º 2 do mesmo art.º 640.º], indicação essa a que pode proceder logo na sua motivação (sem necessidade de repetição, nesta parte, nas conclusões recursivas).

Ora, basta ler a motivação do recurso para se verificar que a parte recorrente (os aqui AA.) procedeu à análise da prova, separadamente, quanto a cada um dos factos que deixou impugnados (também estes devidamente elencados), de molde a tornar compreensíveis as razões pelas quais pugna por uma diversa resposta aos respetivos pontos de facto. Ao assim proceder, com concretos meios de prova convocados, os Apelantes observaram as diversas al.ªs do n.º 1 do art.º 640.º do NCPCiv..

Mas também ali deixaram identificadas as passagens da gravação áudio da prova pessoal que entenderam convocar: apresentando excertos da transcrição da gravação (os que consideraram relevantes), os Recorrentes sistematicamente indicaram, passo a passo, as passagens (tempos) da respetiva gravação, o que podiam fazer na alegação/motivação, sem necessidade, como dito, de exaustiva repetição nas conclusões (mas mesmo nestas, ainda assim, se notam diversas alusões às passagens da gravação áudio, como se retira das conclusões 3.ª, 6.ª, 7.ª, 8.ª, 22.ª, 26.ª, 33.ª, 43.ª e 45.ª).

Em suma, observados suficientemente os ónus legais a cargo dos AA./impugnantes, inexistem razões, salvo o devido respeito, para rejeição da empreendida impugnação da decisão de facto.

Por isso, improcedem as conclusões em contrário do R./Apelado.

2. – Impugnação da decisão da matéria de facto

Impugnada validamente a decisão de facto, cabe verificar se merece tal impugnação procedência, estando em causa o inconformismo dos AA./Apelantes quanto, desde logo, ao ponto 24 do elenco dos factos dados como provados – que consideram dever ser julgado “não provado” –, a que acrescem os pontos 9, 10, 11 e 29 do mesmo elenco, embora estes sob determinado condicionalismo, posto, como logo referem os mesmos impugnantes na sua motivação, começam, pela sua essencialidade, pelo dito “ponto 24”, «por contender com a questão fulcral deste processo e que diz respeito à efectiva ou não, prestação de contas», termos em que, “(…) caso o entendimento seja no sentido da prova dessa prestação, todos os demais factos provados, mormente os pontos 9, 10, 11 e 29 perdem a sua acuidade impugnativa.” (destaques aditados).

Vejamos, então.

É a seguinte a redação desse essencial ponto 24 (reportado a dia indeterminado do “mês de Agosto de 2018”, em que “o Réu entregou aos Autores cópia não certificada da escritura de partilha outorgada no dia 17 de Fevereiro de 2018”, como consta do ponto 23):

«24) Nesse mesmo dia, o Réu apresentou aos Autores BB e marido as despesas por si efectuadas para realização da venda do imóvel referido em 2) e após a explicação das contas àqueles, o Réu quis deixar-lhe os documentos comprovativos das despesas efectuadas, mas estes referiram que sempre tinham confiado no Réu, e, que já “tinha muitos papéis em casa” e que, assim, também não precisava deles, pelo que o Réu acabou por destruiu tais documentos.» (destaques aditados).

Da fundamentação da convicção exarada na sentença consta assim:

«(…) relativamente ao contido nos pontos 24) e 29), o Tribunal teve por base vários elementos de prova.

Desde logo o Réu frisou, de forma convicta e que nos pareceu credível, que se deslocou a casa dos Autores BB e CC a fim de lhes entregar as escrituras celebradas, nomeadamente a de partilha, e ainda para lhes prestar contas das suas despesas, cujo montante reteve antes de lhes transferir as tornas.

Por sua vez, o Autor AA referiu que não acertou nada com o Réu relativamente à realização da venda em causa, apenas tendo assinado a procuração a favor do Réu, que segundo os demais autores, amigos do Réu, tinha conhecimentos em ... e era a pessoa ideal para resolver tal situação e, bem assim referiu que apesar de ter o contacto do Réu, não lhe pediu contas porque pensou que ele era honesto, desconhecendo se o Réu prestou contas ao cunhado CC.

Ademais indicou que os Autores não andavam a tentar resolver o assunto da partilha da casa há muitos anos e que o Réu nunca disse que tinha que ser pago pelas despesas que tivesse.

Também o Autor CC frisou não ter pedido ao Réu que lhe prestasse contas, aduzindo aliás que só no ano seguinte é que lhe entregou a escritura, encontrando-se a testemunha HH presentes nessa altura e reparou na situação de ter sido transferido para os Autores um valor inferior ao das tornas devidas. Indicou, ainda, que o Réu não tratou de nada para além de ir buscar o dinheiro das tornas e o transferir, que foi a advogada que tratou de tudo, não obstante, estranhamente confirmou ter recebido telefonemas do Réu quando se encontrava no Canadá e ainda que lhe entregou 500,00€ após a entrega da escritura de partilha como compensação pelas despesas.

Por fim, a testemunha HH, familiar dos Autores, asseverou que não estava presente aquando da entrega da escritura aos Autores CC e BB, que o AA lhe comunicou que havia por diversas vezes solicitado cópia da escritura ao Réu, referindo-lhe este que a tinha entregue aos demais Autores, sendo que só em Setembro viu a escritura e se deparou com a situação de o valor das tornas ser mais elevado do que o valor efectivamente recebido. Patenteou ainda desconhecer o que fez o Réu e se este teve despesas.

Ora, para além de as declarações prestadas pelos Autores se terem pautado por uma notória animosidade e serem mesmo contraditórias com as declarações prestadas em sede de inquérito que correu termos contra o Réu (cfr. Fls 263 a 269 dos autos), foram mesmo contraditórios entre si, e ainda contraditórios com o depoimento da referida testemunha HH, para além de que atentam contra as regras da experiência comum e do normal acontecer.

O Tribunal até concebe que de facto as contas possam não ter sido prestadas de forma pormenorizada, desde logo atenta a relação de amizade existente entre o Réu e os Autores CC e BB, mas daí ao ponto de os Autores não consultarem sequer os documentos que lhe foram entregues, disso não ficou o Tribunal convencido.

Com efeito, chega até a ser bizarro que os Autores, principalmente quando se encontram patrocinados por Advogado, acharem que a mera quantia de 4.000,00€ que acabaram por entregar ao Réu seria suficiente para fazer face às despesas com a venda do imóvel, quando sabiam que tinha sido contratada advogada, que existiram necessariamente deslocações do Réu à zona de ..., que foi intentado processo de inventário, que seria necessária a obtenção de documentos e ainda em 08/08/2018, ou seja, em momento próximo ao da entrega das escrituras, outorgarem nova procuração a favor do Réu para venda de outro imóvel (cfr. Fls. 166 a 168), a qual apenas foi revogada em Agosto de 2019 (cfr. Fls 167 (v.) e 168 (v.). Bem, se tal como asseverou a testemunha HH os Réus tiveram conhecimento de que receberam a título de tornas um valor bem inferior ao devido em Setembro de 2018, é de estranhar que só passado quase cerca de um ano tivessem revogado a procuração entretanto outorgada a favor do Réu, sabendo que podiam correr o risco de ele voltar a fazer o mesmo!

Por outro lado, apesar de os Autores alegarem desconhecer a estratégia levada a cabo pelo Réu na execução do mandato que lhe foi incumbido, certo é que admitiram que se deslocaram a ... com o Réu para ir a uma imobiliária e a uma reunião com advogada, o que a própria confirma e elenca na nota de honorários, e, inclusivamente outorgaram procuração àquela, na qual é feita menção ao processo de inventário, e bem assim reconhecem contactos telefónicos dos Réus, o que igualmente foi referido pela testemunha GG, frisando que durante as diligências no processo de inventário, o Réu ia sempre contactando pelo menos um dos Autores. Ora, perante isto, pressupomos, o que os Réus desconheciam, era porque se inibiram de questionar e/ou porque confiavam no Réu.

Mais admitiu o Autor CC que encetou contactos telefónicos com o Réu quando se encontrava no Canadá, pelo que uma vez mais se estranha como este afiança que o Réu não tratou de nada, apenas de transferir o dinheiro das tornas, e também no âmbito desses contactos não questionasse o Réu do que se encontrava a ser feito quanto à partilha do imóvel.

Além disso, não se compreende como os Autores CC e BB, apesar de alegarem que apenas a muito custo o Réu lhes forneceu a escritura de partilha, ainda assim não se tenham munido de cautelas e não tenham verificado e consultado o teor da documentação que lhes foi entregue pelo Réu e nesse preciso momento.

De facto, temos de convir, numa primeira leitura dos presentes autos parece que os valores apresentados pelo Réu a título de despesas poderão aparentar ser exagerados, mas após uma leitura atenta e a produção de toda a prova, o Tribunal ficou precisamente com uma ideia contrária! De verdade, é consabido que inúmeras vezes existe dificuldade na identificação cabal de interessados num inventário, ainda para mais de pessoas que não são familiares (os herdeiros da madrasta dos Autores) e em representação de várias estirpes. Tal exige um trabalho prévio, que o Réu demonstrou ter efectuado, o que foi corroborado pela testemunha GG, que enalteceu o trabalho executado pelo Réu, evidenciando que se não fosse pelas inúmeras diligências encetadas pelo Réu seria difícil que a partilha do bem se realizasse tão rapidamente, aduzindo ainda que este foi o único processo de inventário que conseguiu terminar num notário e de forma tão célere.

Por outro lado, é desprovida de lógica a versão dos Autores no sentido de o Réu ter declarado que nada iria cobrar pelo seu trabalho, quando os próprios alegam, reconhecem e resulta de documentos, a pedido do Réu, logo no início lhe transferiram a quantia de 3.000,00€. Repare-se que resulta evidente dos autos que teve de ser o Réu a adiantar valores do seu próprio bolso, como desde logo o valor liquidado à mediadora imobiliária, o pagamento dos juros ao promitente comprador, as respectivas despesas com deslocações, pois que o valor que lhe foi inicialmente entregue pelos Autores foi entregue à Advogada.

No tocante à situação de terem sido os Autores a alegadamente suportarem todas as despesas do processo de inventário, sempre se refira que estes podiam ter lançado mão do competente processo para prestar contas aos demais interessados, reavendo assim o valor despendido com o pagamento das respectivas despesas.

Neste conspecto, ficou o Tribunal convencido de que o Réu explicou e apresentou, ainda que sucintamente, as contas relacionadas com a partilha aos Autores BB e CC – únicos que o interpelaram e convenceram a aceitar tal compromisso, sem que este tivesse qualquer contacto inicial com o Autor AA. E que os serviços foram prestados pelo Réu não levanta qualquer dúvida, basta atentar que foi alcançado o resultado que desde cerca do ano de 2003 se tentar alcançar.

No que respeita aos valores que se consideraram como provados, o Tribunal teve por base as regras da experiência comum e os valores indicados no relatório pericial em causa nos autos, considerando-se tais valore como adequados e razoáveis, apenas nos parecendo não serem equilibrados, mas antes excessivos os valores cobrados a título de outras despesas, motivo pelo qual se concluiu, mediante simples cálculo aritmético, que o Réu se apropriou do montante de 3.339,26€, do qual 1.669,63€ pertence à Autora BB, e 1.669,63€ pertence ao Autor AA - ponto 30).» (destaques aditados).

Cabia aos AA./Recorrentes evidenciar o erro de julgamento de facto do Tribunal a quo, posto que a Relação (somente) deve alterar a decisão de facto se a prova produzida/convocada impuser decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Invocam os AA. – sem deixar, à cabeça, de admitir haver “confusão patente no depoimento do Autor CC” – que o R., “em sede da queixa-crime n.º 308/18...., que correu termos (…) antes da presente demanda”, «no interrogatório de arguido prestado a 02.05.2019 no Posto Territorial da GNR ...», disse que “na altura que entregou a escritura à Sra. BB, não entregou os recibos das despesas, por não os ter na sua posse, mostrando só na altura o recibo da imobiliária”, versão contrária à que trouxe aos presentes autos e que foi acolhida pelo Tribunal recorrido.

Ora, não obstante a visão dos Apelantes, cabe dizer que é compreensível que o Tribunal, no momento de julgar, no exercício da sua total imediação perante a prova pessoal, confira maior credibilidade às declarações de parte que foram prestadas perante si – com atualidade ([8]) e exercício cabal do contraditório – do que a declarações pretéritas, prestadas em sede de inquérito crime, perante a entidade policial.

Vem invocada ainda pelos impugnantes a força probatória das “declarações de parte do Autor CC”, quando são os mesmos Apelantes a admitir/reconhecer, como visto, haver “confusão patente no depoimento do Autor CC”.

Bem como ocorre convocação das “declarações de parte do Autor AA”, salientado “o seguinte:

«[00:06:49] Meritíssima Juíza: Olhe, mas relativamente a eventuais despesas que o senhor DD pudesse ter, ficou alguma coisa tratada?

[00:07:00] AA: Nada absolutamente, e até este dia de hoje, nunca me prestou contas, nunca me deu recibo algum disto ou daquilo (…).

[00:12:48] Meritíssima Juíza: Olhe e depois quando é que o senhor teve acesso à escritura da partilha?

[00:12:56] AA: Eu tive que regressar ao Canadá (…).

[00:14:46] Meritíssima Juíza: Olhe, mas o senhor não teve acesso à escritura da partilha?

[00:14:50] AA: Nada absolutamente.

(…)

[00:26:16] Meritíssima Juíza: Volto a perguntar-lhe depois do senhor ter se apercebido desta situação, questionou o seu cunhado quanto às contas sobre se lhe tinham sido prestado contas, porque o senhor DD disse-lhe isso resulta agora das suas declarações que ia apresentar isso ao seu cunhado, o senhor questionou o seu cunhado e o senhor DD relativamente a isso?

[00:26:43] AA: Ao senhor DD não perguntei, mas ao meu cunhado perguntei e ele [impercetível] soube que ele estava a ser enganado [impercetível].

[00:26:57] Meritíssima Juíza: Então e o que é que o seu cunhado lhe disse, que o senhor DD justificou os valores ou não?

[00:27:05] AA: Não, o meu cunhado, o senhor DD não justificou os valores, automaticamente ele abusou da bondade do meu cunhado.”.

Conhecida a fragilidade, pela sua própria natureza, da prova por declarações de parte – em que a parte usualmente surge a reafirmar a sua versão dos factos, tal como apresentada, de forma interessada, nos articulados –, é consabida a comum necessidade de outras provas conformes, com força probatória corroborante, mormente num caso como o dos autos em que é notória a especial fragilidade daquela prova por declarações de parte, pelos motivos já referidos.

Âmbito em que os Recorrentes invocam prova testemunhal, desde logo o depoimento da testemunha HH, a qual, contudo, não assistiu a qualquer reunião ou contactos entre AA. e R., apenas tendo conhecimento a posteriori, mormente no seu contacto com documentos para efeitos de declaração de IRS, podendo colher-se, dentre o excerto da transcrição da gravação do depoimento (oferecido pelos Recorrentes), como mais significativo, o seguinte:

«[00:14:51] Sr. Doutor: Não lhe falaram por exemplo de ter sido prestado contas, ou haver algum documento?

[00:14:56] HH: Pois eu perguntei se não havia mais documentos, eu perguntei, se não junto com aqueles e eles disseram-me, assim como receberam a pasta do senhor DD tinham guardado a pasta e estava lá tudo, que nunca tinham aberto a pasta e que era aquilo que tinham, e eu perguntei, mas tem que haver documentos de despesas, quanto é que vocês pagaram aos advogados? Quanto é que pagaram, havia IMI’s para pagar atrasados, quanto é que é a vossa parte, o que é que foi, e mais comecei a pressionar porque e depois disse-lhes nós vamos declarar o IRS isso dá despesas portanto tem que ser abatidas a este valor, porque vocês vão pagar por aquilo que venderam e não apenas aquilo que receberam líquido, então onde é que estão essas despesas para podermos colocar, se algumas plausíveis de colocar no IRS, onde estão para abater e eles não davam, sei ela coitada disse, ficou tão nervosa não conseguiu dormir nada aquela noite, sentiram-se completamente desiludidos sem saber exatamente o que é que tinha acontecido.

[00:16:13] Sr. Doutor: Portanto há noção da sua perceção que é próxima deles, se eles não tinham, não têm uma perceção correta, se calhar um conhecimento de tudo aquilo que foi feito, certo?

[00:16:23] HH: Não, não, não, não, há uma confusão, eles mesmo quando se lhe pede, lhe pedimos alguma coisa temos que explicar exatamente passo por passo aquilo que estamos a fazer, mesmo agora com a morte da senhora BB, e mesmo os tramites que era preciso fazer e os documentos que eles tiveram de trazer do Canadá para cá é muito confuso, são sistemas completamente diferentes, apesar de eles terem lá uma notária, que eu penso que o nome não me falha que é a doutora LL, que muitas vezes as minutas vão para eles e ela fala português e tem sido ela que depois faz a autenticação e dá esses tramites, mas são sistemas completamente diferentes, e é confuso, eu tive que fazer à parte ir dividindo o dinheiro, partes por partes para lhes fazer perceber qual era aquilo que lhes cabia a eles, dos 140 que tinha sido o valor que estava aqui em causa, como é que se chegava aos 23,33...

[00:17:29] Meritíssima Juíza: Isso estava explicado na escritura.

[00:17:31] HH: Mas eles não conseguem, a literacia deles é diferente.

(…)

[00:31:36] Sr. Doutor 2: Na altura que esteve com o senhor CC ele não, a senhora chegou a uma conclusão que havia uma diferença, falaram se essa diferença seria de despesas, ou pelo [impercetível] essas despesas?

[00:31:47] HH: Não, eu perguntei se tinham para chegarmos a essa diferença perguntei se havia despesas, se tinham papéis mais as despesas, para haver a diferença que estava, eles não tinham, não sabiam.

[00:32:04] Sr. Doutor 2: Não sabe se tinha havido uma reunião onde essas despesas foram explicadas?

[00:32:07] HH: Eu perguntei-lhes eles disseram que não.

[00:32:12] Sr. Doutor 2: Como é que essa pasta apareceu na mão deles?

[00:32:15] HH: O senhor DD era muito próximo do senhor CC, passavam muito tempo juntos, normalmente e às vezes iam aos cafés, estavam na associação, era fácil entregar-lhe a pasta, não sei como, mas era fácil a pasta chegar...

[00:32:34] Sr. Doutor 2: Não sabe se existiu essa reunião em que as despesas tenham sido explicadas?

[00:32:37] HH: Não, só sei por eles que não tinham nada e que não sabiam de nada.

[00:32:42] Sr. Doutor 2: Não tinham documentos?

[00:32:43] HH: Não sabiam de nada.».

Ou seja, a testemunha não assistiu – reitera-se – a quaisquer contactos entre AA. e R. e apenas notou a ausência de documentos, quadro em que se deparou com a incapacidade de explicação dos seus interlocutores, o que, manifestamente, não basta, à míngua de mais profundo conhecimento direto e pessoal, quanto ao acordado/transmitido entre as partes, como meio de prova corroborante, em que, com segurança/firmeza, se pudesse sustentar o Julgador.

Concluem os Recorrentes com a afirmação de que «a versão do Réu apenas é secundada pelo testemunho de II, esposa do Réu, que diz ter estado presente na prestação de contas», o que não lhes merece “credibilidade processual, pois tal informação não é corroborada com nenhum outro elemento probatório digno de registo”, âmbito em que convocam, por fim, as “regras da experiências, lógica e normalidade social prevalente”.

Porém, tais regras, neste contexto probatório, não bastam para se formar uma convicção em termos de poder ser dado como não provada a factualidade do ponto impugnado.

Tratando-se de factualidade reportada a um contacto pessoal entre partes e ao que ocorreu nesse contacto, seria necessária prova direta ou inequívoca sobre o que foi, ou não, entregue e acordado, âmbito em que cabia aos impugnantes convencer da existência de erro de julgamento do Tribunal recorrido, a impor a alteração do decidido, para o que os Recorrentes teriam de deixar rebatida e infirmada a argumentação elencada na justificação da convicção da 1.ª instância, o que, como visto, não lograram conseguir ([9]).

Termos em que essa argumentação/justificação continua de pé, não se vendo nela qualquer marca de irrazoabilidade ou descrédito, antes surgindo como plausível e adequada, em congruente leitura crítica e conjugada da globalidade das provas produzidas, tudo à luz do princípio da oralidade, da livre convicção e da total imediação face à prova pessoal, imediação plena essa que falta a esta Relação.

Não se mostra, pois, que tenha ocorrido erro de julgamento de facto nesta parte, improcedendo as conclusões dos Apelantes em contrário.

Tudo com a consequência de, como visto já, ficar prejudicada, na lógica recursiva dos impugnantes, a remanescente impugnação quanto aos “pontos 9, 10, 11 e 29”, que, como ficou expresso, “perdem a sua acuidade impugnativa” (cfr. fls. 311 v.º do processo físico), não obstante a sua inclusão nas conclusões (14.ª e segs.), a terem de ser compaginadas com aquela prioritária afirmação de “perda de acuidade impugnativa”.

Por fim, quanto à pretendida ampliação da decisão de facto (conclusões 48.ª a 52.ª), com aditamento de nova materialidade (considerada como “facto essencial”), cabe salientar que os Apelantes pretendem que se dê agora como provado que:

«o Réu não realizou a prestação de contas do exercício do Mandato conferido pelo Autor AA».

Ora, apreciando, cabe dizer, por um lado, que uma tal asserção contrastaria – em termos de inevitável conflitualidade/oposição/contradição, como tal inaceitável – com o aludido facto do ponto 24, que se mantém provado, e, por outro lado, que não se trata de matéria factual, mas de uma enunciação claramente conclusiva, atenta a “economia” da ação, com repercussões sobre o desfecho do processo/litígio.

Por isso, vale a regra no sentido de à parte fáctica da sentença só deverem ser levados factos, e não conteúdos conclusivos/valorativos com repercussões sobre o desfecho do pleito (cfr. art.º 607.º, n.º s 3 a 5, ex vi art.º 663.º, n.º 2, ambos do NCPCiv.).

O que logo obriga à improcedência desta pretensão dos impugnantes.

Mesmo que assim não se entendesse – e se admitisse a pretendida natureza de facto essencial alegado e omisso na parte fáctica da sentença –, nem por isso a pretensão poderia proceder.

É que vimos seguindo o entendimento explicitado no Ac. TRC de 10/05/2022 ([10]) quanto ao aditamento à matéria assente de factos que (embora articulados) não tenham sido objeto de pronúncia/julgamento pela 1.ª instância, podendo ler-se na fundamentação deste aresto:

«Resulta do n.º 1 do artigo 662.º do CPC combinado com a parte final da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito que o dever de a Relação reapreciar a prova produzida, formar a sua convicção e julgar provados ou não provados os pontos de facto indicados pelo recorrente só existe em relação aos factos sobre os quais se tenha pronunciado o tribunal a quo.

Na verdade, só em relação a esta pronúncia é que tem sentido dizer, como faz o n.º 1 do artigo 662.º, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Depõe a favor desta interpretação o artigo 640.º do CPC, relativos aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, ao impor ao recorrente o ónus de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Se o tribunal de 1.ª instância omitir a pronúncia sobre uma determinada questão de facto e se a resposta a ela for indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão será a anulação da decisão proferida em 1.ª instância, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão. É a solução que resulta da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, na parte em que dispõe que a Relação deve mesmo oficiosamente anular a decisão proferida em 1.ª instância, quando considere indispensável a matéria de facto, combinada com a alínea c) do n.º 3 do mesmo diploma.

Só assim não será se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada por documentos ou por confissão reduzida a escrito. Nestas hipóteses, cabe ao tribunal da Relação tomar em consideração tais factos, sem necessidade de anulação do julgamento. É o que resulta da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 607.º do CPC – aplicável ao acórdão da Relação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC. Precise-se que quando o n.º 4 do artigo 607.º fala em factos provados por documentos quer dizer factos provados plenamente por documentos.».

No caso dos autos, se se tratasse de factualidade – e não é o caso, como visto –, a mesma não poderia ter-se como admitida por acordo, provada por documentos (que fossem dotados de força probatória plena) ou por confissão reduzida a escrito ([11]).

Quedando-se, pois, inalterada a decisão de facto da sentença – como tal, tornada definitiva –, urge passar, depois de serem reproduzidos os factos (os provados e os não provados, como seguidamente se fará), à impugnação jurídica dos AA./Recorrentes.

3. – Quadro fáctico da causa

3.1. - Sindicada a decisão da matéria de facto, em apreciação da respetiva impugnação recursiva, é a seguinte a factualidade provada:

«1) Os Autores são emigrantes no Canadá.

2) Em Junho de 2017, os Autores BB e CC quando em Portugal nas férias de Verão, em casa do Réu, pediram-lhe para lhe tratar da venda do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...54, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...13, composto de uma moradia de rés-do-chão e primeiro andar para habitação e garagem sito na ..., lote ..., Rua ..., da freguesia ... e concelho ..., que fazia parte da herança de EE, e de FF, insistindo bastante com o Réu, dizendo que lhe pagavam o que fosse necessário, pois era um problema que já existia desde 2003, tendo o imóvel já tinha sido prometido vender pelos interessados, umas quatro ou cinco vezes, mas quando se chegava à altura de assinar a escritura, havia sempre dois herdeiros que acabavam por não assinar.

3) O Réu aceitou, referindo que não queria qualquer compensação do seu trabalho, mas que não abdicava de receber todas as despesas que se visse forçado a executar, tais como despesas de deslocações a contactar os demais interessados, despesas de alimentação, contactos com as entidades que fosse necessário efectivar, notário, mandatário forense, entre outros, o que os Autores aceitaram.

4) No dia 21 de Agosto de 2017, aquando de uma deslocação a Portugal, os Autores outorgaram procuração a favor do Réu, conferindo-lhe poderes “1) Para receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que lhe pertençam ou venham a pertencer por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações:

2) Representá-los junto de qualquer repartição pública ou administrativa e, designadamente, nos Serviços de Finanças, pagar impostos ou contribuições e taxas, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo títulos de anulação e as suas correspondentes importâncias, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los; apresentar relações de bens, podendo ainda prestar quaisquer declarações complementares

3) Vender e /ou permutar, dividir ou partilhar, com os demais interessados ou co-herdeiros da herança aberta por óbito de EE e de FF, e relativamente ao prédio urbano composto de uma moradia de rés do chão e primeiro andar para a habitação e garagem situado na ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...13, inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo ...54, assinando os respetivos contratos de promessa, aditamentos, escrituras públicas ou títulos, ou quaisquer documentos públicos ou particulares necessários à realização dos atos e contratos, fixar sinal, recebendo ou pagando os respetivos preços, dando quitações, contratando e transigindo a respeito de qualquer negócio ou assunto em que seja interessado, liquidar contas com devedores ou credores, fixar saldos.

4) Para com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas de forma amigável ou judicial, descrever bens, licitar, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações, e receber o que lhe for adjudicado, intervir em conferências de interessados podendo ainda receber citações e quaisquer necessárias notificações; para compor os quinhões, designando as verbas que hão-de compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles, e os valores por que devem ser adjudicados, a forma a dar à partilha; para licitar e indicar as verbas ou lotes e respetivos valores, para que no todo ou em parte sejam objecto de sorteio pelos interessados; para acordar na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados; para aprovar o passivo e forma de cumprimentos dos legados e demais encargos da herança, deliberar sobre reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados.

5) Proceder a quaisquer atos de registos predial, provisórios ou definitivos cancelamentos ou averbamentos e fazer declarações complementares, e pedidos de retificação ou ratificação, apresentar títulos e documentos e recebendo os que não devem ficar arquivados

6) Representá-los em, em processo de inventário, em qualquer Notário, Tribunal ou Juízo, seus incidentes e recursos, usando para o efeito dos mais amplos poderes forenses em Direito permitido e ainda dos especiais para confessar, desistir do pedido ou da instância, transigir ou acordar, os quais deverão obrigatoriamente ser substabelecidos em Advogado ou Solicitador, sempre que tenha de fazer uso deles.”

5) A solicitação do Réu, cada um dos Autores entregou nesta data a este, a quantia de € 1.500,00 no valor total de € 3.000,00, quantia que o Réu, em 22-08-2017, entregou à advogada Dra. GG.

6) Em Setembro de 2017, encontrando-se já os Autores no Canadá, foram contactados pelo Réu no sentido de se deslocarem ao Consulado, por forma a outorgarem procuração a favor da Dra. GG, advogada com cédula ...68... e domicílio na Rua ..., em ..., ..., o que fizeram, conferindo-lhe poderes para os representar na partilha dos bens por óbito de seu pai e madrasta acima identificados.

7) A advogada GG foi contratada a fim de poder dar opinião sobre as questões jurídicas que surgissem e para acompanhamento do Inventário Notarial que correu termos sob o n.º ...03/17 no Cartório Notarial do Dr. MM, também entretanto decidido instaurar, em 30/08/2017, como forma mais fácil, conseguir a interpelação de todos os interessados, e conseguir assinatura final da partilha e venda do imóvel.

8) A herança de EE e FF, tinha inúmeros herdeiros, alguns dos quais, em representação de várias estirpes.

9) Tendo em vista conseguir acordo entre os herdeiros por morte de EE, e FF, o Réu, no mês de Julho de 2017 deslocou-se para contactar NN, que reside numa aldeia próxima a cerca de 12 km da sua residência.

10) O Réu deslocou-se ainda pelo menos sete vezes, a outra aldeia próxima, a cerca de 15 km da sua residência para falar com OO, tentando convencê-lo e à esposa, a comprar o imóvel referido em 2).

11) A partir de Agosto de 2017 e até Fevereiro de 2018, o Réu diligenciou por contactar os herdeiros que viviam nos arredores de ..., e que eram no total de nove herdeiros, na Zona de ..., ..., ... – ..., ..., ..., ..., efectuando pelo menos 23 deslocações de ... para ..., assim como se deslocou ao escritório da advogada GG, em ... – ..., e ao Cartório Notarial, sito em ....

12) Nestas deslocações, feitas pelo Réu em viatura própria, o Réu fazia, em cada deslocação, cerca de 400 km.

13) Após os primeiros desenvolvimentos e contactos, o Réu, no princípio de Agosto de 2017 conseguiu um primeiro acordo entre interessados para venda do imóvel já identificado nos autos, e pelo preço de € 140.000,00, e para o efeito contratou a empresa A..., empresa dedicada a compra e venda de imóveis, com sede em Av. ... – ... ..., com obrigação de angariar comprador do mesmo imóvel pelo preço de € 140.000,00, contra o pagamento da comissão de 5%, sobre tal preço, e a mesma sociedade, e assim no valor máximo de € 7.000,00 (Sete mil euros ) + IVA.

14) No princípio do mês de Agosto de 2017, a empresa referida em 13) encontrou um interessado na compra do imóvel pelo referido preço e foi celebrado um contrato promessa de compra e venda e adenda, respectivamente a 7 de Agosto e 5 de Setembro de 2017.

15) Pelo promitente comprador foi em 7/08/2017 entregue a importância de 10.000,00€ a título de sinal e a 6/09/2017 a mesma importância de 10.000,00€ como reforço de sinal, importâncias estas entregues à Advogada GG.

16) Tendo no inventário por morte de EE, e FF que correu termos sob o n.º ...03/17, no Cartório Notarial do Dr. MM, Notário em ..., sido marcada conferência de interessados para o dia 7 de Fevereiro de 2018, estava acordado nesse acto efectuar a compra e venda ao promitente comprador pelo preço de €140.000,00.

17) Sucede que, em sede de conferência de interessados, a interessada PP comunicou aos restantes interessados que não subscrevia tal venda e que, por esse preço, adquiria ela o imóvel, tendo sido declarada a suspensão da instância.

18) Em virtude do referido em 17) teve o Réu de comunicar tal facto ao promitente comprador e solicitar-lhe que aceitasse a anulação do contrato, com a devolução do sinal, o que este aceitou, mediante o pagamento dos respectivos juros, no valor de 400,00€, tendo-lhe a Advogada GG entregue a quantia de 20.400,00€, mediante pagamento por cheque.

19) Em virtude do referido em 17) teve o Réu de liquidar junto da imobiliária referida em 13), a título de comissão, o montante de 8.610,00€, sendo que, posteriormente tal imobiliária em 21/02/2018, devolveu ao Réu o montante de 5.000,00€.

20) Nesse seguimento, em 16/02/2018, no Cartório Notarial do Dr. MM foi celebrada escritura pública de partilha do património comum do casal EE e FF, composto pelo prédio urbano destinado a habitação, situado na ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...13, da freguesia ..., inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o artigo ...54, tendo sido efectuada adjudicação de tal bem à interessada PP, pelo valor de 140.000,00 €.

21) Em virtude da realização da referida escritura de partilha, em 16/02/2018, no processo de inventário acima referido, foi proferida decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, e a determinar o arquivamento do processo.

22) Nos dias 20 e 21 de Fevereiro de 2018, o Réu transferiu para a conta bancária dos Autores a quantia de 15.000,00€, num total de 30.000,00€.

23) No mês de Agosto de 2018, o Réu entregou aos Autores cópia não certificada da escritura de partilha outorgada no dia 17 de Fevereiro de 2018 no Cartório Notarial do Dr. MM, Notário em ... e de certidão da escritura de habilitação de herdeiros de AA.

24) Nesse mesmo dia, o Réu apresentou aos Autores BB e marido as despesas por si efectuadas para realização da venda do imóvel referido em 2) e após a explicação das contas àqueles, o Réu quis deixar-lhe os documentos comprovativos das despesas efectuadas, mas estes referiram que sempre tinham confiado no Réu, e, que já “tinha muitos papéis em casa” e que, assim, também não precisava deles, pelo que o Réu acabou por destruiu tais documentos.

25) Após receberem os documentos referidos em 23) os Autores entregaram cada um ao Réu, a quantia de €500,00 (quinhentos euros), no total de €1.000,00 (mil euros) a título de gratificação.

26) Após leitura da escritura de partilha, os Autores tomaram conhecimento que cada um deles teria direito a receber a quantia de €23.333,33 (vinte e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos) a título de tornas da supra aludida partilha.

27) Os cheques, no valor de €23.333,33 (vinte e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos) cada um, pertença dos Autores, foram emitidos à ordem da Dra. GG, e a si entregues, tendo tais cheques sido depositados na sua conta bancária.

28) Após o desconto do valor de €1.705,69 a título de remanescente de valor devido a título de honorários, que se fixaram em 4.705,69€, GG entregou um cheque ao Réu, no valor de € 40.542,00 e € 4.418,86, em numerário.

29) O Réu ficou com a quantia de €14.166,66, a qual serviu para liquidar as seguintes despesas relacionadas com a venda do prédio:

- 23 viagens de ida e volta a Lisboa, no valor aproximado para combustível e desgaste de viatura de cerca de 45,00€, e de 23,85€ para portagens, num total de 1583,55€;

- 2 viagens de ida e volta à Zona de ... (Casa da Advogada GG) – no valor aproximado para combustível, portagens e jantar num total de 160,00€;

- 72 almoços, no valor aproximado de 12,00€ cada, num total de 864,00€;

- 48 jantares, no valor aproximado de 12,00€ cada, num total de 576,00€;

- despesas de correio no valor de cerca de 260,00€;

– Fotocópias de documentos e algumas certidões no valor de cerca de 640,00€;

– Despesas com chamadas telefónicas nacionais e internacionais para o Canadá, no valor de cerca 733,85€;

– Comissão para Agência Imobiliária, no valor de 3.610,00€;

– Juros pagos ao promitente adquirente do imóvel, no valor de 400,00€;

– Gratificação entregue em dinheiro à Advogada GG, no valor de 500,00€;

– Gratificação entregue a pessoa que indicou testemunhas para habilitação de herdeiros no valor de 500,00€;

- Outras despesas, nomeadamente com almoços de testemunhas, outras deslocações, nomeadamente as feitas na Zona de ..., no valor de cerca de 1.000,00€.

- Tudo, no total de 10.827,40€.

30) O Réu fez seu valor de 3.339,26€, do qual 1.669,63€ pertencem à Autora BB, e 1.919,63€ pertencem ao Autor AA.».

3.2. - E foi julgado com não provado:

«A) Apenas a muito custo o Réu forneceu a escritura referida em 23) dos factos provados aos Autores e porque o Autor precisava da mesma para efeitos da declaração de IRS.

B) Pelo Réu não foi entregue aos Autores qualquer outro documento, seja de despesas ou de notas de honorários e respectivos recibos.

C) A gratificação referida em 25) foi entregue ao Réu antes de os Autores tomarem conhecimento do seu teor.

D) Em virtude da conduta do Réu os Autores sentiram-se tristes, desgostosos, deprimidos, nervosos e angustiados, passaram noites sem dormir e momentos de nervosismo e inquietação.

E) Após prestação de contas, o Réu comunicou à A. e marido, que haveria ainda um valor referente a gratificações, despesas de almoços de testemunhas, outras deslocações, nomeadamente as feitas na Zona de ..., que justificavam o montante de € 3.048,41, e foi dito pelo marido da A., que o restante que representava o valor de € 1.524,00, para cada um dos A.A, ficaria como uma gratificação, também face aquelas despesas das quais não tinha qualquer documento, para o próprio Réu.

F) O valor descontado a título de remanescente de honorários devidos referido em 28) dos factos provados foi de 2.500,00€.».

4. – Aspeto jurídico da matéria recursória

Da falta de prestação de contas e do dever de restituição pecuniária

Ultrapassada a impugnação da decisão da matéria de facto e fixado, em termos definitivos, o quadro fáctico da causa – é o respetivo factualismo, e só este, o atendível para decisão do recurso –, cabe conhecer de direito, matéria a que os AA./Recorrentes dedicaram as conclusões 53.ª a 61.ª da sua apelação.

Antes, porém, sem esquecer os factos provados, importa transcrever, para melhor compreensão, os excertos essenciais da fundamentação de direito – onde se entendeu, em sede de qualificação jurídica da relação contratual, e sem motivo para divergência, estarmos perante “mandato civil”, «distinto do mandato judicial ou forense, na medida em que este último carece da intervenção qualificada de advogado ou solicitador» – da sentença em crise:

«Porque o mandatário se obriga a praticar actos jurídicos por conta de outrem, ou seja, no interesse do mandante (…), a lei impõe-lhe que preste contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir (al. d) do artigo 1161º do Código Civil), se a execução do mandato tiver repercussões nas relações patrimoniais entre as partes. Trata-se, como é sabido, de uma obrigação própria de quem gere ou administra interesses alheios (…).

(…)

No caso concreto, atento o contido no ponto 3) dos factos provados, verifica-se ademais que estamos perante um contrato de mandato gratuito.

(…)

Por fim, decorre do disposto no artigo 1167.º do CC que “O mandante é obrigado:

a) A fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, se outra coisa não foi convencionada;

b) A pagar-lhe a retribuição que ao caso competir, e fazer-lhe provisão por conta dela segundo os usos;

c) A reembolsar o mandatário das despesas feitas que este fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais desde que foram efectuadas.

d) A indemnizá-lo do prejuízo sofrido em consequência do mandato, ainda que o mandante tenha procedido sem culpa.”

Tal como anotam Pires de Lima e Antunes Varela, (…) “(…) A lei exige que as despesas tenham sido fundadamente consideradas pelo mandatário como indispensáveis. O critério de apreciação é simultaneamente subjectivo e objectivo, pois se exige não só a convicção por parte do mandatário de que a despesa era necessária, como a razoabilidade dessa convicção. É um critério análogo ao consignado no artigo 468.º, n.º 1, para o paralelo da gestão de negócios.”

No caso concreto, resultou ainda adquirido que no seguimento do acordado entre as partes, o Réu encetou diversas diligências no sentido de levar a bom porto a realização da partilha do único bem da herança, os quais se nos afiguraram indispensáveis para a concretização do acto jurídico de que ficou incumbido, tanto que, em menos de um ano conseguiu resolver a situação.

Além disso, não nos parece destituído de lógica que ao mesmo tempo que se intenta um processo de inventário, assegurando assim nesta sede a presença de todos os interessados, se tente encontrar um comprador para o único bem existente na herança a partilhar, evitando depois que os autos aguardem, por vezes anos, pela venda do bem no próprio processo, principalmente numa situação em que há já vários anos se tentava, sem sucesso, proceder à venda do imóvel!

Todavia, resultou adquirido que o Réu ficou com a quantia de €14.166,66, a qual serviu para liquidar despesas relacionadas com a venda do prédio, que igualmente se enumeram, no valor total de 10.827,40€, fazendo seu valor de 3.339,26€, do qual 1.669,63€ pertencem à Autora BB, e 1.669,63€ pertencia ao Autor AA.

Neste conspecto, ao abrigo do disposto no artigo 1161.º, al. e) do CC, impõe-se concluir que o Réu terá de ser condenado a entregar aos Autores a quantia de 3.339,26€, da qual 1.669,63€ pertencem à Autora BB, e 1.669,63€ pertencem ao Autor AA.».

Perante isto, invocam os Recorrentes, no pressuposto de não ter o R. prestado contas ao A. AA, que «deveria o Tribunal a quo dar como não provado as despesas eventualmente efectuadas em nome deste pelo Réu».

Todavia, tal pressuposto não se demonstra – uma vez improcedente a impugnação da decisão de facto –, resultando não provado que, para além da escritura referida em 23) dos factos provados, o R. não entregou aos AA. qualquer outro documento, seja de despesas ou de notas de honorários e respetivos recibos [cfr. al.ªs A) e B) dos factos não provados].

E persiste provado o que consta do facto 24): o R. apresentou aos AA. BB e marido as despesas por si efetuadas e, após a explicação das contas àqueles, quis deixar-lhes os documentos comprovativos das despesas efetuadas ([12]), deparando-se com o desinteresse ou a indiferença dos mesmos (afirmação de que não precisavam deles), pelo que o R. acabou por destruiu tais documentos.

Assim, também não colhe o argumento no sentido de o R. se ter colocado, objetivamente e por sua exclusiva culpa, na impossibilidade de prestação de contas (conclusão 57.ª).

Com efeito, de acordo com a materialidade provada, foi perante o dito desinteresse ou indiferença que o R. acabou por destruiu os documentos.

Num tal contexto, não é censurável a destruição dos documentos: foram os ditos AA. que afirmaram não precisar deles, mostrando, assim, o seu desinteresse, pelo que seria patentemente contraditório vir depois dizer que a documentação não lhes foi prestada e já não o pode ser, imputando a superveniente impossibilidade a conduta culposa da contraparte. Uma tal argumentação (e conduta) pecaria por abuso do direito (cfr. art.º 334.º do CCiv.), na modalidade do venire contra factum proprium.

Aliás, prova-se que, após receberem os documentos referidos em 23), os AA. entregaram, cada um, ao R., a quantia de € 500,00, num total de € 1.000,00, a título de gratificação [facto 25], o que inculca a ideia de fecho de contas e atribuição de prémio/gratificação final.

Ou seja – ao menos, implicitamente, no plano conclusivo –, um derradeiro acertamento/harmonização das relações patrimoniais decorrentes da execução do contrato.

Tudo sem esquecer que os AA. não lograram provar, como lhes competia (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), que o R. não lhes entregou qualquer outro documento, seja de despesas ou de notas de honorários e respetivos recibos, o que compromete todas as demais conclusões dos AA./Apelantes, não se vendo, nesta perspetiva, que tenha ocorrido qualquer invocada violação de lei (cfr. conclusão 60.ª) e havendo de improceder, nestes termos, a apelação dos demandantes (recurso principal).

Por isso, soçobra a pretensão de restituição do montante de € 14.166,66 – ou de quantia inferior a essa –, improcedendo a apelação dos AA..

Vencidos, cabe aos AA./Recorrentes suportar as custas da sua apelação/recurso principal (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Ao R./Apelante cabe, por sua vez, suportar as custas do recurso subordinado, em que ficou vencido (mesmos dispositivos legais).

                                               ***

IV – Sumário ([13]): (…).

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes o recurso principal, interposto pelos AA., e o recurso subordinado, interposto pelo R..
Custas do recurso principal pelos AA./Recorrentes (vencidos) e do recurso subordinado pelo R./Apelante, ante o seu total decaimento nesse âmbito.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 25/02/2025

        

Vítor Amaral (relator)

Alberto Ruço

                                     

João Moreira do Carmo


([1]) Destaques retirados.
([2]) Que se deixam reproduzidas, apesar da sua extensão (com destaques retirados).
([3]) Destaques retirados.
([4]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([5]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([6]) Segue-se uma ordem lógica e sistemática de enunciação das questões a decidir, caso nenhuma delas resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) É citado o sumário do “acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2009 (63/2001.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt): «1. A procuração é um negócio unilateral, que tem como conteúdo típico a outorga de poderes de representação para a execução da relação subjacente e para a execução de uma função dela decorrente. Encontrando-se sempre ligada a uma relação subjacente que constitui a sua causa. // Assim sucedendo mesmo que a procuração tenha sido outorgada também no interesse do procurador, o qual tem, de igual modo, objectivamente que resultar da relação subjacente. // 2. Como declaração negocial que é a procuração, tem a mesma que ser interpretada de acordo com as regras contidas nos arts 236.º e 238.º do CC, que estabelecem critérios para a fixação do alcance ou sentido juridicamente decidido da declaração negocial e consagram, embora de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário. // 3. Prevalecendo, em regra, na interpretação dos negócios jurídicos, a vontade real do declarante sempre que for conhecida do destinatário. // Faltando tal conhecimento, valerá o sentido que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. // 4. Havendo, neste domínio da interpretação, que se recorrer, para a fixação do sentido da declaração, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a celebração daquele ou são suas contemporâneas, à finalidade prática visada pelas partes, ao próprio tipo negocial. // Sendo, assim, admissível o recurso a elementos exteriores ao contexto do documento.»” (Cons. Serra Baptista).
([8]) Reconhecem os Recorrentes – logo na sua motivação – que “é o próprio Réu, no seu depoimento prestado em audiência, que confirma que no dia em que entregou a documentação atinente à escritura de partilha, também terá prestado as contas do exercício do seu Mandato”.
([9]) Para tanto, também não bastaria a invocação de prova documental referente a “despacho de arquivamento” de inquérito crime (cfr. conclusão 9).
([10]) Proc. 1932/19.8T8FIG.C1 (Rel. Emídio Francisco Santos), disponível em www.dgsi.pt (com destaques aditados).
([11]) Seguindo entendimento similar, cfr. o Ac. TRC de 05/03/2024, Proc. 2941/20.0T8VIS.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «(…) Não cabe à Relação, perante impugnação da decisão de facto, proceder ao aditamento à matéria assente de factos que (embora articulados) não tenham sido objeto de pronúncia/julgamento pela 1.ª instância, exceto se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada plenamente por documentos ou por confissão reduzida a escrito.».
([12]) Constitui jurisprudência pacífica o seguinte enunciado: «Espécie particular da prestação de informação é, decerto, a prestação de contas. A sua especificidade ou alteralidade relativamente à obrigação geral de informação reside nisto: é uma obrigação de informação pormenorizada, de forma vinculada, dado que se exige a discriminação da proveniência das receitas e a aplicação das despesas e o respectivo saldo (art.º 944.º, nº 1, do CPC). Esta última razão explica que a prestação de contas não se satisfaça com a simples entrega dos documentos comprovativos da despesa e da receita. Neste sentido, a obrigação deve ser entendida, não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem – mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento (art.º 941.º do CPC)» – assim foi expendido no Ac. TRC de 28/06/2022, Proc. 84/20.5T8CBR.C1 (Rel. Henrique Antunes), em www.dgsi.pt.
([13]) Da responsabilidade do relator, nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv..