PROCESSO DE INVENTÁRIO
MEIOS COMUNS
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES/JUÍZO CÍVEL.
Sumário

Os juízos de família e menores não são competentes em razão da matéria para tramitar acção declarativa instaurada na sequência de controvérsia ocorrida em inventário para partilha de meações, requerido após divórcio para apurar empréstimos reclamados pelos credores no inventário de que serão devedores o ex-casal.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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I – Relatório

1. AA, e mulher, BB, NIF ...33..., ambos residentes em ... intentaram, no Juízo de Família e Menores de Pombal, contra CC, residente em ... e DD, em ..., acção declarativa, pedindo a condenação dos mesmos a pagarem-lhes a quantia de 86.965,62 €, acrescida dos juros legais desde 13.1.2022, até integral pagamento,

Alegaram, em suma, terem os réus sido casados, casamento dissolvido por divórcio. Nessa sequência a ré DD requereu inventário para partilha dos bens comuns (que correu em Cartório Notarial) que foi remetido para o Juízo de Família e Menores de Pombal, ao qual foi atribuído o nº 81/21..... No decurso do processo de inventário foi suscitada a existência de créditos dos autores, pais do réu CC, sobre os réus, tendo sido citados para reclamar os seus créditos sobre o património comum do extinto casal, o que os autores fizeram, provenientes de vários empréstimos. Por despacho proferido no processo de inventário, as questões relacionadas com os créditos reclamados pelos aqui AA. foram remetidas para os meios comuns. Os autores intentaram acção nos Juízos Centrais Cíveis de Leiria, a fim de verem reconhecidos os créditos, anteriormente reclamados no dito processo de inventário, acção que correu sob o nº 2205/23.... (Juiz ...), onde a ré DD apresentou contestação. Porém, o tribunal considerou-se incompetente em razão da matéria, por entender que a competência pertence ao Juízo de Família e Menores de Pombal, decisão transitada em julgado. Os autores requereram a remessa dos autos para este Juízo de Família e Menores, mas a ré opôs-se, pelo que em face de tal oposição, o tribunal indeferiu a remessa dos autos para este Juízo. Razão pela qual, se propõe a presente acção.

A ré DD contestou e reconveio e os autores replicaram.

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No despacho saneador, foi proferida decisão que julgou o Juízo de Família e Menores de Pombal incompetente, em razão da matéria, por tal competência pertencer aos Juízos Centrais Cíveis e, consequentemente, absolveu-se os RR da instância.

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2. Os AA recorreram para esta Relação, concluindo que:

I. Os Recorridos foram casados no regime da comunhão de adquiridos, casamento esse que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 15 de Março de 2016, já transitada em julgado.

II. Na sequência de tal facto, foi requerido inventário para partilha dos bens comuns (Inventário nº 81/21....);

III. Com a presente ação os Recorrentes pretendem reaver o dinheiro emprestado aos Recorridos na constância do seu casamento, dinheiro esse que se destinou a adquirir bens que os mesmos pretendem agora partilhar.

IV. Assim, estando em litígio direitos intimamente relacionados com os bens levados ao inventário para separação de meações, cuja definição foi remetida para os meios comuns, o tribunal competente em razão da matéria é o tribunal de família e menores e não os juízos cíveis.

V. De harmonia, com o estatuído no nº 2 do artigo 122º da mesma Lei de Organização Judiciária, os Juízos de Família e Menores exercem ainda as competências que, a lei confere aos interessados nos processos de Inventário instaurados, em consequência, de separação de pessoas e bens e divórcio.

VI. Assim, parece, estarmos perante uma causa que tem conexão com matérias que contendem com “as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado”, as especificidades da “comunhão conjugal” – vide Ac. Relação de Coimbra, 16-05-2023 – Relator Desembargador Fonte Ramos, disponível em www.dgsi.pt.

VII. Na verdade, está em causa um direito de que os Recorrentes se arrogam e que estará correlacionado com o património comum do ex-casal, que querem ver partilhado; isto é, há co-dependência e conexão, entre o seu estado de casado, o inventário e o presente processo.

VIII. A LOSJ atribuiu aos juízos de família e menores todas as competências dos tribunais no âmbito dos processos de inventário, independentemente da natureza do que se discute, pela simples circunstância de constituir matéria litigiosa inscrita no perímetro do inventário, apesar de remetida para os meios comuns.

LEGISLAÇÃO

A decisão proferida interpretou e aplicou mal o normativos dos artigos 117º e 122º, da LOSJ

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

A factualidade a considerar é a que consta do Relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC).

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Competência material do tribunal.

2. Na decisão recorrida escreveu-se o que segue:

“O conhecimento da competência material de um tribunal deve partir da análise da relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, tendo em conta as pretensões que este formula e os fundamentos de facto em que as sustenta (neste sentido, cf. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 1º, p. 110), sendo relativamente indiferente, para o efeito, o enquadramento jurídico por ele dado, pois, como expressamente consagrado no artigo 5º nº3 do Código de Processo Civil, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito, o juiz não está sujeito às alegações das partes.

Assim, relevantes para efeito da determinação da competência são os factos integradores da causa de pedir e o pedido que, com base nos mesmos, é formulado e não o enquadramento jurídico que deles a parte faz.

Acresce que, em regra (isto é, sempre que inexista norma especial em contrário), a competência se fixa no momento da instauração da ação.

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Dispõe o artigo 117º da Lei da Organização do Sistema Judiciário:

“1 - Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;

d) Exercer as demais competências conferidas por lei.

2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.

3 - São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.”

Por sua vez, determina o artigo 122º da mesma Lei:

“1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”

Na presente ação, os autores alegaram em síntese que:

- foram casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, cujo casamento, que ocorreu no dia ../../1999, foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 15 de Março de 2016, já transitada em julgado.

- na sequência do referido divórcio, a ré DD requereu inventário para partilha dos bens comuns (Inventário nº ...7 – Cartório Notarial a Cargo do Dr. EE, remetido para o Juízo de Família e Menores de Pombal, ao qual foi atribuído o nº 81/21....).

-os autores. são os pais do Réu CC.

-no decurso do processo de inventário foi suscitada a existência de créditos dos autores sobre os réus.

-no dia 14/11/2021, os autores reclamaram os seus créditos contra os aqui réus.

-por despacho de 17/06/2022, proferido no processo de inventário, as questões relacionadas com os créditos reclamados pelos aqui autores foram remetidas para os meios comuns.

- os autores intentaram ação nos Juízos Centrais Cíveis de Leiria, a fim de verem reconhecidos os créditos, anteriormente reclamados no processo de inventário nº 81/21.....

- a esta ação foi atribuído o nº 2205/23...., e distribuída ao Juízo Central Cível de Leiria – Juiz ....

- a ré DD apresentou contestação.

- o tribunal considerou-se incompetente em razão da matéria.

- os autores requereram a remessa dos autos para este Juízo de Família e Menores, mas a ré opôs-se, invocando a compressão e restrição dos seus direitos, dizendo que não fora dada a possibilidade de deduzir pedido reconvencional, pretendo fazê-lo.

- em face de tal oposição, o tribunal indeferiu a remessa dos autos para este Juízo, razão pela qual, propõem a presente ação.

- ao longo dos anos, em período que se situa entre 2002 e 2015, os autores foram emprestando dinheiro aos réus, de modo a poderem fazer face às suas necessidades e de modo a evitar, tanto quanto possível, o recurso ao crédito bancário.

-foram vários os momentos e montantes emprestados ao extinto casal e que agora pretendem reaver.

-no período compreendido entre os anos de 2002 e 2010, os autores emprestaram ao extinto casal dinheiro para a construção da sua casa de habitação.

-Os autores emprestaram-lhes dinheiro para a aquisição do alvará para o exercício de transporte de táxi (praça), do taxímetro e para a compra do carro de aluguer (táxi).

-No dia 27/03/2014, os autores emprestaram ao extinto casal quantia que terão destinado ao pagamento de prestação bancária do crédito à habitação.

-Até hoje, nenhuma das quantias foi restituída aos autores, apesar de as terem reclamado aos aqui réus e de estes nunca terem negado a sua existência ou o dever de serem restituídas aos aqui autores.

-Os dinheiros emprestados foram destinados pelos interessados a fazer face às suas necessidades básicas: habitação, alimentação, vestuário, despesas com a educação dos filhos do casal e à aquisição de instrumentos destinados ao exercício da sua atividade.

-As dívidas contraídas por ambos os interessados oneram o património comum e são da responsabilidade de ambos.

-Ao capital reclamado hão -de incidir juros de mora à taxa legal.

Terminam pedindo que os réus sejam condenados a pagar aos autores a quantia de 86.965,62 € acrescida dos juros legais desde 13/01/2022, até integral pagamento.

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Em face dos factos que se acabaram de elencar, impõe-se concluir que os autores intentaram a presente ação na sequência da decisão proferida no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens comuns subsequente ao divórcio entre os réus, que remeteu a questão para os meios comuns.

Ponderada a questão em litígio, estando-se no âmbito de ação em que as partes foram remetidas para os meios comuns em inventário pendente no JFM de Pombal para partilha de bens na sequência de divórcio e vistas as normas da LOSJ acima transcritas, entende- se que ocorre incompetência material deste tribunal, em face, nomeadamente, do estabelecido no artigo 117º nº1 a) da LOSJ.

Em situação em tudo análoga à dos presentes autos, pode ler-se no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2023 1Proc. nº 754/23.6T8LRA.C1 in www.dgsi.pt o seguinte: «Os juízos de família e menores não são competentes para tramitar ações comuns instauradas na sequência da remessa, operada em processo de inventario, prevista no art. 1093.º n.º 1 do C.P.C.

É incontestável, desde logo, que estamos perante um processo que segue a forma comum, contrariamente ao processo de inventário, situação que, à partida, parece excluir a competência dos juízos de família e menores para apreciar a causa, uma vez que o art. 122º nº2 da LOSJ apenas prevê a intervenção destes últimos nos seguintes casos: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”.

O argumento é reforçado pela redação do art. 117º alínea a) da LOSJ, uma vez que aí prescreve-se que “Compete aos juízos centrais cíveis: a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000;”.

Terá sido intenção do legislador, em casos como o presente, alargar a competência dos juízos de família e menores de forma a incluir ações que seguem a forma comum que têm uma conexão com um processo de inventário?

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não nos parece.

Com efeito, em primeiro lugar, não resulta expressamente da lei que os juízos de família e menores sejam competentes para apreciar as ações em apreço, sendo que a referência aos processos de inventário esgota-se em si mesma, ou seja, tais juízos são competentes para tramitar processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

Em segundo lugar, como já se afirmou, a competência para a tramitação de ações comuns encontra-se definida no art. 117º alínea a) da LOSJ, salvo nos casos em que a mesma seja atribuída aos juízos locais cíveis, por força do art. 130º nº1 igualmente da LOSJ.

Em terceiro lugar, não resulta do processo legislativo que levou à introdução do nº2 do art. 122º da LOSJ que tenha existido o propósito de incluir na competência dos juízos de família e menores ações comuns instauradas por força do regime previsto no art. 1093º nº1 do C.P.C. Pelos motivos expostos, procede o recurso interposto pela autora/apelante, devendo decidir-se em conformidade».

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/5/2024 2Acórdão do TRC, Proc. 2944/23.2T8LRA in www.dgsi.pt, nos termos do qual « Os juízos de família e menores não são competentes em razão da matéria para tramitar ação declarativa instaurada na sequência de controvérsia ocorrida em inventário requerido após divórcio para apurar se um imóvel é bem comum do casal ou não, quando está em jogo questão de direito de propriedade sobre esse imóvel, com origem em usucapião ou acessão industrial imobiliária» e onde se pode ler « Ora, a lei, não considera dependente do inventário as ações remetidas, no âmbito do mesmo, para os meios comuns. Nem nenhum despacho fixou essa dependência. Por aqui, igualmente não se justifica a competência material do juízo de família e menores. Por fim, e decisivamente, temos por evidente que tudo o que extravasa o processo de inventário já extravasa o âmbito da jurisdição da família e menores e cairá no âmbito estritamente cível».

Com argumentação também idêntica e que tem também cabimento no caso dos autos –foi decidido, no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/5/2023 3Proc. 3723/22.0T8FAR.E1 in www.dgsi.pt que « Uma coisa é o tribunal ser competente para tratar determinadas questões ligadas ao inventário porque o inventário já corre termos nesse tribunal, o qual, por isso, “como decorrência do princípio segundo o qual o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem (artigo 91.º, n.º 1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária” (“O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil”, de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, Almedina, 2020, pág. 49). Outra coisa é a competência para questões que, por decisão da autoridade competente e com base na lei (na própria regulamentação legal do processo de inventário), devem ser analisadas e decididas fora do inventário, nos meios judiciais comuns.»[ Não se trata de ações que, por lei ou por despacho, devam considerar-se dependentes do processo de inventário (caso ele corresse termos nos Tribunais Judiciais – cfr. artigo 1082.º do CPC) ou do processo de divórcio, pelo que nem sequer são suscetíveis de apensação – cfr. artigo 206.º/2 do CPC.

As ações relativas a tais questões hão de correr termos no Tribunal materialmente competente para o efeito.

Nos termos do artigo 122.º da LOSJ,

1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

(….)

Uma vez que a presente ação não se enquadra em nenhuma das situações aqui enunciadas, nem sequer se trata de questão a decidir em sede de processo de inventário, é manifesto que a competência não cabe aos Juízos de Família e Menores. Acompanha-se, por isso, a decisão recorrida».

Em igual sentido vai o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/10/2020 4Proc. 1029/20.8T8PRD.P1 in www. dgsi.pt em que se refere: I –A remessa dos interessados para os meios comuns, determinada pela autoridade competente para inventário em curso, integra uma remissão para a ação ou procedimento adequados e perante o tribunal materialmente competente, já que sendo fundamento daquela remessa a existência de questão ou questões que, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito, há que tratar e decidir fora do processo de inventário, a competência material do respetivo tribunal há -de buscar-se pela matéria discutida; II – Não cabe nos elencos de matérias da competência do Juízo de Família e Menores, a ação, proposta na sequência daquela remessa para os meios comuns, de reconhecimento da contitularidade da Autora no direito de propriedade sobre certos bens móveis e ainda do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis e condenação do Réu à sua restituição».

No mesmo sentido se pronunciou o voto de vencido proferido pela Sra. Desembargadora Maria Catarina Gonçalves no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-5-2021 5Acórdão do TRC de 4-5-2021, proc. 592/20.8T8PBL.C1 in www.dgsi.pt, em questão semelhante, segundo a qual: « Entendo, salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento, que a decisão recorrida está correta e deveria ser confirmada.

Na verdade, o que se determina no nº 2 do art. 122º da LOSJ é que os juízos de família e menores exercem as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário ali discriminados. Tal competência restringe-se, portanto, aos processos de inventário.

Ora, no caso, não está em causa um processo de inventário, mas sim uma normal ação com total autonomia relativamente ao inventário e que, como tal, está submetida às regras gerais e legalmente estabelecidas, em função da sua natureza, seja quanto à determinação da ação e forma de processo adequados, seja ao nível da competência para a sua apreciação.

É certo que a presente ação foi instaurada na sequência de decisão proferida no âmbito de um processo de inventário que remeteu os interessados para os meios comuns com vista à apreciação e decisão da questão ali suscitada. Mas a decisão que remete os interessados para os meios comuns não significa – em lado nenhum isso vem estabelecido – que o meio a utilizar para dirimir e resolver a questão tenha que correr perante a mesma entidade/tribunal que tem competência para o inventário.

A decisão que remete os interessados para os meios comuns significa, naturalmente, que a questão fica excluída do processo de inventário, devendo os interessados obter a resolução da questão através dos meios (ação ou procedimento) que se revelem adequados e perante o tribunal que, em face da lei, detenha competência material para dirimir o concreto litígio e as questões nele envolvidas (competência que poderá – ou não – pertencer à mesma entidade/tribunal perante quem corria o processo de inventário).

Nem faria sentido - penso eu - que os tribunais de família tivessem competência para ações de todo o tipo (contratos, reais, etc.) que têm total autonomia relativamente ao inventário, sendo certo que nem sequer correm por apenso. Os tribunais de família terão competência para apreciar e decidir essas questões quando elas devam ser decididas no processo de inventário a título incidental (cfr. art. 91º do CPC); quando isso não acontece - designadamente porque os interessados foram remetidos para os meios comuns no que toca a essas questões - essa competência deixa de existir e passa a pertencer ao tribunal que, nos termos da lei, tem competência para a concreta ação que vem a ser instaurada na sequência daquela remessa para os meios comuns. Confirmaria, portanto, a decisão recorrida».

In casu, visto o pedido deduzido pelos autores é de excluir a presente ação do elenco de competências previstos no nº 2 do artº 122º da Lei 62/2013 de 26/8-LOSJ, antes cabendo o conhecimento da ação na competência de um tribunal de competência cível da jurisdição comum, neste caso os Juízos Centrais Cíveis.

O disposto no nº 2 do artº 122º, a meu ver, não tem o sentido de se aplicar à remessa para os meios comuns, antes visa as decisões a tomar no próprio processo de inventário, como sejam - para além da sua tramitação, decorrente da entrada em vigor da Lei 117/2019 de 13/9 - designadamente a decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio, à semelhança do que já sucedia com o nº 7 do artigo 3ºda anterior Lei 23/2013 de 5/3 (“compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juíz”).

Referindo o mencionado preceito legal (artº 122º nº 2 da LOSJ), que os JFM exercem as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário, tal exclui os processos que não são de inventário.

Nesse sentido, o artigo 122º nº 2 da LOSJ refere-se apenas a decisões a tomar no próprio processo de inventário, porque tudo o que extravasa o processo de inventário já extravasa o âmbito da jurisdição da Família e Menores e cai no âmbito estritamente cível, sob pena de a jurisdição de Família e Menores ser chamada a decidir questões de natureza cível, como sucede no caso sub judice.

Está-se, por conseguinte, perante uma situação de incompetência absoluta (em razão da matéria) deste tribunal (vide artigo 96º do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (nos termos previstos nos artigos 97º, 577º alínea a) e 578º do mesmo diploma legal), sendo este o momento próprio para dela conhecer (cf. artigos 98º e 99º também do citado Código), importando tal exceção a absolvição dos réus da instância, como decorre do estabelecido nos artigos 99º nº1; 278º nº1 alínea a); 576º; 577º alínea a) e 578º todos do Código de Processo Civil.”.

Os recorrentes divergem, pelos motivos constantes das suas conclusões de recurso (a I. a VIII.). Entendemos que é de acolher a fundamentação jurídica da decisão recorrida.

Nas duas teses em confronto sobre a questão aqui em discussão os argumentos são sobejamente conhecidos. Está inventariada a jurisprudência sobre o tema.

Por conseguinte, vamos seguir o discurso de direito do Acórdão desta Relação de 21.5.2024, acima mencionado (relatado pelo ora signatário e com voto de vencido do actual 1º adjunto).

Vejamos brevitatis causa.

Os textos legais pertinentes são os acima transcritos.

A interpretação sobre normas de competência material é quase inteiramente formal ou literal, só em situações absolutamente desviantes se buscando outra solução.

O preceito estatuído no referido art. 122º, nº 2, já é um desvio à regra natural prevista no nº 1, que atribui competência especializada aos tribunais de família e menores nas matérias aí previstas. Mas é desvio por vontade expressa do legislador.

Tudo o que aí não caiba é da esfera de competência, no âmbito cível, da competência dos juízos centrais cíveis (ou juízos locais cíveis – art. 130º, nº 1, da indicada Lei), que não sejam atribuídas a outros tribunais/jurisdições.

Seguindo, por conseguinte, a regra, a competência para dirimir o presente processo será do tribunal central cível, porque a apontada excepção só se dá em relação aos inventários especificados no aludido art. 122º, nº 2.

No nosso caso, não vislumbramos que haja questão a decidir na órbita da competência por conexão de jurisdição especializada.

Que os inventários especificados no indicado art. 122º, nº 2, são da competência do tribunal de família e menores é líquido face à referida norma que assim o expressa.

A questão está, agora, em saber, se corre nesse mesmo tribunal outro tipo de processos não conexionados com o inventário, fora de previsão especial da lei, como acontece nas situações previstas nos arts. 947º e 1014º, nº4, do NCPC.

A esta interrogação responde que sim o Ac. da Rel. Coimbra, de 4.5.2021, Proc.592/20.8T8PBL, em www.dgsi, com a dupla argumentação que: i) cabendo a competência aos juízos de família e menores para a tramitação dos autos de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, o que se justifica pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, justificada por razões de economia processual, atento a que no processo de divórcio constarão – ou poderão constar – elementos relevantes para a determinação da partilha a efectuar no inventário subsequente, não vemos razões para que assim deixe de ser no caso de se tratar de uma acção intentada na sequência da suspensão do processo de inventário, motivada pela remessa da decisão de uma concreta questão para os meios comuns; ii) se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário, designadamente, que a competência dos juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez.

Dupla justificação esta que não conseguimos acompanhar.

Primeiro e começando por este último argumento. O mesmo é falível, porque se pode reverter contra ele.

Se é verdade que se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário, designadamente, que a competência dos juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez, também podemos afirmar o contrário. O legislador podia, perfeita e facilmente, ter fixado que tais acções remetidas para os meios comuns corriam nos juízos de família e menores, mas, contudo, não o fez.

O dito argumento não tem, pois, o peso que se quer aparentar.

Segundo. Aquele primeiro argumento, o de que a remessa da decisão de uma concreta questão para os meios comuns, não justifica tratamento diferente para que o processo não corra no tribunal de família e menores porque emana de uma decisão proferida num inventário também carece de força persuasiva.

Seria estranho que o tribunal de família e menores, onde corre o inventário, remetesse as partes para os meios comuns, e depois a respectiva acção corresse afinal de contas no mesmo tribunal (por apenso ou autonomamente ?).

Para quê esta redundância ?

Entendemos, pois, que tal dupla argumentação não colhe.

Mais razões legais nos fazem inclinar para a solução contrária ao decidido.

Terceiro. Dispõe o art. 206º, nº 2, do NCPC, que as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependem.

Ora, a lei, não considera dependente do inventário as acções remetidas, no âmbito do mesmo, para os meios comuns. Nem nenhum despacho fixou essa dependência. Por aqui, igualmente não se justifica a competência material do juízo de família e menores.

Quarto. Por fim, e decisivamente, temos por evidente que tudo o que extravasa o processo de inventário já extravasa o âmbito da jurisdição da família e menores e cairá no âmbito estritamente cível.

Temos, por isso, curial o argumento expresso no Ac. da Rel. do Porto, de 26.10.2020, Proc.1029/20.8T8PRD, no mesmo sítio, onde se observa que as decisões a tomar nos meios comuns sê-lo-ão fora de um processo de inventário, num processo autónomo, pois não faria sentido que o juízo de família e menores decidisse no âmbito de um inventário no sentido da remessa para os meios comuns e depois fosse o mesmo juízo a decidir essa outra acção comum – com o mesmo juízo a decidir questões cíveis relacionadas com direitos reais, ou de natureza contratual, ou de competência dos tribunais do comércio, num desvio à especialização dos tribunais e muito menos, quando a remessa para os meios comuns se funda na complexidade da questão a resolver, que reclama especialização.

É este princípio da especialização que reclama justamente a competência do juízo central cível, pois no caso estão em jogo questões de natureza contratual, como empréstimos/mútuos. Mas não só, também com a extensa e alargada exposição factual e conexa actividade probatória conducente ao resultado pretendido.

Deste modo, tendo em conta o exposto, concluímos que a competência material para dirimir o presente processo cabe ao juízo central cível (vide, ainda, no mesmo sentido o voto de vencido proferido no apontado acórdão desta relação acima citado).     

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC): (…). 

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.  

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Custas pelos AA/recorrentes.

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                                                                                      Coimbra, 25.2.2025

                                                                            Moreira do Carmo

                                                                            Fonte Ramos

                                                                            Alberto Ruço 

                                                                   *

Voto de vencido:

Confirmaria a decisão recorrida, porquanto mantenho o entendimento expresso no acórdão de 16.5.2023-apelação 612/22.1T8CTB.C1 (publicado no "site" da dgsi), de que fui relator, assim sumariado:  

«1. Destinando-se o processo de inventário, nomeadamente, à partilha dos bens comuns do casal [art.º 1082º, alínea d), do CPC] e sendo da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial [art.º 1083º, n.º 1, alínea b), do CPC], à remessa para os meios comuns prevista no art.º 1092º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do CPC, determinada, por exemplo, por juízo de família e menores no âmbito de processo de inventário subsequente a divórcio, que nele tramita, subjaz a necessidade de uma mais larga indagação e discussão da matéria de facto.

2. Exercendo os juízos de família e menores as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos (art.º 122º, n.º 2, da LOSJ), a remessa para os meios comuns (ou ação comum) significa, tão só, lançar mão de forma ou meio que permita uma mais larga e avisada indagação e discussão de uma mesma matéria que se considerou não poder/dever ser incidentalmente apreciada e decidida no próprio processo de inventário apenso.

3. O Juízo de Família e Menores é materialmente competente para a tramitação e o conhecimento da questão a dilucidar - além das inerentes (e comuns) garantias processuais e probatórias, intervém o Juízo especialmente vocacionado para apreciar, entre outras, matérias que contendam com “as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado”, as especificidades da “comunhão conjugal” e os “três patrimónios” convocados na ponderação dessa realidade.»

J. Fonte Ramos