1. Para verificar competência material de um tribunal há que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo avaliar-se a natureza da pretensão formulada ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional (pedido) os factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito (causa de pedir).
2. O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais ou comuns é constitucionalmente definido por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (cf. artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, 64.º do Código de Processo Civil, e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
3. O artigo 4.º, n.º 1, alínea i) do ETAF, na redacção do DL n.º 214-G/2015, de 02-10, ao estatuir que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…) “Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”, apenas atribui a competência material aos tribunais administrativos para as acções em que esteja em causa a remoção de actuações ilegais da Administração, “via de facto”, materializadas em actos concretos (v.g., ocupação ou apropriação física de propriedade privada).
4. Se a acção proposta contra um Município foi configurada como uma típica acção de reivindicação, assente numa situação jurídica de direito privado, visando obter a tutela judicial do direito de propriedade, o qual se encontra regulado por regras de direito privado, a competência continua a caber, como sempre aconteceu, à jurisdição comum e aos tribunais cíveis.
5. A circunstância de na acção de reivindicação ser deduzido um pedido indemnizatório contra o Município, que pode ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, não obsta àquela competência, já que esse pedido, tal como formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]
Remate Com A..., Lda., propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Município ..., pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre o lote de terreno denominado por “B2”, composto por lote para construção urbana, sito na Quinta ..., Zona Industrial ..., na Freguesia ... e ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...11 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...07, bem como a condenação do réu a restituir-lhe a parcela de terreno com a área de 4753,80 m2 que faz parte integrante do mencionado lote “B2”.
“1) Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta sentença judicial que declarou o juízo central cível do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco incompetente, em razão, da matéria (incompetência absoluta), para preparar e julgar a presente ação por se entender pertencer tal competência aos Tribunais Administrativos.
2) É hoje consensual, quer na doutrina, quer na jurisprudência que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
3) No caso em apreço uma leitura da causa de pedir/pedido da petição inicial permite constatar que o que está em causa é uma acção de reconhecimento do direito de propriedade e restituição (ação de reivindicação), ou seja, uma acção puramente de direito privado, em que as partes atuam numa posição de igualdade e sem qualquer prerrogativa ou poder especial.
4) A ação em causa traduz uma causa de pedir e pedido de reconhecimento da propriedade da recorrente sobre a área real do seu lote industrial (“B2”) que desde sempre teve uma área real bem superior à descrita no registo predial e tal lote permanece inalterado, na sua realidade física e material, há mais de 30 anos, tal como sempre esteve circunscrito (delimitado) desde a sua criação, isto é, com uma vedação (inalterada) de arame, fixa em prumos de ferro e com entradas devidamente marcadas. Estando delimitado, desde sempre, a poente por um caminho em terra batida que bordeja toda a vedação existente, na confrontação poente, delimitadora da área do lote B6.
5) É jurisprudência unânime do Tribunal dos Conflitos que pertence aos tribunais judiciais a competência para conhecer de ações em que se discutem direitos reais, incluindo com a cumulação de pedidos indemnizatórios decorrentes da invocada violação do direito de propriedade.
6) Com o devido respeito por melhor e mais fundada opinião, o tribunal “a quo” é competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação e não a jurisdição administrativa e fiscal.
7) A, aliás, douta sentença judicial violou, por deficiente interpretação, o artigo 4º nº 1 alíneas i) do ETAF; o artigo 117º nº 1, alínea a) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais; os artigos 576, nºs 1 e 2, 577º alínea a); 96º, alínea a); 97 e 99º, nº 1 todos do CPC.
Nestes termos e no mais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente revogando-se a douta sentença judicial que declarou o tribunal incompetente em razão da matéria sendo substituída por outra decisão jurisdicional que julgue o juízo central cível do Tribunal Judicial de Castelo Branco competente em razão da matéria. /Como é de Justiça”.
“A. O douto despacho saneador-sentença recorrido não padece de nenhum dos erros que a apelante lhe assaca, devendo, a final, ser integralmente confirmado;
B. O enquadramento e a fundamentação levadas a cabo pelo Tribunal a quo relativamente à competência material foi, irrepreensivelmente, julgada pelo Tribunal de Primeira Instância, atenta a configuração da relação material controvertida pela recorrente, como sendo de natureza administrativa;
C. Os tribunais administrativos são os competentes para dirimir os litígios que envolvam uma entidade pública no exercício de poderes públicos, como o recorrido figura na presente ação, e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público – vd. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.06.2014, Processo n.º 01174/12 e Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 28.09.2010, Processo n.º 023/09, in www.dgsi.pt;
D. O douto despacho saneador-sentença, objeto do presente recurso, é correto tanto na forma como no conteúdo, fazendo uma adequada aplicação do direito ao caso vertente;
E. O despacho saneador-sentença a quo não viola nenhuma norma ou princípio de direito.
Nestes termos e nos demais de Direito e com o douto suprimento de Vossas Excelências deve o presente recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, o douto despacho saneador-sentença proferido nos autos pelo Tribunal a quo ser inteiramente mantido, como é de inteira Justiça.
“Nestes termos e no mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e em consequência ser a Ré condenada a:
A) Reconhecer o direito de propriedade da Autora do lote de terreno denominado por “B2”, composto por lote para construção urbana, sito na Quinta ..., Zona Industrial ..., na Freguesia ... e ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...11 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...07;
B) Reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre a área real do referido lote de terreno num total de 15.603,50 m2 devendo a ré restituir a parcela de terreno com a área de 4.753,80 m2 que faz parte integrante do lote B2.
C) Condenar, ainda, a ré a abster-se de praticar qualquer conduta que diminua a real área do lote B2.
D) Ser a ré condenada a pagar à autora, uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, reparadora dos prejuízos causados com a sua conduta, no montante de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento.
Quando assim, se não entenda:
E) Reconhecer que a autora, por si e ante possuidores, há mais de 30 anos e na convicção plena de o poder fazer é legítima dona e possuidora dum lote de terreno denominado por “B2”, composto por lote para construção urbana, com, sito na Quinta ..., Zona Industrial ..., na Freguesia ...
e ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...11 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...07 com a área real de 15.603,50 m2, por se considerar com direito próprio a isso, ininterruptamente sem estorvo ou oposição de ninguém, à vista de toda a gente do local, mantendo, conservando, melhorando, a expensas suas, o referido lote pelo que se outros títulos não tivesse, sempre, por usucapião, teria adquirido o direito de propriedade da área real do lote supra referida – causa de aquisição originária que se invoca para os devidos e legais efeitos;
F) Condenar-se, ainda, a ré a abster-se de praticar qualquer conduta que diminua a real área do lote B2;
G) Condenar-se a ré a restituir à Autora a parte da área do lote “B2” de 4.753,80 m2;
H) Ser a ré condenada a pagar à autora, uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, reparadora dos prejuízos causados com a sua conduta, no montante de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal em virgor, até efectivo e integral pagamento;
I) E, ainda, no pagamento das custas do processo e demais encargos legais do processo, tudo com as legais consequências.”
Na decisão impugnada o tribunal a quo considerou que se verifica incompetência material do Juízo Central Cível, baseando a sua decisão no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, que prescreve que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
Expendeu para tanto que: “Da citada disposição legal, decorre que todas as ações que tenham por objeto a interpretação, validade e execução de contratos respeitantes a bens do domínio público são da competência dos tribunais administrativos.
Atentos os considerandos expendidos e as normais legais aplicáveis, podemos concluir que só os Tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar todas as questões relativas à interpretação, interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica regulada por normas de direito público, como é o caso da classificação dos “espaços verdes”.
A propósito desta questão, como o réu bem refere na sua contestação, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 28.09.2012, no Processo n.º 023/09, in www.dgsi.pt, o qual decidiu que “os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. art. 4.º, n.º 1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição. Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atento a natureza pública do bem objeto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado «estatuto de dominialidade»
Ora, analisando a petição inicial, verificamos que a autora pretende, e no essencial, que o réu seja condenado a restituir-lhe a área de 4.573,8 m² da denominada parcela B2, a qual foi posta em causa pelo réu com o fundamento de que se encontra afeta ao domínio público, por corresponder a “área verde”.
Nesta medida, sendo a ré uma pessoa coletiva de direito público e pretendendo o autor o reconhecimento e restituição da parcela corresponde a “área verde” como sua propriedade é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da presente ação.” (sic).
Vejamos se assim é.
A competência jurisdicional resulta da medida da jurisdição atribuída aos diversos tribunais, isto é, do modo como eles repartem entre si o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto de todos os tribunais.
Para que um tribunal possa decidir sobre o mérito de um determinado processo judicial é indispensável, antes de mais, que a acção seja proposta perante o tribunal competente para a sua apreciação, traduzindo-se esse pressuposto processual na susceptibilidade de análise de determinada causa ou litígio, por os critérios determinativos legalmente estatuídos concederem a um tribunal uma medida de jurisdição suficiente para essa avaliação.
Para se fixar a competência do tribunal em razão da matéria deve atender-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em Juízo pelo demandante – a este respeito, cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pp. 74/75, e Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, p. 379.
Como ensinava Manuel de Andrade, em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o tribunal, a competência afere-se pelo quid disputatum ou quid decidendum: i.e., a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta – op. cit., p. 91.
Numa outra formulação, para verificar competência de um tribunal há que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo avaliar-se a natureza da pretensão formulada ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional e, ainda, os factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir.
Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros arestos:
– Acórdão do Tribunal dos Conflitos[2] de 20-09-2012, Proc. n.º 2/12: “A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos, sendo que em sede da indagação a proceder a este nível irreleva o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão”.
– Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 01-10-2015, Proc. nº 08/14: “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Sintetizando: é a estrutura da causa, tal como vem configurada pelo autor, a determinar a competência material do tribunal.
Na situação em apreço, segundo a causa de pedir e pedidos formulados na petição inicial, o que está em causa neste processo é, no essencial, o reconhecimento do direito de propriedade sobre a área real de um lote industrial (designado “B2”), alegando a recorrente, fundamentalmente, que: (a) desde sempre esse lote teve uma área bem superior à descrita no registo predial; (b) a realidade física e material do lote permanece inalterada há mais de 30 anos; (c) o lote está circunscrito, desde a sua criação, com uma vedação inalterada de arame, fixa em prumos de ferro e com entradas devidamente marcadas; (d) o lote, desde sempre, está delimitado, a poente, por um caminho em terra batida que bordeja toda a vedação existente, nessa confrontação, delimitadora da área do lote “B6”.
Em suma, o que a autora/recorrente pretende é o reconhecimento do seu direito de propriedade plena sobre a realidade física e material do lote industrial “B2” e a restituição do que alegadamente lhe foi retirado pelo Município ....
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais ou comuns é constitucionalmente definido por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme se alcança da leitura concatenada dos arts. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa[3], 64.º do Código de Processo Civil[4] e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013[5].
Segundo Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, 1999, pp. 31/32: “A competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal”.
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do artigo 212.º da Constituição, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídica administrativa ou fiscal, tal como explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Volume II, 2010, pp. 566/567, deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”.
Também no Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 20-09-2012, Proc. n.º 07/12, se aduz: “Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.”.
O tribunal recorrido, como se referiu anteriormente, entendeu estar-se perante uma relação jurídica administrativa, e enquadrou a situação sub judice no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, concluindo “(…) que só os Tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar todas as questões relativas à interpretação, interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica regulada por normas de direito público, como é o caso da classificação dos “espaços verdes”.
Salvo o devido respeito essa solução é errada, sendo certo que a alínea e) do art. 4º do actual ETAF mencionada pelo tribunal a quo nada tem a ver com o caso em discussão, referindo-se, apenas, a matérias contratuais.
A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, presentemente, está concretizada no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19-02, sucessivamente alterada em 16 ocasiões, tendo a 16.ª e última alteração sido introduzida pelo DL n.º 74-B/2023, de 28-08, reafirmando-se no artigo 1.º, n.º 1, do ETAF que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
O artigo 4.° do ETAF enuncia, através de enumerações, o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, definindo a título exemplificativo, pela positiva, os litígios nela incluídos (n.º 1) e pela negativa, os litígios dela excluídos (n.ºs 2 e 3).
Como refere Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 5ª edição, p. 118, a generalidade das alíneas do n.° 1 do citado preceito legal – com excepção de parte das alíneas b), e), g) e h), relativas a matéria de contratos e de responsabilidade civil – visa apenas a concretização positiva do aludido conceito de matriz constitucional, os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Um litígio emergente de relações jurídico-administrativas, como se verificou supra, será aquele que envolva uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, assim como aquele que se inscreva em relações que conferem poderes de autoridade ou impõem restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribuem direitos ou impõem deveres públicos aos particulares perante a Administração.
Analisando as várias alíneas que compõem o artigo 4.º, n.º 1, do ETAF – “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…)” – , anota-se que com a revisão pelo DL n.º 214-G/2015, de 02-10, a alínea i) daquele preceito legal passou a ter a seguinte redacção: “Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.
Lê-se no preâmbulo do DL n.º 214-G/2015 que: “(…) [E]stende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.
Interessa aqui apurar se a alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, na versão emergente daquele diploma legislativo, abrange, ou não, as acções reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à actuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.
Mário Aroso de Almeida – cf. Manual do Processo Administrativo, 2.ª edição, 2016, p. 171 – expende que: “Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”.
Jorge Pação – cf. Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF, “Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF”, 2.ª Edição, 2016, p. 197 –, sustenta que “(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum”.
Carla Amado Gomes – cf. Temas e problemas da justiça administrativa, 2018, pp. 39-56 e Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título, “Revista do Ministério Público”, n.º 15, Abril/ Junho, 2016, pp. 89-109 – sustenta que a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em “via de facto”, que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar, não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida.
Na avaliação da questão em apreço importa ter presente o disposto no artigo 9.° do Código Civil, sob a epígrafe “Interpretação da lei”:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Empreendendo a tarefa interpretativa do normativo previsto no artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF, de acordo com as coordenadas legais antes enumeradas, i.e., partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, afigura-se-nos, à semelhança do entendimento já sustentado em diversíssimos Acórdãos, que a norma contida no citado normativo deve ser interpretada no sentido de apenas atribuir a competência aos tribunais administrativos para as acções em que esteja em causa a remoção de actuações ilegais da Administração,“via de facto”, materializadas em actos concretos – v.g., ocupação ou apropriação física de propriedade privada.
Já, porém, se apenas discutir a titularidade do direito de propriedade sobre um imóvel, mormente no âmbito de acções de reivindicação, a competência continua a caber, como sempre aconteceu, à jurisdição comum e aos tribunais cíveis.
In casu, verificados os contornos do litígio, é manifesto que a autora/recorrente o configurou como uma típica acção de reivindicação, afirmando o seu domínio sobre um lote de terreno e articulando os factos que permitem estribar essa titularidade, peticionando o reconhecimento do seu direito e a restituição da coisa.
Trata-se, por conseguinte, de uma típica acção real, assente numa situação jurídica de direito privado, visando obter a tutela judicial do direito de propriedade, o qual se encontra regulado, não por normas ou institutos de direito público, mas por regras de direito privado, constantes dos artigos 1311.° e 1316.° do Código Civil.
Deste modo, a relação material controvertida, tal como é caracterizada pela autora, não se inscreve, de modo algum, em nenhuma das alíneas do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, mormente na alínea i).
Acresce que, tal como se decidiu no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 18-04-2023, Proc. n.º 022/22 (citando o Acórdão daquele Tribunal, de 23-01-2020, Proc. n.º 041/19), a circunstância de o pedido indemnizatório formulado contra o Município ... – cf., in casu, alíneas D) e H) do petitório – poder ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual não obsta a esta conclusão, já que esse pedido, tal como está formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal.
Ou seja, o pedido indemnizatório constitui mera consequência da reivindicação da propriedade, sendo consequente aos pedidos de reconhecimento do domínio e de restituição da coisa – cf. alíneas A), B) e C) e E), F) e G) do petitório.
A solução que por nós é perfilhada é, aliás, idêntica à adoptada pelo Tribunal dos Conflitos no Proc. n.º 036/21, de 08-11-2022:
“Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4°, nº 1 do ETAF abrange, ou não as acções reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9° do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2). Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.”.
De resto, o Tribunal dos Conflitos, já após a nova redacção do artigo 4.º do ETAF, tem entendido, de forma unânime, que a competência material para o conhecimento de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no âmbito da jurisdição administrativa, devendo ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual.
A este respeito, vejam-se, entre outros:
(i) Acórdão de 30-11-2017, Proc. n.º 011/17: “Se a acção se constitui como de reivindicação, já que a propriedade do terreno, que o Recorrido questiona alegando que o terreno pertence ao domínio público, surge como o que está em questão a título principal, pedindo-se a restituição integra da coisa indevidamente ocupada (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), a competência material para conhecer da mesma cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC)”.
(ii) Acórdão de 13-12-2018, Proc. n.º 043/18: “A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais, mesmo que cumulativamente se formule um pedido indemnizatório contra a entidade pública”.
(iii) Acórdão de 23-01-2020, Proc. n.º 041/19: “I - A competência material do tribunal afere-se em função do modo como o autor configura a acção, essencialmente definida pelo pedido formulado e pela causa de pedir invocada. II - Se os autores visam primordialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio rústico e, em consequência, a condenação dos réus a devolvê-lo no estado em que se encontrava inicialmente, mostra-se delineada uma acção onde os pedidos formulados correspondem a uma acção de reivindicação, alicerçada em aquisição originária e derivada e em facto presuntivo do direito de propriedade. III - O conhecimento dessa acção cabe na jurisdição dos tribunais comuns que são igualmente competentes para decidirem dos pedidos cumulados deduzidos com o pedido principal”.
(iv) Acórdão de 02-12-2021, Proc. n.º 03802/20.8T8GMR.G1.S1: “É da competência dos Tribunais Judiciais uma acção instaurada contra uma entidade pública na qual a autora pede que se reconheça o direito de propriedade que alega e que a ré restitua a parcela de terreno que indevidamente ocupou, invocando que adquiriu o direito por usucapião e que sempre beneficiaria da presunção de titularidade do direito de propriedade fundada, quer no registo predial, quer na posse”.
(v) Acórdão de 15-02-2023, Proc. nº 010/21: “Tal como a Autora apresenta o litígio, formulando pedidos que têm subjacente o direito de propriedade, que invoca e pretende fazer prevalecer, a relação controvertida é uma relação de direito privado, tratando-se da defesa do direito de propriedade de um bem do domínio privado da freguesia, pelo que a competência para conhecer desta acção em que se discutem direitos reais não se inclui no artigo 4º do ETAF, devendo esta ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual”.
(vi) Acórdão de 20-06-2024, Proc. n.º 01439/23.9BEBRG: “É da competência dos Tribunais Judiciais julgar uma acção declarativa de simples apreciação negativa na qual a questão central é a da titularidade do direito de propriedade de um bem invocado pelos Autores e da sua defesa perante a actuação dos Réus”.
Deste modo, não se enquadrando a relação jurídica em causa no processo sub judicio, tal como figurada pela autora/recorrente, no artigo 4.º do ETAF, uma vez que as pretensões formuladas radicam no direito real de propriedade, a competência material para apreciar a acção cabe aos tribunais judiciais.
Assim sendo, a competência material para a apreciação da presente acção pertence, no caso, ao Juízo Central Cível de Castelo Branco, de acordo com as disposições combinadas dos artigos 64.º do Código de Processo Civil, e 40.º, n.º 1, e 117.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Atendendo ao decaimento é o Município recorrido responsável pelas custas deste recurso – cf. arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.
Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, determinado que cabe ao tribunal a quo a competência em razão da matéria para a apreciação da causa.
Custas pelo Município apelado.
Luís Miguel Caldas
Cristina Neves
Anabela Marques Ferreira