RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL
CASO JULGADO FORMAL
Sumário

1. O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu (e que reproduz fielmente a sua vontade) - nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.
2. A razão de ordem pragmática para o referido princípio prende-se com a necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.
3. Se o despacho recai unicamente sobre a relação jurídica processual ou, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito, temos o caso julgado formal - art.º 620º, n.º 1 do CPC.
4. Para o caso julgado, à luz do disposto no art.º 620º, n.º 1, do CPC, releva a disciplina ou ordem no desenvolvimento do processo, tratando-se de decisões que versam sobre os pressupostos processuais ou, em geral, sobre questões que não são de mérito.
5. A segurança jurídica, na vertente da estabilidade processual, impõe a imutabilidade interna das decisões sobre a tramitação, com eventual sacrifício da possibilidade de se encontrar um melhor direito numa revisão do decidido, evitando-se, assim, que, no mesmo processo, sejam proferidas decisões contraditórias sobre os seus termos.
6. E se, em violação do preceituado no art.º 620º do CPC, o juiz proferir segunda decisão sobre a mesma questão concreta, seja ela ou não coincidente com a decisão anterior, apenas esta é eficaz, nos mesmos termos em que o n.º 1 do art.º 625º do CPC o impõe quanto às decisões de mérito - a eficácia daquela está prejudicada, ou melhor, paralisada, pela força e autoridade do julgado anterior.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Vítor Amaral

            Luís Cravo


         *

                       

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           I. Na ação declarativa comum movida por AA contra A...[1], em 16.10.2024 foi proferido o seguinte despacho:

            «(...) A ré vem reiterar o interesse na junção dos documentos por parte do autor, que comprovam os pagamentos efetuados aos artistas “Kevinho” e “Delfins”.

           Esclarece a ré que a sua pretensão se reconduz ao facto de tais espetáculos terem sido realizados em regime de coprodução e, por isso, ser relevante para apuramento dos efetivos lucros a repartir.

            O autor tem apresentado diversos argumentos no sentido de evitar a junção dos aludidos documentos, para além da idade e do tempo decorrido, invoca agora o argumento de que os valores contratados com os artistas têm acrescido um valor por desempenhar a função de agente daqueles, pelo que, não deverá aquele acréscimo ser valorado para efeitos do presente processo, reiterando que não tem qualquer relevância para os presentes autos.

            Cumpre apreciar e decidir:

           Com efeito, da análise do alegado pelo autor no seu artigo 20º a 58º da petição

inicial, por confronto com os artigos 41º a 80º da contestação, a propósito dos contratos de coprodução, constata-se que a ré vem assumir que os € 50 000 para os “Delfins” e os € 120 000 para o “Kevinho” representam o cachet dos artistas, mas não é isso que resulta da leitura da cláusula 2ª do contrato de coprodução.

           De facto, da leitura da aludida cláusula constata-se que, o valor de € 50 000 no caso do espetáculo dos “Delfins” (fls. 41 v.) e € 120 000 no caso do espetáculo do “Kevinho” (fls. 48 v.), tais valores contemplam, para além do cachet do artista, os músicos e a comitiva no regime de “chave na mão”, nos quais se inclui, ainda, “despesas: catering dos camarins, deslocação e alojamento do artista, músicos e comitiva, despesas de alimentação do artista e comitiva, despesas de aquisição, transporte, armazenamento e manutenção de meios materiais, bem como quaisquer encargos decorrentes da utilização de marcas registadas, patentes e licenças.”.

           Assim sendo, mesmo que o autor viesse comprovar o pagamento que efetuou aos artistas nos presentes autos, só esse pagamento não representaria a totalidade da responsabilidade que aquele parece ter assumido por força do contratado, já que no valor do espetáculo se incluem todas as demais despesas tendo em vista a sua realização, e que lhe são inerentes.

           Por outro lado, analisada a causa de pedir e o pedido deduzido nos presentes autos, não se nos afigura relevante a junção dos documentos por parte do autor, até porque o contratado foi chave na mão, e no pressuposto de que as partes convencionaram de boa-fé, se não foi uma preocupação da ré saber qual o pagamento efetuado pelo autor ao artista antes de celebrar o contrato, também não nos parece relevante que tal matéria venha a ser discutida agora nestes autos, considerando o exposto na cláusula 4ª dos aludidos contratos.

           Sem prejuízo de tudo quanto se disse, cumpre ainda reforçar que, em abstrato, a ré não deduziu reconvenção, nem excecionou o direito do autor quanto àquela matéria, pelo que, o ónus probatório cabe ao autor, competindo-lhe demonstrar os factos constitutivos do direito por si alegado, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 342º do Código Civil, recaindo sobre este as consequências do não cumprimento desse ónus, em face do preceituado no art.º 414º do Código de Processo Civil.

           Assim sendo, em face de todo o exposto, considero justificada a falta de junção dos documentos por parte do autor, requeridos pela ré, por extravasar o âmbito dos presentes autos e por se afigurarem irrelevantes para a boa decisão da causa.            Notifique.»

Dizendo-se inconformada, a Ré apelou formulando as seguintes conclusões:

I. Na sua contestação, a Requerente requereu fosse ordenada a notificação do Recorrido para juntar aos autos prova documental de ter pago € 50 000, acrescidos de IVA, de cachet ao grupo musical Delfins e € 120 000 mais IVA ao cantor[2] Kevinho ao abrigo do disposto no art.º 429º do CPC.

           II. Fundamentou a relevância da junção de tais documentos na pertinência do apuramento das receitas e das despesas respeitantes aos espetáculos com os artistas Delfins e Kevinho, ocorridos na edição do ano de 2022 da Feira de São Mateus, cuja modalidade contratual foi escolhida, em regime de coprodução, obrigando-se cada uma das partes a suportar metade do cachet dos artistas contratados.

           III. O pedido e causa de pedir, no que respeita a estes dois contratos de coprodução, assenta na alegação da necessidade prévia de serem quantificadas as despesas - referidas na cláusula 4ª de ambos os contratos - e as receitas de ambos os espetáculos, para se apurarem os lucros/prejuízos a serem suportado, em partes iguais pelas partes.

           IV. Em 10.4.2024, foram as partes notificadas do despacho de designação da data para a realização da Audiência de Discussão e Julgamento, que determinou, no seu ponto III: “a notificação do A. para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os documentos requeridos pelo R. no artigo 46º da contestação, o que se determina ao abrigo do disposto no artigo 429º do Código de Processo Civil, por tal documento se revelar pertinente para a boa decisão da causa”.

           V. Posteriormente, em 24.4.2024, veio o Requerido declarar não encontrar a documentação solicitada fundamentando a impossibilidade da junção dos documentos ordenada atenta a sua idade de 82 anos e por já “há bastante tempo” ter dado por encerrada a sua atividade profissional.

           VI. Em resposta de 26.4.2024, o Recorrente não aceitou a justificação apresentada pelo Recorrido e requereu a notificação do Recorrido para identificar a entidade a quem pagou o cachet pela actuação dos identificados artistas, indicando os respetivos agentes.

           VII. Em 09.5.2024, o Recorrido exerceu o contraditório opondo-se, desta vez, à junção dos documentos por entender que tal valor não relevava para os presentes autos, atento o pedido e a causa de pedir.

           VIII. Em 24.5.2024, a Recorrente reiterou a pertinência da junção dos mencionados documentos por se afigurar relevante para a apreciação do pedido e da causa de pedir, mormente atento o alegado em 20 da petição inicial (p. i.).

          IX. Em cumprimento do despacho de 19.6.2024, a Recorrente veio reafirmar o seu interesse na junção dos mencionados documentos que tinha sido, aliás, ordenada no ponto III do despacho de 10.4.2024, sublinhando, ainda que, a persistir a recusa nessa junção por parte do Recorrido, e sem prejuízo da aplicação de multa, deveria o Tribunal retirar as devidas ilações, designadamente as previstas no art.º 417º, n.º 2 por remissão do art.º 430º ambos do CPC.

           X. Enfatizou uma vez mais que, mantendo-se a recusa do Recorrido, a prova daquela factualidade poderia ser lograda junto dos próprios artistas ou dos seus agentes a quem deveria ser solicitada a informação sobre quais os valores recebidos de cachet de participação na edição de 2022 da Feira de São Mateus.

           XI. Sucede que, em 16.10.2024, a Mm.ª Juiz a quo, agora titular do processo, proferiu despacho objeto do presente Recurso, de cuja conclusão se extrai: “Assim sendo, em face de todo o exposto, considero justificada a falta de junção dos documentos por parte do autor, requeridos pela ré, por extravasar o âmbito dos presentes autos e por se afigurarem irrelevantes para a boa decisão da causa.”

           XII. Do teor desse despacho resulta que o Tribunal a quo alterou o despacho de 10.4.2024 depois de proferido, quer na parte da decisão, quer na parte dos fundamentos que a suportam quando já se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional.

            XIII. Debruçando-se sobre a mesma questão, os dois despachos em análise decidiram-na de modo flagrantemente contraditório

           XIV. Com efeito, a Digníssima Juiz a quo contrariou, pura e simplesmente, o anterior despacho que decidiu notificar o Recorrido para juntar os documentos ao processo, por força do art.º 429º do CPC, atenta a sua relevância para a boa decisão da causa vindo, agora, determinar justificada a falta de junção dos documentos por, designadamente, se afigurarem irrelevantes para a boa decisão da causa.

           XV. Assim, o despacho recorrido foi proferido em violação do princípio da extinção do poder jurisdicional do juiz consagrado no art.º 613º do CPC, desrespeitando, outrossim, o caso julgado formal do despacho modificado, devendo aplicar-se por analogia o disposto no n.º 2 do art.º 625º do CPC que, remetendo para o n.º 1, determina o cumprimento daquele que tiver transitado em primeiro lugar.

           XVI. Acresce que, o despacho proferido em violação do princípio da intangibilidade das decisões é insuscetível de produzir efeitos por que juridicamente inexistente, não valendo como decisão jurisdicional tendo o processo de regressar, nessa parte, à prolação do primeiro despacho que determinou a notificação do Recorrido para juntar os documentos requeridos pela Recorrente por se relevarem pertinentes para a boa decisão da causa, ao abrigo disposto no art.º 429º do CPC.

           XVII. Ainda que se entenda que o despacho recorrido não é juridicamente inexistente, sempre se dirá que a Meritíssima Juiz a quo não especificou os fundamentos de direito que justificam a decisão de legitimar a falta de junção dos documentos.

           XVIII. O Tribunal a quo considerou que tais documentos extravasavam o objeto dos presentes autos e eram irrelevantes para a boa decisão da causa, justificação que não tem respaldo no elenco do n.º 3 do art.º 417º do CPC.

           XIX. Mais, não se pronunciou sobre as consequências advenientes da recusa da junção aos autos daqueles documentos por parte do Recorrido, previstas no art.º 417º, n.º 2 por remissão do art.º 430º do CPC, aventadas pela Recorrente ao longo dos vários requerimentos que antecederam o despacho em crise.

            XX. Nem tampouco sobre a eventualidade de a prova poder ser lograda junto dos próprios artistas ou dos seus agentes a quem deveria ser solicitada a informação sobre quais os valores recebidos de cachet de participação na edição de 2022 da Feira de São Mateus, tal como requerido pela Recorrente.

            XXI. Donde, o despacho recorrido em crise é nulo por omissão de pronúncia e porque desprovido de fundamentação legal, nos termos do disposto na al a) e d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, devendo ser revogado.

            Remata dizendo que deve ser declarada a inexistência jurídica do despacho recorrido porque proferido em violação do princípio da intangibilidade das decisões, devendo o processo regressar, nessa parte, à prolação do primeiro despacho que determinou a notificação do Recorrido para juntar os documentos requeridos pela Recorrente, ao abrigo disposto no art.º 429º do CPC; ainda que assim não se entenda, deve o despacho recorrido ser revogado por nulidade, nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1 do CPC.

            O A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[3],  importa apreciar, sobretudo, se existe caso julgado formal.


*

           II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se refere no antecedente relatório e o seguinte:

           a) Por despacho de 09.4.2024, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo  ordenou, além do mais: «(...) III. Por fim, tal como requerido em sede de contestação, determino a notificação do A.[4] para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os documentos requeridos pelo R. no artigo 46º da contestação, o que se determina ao abrigo do disposto no art.º 429º do Código de Processo Civil, por tal documento se revelar pertinente para a boa decisão da causa».

            b) Por requerimento de 26.4.2024, o A. veio dizer que atenta a sua idade (82 anos), e uma vez que já há bastante tempo, deu por encerrada a sua atividade profissional, “não encontra a documentação solicitada, pelo que não é possível a sua junção”.

           c) Respondeu a Ré, volvidos dois dias, que “não aceita a justificação apresentada pelo A.”, “o A. não quer juntar tal documentação aos autos porque a mesma não o favorece” e, “perante esta recusa, requer (...) seja o A. notificado para identificar a entidade a quem pagou o cachet pela actuação” dos artistas em causa.

            d) Por requerimentos de 09 e 24.5.2024 seguiu-se nova troca de argumentos, afirmando-se, além do mais, o A., que tinha “a seu encargo o cachet de artista e comitivas, deslocações, alojamento, alimentação entre outras” e que “os factos que a R. pretende provar não têm qualquer interesse para a decisão da causa” e, a Ré, “que só após a dilucidação do valor das despesas, nas quais se incluem e, de resto, constituem a sua parte mais significativa, os cachets pagos aos dois artistas em questão, sem necessidade de mais considerações, caso o A. persista na recusa da junção aos autos destes documentos, deverá o Tribunal retirar daí as devidas ilações, designadamente, as previstas no artigo 417º, n.º 2 por remissão do artigo 430º do CPC, sem prejuízo de serem ulteriormente tomadas outras diligências com vista ao esclarecimento desta factualidade”.

           e) Foi depois proferido o despacho de 19.6.2024 que determinou a “notificação da Ré para, no prazo de 10 dias, esclarecer se mantém interesse na junção dos documentos cuja junção foi ordenada no ponto III. do despacho com a ref. eletrónica n.º 95188165 ou, invés, se pretende agora unicamente a notificação da A. para identificar a entidade a quem pagou o cachet (...)”.

            f) E a Ré veio dizer, em 01.7.2024:

           “1. Já no nosso requerimento com a referência 49016700, ajuizado em 24-05-2024, manifestávamos o interesse, para a dilucidação da factualidade pertinente a estes autos, na junção dos documentos em apreço, sublinhando que, a persistir a recusa, deveria o Tribunal retirar daí as devidas ilações, designadamente as previstas no art.º 417º, n.º 2 por remissão do artigo 430º do CPC, ´sem prejuízo de serem ulteriormente tomadas outras diligências com vista ao esclarecimento desta factualidade`.

           2. Portanto, sendo já aí inequívoco que a R. mantém interesse que o A. junte aos autos os documentos cuja junção foi ordenada no ponto III. do despacho com a referência 95188165, vem-se, todavia, reiterar tal interesse, para que dúvidas não remanesçam.

            (...)

           6. (...) mantendo-se a recusa do A., deverá, subsequentemente, procurar-se apurar junto dos próprios artistas ou dos seus agentes. (...)»

            g) Seguiu-se o despacho recorrido (de 16.10.2024).

            2. Cumpre apreciar e decidir.

           Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 613º, n.º 1 do Código de Processo Civil/CPC[5]). É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2). O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos (n.º 3).

           Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º (art.º 619º, n.º 1).

As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (art.º 620º, n.º 1). Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630º[6] (n.º 2).

Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar (art.º 625º, n.º 1). É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual (n.º 2).

            3. Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar (art.º 429º, n.º 1). Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação (n.º 2).

           Cabe recurso de apelação (autónoma) do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova (art.º 644º, n.º 2, alínea d)).

           4. Pese embora a clareza do predito quadro normativo, para melhor compreender a solução a dar ao caso em análise, nada melhor do que atender aos ensinamentos do Professor J. Alberto dos Reis.

            Diz o Insigne Mestre:

            - O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu (e que reproduz fielmente a sua vontade); nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.

            Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. ´Para ele` a decisão fica sendo intangível.

           Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida.

           - A razão de ordem pragmática para o referido princípio (que decorre do descrito quadro normativo[7]) prende-se com a necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via de recurso, alterar ou revogar a sentença ou o despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.[8]

           5. Porém, o dito princípio sofre as limitações a que aludem os art.ºs 614º a 617º.[9]

6. Se o despacho recai unicamente sobre a relação jurídica processual ou, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito, temos o caso julgado formal; se recai sobre o mérito da causa - sobre a relação jurídica substancial - temos o caso julgado material.

Ao caso julgado, seja ele material ou simplesmente formal, anda associada a ideia de estabilidade. O trânsito em julgado (v. g., por a parte vencida deixar passar o prazo dentro do qual lhe era lícito recorrer) imprime à decisão carácter definitivo: uma vez transitada em julgado, a decisão não pode ser alterada.

7. O caso julgado formal, em princípio, não projeta a sua eficácia para fora do processo respetivo, de sorte que a sua imutabilidade/estabilidade é restrita ao processo em que se formou, e por isso tudo se reduz ao fenómeno da preclusão.[10] As sentenças e os despachos que versem sobre questões processuais são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos.

Para o caso julgado, à luz do disposto no art.º 620º, n.º 1, do CPC, releva a disciplina ou ordem no desenvolvimento do processo, tratando-se de decisões que versam sobre os pressupostos processuais ou, em geral, sobre questões que não são de mérito.

A segurança jurídica, na vertente da estabilidade processual, impõe a imutabilidade interna das decisões sobre a tramitação, com eventual sacrifício da possibilidade de se encontrar um melhor direito numa revisão do decidido, evitando-se, assim, que, no mesmo processo, sejam proferidas decisões contraditórias sobre os seus termos.[11]

Nessas circunstâncias, o juiz fica vinculado, é-lhe vedado modificar a decisão!

E se, em violação do preceituado no art.º 620º, que o impõe, o juiz proferir segunda decisão sobre a mesma questão concreta, seja ela ou não coincidente com a decisão anterior, apenas esta é eficaz, nos mesmos termos em que o n.º 1 do art.º 625º o impõe quanto às decisões de mérito.[12]

8. Ante o descrito enquadramento normativo e doutrinário, afigura-se, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que nada se poderá objetar à pretensão formulada no recurso.

Na verdade, a concreta questão, em matéria probatória (meios de prova), que divide as partes foi decidida por despacho de 09.4.2024.[13]

            O assim decidido, sem que a Ré/recorrida haja reagido na forma processualmente adequada, transitou em julgado, em 30.4.2024 (ou 06.5.2024, se considerado o alongamento do prazo previsto no art.º 139º, n.º 5) - cf., ainda, art.º 644º, n.º 2, alínea d)[14].

           Em razão do caso julgado (formal), a Mm.ª Juiz do tribunal a quo não podia decidir conforme o fez no despacho sob censura, de sentido/conteúdo contrário a anterior despacho proferido nos autos - em virtude da vinculação do tribunal à decisão que proferiu e da insusceptibilidade de a modificar ou revogar.

Valendo e só podendo valer o anteriormente decidido, o despacho recorrido não poderá produzir quaisquer efeitos (é ineficaz) e será revogado - a sua eficácia jurídica está prejudicada, ou melhor, paralisada, pela força e autoridade do julgado anterior.[15]

           9. No despacho de 09.4.2024 o Mm.º Juiz do Tribunal a quo considerou que o documento em causa era «pertinente para a boa decisão da causa»; no despacho recorrido concluiu-se, ao invés, que tais documentos seriam «irrelevantes para a boa decisão da causa», decidindo-se noutro sentido.

            Trata-se de contradição que a lei não consente, desde logo, por razões de disciplina ou ordem no desenvolvimento do processo.[16]

           Acresce que o primeiro despacho transitou em julgado, com os inerentes efeitos.

           Por conseguinte, no contexto da relação processual, há que afirmar a figura do caso julgado, à luz do disposto no art.º 620º, n.º 1.

10. Resta dizer que é insubsistente e inconsequente todo o arrazoado do A. suscetível de fundar eventual recurso (não interposto) e que fica prejudicado o demais alegado pela Ré.

           11. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

           III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se o despacho recorrido, como se explicita em II. 8., supra. 

            Custas pelo A./recorrido.      


*

25.02.2025


               

       


[1] Instaurada em 13.3.2023.
[2] Retifica-se lapso manifesto.

[3] Admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
[4] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[5] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[6] Que assim reza: «Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário (art.º 630º, n.º 1). Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6º, das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195º e das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no artigo 547º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (n.º 2).»
[7] Com similitude bastante com o preceituado nas anteriores codificações, inclusive o Código de Processo Civil de 1939.
[8] Vide J. Alberto dos Reis, CPC anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 126 e seguintes.

[9] Aqui inaplicáveis, relativas à possibilidade de retificação de erros materiais (n.º 1 do art.º 614º), de suprimento de nulidades (art.º 615º, n.ºs 2 e 4) e de reforma da sentença (art.º 616º).

[10] Sobre o alcance do caso julgado formal, e admitindo, também, “efeitos extraprocessuais”, vide “post” publicado, no dia 29.5.2022, no blogue do IPPC com um comentário crítico desfavorável de Teixeira de Sousa ao acórdão do STJ de 14.10.2021-processo 1040/19.1T8ANS-A.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[11] Cf. o mencionado acórdão do STJ de 14.10.2021-processo 1040/19.1T8ANS-A.C1.S1.
   No referido aresto cita-se o seguinte excerto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 151/15, de 04.3 (publicado no mesmo “site”): «A intangibilidade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas, tem como finalidade imediata assegurar a disciplina da tramitação processual, uma vez que seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo um interminável refazer do percurso processual. Este subprincípio tem como fundamento último os valores imanentes ao Estado de direito democrático da segurança e da certeza jurídica. Dentro do processo, uma decisão transitada em julgado sobre uma questão processual não deixa de constituir uma resolução judicial de uma questão de incerteza, mediante a colocação de uma das afirmações nela envolvidas numa situação especial de indiscutibilidade. São, na verdade, ainda exigências de ordem e de segurança que impõem que sobre questões processuais já decididas se forme a preclusão da possibilidade de renovar a mesma questão no mesmo processo. É preciso, também nestes casos evitar que a mesma questão processual seja novamente colocada, obstar a que sobre ela recaiam soluções contraditórias e garantir a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. O chamado caso julgado formal não deixa, pois, de ser expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica.»
[12] Vide J. Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., págs. 156 e seguinte e 167 e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Volume 2, Coimbra Editora, 2001, págs. 681 e 693 e seguinte (comentando idênticas disposições do CPC de 1961, também similares às normas do CPC de 1939).
[13] Que não foi proferido ao abrigo do disposto no art.º 411º - cf., por exemplo, acórdão da RP de 23.4.2020-processo 6775/19.6T8PRT-A.P1, publicado no “site” da dgsi.

[14] Normativo que aponta para os requerimentos probatórios formulados pelas partes, estando em causa o direito à prova das partes e a sua tutela mediante a previsão de um recurso autónomo, e que “visou atenuar os ´efeitos negativos` que poderiam produzir-se ao nível da tramitação processual ou da estabilidade das decisões que põem termo ao processo” - vide A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, Almedina, pág. 156.
[15] Vide J. Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., págs. 196 e seguinte.

[16] Temos assim por correto o entendimento da recorrente quando diz que «Do teor desse despacho resulta que o Tribunal ´a quo` alterou o despacho de 10.4.2024 depois de proferido, quer na parte da decisão, quer na parte dos fundamentos que a suportam quando já se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional.» (cf. “conclusão XII”, ponto I., supra).