1. A ação executiva pressupõe a anterior definição dos elementos, subjetivos e objetivos, da relação jurídica que a justifica.
2. A verificação judicial da regularidade da instância executiva não se esgota no momento inicial da execução, mostrando-se possível ao longo da execução (até ao primeiro ato de transmissão dos bens), conforme prevê o art.º 734º do CPC, não ficando precludida com um eventual despacho liminar.
3. As questões objeto de conhecimento devem ser questões novas, i. é, de que o juiz ainda não haja apreciado: se já as decidiu não pode novamente conhecê-las no âmbito do art.º 734º, face ao disposto no art.º 613º, n.º 1 e à eficácia de caso julgado formal, do art.º 620º, n.º 1, do mesmo Código, quanto às questões concretamente apreciadas.
4. Falta o título executivo (com a materialização ou corporização dum direito exequível) ou a possibilidade de eventual acertamento (necessariamente baseado no título) a ter lugar após a citação dos executados para os termos da execução, se não resulta do título/documento dado à execução a alegada extinção do direito de habitação e correlativa obrigação de entrega do imóvel, e bem assim o não pagamento (se, quando e quantum) de quantias ligadas a tal pretensa extinção.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Moreira do Carmo
Fernando Monteiro
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Na execução movida por AA contra BB e CC[1], em 27.11.2024, sob a epígrafe “rejeição da execução” e a invocação do disposto no art.º 734º (Rejeição e aperfeiçoamento) do Código de Processo Civil (CPC), foi proferido o seguinte despacho:
«A Exequente alega no Requerimento Executivo (RE) que:
“1 - Exequente e Executados celebraram entre si, Contrato de Transação enviado aos Autos a 08/01/2017; / 2 - Por sentença de 10/01/2017[2] a Mm.ª Juiz homologou-a e condenou as partes a observarem o seu cumprimento. / 3 - Desta sentença, consta no essencial, que a ora Exequente, constituiu a favor dos Executados um direito de habitação, sobre o imóvel, inscrito na respetiva matriz urbana sob o art.º ...52 da Freguesia ..., pelo prazo de 25 anos contados do trânsito em julgado da sentença que a homologar. / (...) / 5 - Esquecendo a Exequente o que está para trás de junho de 2021, cansou-se de esperar e reclamar o que lhe é devido. / 6 - Assim, contactou, várias vezes os Executados, por si e através do seu Mandatário, telefónica, presencialmente e também, por escrito. / 7 - O último contacto que teve foi através de carta registada com aviso de receção datada de 22/11/2023, onde reclamava que lhe fosse efetuado o pagamento da quantia em dívida de € 1420,20, num prazo admonitório de 10 dias, valores relativos à prestação da casa, seguros ou juros de não pagamento atempado, ao Banco, cujo doc. se protesta juntar como Doc.1. / 8 - Em 28/12/2023 a dívida era já de € 1510,48, porquanto os valores pagos pelos Executados, nunca são pagos atempadamente e nunca são suficientes para pagar a totalidade da prestação, seguros e imposto de selo, comissão de manutenção e despesas de incumprimento, conforme contas discriminadas já enviadas e que se juntam em anexo como Doc.2. / 9 - Assim, verifica-se que o total em dívida é superior a mais do que duas prestações mensais consecutivas, que atualmente são de € 311,88 da prestação da casa e € 55,10 da prestação dos seguros associados, no total de € 367/mensal; / 10 - Os Executados pagaram de € 255 de dezembro de 2022 e setembro de 2023, sendo que depois pagaram € 295,18 em outubro e novembro de 2023 e € 322,84 em dezembro de 2023, sem contudo, pagar tudo o que estava para trás e que se tinha vencido. / 11 - Nestes termos deverá ser entregue à Exequente o imóvel por incumprimento dos Executados, considerando-se cessado o direito à habitação e ainda ser-lhe pago pelos Executados o valor de € 1 510,48 calculado até dezembro de 2023 ainda todo o valor que se vencer após aquela data, bem como os juros de mora que se vencerem após a citação, sendo que os vencidos são prescindidos. (...)”. * /
A transação judicialmente homologada que constitui o título executivo tem o seguinte teor:
“AA, BB e CC, Autor e Réus melhor identificados nos autos supra referenciados, informam V. Exa. que lograram chegar a um acordo quanto ao litígio dos presentes autos, quanto ao objecto da Acção e da Reconvenção, acordo que se rege pelas seguintes cláusulas:
§
(...) uma execução para entrega de coisa certa pressupõe que alguém assumiu (ou foi condenado a) e incumpriu uma obrigação de entregar uma coisa à Exequente.
Do teor da transação não resulta que os Executados se tenham vinculado, de qualquer forma, a entregar o imóvel à Exequente, pois nada estipularam quanto a isso nem fixaram qualquer prazo para esse efeito.
O objeto do negócio foi a constituição de um direito de habitação do imóvel da Exequente a favor dos Executados, pelo prazo de 25 anos, mediante a obrigação de os Executados efetuaram o pagamento a um Banco das prestações de um contrato de crédito de que a Exequente é titular junto do mesmo.
Mais acordaram que o direito de habitação se extinguiria caso os Executados não efetuassem o pagamento ao Banco de mais do que 2 prestações mensais consecutivas. /*/
Deste modo, a nosso ver, conforme “supra” exposto, o título executivo apresentado[3] não abarca nem o incumprimento das obrigações assumidas pelos Executados de pagamento das prestações ao Banco, nem a extinção do direito de habitação, nem, muito menos, a obrigação de restituição do imóvel objeto do direito de habitação.
O acórdão do STJ de 12-11-2020 (1139/18.1T8CBR-A.C1.S1):
“I - Para que a transação judicial homologada por sentença valha como título executivo tem ela de ser constitutiva de uma obrigação, não cumprindo tal requisito se apenas se prevê a sua constituição; II - É o que sucede com a sentença homologatória de transação, que não é título executivo da cláusula penal nela prevista para o caso de incumprimento por qualquer das partes do acordo, por a situação de incumprimento ser constitutiva da obrigação e não se encontrar abrangida pelo título.”
O acórdão do STJ de 12-7-2018 (309/16.1T8OVR-B.P1.S1):
“I - Consistindo o título dado à execução numa sentença homologatória de um acordo de transação do qual consta a obrigação dos aqui embargantes (ali réus) eliminarem, dentro de certo prazo, certos defeitos em imóvel, discriminados no próprio acordo, e tendo as partes convencionado também que, caso tal obrigação de eliminação dos defeitos não fosse cumprida, seriam os mesmos embargantes obrigados a indemnizar a aqui embargada (ali autora) no valor de € 30 000, o que está em causa é o próprio facto constitutivo da obrigação exequenda, isto é, o incumprimento da obrigação de eliminação dos defeitos do imóvel. II - A ocorrência de tal situação de incumprimento do acordo de transação não se encontra abrangida pelo âmbito de exequibilidade do título apresentado, tornando-o manifestamente insuficiente para a execução.”.
O acórdão do STJ de 30.4.2015 (312H/2002.P1.S1):
“(...) 3. Constando de transação homologada por sentença uma cláusula de indemnização devida pelo eventual não cumprimento definitivo das obrigações de prestação de facto ali assumidas, não se têm por compreendidas no âmbito da eficácia do caso julgado dessa sentença nem a situação de incumprimento definitivo verificada posteriormente nem a obrigação de indemnização que desta possa decorrer. 4. Sendo tal situação de incumprimento um facto constitutivo essencial da obrigação de indemnização, cujo ónus de prova impende sobre o credor, nos termos do n.º 1 do artigo 342º do CC, a não cobertura daquele facto pelo acordo homologado obsta a que se extraia da sentença homologatória uma condenação implícita do devedor na pretendida obrigação indemnizatória. 5. Em tal medida, essa sentença homologatória é manifestamente insuficiente para servir de título à execução da pretendida obrigação de indemnização, o que constitui vício insuprível determinativo da extinção da execução. ...”.
Em conclusão, (...) à luz do art.º 726º/2/a) CPC, é manifesta a falta de título executivo para o pedido executivo formulado de entrega de coisa certa.
Pede a Exequente a cobrança coativa dos Executados da quantia de € 1 510,48, calculado até dezembro de 2023, e ainda todo o valor que se vencer após aquela data, bem como os juros de mora que se vencerem após a citação.
Sobre esta parte do pedido executivo formulado, consignou-se no título executivo que os Executados se obrigavam a pagar ao Banco as prestações devidas pelo âmbito do contrato de crédito n.º ...96 e que o direito de habitação extinguir-se-ia em caso de não pagamento de mais do que duas prestações mensais consecutivas.
(...) é manifesto que se trata de uma obrigação de pagamento absolutamente genérica e da qual não é a Exequente credora à face do título executivo apresentado.
Por outro lado, do teor da transação judicialmente homologada é totalmente impossível alcançar como estando em dívida a alegada quantia de € 1 510,48.
O acórdão do STJ de 30.11.2023 (569/22.9T8CHV-B.G1.S1):
“I - A obrigação é ilíquida quando não se encontra determinada em relação à sua quantidade, carecendo da efetivação de cálculos aritméticos ou do apuramento de factos que permitam a sua quantificação. II - Para que o processo executivo prossiga a sua normal tramitação tem o exequente de formular pedido líquido na execução, devidamente quantificado ou fixado, ou se o mesmo se for ilíquido, que proceda à respetiva liquidação, pois a tanto impõe o art.º 716º, n.º 1, do CPC, segundo o qual “Sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido”.(...) IV - Não dependendo a liquidação da obrigação exequenda de simples cálculo aritmético, tal significa que, nos termos do art.º 704º, n.º 6, do CPC, a mesma só pode constituir título executivo após a liquidação no processo declarativo, sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte que seja líquida e do disposto no n.º 7 do art.º 716º. V - Não tendo sido instaurado o prévio incidente de liquidação, nos termos do art.º 358º e ss. do CPC, da sentença não resultando qual o quantitativo pecuniário em que se cifram os créditos da ré, não existe qualquer condenação da embargante a pagar um montante líquido. VI - A sentença nestes moldes só será exequível na sua inteireza, quando realizada liquidação do crédito da executada, pois só aí se poderá saber qual o crédito da exequente, ou mesmo se este existe, só aí, ao fim de contas, se pode afirmar o crédito exequendo como líquido. VII - A liquidação enxertada na fase inicial da acção executiva, cujos trâmites implicam produção de prova e decisão judicial (de liquidação), está gizada para execuções fundadas em título executivo, diversos de sentença, de que conste obrigação pecuniária não liquidada, nem liquidável por simples cálculo aritmético (n.º 4) bem assim para execuções baseadas em decisões judiciais ou equiparadas não envolvidas pelo regime específico do art.º 358º, n.º 2 (como sucede com indemnizações ilíquidas arbitradas em processo penal ou em procedimento cautelar) e ainda para execuções fundadas em decisões arbitrais que condenem em quantia ilíquida não liquidável por simples cálculo aritmético (n.º 5). (...)”.
O Acórdão da RC de 26-10-2021 (4598/06.1TVLSB-C.C1):
“1 - O título executivo é a base de qualquer execução, por ele se determinam o fim e os limites da execução (art.º 10º do CPC), a legitimidade ativa e passiva (art.º 53º do CPC) e se sabe se a obrigação é certa, líquida e exigível (art.º 713º do CPC). 2 - A certeza da obrigação, enquanto requisito da exequibilidade intrínseca da pretensão, constitui um dos pressupostos da exequibilidade do título, e pressupõe uma prestação que se encontra, qualitativamente determinada no momento da sua constituição. 3 - A falta de liquidação incidental de sentença genérica relativamente a uma parte do pedido exequendo tem como consequência o indeferimento liminar parcial do requerimento executivo porque a sentença não constitui título executivo nessa parte. 4 - Diz-nos o art.º 704º, n.º 6, do CPC que: “Tendo havido condenação genérica, nos termos do nº 2 do artigo 609º, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte que seja líquida e do disposto no nº 7 do artigo 716º”.”.
Deste modo, a nosso ver, à luz do título executivo apresentado, a Exequente não é diretamente credora de uma obrigação de pagamento assumida pelos Executados. E, mesmo que se considerasse a Exequente como credora dessa obrigação de pagamento à luz do título executivo apresentado, sempre tal cobrança coativa dependeria de prévia liquidação no processo declarativo, nos termos do art.º 704º/6 CPC.
Em conclusão, (...) à luz do art.º 726º/2/a) CPC, é manifesta a falta de título executivo para o pedido executivo formulado de pagamento de quantia certa.
1) Rejeitar a Execução por falta de título executivo. (...)»
Inconformada, a exequente apelou formulando as seguintes conclusões:[5]
1ª - Em 12.6.2024, foi proferido Despacho sobre a existência ou inexistência de título executivo, depois de pedidos de esclarecimentos anteriores através do despacho de 22.4.2024, em que refere: “(...) Analisado o teor da transação que subjaz ao título executivo, constata-se que, no que se refere à entrega do imóvel, nada é previsto. Assim, notifique o exequente para se pronunciar quanto à eventual falta de título executivo para a entrega do referido imóvel (cf. art.º 3º, n. º 3 do CPC) (...)”.
2ª - E que foram prestados pela Exequente/Recorrente, através do requerimento de 05.5.2024, esclarecendo: “AA, Exequente nos presentes Autos vem dirigir-se a V.ª Ex.ª e dizer e requerer o seguinte: 1 - Conforme consta do título, “(...)” / 2 - Conforme dali decorre se se extingue, ou se se extinguir, umas das consequências é a entrega do imóvel, não se vislumbra outra hipótese. / 3 - Assim, o que há a verificar pelo tribunal é se efectivamente estão incumpridas duas ou mais prestações, se os Executados deduzirem Oposição à execução e se o motivo ou um dos motivos for este. / 4 – Assim, entende que não faz sentido intentar ação declarativa, para dirimir esta questão, que pode ser apreciada em sede de execução, pelo que devem os Autos prosseguir para execução.”
3ª - Destarte, apenas se justifica esta decisão, pelo facto do Sr. Magistrado Judicial que proferiu a sentença que agora se coloca em crise, não ser o mesmo, que decidiu a mesma questão por Despacho de 12.6.2024, mas em que o antecessor, vincula o sucessor.
4ª - Face a este teor, apenas poderemos concluir pela existência de lapso do Tribunal, mas a que a Exequente é completamente alheia.
5ª - Neste conspecto, quanto ao 1º § deste Despacho, a única decisão vertida nos Autos, data de 12.6.2024, e onde foi determinado o prosseguimento dos Autos, em virtude obviamente de estarmos perante um título Executivo, questão que foi dissecada com os esclarecimentos anteriores, em virtude dos Despachos suprarreferidos.
6ª - E neste Despacho, refere-se expressamente, “(...) é possível extrair a obrigação de entrega do imóvel após a extinção do direito de habitação.”
7ª - Obviamente, que nesta sequência veio a Sr.ª Agente de Execução, diligenciar pela entrega do imóvel, suspensa que foi, pelos motivos que nos escusamos de evidenciar e gerador dos Apensos que o Mm.º Juiz agora entende não dever apreciar em virtude na inexistência de título Executivo.
8ª - O Despacho de 12.6.2024 esgota o poder jurisdicional do Juiz quanto a esta matéria, nos termos do n.º 1 do art.º 613º do CPC, “(...) Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. (...)”
9ª - Verificando-se a exceção de caso julgado, que se alega, nos termos do n.º 1 do art.º 580º do CPC, “(...) As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.”
10ª - Normas estas que resultam violadas, tal como as seguintes.
11ª - Deste modo, o Mm.º juiz ao determinar agora a inexistência de título executivo, está a extravasar o pedido e as suas competências e adultera completamente a decisão anterior, proferida neste processo, violando o caso julgado ou até, verificando-se um excesso de pronúncia gerador de nulidade do Despacho/Sentença a que ora se responde, nos termos do n.º 2 do art.º 608º e 609º do CPC.
12ª - Estando ainda em causa e al. e) do n.º 1 do art.º 615º do mesmo diploma legal: 1 - É nula a sentença quando: (...) e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. (...)”
13ª - Ao invés, não se pronuncia, questão que fica prejudicada, sobre o que verdadeiramente lhe foi colocado na secretaria, e que se prende com a suscitada questão da confirmação da suspensão da execução suscitada pelos Executados, e dos incidentes de deferimento de desocupação do imóvel e prestação de caução.
14ª - A Exequente não se vai debruçar sobre o mérito ou demérito da decisão, apenas, evidenciando que nem os Executados colocaram esta questão, sendo que também, a liquidação pode ser efetuada em sede de execução.
15ª - Não se pode despender recursos humanos e económicos, desta forma.
16ª - Os Executados, por outro lado, têm à sua mercê outros instrumentos, ou melhor, tinham à sua mercê e deles abdicaram, pois não deduziram embargos de executado, no prazo de 20 dias após a citação.
17ª - Pelo que deverão os Autos prosseguir com as diligências executivas e o Mm.º Juiz apreciar as questões pendentes supra citadas - a saber: a) Confirmação da suspensão; b) Diferimento da desocupação; c) Prestação de caução -, para as quais a Exequente, obviamente ainda não foi notificada.
Remata pedindo a revogação do despacho de 27.11.2024 e o prosseguimento dos autos.
Os executados responderam concluindo pela improcedência do recurso. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar, sobretudo: a) se os elementos disponíveis determinavam ou não a rejeição da execução, ao abrigo do disposto no art.º 734º do CPC; b) se existe caso julgado formal.
a) Em 16.02.2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Vem a Exma. Sr.ª Agente de Execução requerer o auxílio da força pública para a concretização da entrega do imóvel nos termos dos art.ºs 861º e 626º, n.º 3 do CPC. / Porém, e antes de mais, impõe-se que o exequente proceda à junção dos documentos a que alude no requerimento executivo, que não foram apresentados conjuntamente com o mesmo ou em momento posterior. / Deverá, outrossim, ser junta certidão da transação, sem a qual não é possível aferir com rigor os termos do acordo homologado e, consequentemente, os limites do título executivo. / Assim, notifique o exequente para, em 10 dias, proceder à junção dos elementos documentais acima mencionados. / Notifique e comunique.»
b) Na sequência de requerimento da exequente, surgiu o despacho de 13.3.2024, assim redigido: «É este o teor do ponto 6º do requerimento executivo: 7 - O último contacto que teve foi através de carta registada com aviso de receção datada de 22/11/2023, onde reclamava que lhe fosse efetuado o pagamento da quantia em dívida de € 1420,20, num prazo admonitório de 10 dias, valores relativos à prestação da casa, seguros ou juros de não pagamento atempado, ao Banco, cujo doc., se protesta juntar como Doc. 1. / Renovo, pois, o teor do precedente despacho, quanto ao documento protestado juntar. / Notifique. / * / Proceda à junção de certidão da transação sobre a qual recaiu a sentença homologatória dada à execução, que constitui complemento do título.»
c) Apresentado novo requerimento da exequente (em 25.3.2024), o Mm.º Juiz proferiu despacho (em 22.4.2024) com o seguinte teor: «Ref.ªs 8770193 e 8773712 / Tomei conhecimento. / * / Analisado o teor da transação que subjaz ao título executivo, constata-se que, no que se refere à entrega do imóvel, nada é previsto. / Assim, notifique o exequente para se pronunciar quanto à eventual falta de título executivo para a entrega do referido imóvel (cf. art.º 3º, n. º 3 do CPC). / Notifique e comunique à Sr.ª AE.»
d) Na sequência do requerimento da exequente de 05.5.2024[6], o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (a 12.6.2024): «Numa leitura conjugada da cláusula 4ª da transação dada à execução com os artigos 1483º e 1490º do C. Civil, é possível extrair a obrigação de entrega do imóvel após a extinção do direito de habitação. / Destarte, por ora, nada obsta ao prosseguimento dos autos. // * // Requerimento de 17/01/2024[7]: Tendo a Exmo. AE tentado obter a sua entrega voluntária, sem sucesso, autorizo o recurso à força pública para o acto de entrega imóvel discriminado no requerimento executivo, nos termos do preceituado no art.º 757, nºs. 3 a 7, aplicável por força do art.º 861, nºs. 3 a 6, ambos do CPC. / Notifique e comunique. / Alerte o AE para, tratando-se de casa de habitação principal do(s) executado(s), e caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do(s) mesmo(s), comunicar antecipadamente o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes (cf. art.º 861, n.º 6, do CPC).»
e) Porque aquele despacho foi notificado às partes e tendo os executados apresentado requerimentos a 25.6.2024 e 05.7.2024, o Tribunal a quo proferiu ainda o seguinte despacho (a 11.7.2024):
«Os executados ainda não se acham citados, porquanto estamos no âmbito de uma execução de sentença para entrega de coisa certa, que segue a tramitação prevista no art.º 626º, n.º 3 do CPC. Como tal, a notificação para dedução de oposição à execução sucede à entrega do bem. / Daqui há que retirar duas ilações: ´primeiro`, os executados não deveriam ter sido notificados para quaisquer termos processuais, na medida em que a entrega não se efetivou e, consequentemente, não lhe é conferido o direito adjetivo de reagirem a um despacho judicial de que tão-pouco deviam ter sido notificados; ´segundo`, é precipitado o requerimento dos executados, na medida em que o legislador instituiu mecanismos processuais que permitem a tutela do direito de habitação sem colidir com a tramitação acima enunciada, desde logo a possibilidade de suspensão das diligências executórias por decisão inicial do Agente de Execução, ex vi art.º 863º, n.º 3 do CPC, seguindo-se o procedimento previsto nos n.ºs 4 e 5 desse mesmo preceito, aplicável ao caso vertente por remissão expressa do art.º 861º, n.º 6. / Pelas mesmas razões, é prematura a apreciação do pedido de conferência das prestações mensais pagas pelos executados, por se tratar de matéria a suscitar em sede de embargos de executado. / Pelo exposto, indefere-se o requerido. / Notifique e comunique.»
f) Os executados foram citados para os termos da execução em novembro/2024 (cf. documentos de fls. 55 e 57).
g) A entrega do imóvel em causa ficou suspensa, conforme consta dos documentos de fls. 59 e seguintes, de 05.11.2024.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objetivos e subjetivos (art.º 10º, n.º 5, do CPC[8]).
À execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias; (...) (art.º 703º, n.º 1, sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”).
3. O título executivo apresenta-se como requisito essencial da ação executiva e há de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, i. é, documento suscetível de, por si só, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo; o título executivo ganha a relevância especial que a lei lhe atribui da circunstância de oferecer a segurança mínima reputada suficiente quanto à existência do direito de crédito que se pretende executar.[9]
A ação executiva pressupõe a anterior definição dos elementos, subjetivos e objetivos, da relação jurídica que a justifica.
Tal definição está contida no título executivo, documento que constitui a base da execução.
Munido do título executivo, “o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo lhe dá”.[10]
4. O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo (art.º 734º, n.º 1). Rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte (n.º 2).
A verificação judicial da regularidade da instância executiva não se esgota no momento inicial da execução, mostrando-se possível ao longo da execução (até ao primeiro ato de transmissão dos bens), conforme prevê o art.º 734º, não ficando precludida com um eventual despacho liminar.
Só com esse primeiro ato de transmissão preclude, pois, a possibilidade de apreciação, no âmbito do processo executivo, dos pressupostos processuais gerais e das questões de mérito respeitantes à existência da obrigação exequenda.
5. Até esse momento, o juiz deve convidar à supressão da irregularidade ou da falta do pressuposto ou rejeitar oficiosamente a execução, proferindo neste caso despacho de extinção da instância, logo que se aperceba da ocorrência de alguma das situações suscetíveis de fundar o aperfeiçoamento ou indeferimento liminar, quer tenha ou não havido despacho liminar e quer tal situação fosse já manifesta à data em que este foi proferido, quer só posteriormente se tenha revelado no processo executivo ou, mesmo, no processo declarativo dos embargos de executado.[11]
Mas as questões objeto de conhecimento devem ser questões novas, i. é, de que o juiz ainda não haja apreciado: se já as decidiu não pode novamente conhecê-las no âmbito do art.º 734º, face ao disposto no art.º 613º, n.º 1 e à eficácia de caso julgado formal, do art.º 620º, n.º 1, quanto às questões concretamente apreciadas.[12]
6. A exequente/recorrente baseia-se, sobretudo, no teor da “cláusula 4ª” do acordo homologado pela sentença exequenda (“O direito de uso e habitação que se constitui pela presente transação, extinguir-se-á em caso de não pagamento de mais do que duas prestações mensais consecutivas.”) e a que se alude no despacho de 12.6.2024.
Porém, no referido despacho, não foi decidida uma questão concreta, mas, no confronto com a posição assumida pela exequente, apenas se considerou ser possível afirmar a obrigação de entrega do imóvel após a extinção do direito de habitação, donde se concluiu que, ante os elementos disponíveis (e sem que os executados tivessem sido chamados à execução), nada obstaria ao prosseguimento dos autos - cf. II. 1. d), supra.
Não existia, então, face ao “título” apresentado, a relativa certeza ou probabilidade julgada suficiente da existência da obrigação que se pretendia executar ou o grau de certeza (sobre a existência do direito) que o ordenamento jurídico entende exigível para a admissibilidade da ação executiva.[13]
7. Na verdade, não resultando do título dado à execução a extinção do direito de habitação e correlativa obrigação de entrega do imóvel [veja-se, a propósito, o teor do despacho de 22.4.2024 - cf. II. 1. c), supra], e bem assim a falta de pagamento (se, quando e quantum) de quantias ligadas a tal eventual extinção, não se poderia considerar existir título exequível (com a materialização ou corporização dum direito exequível), ou a possibilidade de eventual acertamento (necessariamente baseado no título) a ter lugar após a citação dos executados para os termos da execução.
Por conseguinte, a verificação judicial da regularidade da instância executiva implicava a rejeição da execução, atento o disposto no art.º 734º, bem querida pelo legislador até ao referido momento (do primeiro ato de transmissão dos bens), posterior ao do despacho liminar.[14]
8. Para o caso julgado, à luz do disposto no art.º 620º, n.º 1[15], releva a disciplina ou ordem no desenvolvimento do processo, tratando-se de decisões que versam sobre os pressupostos processuais ou, em geral, sobre questões que não são de mérito.
A segurança jurídica, na vertente da estabilidade processual, impõe a imutabilidade interna das decisões sobre a tramitação, com eventual sacrifício da possibilidade de se encontrar um melhor direito numa revisão do decidido, evitando-se, assim, que, no mesmo processo, sejam proferidas decisões contraditórias sobre os seus termos.[16]
Nessas circunstâncias, o juiz fica vinculado, é-lhe vedado modificar a decisão.
9. Levando em conta o descrito entendimento e considerados os elementos disponíveis - desde logo, a circunstância de o despacho de 12.6.2024 não ter decidido qualquer questão concreta; acresce que os executados foram citados, apenas, em novembro seguinte - é evidente que nada se decidira com influência na relação processual das partes e continuava em aberto, nomeadamente, a eventual aplicação do preceituado no art.º 734 e a consequente (e total) extinção da execução.
10. Ficou assim prejudicado o conhecimento das questões suscitadas na sequência das diligências do início de novembro/2024, como se referiu na “2ª parte” do despacho de 27.11.2024 (“incidente de suspensão da execução”).
11. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.
Custas pela exequente/apelante.
25.02.2025
[1] Instaurada em 02.01.2024.
[2] Retificou-se lapso manifesto - cf. documento de fls. 8/28.
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto (sem menção diversa).
[4] Sublinhado da decisão recorrida.
[5] Com alguma sintetização.
[6] Com o seguinte teor: «(...) 1 - Conforme consta do título, / “(...) QUARTA / O direito de uso e habitação que se constitui pela presente transação, extinguir-se-á em caso de não pagamento de mais do que duas prestações mensais consecutivas. (...)” / 2 - Conforme dali decorre se se extingue, ou se se extinguir, umas das consequências é a entrega do imóvel, não se vislumbra outra hipótese. / 3 - Assim, o que há a verificar pelo tribunal é se efectivamente estão incumpridas duas ou mais prestações, se os Executados deduzirem Oposição à execução e se o motivo ou um dos motivos for este. / 4 - Assim, entende que não faz sentido intentar ação declarativa, para dirimir esta questão, que pode ser apreciada em sede de execução, pelo que devem os Autos prosseguir para execução.»
[7] Sublinhado do despacho.
[8] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[9] Vide J. Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 45 e seguinte.
[10] Vide Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, pág. 48.
[11] Vide J. Lebre de Freitas, ob. cit., págs. 188 e seguinte e Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, pág. 356.
[12] Vide Rui Pinto, ob. cit., pág. 357.
[13] Vide J. Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 85.
[14] Cf., por exemplo, acórdão da RP de 09.9.2024-processo 462/21.2T8OVR.P1, publicado no “site” da dgsi.
[15] Que assim reza: “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
[16] Cf. acórdão do STJ de 14.10.2021-processo 1040/19.1T8ANS-A.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
No referido aresto cita-se o seguinte excerto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 151/15, de 04.3 (publicado no mesmo “site”): «A intangibilidade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas, tem como finalidade imediata assegurar a disciplina da tramitação processual, uma vez que seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo um interminável refazer do percurso processual. Este subprincípio tem como fundamento último os valores imanentes ao Estado de direito democrático da segurança e da certeza jurídica. Dentro do processo, uma decisão transitada em julgado sobre uma questão processual não deixa de constituir uma resolução judicial de uma questão de incerteza, mediante a colocação de uma das afirmações nela envolvidas numa situação especial de indiscutibilidade. São, na verdade, ainda exigências de ordem e de segurança que impõem que sobre questões processuais já decididas se forme a preclusão da possibilidade de renovar a mesma questão no mesmo processo. É preciso, também nestes casos evitar que a mesma questão processual seja novamente colocada, obstar a que sobre ela recaiam soluções contraditórias e garantir a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. O chamado caso julgado formal não deixa, pois, de ser expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica.»